Voos Literários

Um expert em STF virou imortal na Academia

Flávia Cunha
24 de abril de 2018

A escolha do jurista Joaquim Falcão como imortal na Academia Brasileira de Letras me chamou a atenção nos últimos dias. Um especialista em Supremo Tribunal Federal em plena época de comoção em torno das decisões do STF em questões sensíveis como a Lava-Jato e a prisão do ex-presidente Lula? Não é, no mínimo, curioso?

Em entrevista à Agência Brasil em sua posse, no dia 19 de abril, Falcão foi questionado sobre sua opinião a respeito do Supremo:

“O Supremo representa o sentimento de justiça do Brasil, assim como os intelectuais representam a consciência do povo brasileiro”, afirmou.

Ao comentar o papel do STF no momento atual, Falcão foi direto: “O Supremo não vai falhar ao Brasil.”

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O interessante é que não é de hoje que Joaquim Falcão analisa o papel do STF na política brasileira. Em pleno processo de impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, ele escreveu o seguinte em uma coluna assinada no jornal O Globo:

Quem mais pede para o Supremo interferir em si mesmo tem sido o próprio Congresso. Desconsiderando–se em sua própria independência. É quase automutilação. Na maioria das vezes é armadilha. Contra isto, o Supremo já poderia ter construído jurisprudência, uma autodefesa contra o abuso de seu uso. Não construiu. Estará construindo agora?

O resultado tem sido a centralização, a suprema judicialização inclusive dos destinos de uma nação.

Leia o artigo completo aqui

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O adeus a Nelson Pereira dos Santos

Poucos dias depois da posse de Falcão, a Academia Brasileira de Letras perdeu o primeiro cineasta a ser integrante da ABL: Nelson Pereira dos Santos.

Sua filmografia tinha tudo a ver com a literatura: levou para as telonas Vidas Secas – um dos filmes brasileiros mais premiados de todos os tempos – e Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, por exemplo. No velório. em plena Academia Brasileira de Letras, foi homenageado com a exibição de trechos de filmes inspirados em livros. Teve uma inegável contribuição para a cultura brasileira.

Voos Literários

Livros pra tentar entender o Brasil atual – parte 2

Flávia Cunha
17 de abril de 2018

Diante da repercussão positiva do primeiro texto sobre obras cujo conteúdo podem auxiliar na compreensão do momento sociopolítico brasileiro, resolvemos dar espaço para nossos leitores darem mais sugestões. Teve livro indicado duas vezes, mas com explicações tão relevantes, que decidimos publicar as duas justificativas para a escolha da obra. Teve gente que sugeriu 2 livros, diante da complexidade do panorama brasileiro.

Agradecemos aos participantes das duas matérias, que demonstram ser possível debater e refletir sobre política de uma forma produtiva, construtiva e sem baixaria. E a coluna Voos Literários e o portal Vós estão abertos para novas dicas de leitura do nosso público.

As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

“Acredito que nenhum outro joga mais luz nessa obscuridade politica/social atual quanto As Veias Abertas da América Latina, do mestre Eduardo Galeano. Essa obra mostra com uma nitidez cristalina tudo que está acontecendo aí.  Veias Abertas não só explica, aquilo faz é desenhar esse momento. O cara que não entender após aquela leitura, é caso de internação.

Gilberto Alves – agente da polícia civil, formado em Filosofia

“Apesar de Galeano se referir muito mais aos colonizados por espanhóis, mostra a origem do que chamo de nosso Complexo da Senzala. Acredito que mostra que realmente corrupção, apesar de deplorável, nunca foi o problema. A questão é que nós acostumamos aos papeis do patrão, feitor e escravo. Quando essa ordem sai do prumo nos atrapalhamos ainda mais como Nação que nunca fomos.”

Tatiane de Sousa – jornalista, repórter da Radioweb

Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro –  Raymundo Faoro

“A justificativa encontra-se no título da obra, por descrever como se deu o processo de formação das elites politicas no Brasil desde a era colonial. Outro livro que me vem ao pensamento é O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. Nesta obra encontrarmos a expressão concunhadismo, que explica muita coisa sobre nossa politica.

Paulo Eduardo Szwec – cineasta

Tristes Trópicos – Claude Lévi-Strauss

“O livro trata a respeito de um etnógrafo que visitou o Brasil nos anos 1930 e desenvolveu um texto que mistura ciência a um relato literário minucioso ímpar.  O seu relato torturante é sobre algumas realidades tropicais, que contrastam a grandeza (potencialidade) com a miséria. Também mostra que as belezas paradisíacas dos países foram exauridas em seus recursos naturais e relações (des-)humanas degradantes. E, hoje, vemos no Brasil tudo isso que ele constatou nos anos 1930 amplificado.  Ainda sobre esse livro, sugiro a leitura desse texto e desse outro aqui.” 

