Cantinho da Leitura #33 Como falar de trabalho com as crianças
Geórgia Santos
2 de fevereiro de 2024
Capa do livro "Mamãe foi trabalhar", de Kes Gray.
Créditos: Reprodução
Neste episódio do podcast Cantinho da Leitura, como falar de trabalho com as crianças. A jornalista Geórgia Santos conversa com Flávia Cunha, jornalista, mestre em Literatura pela UFRGS, produtora editorial de livros infantojuvenis e colunista do Vós.
Mães e pais muito ocupados podem gerar uma sensação de abandono nas crianças. Mas como explicar as obrigações do trabalho para os pequenos sem romantizar o excesso de obrigações profissionais?
A nossa convidada é Denise Ceroni, professora de Pedagogia da UniRitter, doutora e mestre em Educação, especialista em Psicopedagogia Clinica e em Educação Especial e Inclusiva, graduada em Pedagogia, com formação em Mediação de Conflitos.
Uma das sugestões de leitura é “Mamãe foi trabalhar”, de Kes Gray, lançado aqui no Brasil pela editora Globinho. A capa do livro tá na capa do episódio. Para mais dicas de leitura, aperta o play.
Quando li sobre a morte Neil Peart hoje, um turbilhão de memórias surgiu aqui. Quando o meu filho Benjamin tinha perto de dois anos, recebemos num espaço cultural que o Cuidado Que Mancha administrava, o Circo da Silva, um grupo de música para crianças. No elenco havia um polvo baterista. Era fascinante. Das partes boas de ter a mãe administrando um espaço, o Benja pôde ficar tocando bateria com o polvo depois que o espetáculo findou.
Foi amor à primeira baqueta. O guri nunca mais quis parar de tocar. Isso foi em outubro. Em dezembro, ele ganhou uma bateria de presente. Foi mais forte que nós. Mesmo sabendo que eram os nossos ouvidos que iriam passar o dia se arrependendo, ele ganhou a bateria. A única vizinha próxima era surda. Tava tudo sob controle.
Íamos almoçar em um restaurante que oferecia hashis. Logo eram transformados em baquetas. O porta-guradanapos em prato. E logo tava montada a bateria. Ele pedia panos para colocar no cabelo e usar como bandana, pois já tinha sido apresentado ao Neil Peart. Neil pra ele. Já era íntimo.
Com a avó como plateia, ele tocava três horas por dia. Nunca pedimos. Nunca mandamos. Nunca. Ele ia lá. E tocava. Fez lindas aulas com a incrível Biba Meira (que tem um grupo mara de percussão para mulheres, As Batucas). Ele nunca gostou de abraços que não fossem dos pais ou da avó. A Biba abraçava ele. E ele gostava.
Quando ele tinha dois anos e seis meses, a vó morreu. Ele estava fazendo aula de música. Naquela semana, não tocou. Na aula, se aninhou no meu colo, ficou quietinho. Nada soava bem…
E nunca mais tocou. O público dele tinha ido embora. E ele não suportou tocar para mais ninguém.
Hoje foi o primeiro dia de aula do meu filho mais novo. Ele tem cinco anos. Até agora sempre ficou perto de mim.
Vantagens e desvantagens de se ter uma escola de arte …
A escolha da escola para o filho mais velho foi árdua. Sou a mãe chata, o terror de qualquer diretora. Eu quero saber de tudo, reclamo dos pais que estacionem em fila dupla, converso sobre as coisas com as quais não concordo e sobre as que eu concordo também.
Já até mudei ele de escola, até que cheguei em um lugar onde ele foi muito bem recebido. Mais que isso, respeitado. Como ser humano. Como criança. Com um ser que pensa e sente. Agora é a vez de o segundo ir. Mesma escola, claro.
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Essa escola trabalha com multi-idade. As turmas se agrupam de 3 em 3 anos. Então, primeiro, segundo e terceiro ano, juntos. Meus filhos serão colegas
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Terão dois dias de vivencia nessa semana. O menor estava temeroso. Como iria para escola se ele não sabe matemática? O maior, aclamando o irmão. “Se acontecer qualquer coisa, eu te protejo, mano. ” O menor desistindo de ir. O maior achando chato e dizendo que não quer mais que estudem juntos.
Um pai e uma mãe com olhos arregalados. E lá foram eles. Chorei. É claro que chorei. Chorei por sentir tanto amor. Por confiar. Eles cresceram. Eu também cresci hoje. Agradeço a este espaço que permite que eu seja uma mãe chata. E que permite aos meus filhos cresceram no seu tempo.
