Voos Literários

Livros pra tentar entender o Brasil atual – parte 2

Flávia Cunha
17 de abril de 2018

Diante da repercussão positiva do primeiro texto sobre obras cujo conteúdo podem auxiliar na compreensão do momento sociopolítico brasileiro, resolvemos dar espaço para nossos leitores darem mais sugestões. Teve livro indicado duas vezes, mas com explicações tão relevantes, que decidimos publicar as duas justificativas para a escolha da obra. Teve gente que sugeriu 2 livros, diante da complexidade do panorama brasileiro.

Agradecemos aos participantes das duas matérias, que demonstram ser possível debater e refletir sobre política de uma forma produtiva, construtiva e sem baixaria. E a coluna Voos Literários e o portal Vós estão abertos para novas dicas de leitura do nosso público.

As Veias Abertas da América Latina – Eduardo Galeano

“Acredito que nenhum outro joga mais luz nessa obscuridade politica/social atual quanto As Veias Abertas da América Latina, do mestre Eduardo Galeano. Essa obra mostra com uma nitidez cristalina tudo que está acontecendo aí.  Veias Abertas não só explica, aquilo faz é desenhar esse momento. O cara que não entender após aquela leitura, é caso de internação.

Gilberto Alves – agente da polícia civil, formado em Filosofia

“Apesar de Galeano se referir muito mais aos colonizados por espanhóis, mostra a origem do que chamo de nosso Complexo da Senzala. Acredito que mostra que realmente corrupção, apesar de deplorável, nunca foi o problema. A questão é que nós acostumamos aos papeis do patrão, feitor e escravo. Quando essa ordem sai do prumo nos atrapalhamos ainda mais como Nação que nunca fomos.”

Tatiane de Sousa – jornalista, repórter da Radioweb

Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro –  Raymundo Faoro

“A justificativa encontra-se no título da obra, por descrever como se deu o processo de formação das elites politicas no Brasil desde a era colonial. Outro livro que me vem ao pensamento é O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. Nesta obra encontrarmos a expressão concunhadismo, que explica muita coisa sobre nossa politica.

Paulo Eduardo Szwec – cineasta

Tristes Trópicos – Claude Lévi-Strauss

“O livro trata a respeito de um etnógrafo que visitou o Brasil nos anos 1930 e desenvolveu um texto que mistura ciência a um relato literário minucioso ímpar.  O seu relato torturante é sobre algumas realidades tropicais, que contrastam a grandeza (potencialidade) com a miséria. Também mostra que as belezas paradisíacas dos países foram exauridas em seus recursos naturais e relações (des-)humanas degradantes. E, hoje, vemos no Brasil tudo isso que ele constatou nos anos 1930 amplificado.  Ainda sobre esse livro, sugiro a leitura desse texto e desse outro aqui.” 

Tiago Siliprandi Giordani – Artista, designer gráfico e professor

Reinventando o Otimismo  – Carlos Fico

“Nesse momento em que vivemos no país, há uma onda que tenta fundamentar ideias ditatoriais, que supostamente traria certa ordem ao caos vigente. No livro, Carlos Fico mostra os mecanismos de linguagem que tentam dar fundamento a essas ideias absurdas através da propaganda da época da ditadura militar brasileira.”

Tiago Siliprandi Giordani – Artista, designer gráfico e professor

Negras Raízes – Alex Haley

“No objetivo de descobrir quem é, Haley levantou todo um mural que retrata a nação americana e toda sua construção racial, e desmonta a iniquidade da superioridade racial que os escravocratas e seus modernos seguidores se atribuíam.

No Brasil,  algumas tentativas nessa busca às origens têm sido feitas, mas todas esbarram numa barreira intransponível: falta de documentação. Por determinação de Ruy Barbosa, então Ministro da Fazenda, em circular de número 29, de 13 de maio de 1891, todo o arquivo relacionado com a escravidão foi queimado para erradicar de vez a ‘terrível macha’. Com isto, o grande segmento da população brasileira, que são os negros e mestiços, ficou flutuando num grande espaço por não saber de onde veio. Quais as tribos que entraram no Brasil? A pergunta, feita por Artur Ramos no seu livro O Negro Brasileiro (1934), continua sem resposta precisa. 