Tiago Siliprandi Giordani – Artista, designer gráfico e professor

Reinventando o Otimismo  – Carlos Fico

“Nesse momento em que vivemos no país, há uma onda que tenta fundamentar ideias ditatoriais, que supostamente traria certa ordem ao caos vigente. No livro, Carlos Fico mostra os mecanismos de linguagem que tentam dar fundamento a essas ideias absurdas através da propaganda da época da ditadura militar brasileira.”

Tiago Siliprandi Giordani – Artista, designer gráfico e professor

Negras Raízes – Alex Haley

“No objetivo de descobrir quem é, Haley levantou todo um mural que retrata a nação americana e toda sua construção racial, e desmonta a iniquidade da superioridade racial que os escravocratas e seus modernos seguidores se atribuíam.

No Brasil,  algumas tentativas nessa busca às origens têm sido feitas, mas todas esbarram numa barreira intransponível: falta de documentação. Por determinação de Ruy Barbosa, então Ministro da Fazenda, em circular de número 29, de 13 de maio de 1891, todo o arquivo relacionado com a escravidão foi queimado para erradicar de vez a ‘terrível macha’. Com isto, o grande segmento da população brasileira, que são os negros e mestiços, ficou flutuando num grande espaço por não saber de onde veio. Quais as tribos que entraram no Brasil? A pergunta, feita por Artur Ramos no seu livro O Negro Brasileiro (1934), continua sem resposta precisa. 

Haroldo Costa, na introdução da obra

Sugestão de Kais Ismail Musa – fotógrafo

Tem outras sugestões? Comentem nas redes sociais do Vós ou escreva para flavia@vos.homolog.arsnova.work e mande sua dica de leitura.

Voos Literários

9 livros para tentar entender o Brasil atual

Flávia Cunha
10 de abril de 2018

Diante da minha perplexidade com os acontecimentos sociopolíticos dos últimos dias, recorri ao meu perfil pessoal no Facebook com uma singela pergunta: “Que livro tem a ver com o momento político atual no Brasil?” Apesar de ver muitas críticas com relação à propagação de ódio nas redes sociais, no meu caso, não tenho do que reclamar. A enquete informal trouxe sugestões relevantes de obras de diferentes estilos e épocas, mas que me fizeram refletir sobre o fato de que estamos vivendo um panorama complexo e instigante.

Raízes do Brasil – Sérgio Buarque de Holanda

“Raízes do Brasil é obra fundamental para entender aspectos que envolvem nossa formação cultural, a mistura deveras obscura entre o público e o privado, a ascensão do patrimonialismo e burocracia, mas principalmente, como não podemos dissociar absolutamente nada do que experimentamos agora da nossa herança cultural.”

Tércio Saccol, jornalista, professor universitário e colaborador do Portal Vós

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A Lei de Murphy – Arthur Bloch

“A Lei de Murphy, seja livro, filme ou quadrinhos – não interessa o veículo – a conclusão é uma só: se pode dar errado, certamente dará”

Lucia Porto, jornalista, criadora do Prateleira 1–  Livros, literatura & afins: das coisas boas da vida.

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Ensaio sobre a Lucidez – José Saramago

“O Nobel de Literatura fala de uma cidade não identificada em que 70% dos eleitores votam em branco em uma determinada eleição. Sem movimento para que isso acontecesse, o fato é um desabafo. Os políticos e as instituições já não serviam mais ao povo. Já não eram dignos de confiança. Isso faz com que os governantes reajam, inicialmente, com violência e tortura. Depois, a cidade é abandonada à própria sorte.

O enredo todo me parece muito similar com o que o Brasil está passando no sentido de que as pessoas já não acreditam nos políticos ou nas instituições e estão decididas a abandonarem o sistema. Estão abrindo uma oportunidade imensa para que pessoas com pensamentos totalitários tomem o poder e decidam por elas. O que Saramago tenta mostrar é que o autoritarismo pode agir sob os panos da democracia. E que é preciso muita lucidez para enxergar.”

Geórgia Santos, jornalista, cientista política e editora-chefe do Vós

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1964: a Conquista do EstadoRene Armand Dreifuss

“O autor foge da análise simplista de golpe militar e aprofunda o debate sobre as diferentes forças sociais que atuaram para o golpe e durante este. Foge, portanto, da dicotomia comunistas e nacionalistas – o que parece muito com hoje, mostrando o interesse em manter o status quo e ampliar os privilégios dos grupos historicamente beneficiados. Tudo a ver com nossos dias”

Deivison Campos, jornalista e professor universitário

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O dia em Que Getúlio Matou Allende, Flavio Tavares

“Através de suas memórias como ativista estudantil e repórter, Tavares analisa a politica da Era Vargas e dos anos 60, demonstrando que as instituições e o Estado de Direito no Brasil sempre estiveram subordinados à agenda de quem estava no poder.”