Na foto: Benjamin e Tom, no primeiro dia de aula do menor
Disse o presidente Jair Bolsonaro sobre trabalhar quando era criança:
“Não fui prejudicado em nada. Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí ‘trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil’. Agora quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada”.
Meu pai sustentava nossa casa. Quando eu tinha 11 anos, ele ficou muito doente. E permaneceu doente até eu ter 17 anos, quando ele faleceu. Passou a maior parte desse tempo em hospitais, internado. A minha mãe ficava bastante tempo com ele – e eu também. Isso significa que durante um grande período da minha infância – e toda a adolescência – eu passei trabalhando e/ou em um hospital. Sem vitimismo, é só a minha história. Eu sei como é.
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Mas senhor presidente, vai chupar um prego, por favor!
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Criança precisa brincar. Criança deve brincar. É direito. É o que faz com que se cresça, é como elaboramos as ideias, é o que nos torna adultos com capacidade de aproveitar a vida. E não é aproveitar a vida fumando crack, senhor presidente. É assumindo responsabilidades, descobrindo o prazer de trabalhar.
Meus filhos brincam muito. Criamos um Espaço de Brincar para crianças. Fazemos espetáculos infantis. Podemos não ter os bolsos cheios. Mas temos ideias, criatividade e uma vontade de viver que são impagáveis.
Tenho me perguntado muito como vai ser quando os meninos tiverem celular. Meu filho de sete anos perguntou se poderia ter um quando completasse dez. Glup, pensei eu. Fiz cara de que tava preparada pra uma conversa normal e perguntei: porque tu precisa? Ele: porque quase todos os meus colegas têm.
Discurso sobre as diferenças entre as pessoas, os tipos de família, as escolhas. Ressaltando que devemos respeitar as escolhas diferentes, mas que por motivos x, y e x, na nossa era assim.
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Discurso, discurso, discurso. Tem horas que ser mãe dá uma canseira… porque eu não tenho a menor ideia do que responder. Ou se tô fazendo a coisa certa. É sempre aquela sensação de ter pulado de um avião e não saber se o paraquedas vai ou não abrir.
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Enquanto eu falava, meu celular apitou umas 512 vezes. E meu olho queria ir conferir o que tinha acontecido. Era algo importante? Era do trabalho? Era um orçamento? Era? Era?
E daí me enxerguei. Preciso ter uma relação mais saudável com meu telefone. Desativei as notificações do WhatsApp e sou bem mais feliz. Ainda olho bastante, faz parte do meu trabalho. Mas vejo no meu tempo, e não porque o celular mandou eu olhar.
Das lembranças mais fortes que tenho da infância, os banhos de chuva sempre ganham
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Minha mãe era refugiada de guerra. O barulho de trovão remetia às bombas. Mal o tempo começava a nublar, se meu pai não estava em casa, ela nos fazia pular o muro da vizinha para nos refugiarmos. Banho de chuva era só quando o pai tava em casa. A mãe se escondia e o pai parava na porta, nos cuidando, permitindo, zelando. Ele nunca tomava banho de chuva conosco. Mas era visível o tanto que ele gostava de nos ver ali.
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Família humilde, o banho de chuva era uma diversão garantida, democrática
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Morávamos numa casa. O pátio era nosso navio, nosso castelo, o que coubesse na imaginação daquele dia. Com filhos numa cidade grande, os banhos de chuva me são mais raros do que gostaria. Hoje isso se desfez. Almoçamos com amigos queridos num lugar ao ar livre. Uma chuva repentina e intensa nos deixou atrapalhados. A ideia de brincar na praça foi pro brejo. Meu filho mais velho começou a brincar nas goteiras das calhas, de leve. Tentamos conversar de que não era o melhor momento. Pais ponderando. Todas as crianças se recolheram. Ele foi. Tão feliz. Com cara de que sabia que tava aprontando. E tão feliz! Saímos na chuva, os dois. Pisamos em poças, rimos, brincamos, lavamos as almas.
Lembrei da criança que eu fui. Me emocionei com a criança que ele é. Por mais banhos de chuva. Muito mais!
Meu filho mais novo tentou ir embora de casa pela primeira vez
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Estavam os dois irmãos mega brincando. Brincando de um jeito comovente. Até tentei entrar na brincadeira e me deram uma excluída. Fiquei na minha, deixa eles, é o espaço deles, blá,blá, blá. Mãe tentando ser madura. O mais velho cansou da brincadeira. O mais novo continuou. O mais velho pediu para parar. O mais novo continuou. Um pedia para parar, o outro continuava. E assim foi por um bom tempo.
