Geórgia Santos

Entenda por que esporte é lugar de política, sim

Geórgia Santos
26 de fevereiro de 2018

Tiago Leifert escreveu, em artigo para a revista GQ, que “Evento esportivo não é lugar de manifestação política”. Foi profundamente infeliz. Simples assim. Em apenas um texto, o jornalista ignora o significado de política e cidadania e, ao mesmo tempo, nega a História.

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“Olhando por todos os lados, não vejo motivos para politizar o esporte”

(Tiago Leifert)

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Estas 12 palavras são um resumo justo da ignorância que o texto inteiro transmite. Imediatamente após ler, minha memória foi inundada por imagens que todos já vimos em algum momento de nossas efêmeras e insignificantes existências.

(Ullstein Bild / Getty Images)

A amizade entre o medalhista olímpico Jesse Owens e o alemão Luz Long fez cair o queixo de Adolf Hitler. Owens foi o atleta negro que ganhou quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Luz o abraçou diante de milhares de pessoas, entre elas milhares que acreditavam na superioridade dos arianos. Entre elas Adolf Hitler. Aquele abraço foi um ato político e não teria o mesmo significado se não fosse em um evento esportivo daquela magnitude.


(Riccardo Gazzaniga /Arquivo / San Francisco Globe)

Uma das cenas mais emblemáticas da história da Olimpíada foi protagonizada no México, em 1968. Tommie Smith e John Carlos, atletas dos 200m rasos que ficaram com as medalhas de ouro e bronze, respectivamente, ergueram os punhos fechados durante a execução do hino nacional. O gesto havia sido consagrado pelo movimento dos Panteras Negras, que combatia a discriminação racial nos Estados Unidos na década de 60. Eles foram expulsos daquela edição dos jogos, condenados pela imprensa e por parte da população branca americana. Ainda assim, foram e são considerados heróis na luta pelos direitos civis dos negros norteamericanos. Aquele gesto foi um ato político e não teria o mesmo significado se não fosse um evento esportivo daquela magnitude.

(Arquivo/Clube dos Cinco)

No Brasil, a Democracia Corinthiana revolucionou o futebol em plena Ditadura Militar. Decisões importantes eram tomadas por meio do voto igualitário dos membros do clube, inclusive decisões sobre a liberdade para expressar opiniões políticas. O movimento foi liderado por Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon. Entre 1980 e 1984, o clube adotou a autogestão, quitou suas dívidas e ainda deixou U$ 3 milhões em caixa. A Democracia Corinthiana foi um ato político e não teria o mesmo significado se não fosse parte de um evento esportivo daquela magnitude.

(Divulgação / Libretos)

Mais próximo, quem não lembra da Coligay, do Grêmio, a primeira torcida formada exclusivamente por homossexuais. Era pura ousadia em plena Ditadura. Em 1977, Volmar Santos fundou a falange que chamava atenção por dar um grito de liberdade em um meio que, até hoje, é extremamente homofóbico e machista. O jornalista Léo Gerchmann relatou a história desses caras incríveis no livro “Coligay – Tricolor e de todas as cores”. A Coligay foi um ato político e não teria o mesmo significado se não fosse parte de um evento esportivo de tamanho magnitude.

E estes foram apenas os que lembrei de memória. Sem falar em Colin Kaepernik, jogador da NFL que se ajoelhou durante a execução do hino dos EUA como forma de protesto pela forma como os negros são perseguidos e mortos pela polícia do país. O jornalista acha que foi um erro, porque o atleta está desempregado. Pelo menos a revista para a qual ele escreve não concorda.

                                                                                                                                                                                                                                                                                      (Reprodução)

Leifert fala que não acha “justo justo ele (o atleta) hackear esse momento, pelo qual está sendo pago, para levar adiante causas pessoais”. Ai. Política não é uma causa pessoal, por mais que nossos representantes nos façam acreditar que seja. Política é algo maior que partidos ou tendências ideológicas pessoais. Política está relacionada justamente com a vida em sociedade da qual o indivíduo e o esporte fazem parte. Falando de um regime democrático, política garante que todos expressem suas diferenças e conflitos sem que isso seja um problema.

Os eventos esportivos atingem milhares de pessoas e precisam ser usados com a responsabilidade que grandes audiências trazem. Isso pode ser negativo? Pode. No Brasil, já tivemos o péssimo exemplo da ditadura interferindo no Campeonato Brasileiro. O livro “Onde a Arena vai mal, um time no nacional”, de Daniel Araújo dos Santos, conta a história de como os militares utilizavam o Brasileirão como manobra para atrair adeptos ao partido que estava no poder. Sem falar no uso da Seleção Brasileira de 1970 para promover o regime. Por essas e outras, o esporte precisa estar aberto à resistência, assim como todas as esferas públicas da vida em sociedade em uma democracia.