Eduardo da Camino, músico e proprietário do Mondo Cane Bar

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1984 – George Orwell

“Somos monitorados via mídias digitais e manipulação da mídia televisiva.”

Marcelo Martins, auxiliar administrativo

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Casa Grande e Senzala – Gilberto Freyre

“É preciso um exercício de recorrer à História para compreender momentos que vivemos e essa essa obra (junto com Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda) são bem bacanas para compreender a formação dessa tal sociedade brasileira como é hoje. Claro, sem determinismos, mas uma forma de ir mais fundo para compreender essas brigas entre ‘o andar debaixo’ e o ‘andar de cima’.”

João Vitor Santos,  jornalista do Instituto Humanitas Unisinos

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O inimigo eleito – os judeus, o poder e o anti-semitismo – Julio José Chiavenato

Sinopse:  Resultado de mais de duas décadas de exaustiva pesquisa sobre esse povo massacrado e perseguido através dos séculos. Contudo, o Autor não se atém a exposição dos fatos. Vai mais longe: analisa as causas do anti-semitismo, localiza os estereótipos nas dobras do pensamento de grandes intelectuais do passado e da atualidade e indica os preconceitos racistas latentes na sociedade contemporânea”.

Indicação do publicitário e colaborador do Vós, Gustavo Mittelmann

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Brasil – 500 anos de corrupção – Sérgio Habib

Trecho que se refere ao período histórico de 1889, com a proclamação da República no Brasil, quando a nomeação de pessoas para cargos públicos era utilizada como troca pelo apoio recebido pelos eleitos:

“O funcionalismo público passava, destarte, a ser um ambiente propício onde opera-se a corrupção, contribuindo, para isso, uma intensa e pachorrenta burocracia, ao que parece, dificultada exatamente para ensejar o ‘favor’, a ‘propina’, ou o ‘jeitinho’, do tipo ‘criar dificuldades, para vender facilidades’”

Indicação do empresário Jorge Bered

Imagem: “A Pátria” (1919), de Pedro Bruno, do acervo do Museu da República

Voos Literários

Conceição Evaristo ganhou um prêmio literário. E isso é simplesmente maravilhoso

Flávia Cunha
3 de abril de 2018

Recentemente, a escritora mineira Conceição Evaristo foi eleita na categoria Destaque do prêmio Bravo de literatura. Porque o fato chama a atenção? Além da qualidade indiscutível do seu trabalho na área literária, ela é militante do movimento negro e a gente sabe que se já é difícil para mulheres em geral terem o respeito no meio literário, imagine ainda ter de enfrentar o racismo estrutural existente no Brasil. No discurso durante a premiação, Conceição Evaristo destacou que aquele prêmio era importante não apenas para ela, mas para todas as mulheres, especialmente as negras.

Nascida em uma favela em Belo Horizonte, conciliou os estudos com o trabalho de empregada doméstica. Depois, se mudou para o Rio de Janeiro, onde se formou em Letras, com mestrado e doutorado na área de Literatura. Na década de 1990, teve suas primeiras obras publicadas.

Para homenagear essa baita escritora, escolhi um texto em que ela faz referência a outras duas autoras: Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus, que escreveu o livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.

Clarice no quarto de despejo

No meio do dia

Clarice entreabre o quarto de despejo

pela fresta percebe uma mulher.

Onde estiveste à noite, Carolina?

Macabeando minhas agonias, Clarice.

Um amargor pra além da fome e do frio,

Da bica e da boca em sua secura.

De mim, escrevo não só a penúria do pão,

cravo no lixo da vida, o desespero,

uma gastura de não caber no peito,

e nem no papel.

Mas, ninguém me lê, Clarice,

Para além do resto.

Ninguém decifra em mim

a única escassez da qual não padeço,

– a solidão –

 

E ajustando o seu par de luvas claríssimas

Clarice futuca um imaginário lixo

e pensa para Carolina:

– a casa poderia ser ao menos de alvenaria –

E anseia ser Bitita inventando um diário:

páginas de jejum e de saciedade sobejam,

a fome nem em pedaços

alimenta a escrita clariciana.

 

Clarice no quarto de despejo

lê a outra, lê Carolina,

a que na cópia das palavras,

faz de si a própria inventiva.

Clarice lê :

– despejo e desejos

Conceição Evaristo também será homenageada em Porto Alegre, durante a FestiPoa Literária. O objetivo é chamar a atenção para a produção literária das mulheres, em especial das mulheres negras. A abertura vai ser dia 2 de maio, no Salão de Atos da UFRGS, com entrada franca. Mais detalhes aqui.