Haroldo Costa, na introdução da obra

Sugestão de Kais Ismail Musa – fotógrafo

Tem outras sugestões? Comentem nas redes sociais do Vós ou escreva para flavia@vos.homolog.arsnova.work e mande sua dica de leitura.

Geórgia Santos

Grêmio x Lanus – NÓS jogamos hoje

Geórgia Santos
29 de novembro de 2017

Eduardo Galeano, em Futebol – Ao sol e à sombra, diz que é raro o torcedor que afirma “Meu time joga hoje”. Ele está certo. A um esporte coletivo, não cabe a possessão ou a singularidade. Incumbe, em vez, o pertencimento da primeira pessoa do plural. NÓS jogamos hoje.

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E NÓS, Grêmio, jogamos hoje

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Enquanto aguardo com certa ansiedade e estômago inquieto este 29 de novembro passar, refaço em minha memória a linha do tempo que me avaliza como jogadora número 12. O que vejo não é o primeiro jogo no Olímpico ou na Arena ou a primeira camisa que ganhei. Tampouco o momento em que me dei conta que era gremista, pois sempre fez parte da minha natureza. Não penso nos choros e soluços, nos gritos e desabafos. Nos desaforos e desafogos. Não lembro de quando ganhei autógrafo do time todo em 95; mesmo dia em que o Dinho me fez chorar com sua cara feia, para diversão do meu pai. Não repasso os adesivos enfeitando os cadernos na adolescência em que os títulos desapareceram.

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O que vejo é o banquinho da vó Julia quebrando

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Eu tinha sete anos em 1995 e vivia em Paraí, minha cidade natal. Entretanto, por algum motivo do qual não lembro, viajamos a Porto Alegre naquele 30 de agosto. Meus pais e eu estávamos hospedados na casa da vó Julia e da tia Marta, que tinha uma televisão grande na sala – sala que ficou pequena graças à nossa ocupação. Tralhas à parte, cada um acomodou-se como foi possível. Ao meu pai coube o banquinho branco, baixinho e de pernas frágeis.

O Grêmio entrou no Estádio Atanasio Girardot, em Medellín, com uma grande vantagem de 3 a 1 conquistada no primeiro jogo. Mas futebol é futebol. É aquele ritual imprevisível e estressante, em que as funções naturais do nosso corpo se descompensam tanto quanto as de quem está entre as quatro linhas. E o Atlético Nacional marcou aos 12 minutos de partida. Gol de Aristizábal. Nunca esqueci desse nome.

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Eu já estava fardada, como os outros jogadores, mas ali naquele momento, era como se Felipão tivesse escalado a mim para resolver o jogo, e não Alexandre

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Passei resto do jogo em pé, secando as mãozinhas suadas naquele uniforme com o patrocínio da Renner. Andando de um lado para o outro, como se o time dependesse da minha energia, da minha vitalidade. Eu fazia parte daquele time, eu era o Grêmio. “Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.” Eu estava sendo abonada pelas palavras que Galeano nem sabia que escreveria.

Pouco antes do final, aquele Alexandre que era eu sofreu um pênalti. Dinho cobrou e marcou. A América era NOSSA. O árbitro apitou o final da partida e eu pulei no colo do meu pai, que permaneceu sentado no banquinho da vó Julia. Mas era Grêmio demais e o banquinho não aguentou. O pai e eu nos espatifamos no chão, em cima de uma mesinha de centro. A casa quase implodiu de alegria com as gargalhadas da mãe. NÓS tínhamos vencido.

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Futebol, meu povo, não é futilidade. É memória, é afeto, é parceria. É diversidade. É comunidade

E NÓS jogamos hoje

 

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Foto: Revista da CONMEBOL