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Leifert diz:

“Acho também que temos de respeitar os espaços destinados à diversão, senão nosso mundo vai ficar ainda mais maluco”

“Tem muita coisa contaminada por aí. Precisamos imunizar o pouco espaço que ainda temos de diversão”

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O nome disso é alienação, amigo

Raquel Grabauska

Palpiteiros de plantão

Raquel Grabauska
23 de fevereiro de 2018

Ano de 2018. São muitos anos de humanidade. Muitos. Já inventaram a roda, penicilina, café expresso, protetor solar… Talvez seja por ver essa evolução do mundo que me choque tanto o comportamento das pessoas.  Especialmente o dos palpiteiros! Nuuuuuussa! Haja paciência com os palpiteiros. Sou uma pessoa paciente. Mas me sinto o ser mais involuído do mundo perto de um palpiteiro. Tenho vontade de dizer todas as coisas que não se deve dizer e fazer todas as coisas que não se deve fazer quando sou abordada por um palpiteiro.

Dia desses chegamos num lugar público. Bem público. A praia, na verdade. Em dois segundos uma família veio e ficou íntima. Eu gosto de gente. Gosto mesmo. Mas…

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Já começamos assim: “É a primeira vez das meninas na praia?”

“Meninos”, disse eu.

“Meninos?!!!!”

“Sim, meninos. São meninos cabeludos.”

Silêncio de meio segundo seguido de um “hannnnn”

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Sério? Já inventaram até máquina de pão e as pessoas ainda se importam com o cabelo dos outros????

Pensei em ir mais pro fundo do mar, em busca de privacidade. Uma onda safada nos aproximou novamente. Mais perguntas, forçando uma aproximação. Os guris tinham viajado durante a noite, dormido mal, nadaram a manhã inteira, viajaram mais duas horas de carro. E estavam no mar! Felizes, como é pra ser. Não estavam interessados em perguntas e respostas. Estavam deslumbrados, como se fosse a primeira vez. Pra quem não mora na praia, acho que toda vez parece a primeira vez.

Dois segundos mais de conversa, poucas respostas minhas e zero dos guris. E eles são bem queridos. O intruso solta: “ah, esse é bem mais solto que o outro!” Se referindo ao meu filho mais novo.

Mergulhei pra não mergulhar o intruso. Dar um caldinho não seria má ideia… mas meus filhos estavam ali e não gosto de dar mau exemplo. TPM na escrita à parte, porque ó céus???? Qual a necessidade de se meter tanto? Vai fazer um castelo de areia, vai.

Igor Natusch

Intervenção federal: mais um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
21 de fevereiro de 2018

Vamos falar sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro? OK, vamos.

 

Era uma vez um iceberg. Vamos imaginar, em nome de facilitar o nosso contar de história, que o nome do iceberg é “violência urbana“. Ele é um iceberg bem grande, mas vem se tornando mais problemático a cada ano, na medida em que não para de derreter e molhar as pessoas. Sendo feito de gelo, o iceberg sempre derreteu, pois derreter é de sua natureza, e sempre foi necessário enxugá-lo de alguma forma. O problema é que o iceberg está muito perto de uma fonte desgraçada de calor, daquelas que deixa tudo quente para caramba – e que ninguém sequer cogita desligar, porque muitos acham conveniente que essa calefação siga ligada, mesmo que só alguns poucos de fato esquentem os pés a partir dela. Segue o calor perto do iceberg, segue o iceberg derretendo mais do que o normal, e segue o problema permanente de enxugar esse gelo todo.

São as pessoas mais pobres da comunidade em torno do iceberg as que moram mais próximas dele, e que portanto se molham mais com a água que não para de derreter. Mas o pessoal um pouco mais distante, que também se incomoda mesmo não vivendo tão perto do iceberg, é quem grita mais alto contra a situação. Precisamos enxugar esse iceberg mais rápido, dizem elas. O derretimento do iceberg está completamente fora de controle.

Estando um pouco distantes como estão, não conseguem enxergar o perrengue pelo qual estão passando os enxugadores de iceberg: as toalhas de péssima qualidade e em quantidade menor que o necessário, a falta de treinamento dos enxugadores mais novos, a inexistência de uma estratégia para que a enxugada seja um pouco mais eficiente. Alguns enxugadores desviam toalhas para o mercado negro, outros jogam as toalhas encharcadas em cima das comunidades mais próximas, molhando aquelas pessoas ainda mais do que já estão. Uma bagunça, enfim.

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Mas o pessoal que está um pouco mais longe do iceberg, mesmo que tenha a melhor intenção e a mais justa das preocupações, não consegue enxergar direito essas coisas todas. Tudo que veem é a água do iceberg invadindo o pátio, entrando por baixo da porta de casa.

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E então erguem a voz para falar com o andar de cima, que coordena as tropas de enxugadores e, ao mesmo tempo, é quem fabrica e vende as toalhas para a operação. Isso tudo dá a eles muito dinheiro, fazendo com que possam pagar pelas confortáveis peças do andar de cima. Alem disso, estão com os pés bem quentes pelo uso contínuo da calefação e, uma vez morando acima de tudo que está acontecendo, há pouco ou nenhum risco real de se molharem em meio à bagunça lá de baixo. Erguem então a voz, os que moram no andar de baixo, e gritam aos de cima: precisamos de mais toalhas. Façam alguma coisa.

Gritam assim uma, duas, inúmeras vezes.