 

Voos Literários

7 visões literárias sobre Porto Alegre

Flávia Cunha
26 de março de 2018
Porto Alegre, RS - 21/07/2017 Entardecer no Centro Histórico Na foto: Mercado Público Central Foto: Eduardo Beleske/PMPA

Porto Alegre completa 246 anos hoje  e eu fico buscando motivos internos para celebrar. É a cidade onde nasci, em que vivo há 40 anos e aqui construí a minha história, o que inclui gostar muito dos artistas locais, entre eles os escritores. Mas a capital do Rio Grande do Sul anda sendo maltratada, com ruas sujas, matagal alto por todos os lados, a população de rua aumentando cada vez mais

E eu, como sempre que a realidade me atormenta, recorro à Literatura. Descobri muitos textos em que a cidade é citada, então, esse é o presente que dou a vocês e a mim.

Porto Alegre pelos olhos de escritores talentosos, de diferentes épocas. Vamos torcer para que a cidade tenha dias melhores, em breve

 

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A zona Sul da cidade

“Ninguém está nesta parte da cidade num dia de semana a esta hora da tarde, exceto os caras nos barcos, uns bem próximos, ao redor do clube de velas, outros um pouco mais longe, mas nunca muitos, até porque o lago não é a 10 coisa mais linda do mundo. Quero dizer, todos nós gostaríamos que ele fosse ao menos um pouco mais azul. Lagos costumam ser azuis, não marrons, e as pessoas adoram o azul, é a cor favorita da maioria delas, isso tudo por causa do céu e da água (certamente não dessa), o que eu também vi num documentário, que é o que faço perto da hora de dormir. De qualquer maneira, está abrindo, o bar em que já estive um milhão de vezes, sentado conversando enquanto esmigalhava rótulos ou tentava rosas de guardanapo, na rua de pé com um copo descartável de vinho, ou então jogando sinuca no salão dos fundos, que podemos dizer que é uma parte construída literalmente dentro d’água, o que tem deixado a prefeitura puta da vida há uns vinte anos.”

Carol Bensimon, Sinuca embaixo d’água. Leia um trecho aqui.

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 O Parque Farroupilha, um dos mais frequentados pelos porto-alegrenses

“Passava agora pelo calçadão de areia da Redenção, pela Avenida João Pessoa, o parque ensolarado, os pássaros voando em bando, carros a passarem em alta velocidade, crianças que iam para o colégio, grandes nuvens que desenhavam formas estranhas no céu azul translúcido. […] Passou pela Faculdade de Direito, onde passara bons anos de sua vida, as recordações se atropelavam, estugou o passo, precisava vencer o passado que não lhe interessava mais. Passou pela frente do velho casarão da Santa Casa de Misericórdia, pelas casas iguais do quarteirão, pela Igreja da Conceição, os velhos portões de ferro trabalhado, os gradis cheios de arabescos, cruzou a Rua Santo Antônio e foi quando diminuiu o passo […]

Josué Guimarães, Camilo Mortágua. O romance se passo no ano de 1964, marcado pelo Golpe Militar.

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O Guaíba, com todo seu esplendor

“Fui até a minha praça, na volta do Gasômetro, e é só lá que encontro céu e rio à vontade, azuis, imensos, quase fundidos um com o outro. O céu e o rio vistos daqui da cidade são ávaros, mostram pedacinhos pequenos, perdidos no meio dos edifícios. Parecem ter vergonha de se mostrar. Lá, não.”

Caio Fernando Abreu, Limite Branco. Primeiro romance do autor e um dos poucos em que Porto Alegre aparece claramente como o cenário de um enredo

“O rio está tranquilo e o horizonte é de um verde tênue e aguado que vai se diluindo num azul desbotado. As montanhas ao longe são uma pincelada fraca de violeta. A superfície da água está toda crivada de estrelinhas de prata e ouro. Longe aparece o casario de Pedras, na encosta dum morro. Mais perto o Morro do Sabiá avança sobre o rio. O céu é tão azul, tão puro e luminoso, que Noel simplesmente não acredita que seja um céu de verdade.”

Erico Verissimo, Caminhos Cruzados. A obra do escritor inclui romances urbanos bem interessantes, como Noite e Clarissa, mesmo tendo ficado conhecido pela trilogia “O Tempo e O Vento”

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O centro de Porto Alegre

“Encontrei esse cachorro quase morto de fome na Praça da Alfândega, numa madrugada de outono fria pra cacete, quando voltava de um bar. Era um vira-lata que deixara de ser filhote fazia pouco tempo, preto com dezenas de manchas brancas. Na esquina havia uma caçamba de entulho da prefeitura. Vasculhei o lixo ali dentro e encontrei uma tira comprida de plástico. Improvisei uma coleira ao redor do pescoço do cachorro e o arrastei até o meu prédio, no alto da Duque.”

Daniel Galera, Até o dia em que o Cão Morreu, que inspirou o filme Cão Sem Dono

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A Porto Alegre do século XIX, que já tinha problemas de transporte público

“Há dias que é uma vergonha, os bondes levam horas e horas nos desvios. Ainda há pouco tempo, num passeio que eu fiz com o Ramalho, levamos duas horas e quarenta e cinco minutos do Parthenon à praça da Alfândega. O bonde descarrilou três vezes, esperou um quarto de hora em três desvios, as bestas rebentavam as correias de espaço a espaço.”

