Voos Literários

Resistência cultural em debate

Flávia Cunha
4 de dezembro de 2018

Como ser oposição ao presidente eleito e seus ideais conservadores sem cair em discursos de ódio ou em utopias inalcançáveis?

O termo resistência, utilizado com o objetivo de unir os opositores ao futuro governo, independente de partidos políticos, enfrenta críticas dos eleitores de Bolsonaro. Mas desde quando resistir é algo pejorativo? Ou violento?

Um exemplo de que é possível reagir a momentos difíceis de maneira positiva encontra-se no livro A Resistência, do celebrado escritor argentino Ernesto Sabato, falecido aos 99 anos, em 2011. A obra, lançada em 2000, constitui-se de cartas com alentos e conselhos aos leitore, com um teor extremamente atual.

Na carta intitulada A Resistência, o escritor pondera como ter uma postura combativa em meio aos compromissos impostos pela vida cotidiana:

Acredito que é preciso resistir: esse tem sido meu lema. Hoje, contudo, muitas vezes me pergunto como encarnar essa palavra. Antes, quando a vida era menos dura, eu teria entendido por resistência um ato heróico, como negar-se a continuar sobre este trem que nos leva à loucura e ao infortúnio. Mas pode-se pedir às pessoas tomadas pela vertigem que se rebelem? Pode-se pedir aos homens e às mulheres do meu país que se neguem a pertencer a esse capitalismo selvagem, quando eles têm de sustentar os filhos e os pais? Se eles carregam tal responsabilidade, como poderiam abandonar essa vida?”

No trecho final da carta A Resistência, Ernesto Sabato aconselha a resistir por meio de pequenos atos e também dos afetos:

Os homens encontram nas próprias crises a força para sua superação. Assim o demonstraram tantos homens e mulheres que, contando apenas com sua tenacidade e sua valentia, lutaram e venceram as sangrentas tiranias do nosso continente. O ser humano sabe fazer dos obstáculos novos caminhos, porque à vida basta o espaço de uma fresta para renascer. […] Não deixarmos desperdiçar a graça dos pequenos momentos de liberdade de que podemos desfrutar: uma mesa compartilhada com pessoas que amamos, umas criaturas que amparemos, uma caminhada entre as árvores, a gratidão de um abraço. Gestos de coragem como saltar de uma casa em chamas. Não são atos racionais, mas isso não importa: nós nos salvaremos pelos afetos.

O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria.”

E é com muita esperança e afeto que convido a todos que estiverem em Porto Alegre (RS) no dia 17 de dezembro, às 20h, a comparecerem ao evento Resistência Cultural em Debate. Serei a mediadora da conversa entre três mulheres atuantes no meio cultural da cidade e do Estado: a cantora e jornalista Camila Toledo, a produtora-executiva de cinema Graziella Ferst e a atriz, diretora e produtora teatral Raquel Grabauska.

A ideia é fazer uma roda de conversa não apenas de produtores culturais e artistas, mas de todos aqueles que querem apoiar a Arte e a Cultura no Brasil.

O momento é de união, reflexão e apoio mútuo. Compareçam.

 

Raquel Grabauska

Hoje chorei comprando manga

Raquel Grabauska
2 de fevereiro de 2018

Estávamos no carro e na estrada, vimos duas crianças vendendo frutas numa banquinha improvisada. Janeiro, Nordeste, perto de 36 graus. Sol escaldante. E vi um dos sorrisos mais lindos do mundo.

Me pareceram duas irmãs. Felizes com a venda. A mais velha foi me dar o troco, eu disse que não precisava. O olhar feliz entre as duas me desmontou. Era pouco o troco. Quis ter dado mais. Muito mais. Quis tirar as meninas dali. A mais nova das irmãs regulava de idade com meu filho mais velho. Que segundos atrás regateava conosco um presente que queria. E eu vinha explicando que não iria dar, que fazia poucos dias que ele havia ganhado um brinquedo, que a vida… e apareceram as meninas vendendo manga.

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Meus meninos ficaram espantados com as crianças trabalhando. Já nos ouviram falando mil vezes sobre, mas nunca tinham visto de perto

De tão perto

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Fiquei pensando no quanto o lugar onde nascemos define quem somos. As oportunidades, o que seremos. O que o futuro nos reserva, não sabemos. Mas hoje me doeu pensar no futuro daquelas meninas. Não me permiti sentir pena delas. Quero admirá-las. Admiro. Pequenas valentes. Nosso carro retomou o caminho e as lágrimas puderam cair. Aquele sorriso vai me iluminar por muito tempo.