Com o tempo, porém, começam a se dar conta de algo. Começam a perceber que são os do andar de cima que fabricam as toalhas, ganham dinheiro a partir delas e que, quem sabe, não estão realmente dispostos a resolver o problema do iceberg. Começam a notar que eles descem a escada, dizem “OK, está tudo sob controle”, fazem um discurso motivador e ufanista para os enxugadores, sobem de novo aos seus aposentos e o problema segue mais ou menos igual. Percebem que, à menor menção de que desligar a calefação seria uma boa ideia, os donos das coberturas ficam muito irritados, gritam bonitos palavrões, mudam quase imediatamente de assunto. E mais importante: os que estão um pouco mais longe, mas não distantes o suficiente para que a água gelada do iceberg não os alcance, percebem que lá, no confortável andar de cima, os seus líderes nunca irão se molhar. E, é claro, se chateiam com essas coisas todas.

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Desçam aqui embaixo, gritam os que estão no meio do caminho entre a cobertura e o iceberg. Vocês não prestam para nada! Venham se molhar junto com a gente! Chegam, vejam só, a ameaçar subir as escadas e expulsar os atuais proprietários do andar de cima, insistem que vão arranjar outras pessoas para comandar as tropas de enxugadores de gelo.

Isso, é claro, deixa os donos do andar de cima um pouco preocupados.

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Diante dos protestos crescentes, acabam inventando uma solução. Convocam os protetores da fronteira, que impedem os povos de outros vilarejos de eventualmente invadirem aquela área, ainda um pouco mais seca, fugindo de seus próprios icebergs insolúveis. Eles não são bons em manusear toalhas: na verdade, já foram chamados algumas vezes, em situações de suposta emergência, e não houve qualquer melhora visível no derretimento do gelo. Mas são muito respeitados pelo pessoal do andar de baixo, que enxergam neles os homens mais fortes de toda aquela comunidade. E é isso, acima de tudo, que os do andar de cima têm em mente.

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Convocam os protetores de fronteira e dizem: agora vocês serão a elite dos enxugadores de gelo.

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Dão a eles as toalhas mais sofisticadas que conseguem tecer – mas não muitas, claro, pois se houver abundância periga até conseguirem manter o iceberg seco por algum tempo. Entregam a eles também uns esfregões, que não são de muita utilidade para enxugar a água que está no chão, mas causam um belo impacto visual. Anunciam sua chegada com banda de música, câmeras, pompa e circunstância. E dizem: vão lá, campeões de nosso povo. Deem o seu melhor. Enxuguem esse iceberg por alguns meses e temos certeza que, depois disso, ele não derreterá nunca mais. Confiamos em vocês!

Os protetores de fronteira sentem uma ponta de orgulho pela consideração recebida, mas parecem um pouco confusos. Seguram os toalhões de forma desajeitada, usam os esfregões sem nenhuma perícia, molhando bastante e até machucando os que estão bem pertinho do iceberg. Mas o pessoal que mora um pouco mais longe está em êxtase. Era exatamente disso que precisávamos, vibram. Enfim o andar de cima tomou um gesto corajoso. Chega de gente fraca enxugando gelo. Chega do iceberg lá, debochando da gente sem que ninguém fizesse nada. Viva o andar de cima!

Alguns tentam criticar a decisão dos coordenadores, dizem que os protetores de fronteira não deveriam enxugar gelo, que isso não vai dar certo. Mas a satisfação da maioria sufoca esses protestos. Quem não enxuga que não atrapalhe! Iceberg bom é iceberg seco! Que venha a elite!

Sorridentes e aliviados, os moradores da cobertura voltam a repousar em seus confortáveis divãs, voltam a esquentar os pés no calorzinho gostoso da calefação. E lá vai a elite dos enxugadores, sob aplausos, marchando de forma ritmada e firme, atacar o iceberg que não para de derreter.

O que as pessoas que moram ao lado do iceberg pensam disso tudo, ninguém sabe. Mas enfim, não dá para levar em conta o lado de todo mundo em um conto de fadas como esse.

Foto: Andrew Malone

Geórgia Santos

30 coisas que aprendi com o Retorno de Saturno

Geórgia Santos
19 de fevereiro de 2018

O Retorno de Saturno acontece quando o planeta completa sua órbita ao redor do sol e volta ao mesmo lugar do céu em que estava no momento do nosso nascimento. É uma p* de uma piração cósmica que interfere nas nossas vidas entre as idades de 27 e 33 anos. Segundo astrólogos, é a transição crucial da infância para a vida adulta.

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Em outras palavras, o Retorno de Saturno é o período em que amadurecemos – à força

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Raramente é um ciclo tranquilo. Pelo contrário. Está muito associado a comportamentos destrutivos como o consumo excessivo de álcool e drogas. Lembra do Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse? Então, todos morreram com 27 anos. Tenso.

Eu não morri aos 27, mas foi uma tortura psicológica. Emagreci, engordei, fumei muito, parei, bebi, parei, casei, estudei, fumei mais, viajei, chorei, morri de medo, deprimi. Houve coisas boas, casei com meu amor, viajei, me diverti. Mas o drama da vida real não terminava. Era como se eu estivesse presa no Feitiço do Tempo, mas com mais frustração e letargia. Mas eu sobrevivi. Sobrevivi e entendi.