Paulino de Azurenha, Mário Totta e Souza Lobo, Estrychinina. Romance de 1897 que narra a história de amor impossível entre Chiquita, uma prostituta, e Neco, um rapaz de “boa família”. Em meio a esse impasse, o casal vaga pela cidade e o leitor consegue identificar casarões antigos da rua Riachuelo, a Rua da Praia, com seu comércio pulsante, e festividades realizadas na Praça da Alfândega e no Menino Deus.

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Um poema sobre Porto Alegre, por um poeta apaixonado pela cidade

O Mapa

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo…

(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei…

Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei…)

Mario Quintana,  Apontamentos de História Sobrenatural. Publicado em 1976, quando o poeta estava com 70 anos.

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Foto: Eduardo Beleske/PMPA

Voos Literários

Vitor Diel – Uma dica de leitura para quem ama os animais

Flávia Cunha
13 de março de 2018

É bom quando a gente pede algo para alguém e acaba sendo surpreendido. Foi o que aconteceu comigo quando combinei de o Vitor Diel escrever uma dica de leitura para o Voos Literários. Ele resolveu escrever sobre o livro Platero e eu, de Juan Ramón Jiménez, que eu absolutamente desconhecia.

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O poeta espanhol Juan Ramón Jiménez ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1956 e foi influenciador  de grandes nomes da Literatura, como Garcia Lorca

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Abaixo, segue a dica de leitura do jornalista e editor da fanpage Literatura RS, destaque literário do Prêmio Açorianos de 2016. Um texto poético e sensível, combinando com a obra escolhida:

Quando falamos dos animais, falamos de nós mesmos. A relação entre essas duas espécies funciona como um espelho para os arranjos que estabelecemos com nosso psiquismo, nossa sensibilidade e nossos afetos. É em função dessa verdade, ainda um tanto opaca, que com frequência nos sentimos especialmente tocados pelas narrativas sobre os animais. Por isso, Platero e eu, de Juan Ramón Jiménez, é e sempre será uma das histórias mais delicadas e sensíveis já produzidas pela literatura espanhola.

É pelas lentes dos olhos do burro Platero que conhecemos o universo do povoado de Moguer. O personagem-narrador conduz Platero com ternura e amor por entre situações que revelam a dor, a injustiça, a alegria, a simplicidade, a malícia, a carícia, a crueldade e o lirismo que existe na vida. A ingenuidade do animal, que às vezes zurra, como zurram os burros, é também a ingenuidade do narrador, coração de poeta que sofre com a solidão e aspereza do mundo. Moguer é amarela, branca e azul, cálida e espaçosa, e está assentada no interior da Espanha do início do século XX. O vilarejo recebe de volta o narrador: o filho que retorna e visita suas memórias de infância, o túmulo do pai, a casa onde nasceu, os ciganos andarilhos, sempre com o discreto Platero ao lado.

A introdução da história já determina a doçura da narrativa:

“Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio por fora, que parece todo de algodão, parece não ter ossos. Deixo-o solto, e ele vai para o prado, e acaricia mansamente com o focinho, mal as tocando, as florzinhas cor-de-rosa, azul-celeste e amarelo-ouro… Chamo-o docemente: ‘Platero!’, e ele vem até mim com um trotezinho alegre, como se viesse rindo, como que num desprendimento ideal. (…) É terno e mimoso como um menino, como uma menina…; mas forte e rijo por dentro, como de pedra. Quando aos domingos, passo montado nele pelas últimas ruelas da aldeia, os homens do campo, de roupa limpa e vagarosos, ficam olhando: – Ele tem aço… Tem aço. Aço e, ao mesmo tempo, prata de luar”.

A pradaria, a estrada de chão, os terraços esbranquiçados, as casas antigas, as tradições cristãs, vemos tudo pelos olhos do burrinho, que não só é amigo e companheiro, mas também cúmplice: “Trato Platero como se fosse uma criança. Se o caminho se torna escarpado e o peso é muito para ele, desço para aliviá-lo. Beijo-o, provoco, ele se irrita… Mas entende bem que gosto dele, não me guarda rancor. É tão igual a mim, tão diferente dos outros, que cheguei a acreditar que sonha meus sonhos”.

Em 136 capítulos curtos (articulados com certa independência, numa dinâmica semelhante a Vidas Secas, do brasileiro Graciliano Ramos e que também joga luzes sobre a relação homem-animal através da cadela Baleia), Platero e eu dá fôlego a reflexões sobre a solidão da existência, a inevitabilidade do fim e a importância do lirismo e da beleza na relação do sujeito com o mundo e consigo mesmo. O burrinho Platero é a lente de aumento através da qual o narrador revela-nos a realidade material; no caso, carregada de ternura, exatamente como deveriam ser todas as relações entre os homens e entre esses e os animais.