O mais velho se irritou. Muito. Foi dar um chute no irmão. Não um chute qualquer. Eu vi que a mira era no rosto. Peguei o pé no ar. Proferi um sermão da montanha. Os dois silenciaram. Depois do discurso voltei a respirar. Me dei conta do risco que havíamos corrido. Passou, pronto, passou…
Quando o mundo parou de girar, olhei para as duas crianças. O mais novo com cara de susto e o mais velho com cara de mais susto. Imaginei a minha cara de susto também. Percebemos os três que estava tudo bem. O mais novo começou uma manha. Expliquei que o que o mano tinha feito não era aceitável, mas que ele deveria ter parado quando foi pedido. Que ele deveria ter ouvido o não. Respeito.
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Nisso, vi que ele foi para perto da porta. Calçou os crocs, me olhou profundamente e girou a maçaneta
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Perguntei para onde ele ia e ele disse que precisava ir embora até eu querer ser uma boa mãe. O mais velho pediu pra ele não ir. Eu aproveitei a deixa e fiz aquela chantagem básica: "Ué, tu queria chutar o mano.” Horrível, eu sei. O mais novo assistindo a nossa conversa, com aquela cara. Daí disse: "O mano que escolhe se eu fico ou vou!"
Resumindo, os dois se abraçaram, foram juntos brincar de novo. E eu fiquei assistindo.
Meu filho mais novo tentou ir embora de casa pela primeira vez
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Estavam os dois irmãos mega brincando. Brincando de um jeito comovente. Até tentei entrar na brincadeira e me deram uma excluída. Fiquei na minha, deixa eles, é o espaço deles, blá,blá, blá. Mãe tentando ser madura. O mais velho cansou da brincadeira. O mais novo continuou. O mais velho pediu para parar. O mais novo continuou. Um pedia para parar, o outro continuava. E assim foi por um bom tempo.
O mais velho se irritou. Muito. Foi dar um chute no irmão. Não um chute qualquer. Eu vi que a mira era no rosto. Peguei o pé no ar. Proferi um sermão da montanha. Os dois silenciaram. Depois do discurso voltei a respirar. Me dei conta do risco que havíamos corrido. Passou, pronto, passou…
Quando o mundo parou de girar, olhei para as duas crianças. O mais novo com cara de susto e o mais velho com cara de mais susto. Imaginei a minha cara de susto também. Percebemos os três que estava tudo bem. O mais novo começou uma manha. Expliquei que o que o mano tinha feito não era aceitável, mas que ele deveria ter parado quando foi pedido. Que ele deveria ter ouvido o não. Respeito.
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Nisso, vi que ele foi para perto da porta. Calçou os crocs, me olhou profundamente e girou a maçaneta
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Perguntei para onde ele ia e ele disse que precisava ir embora até eu querer ser uma boa mãe. O mais velho pediu pra ele não ir. Eu aproveitei a deixa e fiz aquela chantagem básica: “Ué, tu queria chutar o mano.” Horrível, eu sei. O mais novo assistindo a nossa conversa, com aquela cara. Daí disse: “O mano que escolhe se eu fico ou vou!”
Resumindo, os dois se abraçaram, foram juntos brincar de novo. E eu fiquei assistindo.
Eu escrevi semana passada sobre o terror que foi levar meus filhos ao teatro. Escrevi esses tempos sobre a fada do dente. Nesta semana, tudo se misturou. Benjamim, meu filho mais velho, tem 7 anos. Para seu desespero, nunca teve um dente mole. Precisou arrancar dois, pois os permanentes nasceram antes de caírem os de leite.
Todos os colegas com os dentes moles, banguelinhas. Menos ele. Mil perguntas dele sobre o porquê disso. Mil explicações nossas sobre a diferença das pessoas (e aí a mãe já aproveita para dar todos os discursos sobre respeito, diversidade… pobre criança!). Pois bem, amoleceu o primeiro dente, finalmente. E o segundo. E amoleci eu. E ele. Amolecemos todos. Isso nos aproximou de um jeito que nem pensei que podia, pois já tinha sentido todo o amor do mundo, não sei como pode caber mais ainda.