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Era o momento de decidir o que eu queria levar para a vida. Espiritual, emocional e fisicamente. E o que deixar para trás

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Amanhã eu faço 30 anos, então aqui estão 30 coisas que eu aprendi com o Retorno de Saturno

 

1. As coisas não mudam a menos que a gente faça mudar. É fundamental compreender isso desde cedo. Se a gente não alterar determinados padrões de comportamento, os resultados serão sempre os mesmos. A soma de 2 + 2 sempre será quatro;

2. Amar é fundamental para a sobrevivência de qualquer ser humano. Ame diariamente e diga em voz alta. Pessoalmente, por telefone, por escrito. Apenas diga. Sempre. E isso inclui amor próprio;

3. Se emagrecer 10 quilos em um mês com alguma dieta maluca, eles voltarão em dobro no verão seguinte;

4. NÃO precisa ter o corpo de uma Angel da Victoria Secrets para merecer atenção e se sentir bonita;

5. É importante sempre ter um docinho em casa, pois a fúria de uma vontade súbita de comer doce é incontrolável e pode estragar o dia. Mas em pouca quantidade;

6. Refrigerantes são um atraso. É sério. Só vale manter em casa uma lata de tônica para o gim e uma lata de coca-cola para acompanhar uma Fernet. Só;

7. A mentira nunca é permanente. Mas a verdade brutal às vezes machuca. Portanto não esqueça de Cazuza e suas mentiras sinceras;

8. Lágrimas são combustível. Chore bastante, sempre que sentir vontade. Jamais reprima um choro, não importa aonde estiver. Choro é liberdade;

9. Não há lugar melhor que a nossa casa;

10. Vinho é vida. Faz bem para a pele e faz bem para a alma;

11. Meditar todos os dias alivia a carga de estresse. Autoconhecimento e concentração ajudam em absolutamente todas as esferas da nossa vida em níveis inacreditáveis. O simples fato de parar para respirar no meio da loucura do dia-a-dia já tem o potencial para mudar o curso das coisas;

12. Tudo passa. Esse período é como a adolescência, tudo é muito dolorido, as reações muito viscerais, mas com o passar de alguns meses ou anos, tudo não passa de um borrão quase infantil. Acredite;

13. Os produtos naturais são infinitamente melhores que os químicos. A natureza fornece tudo o que a gente precisa para cuidar do cabelo, da pele e da casa. #Gogreen

14. Uma camiseta branca, um jeans e um tênis é tudo o que se precisa para vestir bem . Ah, e um batom vermelho;

15. Desapego é importante para seguir em frente. Faça revisões periódicas e doe as roupas que não são usadas há mais de um ano. Há quem precise delas – e muito;

16. O nosso mundo é desenhado pra que a gente acredite na necessidade de consumir tudo ao mesmo tempo agora. Simplesmente não é verdade. Provavelmente a gente tenha o suficiente para viver por anos e anos e anos e anos;

17. Viajar é fundamental. Escapar para a praia ou para o interior pelo menos a cada dois meses ajuda a colocar as ideias no lugar, fugir da violência e da pressa;

18. Não há a menor necessidade de guardar papeis velhos, recibos antigos ou contas de luz de 1912. Isso só acumula sujeira e energia e atrasa a nossa vida. É coisa de mãe, eu sei, mas uma casa organizada reflete em uma mente organizada. É muito mais fácil viver em um ambiente livre;

19. Ajudar os amigos é importante, mas jamais negligencie sua saúde mental para isso. Algumas pessoas não querem ser ajudadas e os seus próprios dramas são grandes o suficiente;

20. Comer menos carne clareia a mente. Além, é claro, de os puns ficarem menos fedorentos;

21. É vital sempre ter um remédio para dor de cabeça na bolsa. Sempre;

22. Ser gentil com todos torna a vida bem mais fácil;

23. Sorrir bastante, todos os dias, é contagiante e melhora o astral. Mesmo nos dias em que tudo parece ruim;

24. É importante ter coragem para mudar o que está errado e se afastar de quem nos faz mal;

25. Jamais trabalhe com quem não gosta de você. Um ambiente hostil pode destruir o espírito e autoconfiança de qualquer pessoa;

26. Escolha sempre a felicidade e a realização ao dinheiro. Um alto salário é atraente, óbvio, mas se não vier acompanhado de orgulho pelo ofício, não de nada vale. É fugaz;

27. Todo mundo tem (muita) celulite. E a Anitta tá aí pra não me deixar mentir;

28. As mulheres são seres extremamente resilientes. Resistem a provações inimagináveis para um homem;

29. Cinema e música curam quase tudo;

30. Nós somos responsáveis por quase tudo o que acontece em nossas vidas. Encontrar um terceiro culpado é cômodo, quase sempre óbvio, quase sempre o terceiro culpado existe, de fato. Mas reconhecer que a nossa vida é fruto das nossas escolhas é ações é a consequência dura e do amadurecimento.

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Foto: Arquivo Pessoal

Raquel Grabauska

Fases

Raquel Grabauska
16 de fevereiro de 2018

Meus dois filhos andavam bem difíceis. Tudo era motivo pra briga, manha, choramingos mil. E sempre que eles saem do prumo, revejo como estamos por aqui. Se saímos da rotina, eles sentem. Se estamos tensos, eles sentem. Se … eles sentem. E se desorganizam. Há que se respirar fundo pra cessar o motivo inicial e recomeçar a funcionar com calma. Fácil não é.