Platero e eu – edição bilíngue

Juan Ramón Jiménez

Ilustrações de Javier Zabala

280 páginas

WMF Martins Fontes

2010

A coluna Voos Literários está pedindo dicas de leituras para pessoas do meio cultural do Rio Grande do Sul. Tem mais dicas de livros bacanas aqui e aqui.

Quer enviar tua dica para ser publicada? Escreve para flavia@vos.homolog.arsnova.work.

 

Voos Literários

O Dia da Mulher e as heroínas da vida real

Flávia Cunha
6 de março de 2018

O Dia Internacional da Mulher acaba favorecendo o protagonismo feminino na mídia. Tanto pela pauta de lutas por direitos das mulheres quanto por marcas e lojas tentando fazer “homenagens” – por vezes equivocadas. No meio literário, seguem as tentativas de reconhecimento das mulheres, como já escrevi aqui.

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O texto de hoje é mais um diagnóstico do apagamento de algumas mulheres em detrimento dos homens na literatura brasileira (e fora dela)

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Nessas investigações, cheguei ao ainda pouco conhecido Úrsula, escrito por Maria Firmina dos Reis e publicado em 1859. É considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro. Foi escrito por uma mulher negra, em uma época em que poucas escritoras tinham vez na literatura nacional. Como deve ter sido a vida dessa escritora maranhense, falecida em 1917?

Dá para saber um pouco da trajetória dela através do livro Extraordinárias, Mulheres que revolucionaram o Brasil, de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza. Resultado de uma pesquisa extensa, traz a história de cerca de 40 mulheres de diferentes épocas, do século 16 até a atualidade. Entre elas, a estilista Zuzu Angel, que lutou contra a ditadura militar; a guerreira negra Dandara; a atriz Leila Diniz, que subverteu a moral e os costumes da sua época; e Maria da Penha, que batizou uma das leis fundamentais dos direitos femininos atuais.

Na apresentação, as autoras comentam sobre a condição da mulher e o feminismo nos dias atuais:

“Cada mulher tem sua parte heroína. Enfrentar os preconceitos que mesmo no século xxi são tão presentes em nossa sociedade, dando conta também de tantos papéis e exigências, é, sem dúvida, prova de força. Prova. Essa palavra que nasce conosco e nunca nos abandona. Parece que temos de provar tudo a todos a todo momento, embora a gente saiba muito bem que ninguém nunca deveria ter de provar nada para garantir direitos iguais e respeito. Mas quem seria sua heroína? Não vale falar da Mulher-Maravilha, Jean Grey, Mulan, Katniss Everdeen, Beatrix Kiddo ou Trinity.

Queremos saber quem é sua heroína de verdade, de carne e osso, aquela que você admira, cuja história conhece, com quem se identifica. Joana d’Arc? Frida Kahlo? Marie Curie? Cleópatra? É fácil citar estrangeiras, mas onde ficam as brasileiras nessa lista? Sua inspiração é uma de nós? Na terceira onda do feminismo — ou quarta ou pós-feminismo, porque só o tempo dirá como ficarão conhecidos os dias atuais —, ainda parece difícil citar nossas guerreiras de ontem e de hoje, aquelas que, como nós, nasceram no Brasil ou decidiram viver aqui. E é por isso que escrevemos este livro.”

Dá para ler mais um trecho do livro aqui.

Outra publicação que vai destacar perfis de mulheres que revolucionaram o mundo deve ser lançada em breve pelo projeto As Minas na História. O livro será publicado em uma parceria com a Gibim Editora.

A foto desse texto são de ilustrações feitas especialmente para o livro Extraordinárias, Mulheres que revolucionaram o Brasil.

Voos Literários

22 anos sem Caio Fernando Abreu

Flávia Cunha
27 de fevereiro de 2018

Em fevereiro de 1996, partia para outro plano o escritor da paixão. Caio Fernando Abreu se foi, mas ficou a obra, o legado de escrita visceral que ganhou novo fôlego por meio das redes sociais.