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Sete anos. Dente mole. Outra fase. Ele está crescendo
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Depois do chilique no teatro na semana passada, fiquei pensando no que significava minha profissão. Se meu modo de apresentar as coisas para meus filhos era acertado. Aquelas dúvidas que a gente tem por não existir manual para criar filhos. Pois bem…
No dia do primeiro dente mole, fui ficar com ele na hora de dormir. Já estava bem emocionada, vendo ele deitado, meu bebê que cresceu, que está crescendo, que vai crescer mais e sair de casa, e… (disfarça as lágrimas pra não ter que explicar todo esse pensamento pra ele). Ele me diz: tu pode fazer uma música da fada do dente? E um pouco depois: e uma peça também?
Pronto. Amoleci, derreti, desintegrei de amor. Claro que posso, filho. Todas as minhas dúvidas sumiram naquele instante. Me dei conta de que tá tudo bem. Que teremos fases, as dele e as minhas. E as nossas. E tá tudo bem se ele não quiser ir no teatro.
Eu tive um ataque de amor e abracei meu filho menor bem forte, cherei e disse: como posso te amar tanto?
Ele: porque tu é minha mãe, ora!
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Fiquei rindo muito, claro. E depois fiquei pensando no tal amor incondicional. Eles ainda não me desafiaram a ponto de eu questionar esse amor. Por enquanto, sei que é amor incondicional porque tenho a sorte de ter dois fofos como filhos. Mesmo nos dias em que não dormem. Mesmo nos dias em que deixam os brinquedos jogados. Ou que todas as roupas incomodam. Mesmo quando eles precisam de mim a cada meio segundo. Mesmo quando eles não precisam de mim o dia todo. Mesmo que…
Ver os filhos crescendo é um desafio terno e assustador. Não é só pelas roupas que deixam de servir de um dia pro outro. Não é só porque temos que saber os nomes de todos os personagens dos desenhos animados. Não é só porque num dia tu faz a comida que eles mais amam e no outro dia eles não suportam aquela mesma comida.
É um estado de atenção, vigília. Sem trégua. Porque se a gente não está atento, deixa passar o que mais importa. Deixar de ver que eles aprenderam algo novo, que o vocabulário aumentou, que ele já sabem dizer “procrastinar”e mais, já sabem o que isso significa! Um amor incondicional. Por ora é assim. Pra sempre assim.
Dia desses nos encontramos entre adultos. Começamos a brincar, jogar, rir muito. Todos com filhos. Tava um momento tão lindo dos pais (pais que estão sempre proporcionando momentos lindos para os filhos), que naquele instante focamos em nós. Um filho pediu o celular, o pai deu. Outra pediu, ganhou. E assim foi. Os meus olharam pro meu marido: porque eles podem e nós não? Ganharam. Aquele dia me deu um aperto. Porque se não tivesse celular, eles estariam brincando.
Dois dias depois, encontramos um amigo querido dos guris no almoço. Ele já chegou com celular. Nem almoçaram. Só jogaram. Achei tão triste!
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De uma amiga sobre a filha: “Ela por exemplo tá de férias agora, mas não sinto que tô inteira… porque continuo trabalhando…”
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Viajamos de avião e meu filho menor jogou no celular durante vôo – a gente também não quer ser E.T. Mas foi o próprio inferno. Ele só queria fazer isso. Com o maior, eu conversei e ele entendeu e cedeu. Mas com o menor, precisou eu ter um chilique com o meu marido. Ele é bem legal, e eu também sou, mas disse que se ele desse o telefone de novo, eu ia embora na hora. Imagina o tanto que me irritei.
Então, nas férias, fiz uma desintoxicação. No dia seguinte, comprei canetas, papel e livro de colorir. Brincaram a tarde toda, nem quiseram ver televisão.
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Da minha amiga: “Bah, pior que ela (a filha) quando tem lápis e coisas pra pintar fica muito tempo. Mas tem vezes q eu esqueço disso e parece ser mais fácil ligar a TV, o jogo…”
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E ela é uma ótima mãe. Ótima! Mas a questão é que é fácil na hora, depois, é o próprio inferno. Eu quando chego em casa, sei, só pelo jeito dos guris, se assistiram algum desenho violento ou jogaram. É muito visível o quanto se alteram. Meu filho maior tá questionando sobre quando terá seu próprio celular. Se depender de mim….
Sou atriz, utilizo tratamentos alternativos de saúde, sou a senhora dos orgânicos, nunca imaginei que seria a mãe careta! Mas sou. Assumidamente careta.