No auge de um dia em que tive vontade de sair correndo a pé pra África, perguntei pro meu filho mais velho, que estava na 83 manhã da manhã (isso era perto das 9h!) o que estava acontecendo. Perguntei não, dei um mega discurso. Ele, que até então disparava um chilique por minuto, me disse:

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“Mamãe, tu tem que entender que eu tô numa fase muito difícil.”

Entre a vontade de rir e a certeza de que estava sendo enrolada, perguntei: qual fase?

“A fase dos dentes”

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Assim, sem enrolar, miar. Só lúcido, analítico. Sensível e conhecedor de si mesmo. Não vou dizer que foi um tapa de luva. Foi mesmo um mega soco com aquelas luvas de boxe que tu vê o atingido ir caindo pelo ringue lentamente até se espatifar no chão. Ele tem seis anos e dois dentes nascendo ao mesmo tempo. Lembrei de que ele sempre foi o bebê mais doce do mundo. Quando nasciam os dentes, era muito sofrimento, choro, irritação.

E naquele dia ele virou meu bebê novamente. E depois virou a pessoa mais madura que já vi. Se dar conta de um processo desses, conseguir assimilar e expressar, é para os grandes. Me senti pequena, inábil como mãe e completamente insensível. Pedi desculpas e ando conversando com a fada do dente…

Raquel Grabauska

O melhor brinquedo para dar para uma criança 

Raquel Grabauska
9 de fevereiro de 2018

 Férias chegando, arrumação de mala, aquela função toda. Uma amiga também estava precisando de férias e não teria como sair da cidade. Ofereci pra ela e o filho ficarem em nossa casa. Me dei conta que o filho dela é mais velho que os meus.

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Comentei que não sabia se ele ia se interessar pelos brinquedos dos guris.

Ao que ela me respondeu: tu sabe qual o brinquedo que uma criança gosta?

Enquanto eu estava no hummmm… ela disse: outra criança

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Isso fez tanto sentido pra mim, me desmontou, me remontou, me fez sorrir e trouxe leveza. Já vi crianças deixando o brinquedo de lado e indo brincar com a caixa. Ahhhh, mas ter um amigo pra brincar, não tem coisa melhor.

Outra amiga está passando um tempo fora do país. Não muito tempo a ponto de colocar o filho na escola, nem tão pouco a ponto de não precisar ter amigos novos. Quando me contou do quanto está gostando da viagem, a única ressalva era a falta de amigos para o filho brincar.

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Quando ficamos morando fora por seis meses, raros os dias em que meus guris não falassem nos amigos. E teve dias em que até brincadeira através da internet as mães dos amigos  eu promovemos, porque a saudade era gigante

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Agora estamos em férias numa pousada. Os guris fizeram amizade de cara. O outro menino foi embora uns dias após a nossa chegada e deu pra ouvir os corações rachando. Ao mesmo tempo, foi lindo de ver os irmãos tão próximos, brincando, estando ali um para o outro. Brigando, dizendo coisas duras. Reconciliando depois. Assim como fazem os bons amigos.

Geórgia Santos

Entre o Bolsa Família e uma Louis Vuitton

Geórgia Santos
5 de fevereiro de 2018

Há muitos anos são ouvidos brados retumbantes de quem é contra o Bolsa Família. Esse programa criminoso que ajuda os miseráveis a saírem da pobreza extrema, que absurdo, vejam só.

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“Onde já se viu, dar dinheiro a alguém sem que mereça”

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“As pessoas recebem esse dinheiro pra não ter que trabalhar. O povo tá sustentando vagabundo”

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“Não dá pra dar o peixe, tem que ensinar a pescar” (minha favorita)

 

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Esses são apenas três dos “argumentos” que recheiam caixas de comentários Facebook afora. Não vou entrar no mérito dos programas de mobilidade social, em cujo potencial eu acredito. Muito menos me dedico a comentar sua apropriação política, que não vem ao caso. Minha intenção é abordar o tema sob o ponto de vista humanitário.

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Você sabe o valor do Bolsa Família?

O benefício é pago de diferentes maneiras, dependendo da composição do grupo familiar e da faixa de renda. Não é um programa perfeito, mas ajuda as pessoas a superarem a linha da miséria. Há várias categorias dentro do Bolsa Família, mas para facilitar o entendimento, falemos do teto. O maior benefício possível de receber é de R$ 364,00.

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Uma família com baixo nível de renda, com CINCO crianças e DOIS adolescentes vinculados ao benefício , recebe R$ 364,00

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E isso é uma ofensa aos brasileiros, aos que se dizem cidadãos de bem e não admitem pagar pelo sustento dos outros com seus impostos, mesmo que sonegados. Compreendo perfeitamente o fato de que há pessoas que não acreditam em programas deste tipo, que não enxergam benefícios no assistencialismo, que não percebem vantagens em um auxílio como este. Compreendo mesmo, sem ironia. O indivíduo é formado por múltiplas variáveis e não sou do tipo que acredita em ideologia certa, por mais que defenda o lado que considero mais adequado à nossa realidade. Mas não compreendo como alguém pode ser desconectado da realidade a ponto de acreditar que R$364,00 é dinheiro suficiente para acomodar uma família inteira. Uma família numerosa, esquecida e marginalizada pela desigualdade cruel que assola o Brasil.