Caio F., como gostava de assinar em sua correspondência a amigos, foi extremamente corajoso ao expor o diagnóstico de HIV positivo publicamente em uma época em que o assunto ainda era tabu. Selecionei um trecho do livro Cartas, organizado por Italo Moriconi e lançado em 2002. No texto escrito para Maria Augusta Antoun e datado de 1º de dezembro de 1995, Caio comenta sobre o pouco de tempo de vida que imagina ter, devido ao estado precário de saúde:

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“[…] e eu barganho com Deus o tempo todo pedindo tempo para escrever pelo menos mais uns seis livros. Estou escrevendo. Sei que o tempo que eu tiver será exato. E sei também que pode acontecer não “um milagre”, mas uma sobrevivência maior. Há novos remédios e uma maladie muito recente. Talvez a cura esteja chegando? Sei que tenho tido uma fé enorme. E me sinto um homem de sorte — estou protegido, cercado de amor. A dor, a morte, pouco importam (ou é só o que importa), porque são parte da condição humana. Mas que se tenha uma vida completa, que se possa passar por ela deixando algo bom para o planeta, para os outros. Vezenquando penso que, no que escrevo, quase consigo. E me sinto sereno. Mas quero fazer mais. Não sinto culpa nem revolta, nem remorso, em nenhum momento algum sentimento escuro. Dores sim, físicas. Mal-estares, fragilidades terríveis. […] E descobri que somos muitíssimo mais capazes de suportar a dor do que supomos. Vide Frida Kahlo.”

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Caio, que sempre foi uma pessoa angustiada, descobre no final da existência uma tranquilidade que não conhecia até então. E também aproveita a carta para perguntar sobre Vera Antoun, a sua única namorada “oficial”, antes de decidir assumir sua homossexualidade:

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“A gente se dá conta tarde de que a felicidade é fácil, não? Gostaria de saber mais de você e de toda a família. Sei que Vera formou-se em Medicina, encontrei-a certa vez (uns 15 anos?) na praia. No meu último livro, Ovelhas negras, tem um conto chamado Lixo & purpurina em que ela é personagem (com o nome de “Clara”). Dificilmente poderei escrever assim longamente outra vez para você. Meu tempo é medido — saúde, jardim, literatura. E há muita coisa profissional a ser tratada — traduções, publicações no estrangeiro, crônicas para jornal. Estou pagando todo o meu tratamento (é caríssimo: acabo de sair de uma radioterapia de seis mil!), o que me deixa muito orgulhoso, mas também fatigado.”

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A versão impressa do livro Cartas, uma preciosidade para os fãs da obra de Caio Fernando Abreu, está esgotada há alguns anos. O texto acima eu copiei do exemplar que tenho em casa. Para quem ainda não leu a obra em questão, resta procurar em sebos a preços bastante altos – cheguei a ver por R$ 200,00 na Estante Virtual. Outra opção é a versão atualizada em e-book, disponível aqui.

Porém, para que os desavisados não imaginem que Caio Fernando Abreu sempre foi o cara zen da época pós-diagnóstico, também selecionei um texto bem polêmico escrito por Caio durante a campanha para a eleição presidencial de 1989. Ele foi chamado pelo Jornal do Brasil para criar um texto sobre o então candidato Fernando Collor de Mello.

Caio, no mais autêntico espírito rebelde, oferece ao JB um conto em que Fernando, ainda menino, faz um pacto com o diabo. O texto acabou censurado, como explica o autor no trecho abaixo:

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“O jornal pediu para o Márcio Souza escrever sobre o Lula e eu faria o mesmo com o Collor. Escrevi a história de um menino que sonha com um garoto ruivo e manco. No dia seguinte, vai para as pedras do Arpoador, no Rio, e lá aparece o garoto. Ele pergunta ao menino Collor se quer ser o dono de um país inteiro. Ele diz sim. E o garoto acaba comendo ele – era o demônio. O conto se chama O Escolhido. O José Castello, que era o editor, disse que a cúpula do jornal optou por não publicar. Quando o Collor ganhou, liguei e disse: “Por causa de covardia como a de vocês é que o cara foi eleito”.

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Vocês podem ler mais textos do blog Voos Literários sobre Caio Fernando Abreu aqui, aqui e aqui. Caio uma vez falou: “Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que eu escrevi”. Façamos sua vontade.

A foto selecionada para esse post é da exposição Doces Memórias, realizada em homenagem a Caio F., há alguns anos, em cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Voos Literários

Por onde andam as escritoras do presente e do passado?

Flávia Cunha
20 de fevereiro de 2018

Volta e meia, me pego pensando sobre como eu, mesmo sendo mulher e adepta do feminismo, leio poucos textos literários escritos por mulheres. Mas vocês já se perguntaram a razão de, em geral, lermos mais livros escritos por homens? Entre os motivos, eu acredito que esteja o pouco destaque dado à literatura feita por mulheres.

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Um levantamento divulgado no ano passado revelou que no Brasil, desde 1941, as mulheres ganharam só 17% do total de premiações dos maiores eventos literários do país

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Essa matéria também revela que há uma crença de que as escritoras produzem “literatura feminina”, como se fosse uma categoria menos relevante.