 

Hoje, quase 30% de toda a renda do Brasil está na mão de apenas 1% da população. A Pesquisa Desigualdade Mundial 2018, coordenada pelo economista francês Thomas Pektty, ainda aponta que é a mais concentração no mundo. Em termos práticos, relatório da Oxfam indica que CINCO pessoas tem patrimônio equivalente ao da METADE DA POPULAÇÃO brasileira mais pobre.

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CINCO pessoas tem patrimônio equivalente ao de CEM MILHÕES

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Nessa linha, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que metade dos trabalhadores ocupados (formais) tem renda menor que um salário mínimo. A média salarial dessa fatia da população era, em 2016, de R$ 747,00, abaixo dos R$ 880,00 estipulados para o ano. Na outra ponta do espectro social há apenas 889 MIL pessoas, que compõem a fatia dos mais abonados e recebem, em média, R$ 27 mil por mês.

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É nessa faixa privilegiada em que se encontram os magistrados do país

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Segundo o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), um juiz substituo recebe R$ 27.500 mensais, para falar apenas do salário mais baixo. É uma categoria distinta, especialmente diante da desigualdade colossal que mancha de sangue e suor a nossa sociedade. Mas não para por aí, os juízes (assim como parlamentares e outros membros dos três poderes) tem direito a um benefício chamado auxílio-moradia.

Assim como fiz com o Bolsa Família, falemos de teto. O valor máximo do benefício é de R$ 4.377, 37, número que, segundo a pesquisa já mencionada do IBGE, supera o salario de 92% da população brasileira. O benefício é um reembolso das despesas com moradia que começou com a mudança da capital brasileira para Brasília. Supondo-se que os deputados só teriam imóveis em suas cidades de origem, criou-se um dispositivo que suprisse os gastos com moradia em Brasília. Em seguida foi ampliado para outros poderes. Hoje, 17 mil juízes recebem auxílio-moradia.

Entre eles está o juiz Sérgio Moro, símbolo da justiça em sua cruzada contra a corrupção. O magistrado tem imóvel próprio em Curitiba e ainda assim recebe o teto de auxílio que, segundo ele, supre a falta de reajuste. O salário base de Moro é de R$ 28.948,00, além de gratificações.

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Mesmo assim, o cidadão de bem não se incomoda com os R$4.377,37 de auxílio-moradia, o valor de uma bolsa modelo Speedy 30 da Louis Vuitton 

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Moro não está fora da lei. O recebimento do benefício é absolutamente legal e é um direito dele. Mas está longe de ser justo e todos sabemos disso. Eu sei disso e ele sabe disso. Ainda assim, diante da injustiça que nos é esfregada na cara diariamente, falta indignação, e a única explicação que parece fazer sentido é a ilusão de uma meritocracia que ignora pontos de partida e a ofensa com uma possível mobilidade de classes. “Os juízes trabalham duro, estudaram, se prepararam, passaram em concurso, tem pilhas e pilhas de processos para análise. Quem recebe o Bolsa Família é vagabundo, não faz nada, só quer saber de mamar nas tetas do governo. Tem é que trabalhar.” É isso? O engraçado dessa história é que as tetas são as mesmas para os dois.

No final das contas, o brasileiro se ofende com o Bolsa Família mas não se importa em pagar uma Louis Vuitton para os magistrados.

Foto capa: Pixabay

Foto Sérgio Moro: Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Raquel Grabauska

Hoje chorei comprando manga

Raquel Grabauska
2 de fevereiro de 2018

Estávamos no carro e na estrada, vimos duas crianças vendendo frutas numa banquinha improvisada. Janeiro, Nordeste, perto de 36 graus. Sol escaldante. E vi um dos sorrisos mais lindos do mundo.

Me pareceram duas irmãs. Felizes com a venda. A mais velha foi me dar o troco, eu disse que não precisava. O olhar feliz entre as duas me desmontou. Era pouco o troco. Quis ter dado mais. Muito mais. Quis tirar as meninas dali. A mais nova das irmãs regulava de idade com meu filho mais velho. Que segundos atrás regateava conosco um presente que queria. E eu vinha explicando que não iria dar, que fazia poucos dias que ele havia ganhado um brinquedo, que a vida… e apareceram as meninas vendendo manga.

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Meus meninos ficaram espantados com as crianças trabalhando. Já nos ouviram falando mil vezes sobre, mas nunca tinham visto de perto

De tão perto

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Fiquei pensando no quanto o lugar onde nascemos define quem somos. As oportunidades, o que seremos. O que o futuro nos reserva, não sabemos. Mas hoje me doeu pensar no futuro daquelas meninas. Não me permiti sentir pena delas. Quero admirá-las. Admiro. Pequenas valentes. Nosso carro retomou o caminho e as lágrimas puderam cair. Aquele sorriso vai me iluminar por muito tempo.

Igor Natusch

Governo Sartori levou surra na Assembleia – e a culpa não é da oposição

Igor Natusch
1 de fevereiro de 2018
PORTO ALEGRE, RS, BRASIL 31.01.2018: Acompanhado por integrantes do Secretariado, o governador José Ivo Sartori fez um pronunciamento a imprensa, nesta quarta-feira (31), no Palácio Piratini, logo após o encerramento da sessão extraordinária da Assembleia Legislativa. Foto: Dani Barcellos/Palácio Piratini

Que a convocação extraordinária da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul foi um fiasco, quase ninguém poderá negar. A ideia do governo de José Ivo Sartori era votar o regime de recuperação fiscal acordado com o governo federal, defendido como vital para tirar o Estado do atoleiro, e incluir no pacote o fim da necessidade de plebiscito para autorizar privatização de CEEE, CRM e Sulgás. Mas não se chegou nem perto disso: após três sessões, os projetos não foram sequer apreciados, que dirá postos em votação. E a tarefa da oposição, que parecia um tanto complexa antes da primeira sessão, acabou sendo facilitada por uma base governista desunida e desorganizada – chegando ao cúmulo de perder todo o trabalho da primeira sessão porque um parlamentar foi ao banheiro, uma trapalhada que eliminou o quórum necessário para dar prosseguimento.

Compreende-se, claro, que o governador estivesse irritado com a situação na coletiva que deu logo após ter o fracasso consumado na Assembleia. Mais difícil, porém, é concordar com o foco de sua revolta, totalmente direcionado à oposição. “A manobra não foi contra nosso governo, foi contra o Rio Grande do Sul”, reclamou. A oposição, segundo ele, é “radical”, e a população não suporta mais “essa pequenez e essas traquinagens políticas” vindas de quem “causou parte da crise”. “Esses setores políticos vão ser responsabilizados se o atraso nos salários aumentar”, ameaçou Sartori.

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O que fez a oposição para deixar Sartori tão indignado, furibundo, cuspindo fogo pelas ventas? Terá feito uma manobra traiçoeira, descumprido um acordo no último instante, aplicado um golpe baixo do ponto de vista político?

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Nada disso. Fez a oposição o que qualquer oposição faz diante de uma pauta da qual discorda: mobilizou-se contra ela. Revezaram-se os deputados na tribuna, atrasando o processo de votação. Pediram verificação de quórum quando perceberam que a base não tinha como garantir o mínimo de parlamentares em plenário. Com o regimento interno debaixo do braço, o presidente da Assembleia, deputado Edegar Pretto (PT) – que é de oposição, o que não é crime algum – indeferiu o pedido de inversão de pauta da bancada governista, bem como o ofício para mais duas sessões extraordinárias.

Discuta-se a conveniência dessas ações o quanto se desejar, dentro das visões políticas de cada um: o que não dá é para dizer que há alguma novidade nesses procedimentos. Não se trata de desonestidade, radicalismo, perfídia nem nada do tipo: é, pura e simplesmente, fazer oposição. E é algo que se faz em todos os parlamentos da face da Terra – à esquerda, à direita, ao centro, no céu ou no inferno do espectro político.

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Por acaso tem a oposição – qualquer uma – obrigação de ser dócil à situação apenas porque se diz que alto lá, desta vez é importante de verdade, precisamos de um acordo porque agora a coisa é séria e acabou a brincadeira?

 

Evidente que não

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Se ela discorda, ela vai derrubar; se não tem força para derrubar, fará de tudo para barrar o avanço. Uma obviedade quase simplória, verdadeiro beabá da política na esfera parlamentar.

Duvido muito que Sartori desconheça esses meandros, posto que ele mesmo já foi deputado e inclusive presidiu a Casa, em 1998. Está, isso sim, fazendo uma transferência de responsabilidade, jogando para o time adversário um fracasso que pertence, exclusivamente, a ele e seus aliados.

A convocação extraordinária foi um desastre estratégico. Faltando uma semana para o retorno normal dos trabalhos na Assembleia, não há sentido em mobilizar todo o aparato da Casa, com todos os custos envolvidos, se não houver certeza absoluta de que coisas serão votadas – certeza que só se pode ter com estratégia sólida e, acima de tudo, uma maioria consolidada e inabalável. Ao contrário: o que se viu foi uma bancada de situação dispersa e confusa, sem um plano de ação, atuando sempre de forma reativa e inapelavelmente incapaz de propor jogo.

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A bancada oposicionista não precisou fazer mais que o básico para impedir a votação, por um motivo singelo: mesmo menor em número, estava muito mais coesa e determinada que o time adversário

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A oposição sabe muito bem que não quer o acordo com a União, tal como está posto; a situação, por sua vez, não tem tanta certeza assim do que quer ou não. E indecisão, no parlamento, é um pecado muitas vezes fatal. O governo, pelo jeito, não fez o dever de casa. São três anos de governo e conta-se nos dedos os momentos em que o governo andou todo junto, em bloco, na mesma direção. Aí não adianta apelar para o sentimentalismo, lamentando que o outro lado deveria ser mais compreensivo, esbravejando ameaças vãs ou lançando ao vento apelos frouxos por união.