Outro dado que me chamou a atenção foi sobre a literatura beat. Eu sempre amei as obras escritas pelos doidos da geração beatnik, em especial Jack Keroauc e seu clássico On The RoadE eu nunca tinha parado para pensar porque não lia textos de mulheres nesse movimento literário. Não existiam ou não ganharam visibilidade? Pois ao ler um texto do sensacional projeto As Minas e a História descobri que existiram, sim, escritoras beatPorque não foram reveladas na época? Observem essa resposta do poeta Gregory Corso:

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“Tinha mulheres sim, eu conheci elas, suas famílias puseram elas em hospícios, foram parar no eletrochoque. Nos anos 50, se você fosse homem, dava para ser rebelde, mas se fosse mulher, a família te interditava.

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Essa matéria traz nomes de cinco escritoras: Elise Cowen (na foto acima com um dos ícones do movimento beat, o escritor Allen Ginsberg), Hettie Jones (que ilustra a capa), Denise Levertov, Joyce Johnson e Diane Di Prima. Para conhecer mais a obra das escritoras dessa época, recomendo a leitura do livro Meninas que Vestiam Preto, à venda aqui.

Em pleno século 21, ainda é muito necessário e louvável quando aparecem iniciativas destinadas a dar visibilidade para as mulheres na literatura. Destaco aqui uma proposta da Editora Calamares, de Minas Gerais, que está selecionando textos para uma Coletânea de Escritoras. Nossa intenção é que essa publicação seja impressa, anual e tenha seu primeiro número lançado em 2018. Para o processo de seleção dos textos que vão compor esse primeiro número, estamos com uma chamada aberta até o dia 15 de março de 2018.” Outras informações sobre a seleção estão aqui.

E, depois de escrever esse texto, coloquei com uma das minhas metas para 2018 ler mais livros escritos por mulheres.

Voos Literários

Camila Toledo: uma dica de leitura para refletir no Carnaval

Flávia Cunha
6 de fevereiro de 2018

O Carnaval está aí, com muita música, fantasias originais, glitter e purpurina. Tem festa e animação, mas também pode ter abuso e objetificação dos corpos femininos. Nesse contexto, a erotização e a objetificação da mulher negra pode ser ainda mais grave.

E quando pedi uma dica de leitura para a Camila Toledo, vocalista da banda MotherFunky (de funk, soul, black music e groove) e criadora do projeto especial Billie Holiday, deixei-a bem vontade para escolher a obra em questão. Como ativista da causa negra e feminista, Camila acabou escolhendo um livro que aborda justamente o tema da objetificação dos corpos negros. Com a palavra, essa mulher incrível, que também foi criadora do Festival NosOutras (que tive a honra de auxiliar na produção):

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“A gente fala de objetificação do corpo negro sem saber o quão profunda essa questão pode se tornar”

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“Fala-se das mulheres hipersexualizadas, do negro como apenas fonte de trabalho. A história e as marcas desse pensamento vêm sendo descobertas pouco a pouco. Existe uma estrutura social de pensamento ainda escravagista que repete que o corpo negro está a serviço da sociedade.

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Estou lendo um livro da escritora Rebecca Skloot. Depois de muito escrever para revistas científicas, Rebecca interessou-se por desvendar a historia das células He-La: Células que revolucionaram a medicina como a entendemos hoje, por serem das raras células que se mantém vivas até hoje, mantidas em cultura.

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A linhagem dessas células é responsável por avanços imensuráveis na ciência e também lucros igualmente imensuráveis. Essas células foram coletadas de uma mulher negra norte americana, Henrietta Lacks ao ser internada em um hospital para negros na Virginia já perto da morte.  As células eram de uma câncer e, como era de praxe com os pacientes negros, foram coletadas sem o consentimento da paciente.

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Assim, os lucros e louros gerados com as células nunca foram repassados a família. Em A Vida Imortal de Henrieta Lacks, a escritora conta da dificuldade de conversar com a família, que rechaça com todas as forças a forma como o corpo de Henrietta fora “usado” pela ciência.

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Um relato sobre objetificação, desrespeito e fundamentalmente sobre as marcas da crua e imposta servilidade negra à sociedade ocidental. Eu comecei a ler esse livro no ano passado e já tive que parar várias vezes, como fiz com Mulheres, Raça e Classe, da Angela Davis, e o Hibisco Roxo, da Chimamanda Ngozi Adichie.

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Essas leituras, pra mim, que sou ansiosa e negra, geram dois desconfortos: A necessidade de desacelerar pra me concentrar na leitura e as revelações sociais.  Em tempos de redes sociais, ler é uma vitória. E poder ter contato com as doenças sociais que permeiam a vida da gente é um privilégio. Mas requer determinação e resiliência. Indico fortemente esse livro, que além de uma leitura fluida, eleva a discussão sobre objetificação do corpo negro para um outro nível.”

A coluna Voos Literários está pedindo dicas de livros para personalidades do meio cultural do Rio Grande do Sul. O primeiro a dar uma indicação de leitura foi o Duda Calvin.

Também quer mandar tua dica de leitura para a gente? Escreve para flavia@vos.homolog.arsnova.work.