Quanto mais frisa que “não existe plano B” caso a recuperação fiscal não aconteça, mais Sartori e seu governo reforçam publicamente uma aposta que (e agora está mais claro do que nunca) simplesmente não têm coesão e força política para cumprir. Mesmo com manifestações favoráveis na imprensa, mesmo martelando a suposta única saída por meses a fio, o governo não convence nem a própria bancada a abraçar o rojão, ao ponto de jogar pela janela três dias inteiros de convocação extraordinária. Perdeu, sim, e perdeu feio. Pode vencer nas próximas semanas, é claro: a tendência, contudo, é de acumular fracassos, caso limite seus esforços a uma tentativa pueril de criminalizar a oposição por agir como oposição. Não adianta jogar o desgaste para o outro lado do muro: o fiasco tem assinatura, e ela não foi feita em caneta vermelha.

Foto: Dani Barcellos/Palácio Piratini

Geórgia Santos

A conversão do homem feminista

Geórgia Santos
29 de janeiro de 2018

Existe algo que se chama lugar de fala, um conceito que acaba com a mediação condescendente. As pessoas passam a ser representantes legítimas da própria luta, como deve ser. No caso do feminismo, o lugar de fala é da mulher. Em um mundo oprimido e espremido pelo machismo, no entanto, é um alento o encontro com um homem feminista. É um alento escutar um homem defendendo o direito de uma mulher a existir com liberdade e dignidade sem associá-la à histeria. 

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O problema é tratar o homem feminista como herói e não como parceiro

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No mês passado, viralizou o vídeo em que o apresentador e humorista John Oliver confronta Dustin Hoffman. O ator foi acusado de ter assediado sexualmente uma estagiária de 17 anos durante as filmagens de A Morte do Caixeiro Viajante, de 1985, e respondeu dizendo que aquele comportamento não reflete “quem ele realmente é”. Ao que Oliver disse: “É um reflexo de quem você era.”

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HOFFMAN: Você acredita nessas coisas que você leu?

OLIVER: Eu acredito no que ela escreveu, sim.

HOFFMAN: Por que?

OLIVER: Porque ela não tem motivo para mentir.

HOFFMAN: Bom, há um motivo para ela não ter falado sobre isso por 40 anos.

OLIVER: Ohhhh, Dustin!

Nesse momento, Oliver esconde o rosto com as mãos

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O Washington Post publicou o vídeo e, em questão de horas, a internet quebrou. Pipocavam incansáveis as mensagens parabenizando Oliver pela coragem de não ignorar algo tão grave. Muitas pessoas passaram a tratar o humorista como um herói feminista. Mas tão rápido quanto sua elevação de status dentro do movimento foi a queda do mito. Quase que instantaneamente alguém lembrou que o britânico tem uma equipe de redatores predominantemente branca e masculina. Mais do que isso, há o caso de 2010, em que Irin Carmon escreveu uma crítica feminista ao The Daily Showdizendo que as mulheres que trabalhavam no programa consideravam o ambiente hostil. Na época, Oliver diminuiu a crítica reduzindo a reclamação das mulheres a boatos, o famoso “é a minha palavra contra a delas.”

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A situação de Oliver mostra, em um episódio, dois problemas fundamentais de quando tratamos de homens e feminismo na mesma sentença

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De um lado, há o impulso de tratar como heróis os homens que se posicionam ao lado das mulheres; de outro, há a necessidade de isolar homens que deslizaram no passado. Quando falo em deslizes, falo de posicionamentos impregnados pela cultura do macho, não de atos criminosos.

O tratamento do herói é equivocado porque homens feministas são nossos aliados, nossos parceiros. Se a luta é por direitos iguais, tudo o que não queremos é a figura do príncipe encantado ao resgate. Isso não significa que o comportamento não mereça atenção ou cumprimentos. Merece. Mas homens em pedestal já temos o suficiente. Por outro lado, diminuir a importância da atitude de Oliver porque ele foi tosco há sete anos é tiro no pé. Porque partimos do princípio que os homens não são capazes de evoluir e, se o fizerem, nós não vamos aceitar.

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Ora, se a ideia é que a sociedade se torne menos machista, como é possível que isso aconteça sem “homens convertidos”?

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Além do mais, nós precisamos de todas as vozes que pudermos ter. Voltando ao exemplo de John Oliver, se uma mulher tivesse tentado confrontar Dustin Hoffman sobre o mesmo assunto, teria sido chamada de esquerdopata, feminazi, grosseira, difícil, histérica. Seria falta de profissionalismo, seria vitimismo, seria deselegante, seria mimimi. É claro que ele foi moldado dentro de um sistema machista em que homens são privilegiados. Ele compartilha das falhas desse sistema e reproduz padrões desse sistema, como o fez em 2010. Mas esse sistema não vai ser vencido sem que alguns dos homens desse mesmo sistema se revoltem e se deixem transformar.

Dizer o óbvio não deveria ser um ato de coragem, e sim a norma Mas enquanto não acontece, fico feliz de termos alguém como John Oliver ao nosso lado. Nós precisamos de homens que estejam dispostos a romper a zona de conforto dos espaços masculinos, que ajam publicamente para acabar com o assédio e o machismo normalizados em nossa cultura.