Com Lava-Jata enfraquecida, STF e Congresso se unem no contra-ataque
Igor Natusch
8 de agosto de 2019
Se há algo que aproxima a operação Lava-Jato do atual governo, é a disposição de usar o conflito como estratégia de legitimação e fidelidade. É apenas a partir deste ângulo que a intempestiva decisão de transferir o ex-presidente Lula de Curitiba para o presídio do Tremembé, em São Paulo, ganha motivação e significado.
Diante do enfraquecimento da aura de santidade em torno da operação, disparada pelos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil, a decisão da juíza federal Carolina Lebbos recoloca a figura odiada de Lula no centro do noticiário. Como elemento central da brincadeira, ficava no ar a possibilidade de colocá-lo em uma cela coletiva, ao invés da sala especial de Curitiba. Um aceno nada sutil aos anseios sádicos da ala que sempre sonhou em ver o ex-presidente em uma cela superlotada de um penitenciária comum. Ao frustar a realização (mesmo que apenas imaginária) dessa tara, o STF colaria em si mesmo a etiqueta de aliado de Lula, logo inimigo da Lava-Jato, logo inimigo do Brasil.
Esse parece ser o plano. Se o plano deu ou está dando certo, são outros quinhentos.
A movimentação mais significativa parece ter vindo do Congresso Nacional. O repúdio uniu parlamentares e senadores, de oposição e de centro, e recebeu um endosso emblemático do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Fazer uma pausa na votação dos destaques da Reforma da Previdência para que uma delegação de deputados pudesse falar com o presidente do STF, Dias Toffoli, é de uma simbologia muito forte.
Nada é mais importante no Congresso do que aprovar a reforma – mas enfrentar a decisão da Lava-Jato mostrou-se ainda mais importante do que isso. E ganhou, a partir do intervalo trazido por Maia, um caráter institucional.
Se a Câmara dos Deputados decidiu comprar essa briga, certamente não foi por solidariedade, ou porque acham o Lula bonito.
Ao enfrentamento explícito do Congresso, sucedeu-se uma demonstração quase afrontosa do Supremo. Um placar de 10 a 1 contra a transferência, vindo de um tribunal pressionado e dividido como o STF, é muito significativo, ainda mais em tema tão delicado e com rapidez de poucas horas. E que não surge da mera convicção de que a medida fosse equivocada. Quem poderá ignorar as recentes revelações do Intercept Brasil e veículos parceiros, mostrando ações do procurador Deltan Dallagnol para investigar, de forma ilegal, ministros do STF?
Se a ideia da Lava-Jato era demonstrar força e capacidade de enfrentamento, o efeito parece não ter sido o desejado. O que ficou evidente, isso sim, foi o enfraquecimento da operação, pelo menos diante de seus antagonistas.
A classe política, que passou anos no córner e viu muitas de suas principais figuras atrás das grades, ensaia uma reação. O STF, atacado tanto nos bastidores quanto à luz do dia, deixa claro que está disposto a dobrar a aposta. Pressionados pela opinião pública até então apaixonada pela Lava-Jato, esses núcleos evitavam reagir aos excessos da operação; agora, que o desgaste de Moro, Dallagnol e cia. é notório e crescente, unem-se para o contra-ataque. E nem o nome de Lula (figura cuja defesa pública, até há pouco tempo, era impensável para esses grupos) tem o mesmo poder de intimidação de antes.
Não é uma simples reação de corruptos contra o braço forte da Justiça. É um posicionamento coletivo na disputa pelo poder. E que se torna possível agora, que a Lava-Jato não parece mais tão imbatível quanto antes.
A estratégia de manter-se no ataque o tempo todo é eficiente para direcionar leituras e narrativas, mas não é livre de limites. Um deles é um tanto óbvio: quanto mais numerosas as frentes de batalha, mais difícil é manter a intensidade da artilharia.
A Operação Tremembé certamente amplia o fosso entre os defensores da Lava-Jato e os que criticam suas práticas, e isso favorece quem extrai seu poder justamente dessa oposição inconciliável. Mas o episódio também marca a primeira vez que uma ação da força-tarefa é enfrentada de forma coletiva, enfática e eficiente. E talvez o apoio da torcida não seja mais suficiente para garantir a vitória em casa.
Não foi nem uma, nem duas vezes que eu perguntei a mim e a outros qual seria o limite de Jair Bolsonaro. Quão longe ele iria nas mentiras e ofensas? Mas também sempre fiquei intrigada com o que ele precisaria dizer para que não fosse defendido? O que ele precisaria dizer para que fosse chamado pelo que ele realmente é: preconceituoso, autoritário, despreparado e cruel.
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Antes da campanha eleitoral e durante as eleições, foram muitas as oportunidades. Agora, enquanto presidente da República, absurdos são normalizados todos os dias
Na última semana, porém, Bolsonaro parece ter ido longe demais. Ele atacou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, dizendo que se ele quiser saber de que forma o pai dele desapareceu no período militar, ele contaria.
“Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, disse Bolsonaro durante coletiva de imprensa.
Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira era integrante do grupo Ação Popular (AP) e foi preso pelo governo em 1974 e nunca mais foi visto. No livro “Memórias de uma guerra suja”, lançado em 2012, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra diz que o corpo de Fernando foi incinerado no forno de uma usina de açúcar na cidade de Campos, no Rio de Janeiro. Além da versão do ex-delegado, o atestado de óbito de Fernando, incluído no sistema da Comissão de Mortos e desaparecidos, diz que ele foi morto pelo Estado brasileiro.
Bolsonaro, porém, depois da polêmica, disse que o pai do presidente da OAB foi morto pelos companheiros, a quem ele classificou como terrorista. O presidente foi além e ainda questionou a legitimidade da Comissão da Verdade, que apurou os crimes cometidos pelo Estado durante a Ditadura Militar.
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Bem, o limite de Bolsonaro ainda é desconhecido. Mas esse incidente com o presidente da OAB mostrou que talvez esse seja o limite para muitos dos apoiadores. A reação mais surpreendente foi a do governador de São Paulo, João Dória (PSDB)
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É inaceitável que um presidente da República se manifeste dessa forma como se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Foi uma declaração infeliz do presidente Jair Bolsonaro — disse. Na sequência, Doria ainda negou ter alinhamento político com o governo de Bolsonaro.
Bom, a fotografia mostra a mentira do alinhamento. E obviamente, o distanciamento de Dória tem na mira a próxima eleição presidencial. Mas ele não foi o único. As manifestações de repúdio ocorreram em profusão, inclusive de figuras notadamente vinculadas à direita, como Rodrigo Constantino, e outros apoiadores. Talvez esse seja o limite de alguns apoiadores, diminuir a dor de alguém que perdeu o pai pelas mãos do Estado. Veremos.
De todo modo, me surpreende que as pessoas tenham ficado surpresas com o quão longe ele foi. Afinal, ele não elogiou Ustra, a quem ele chamou de “o terror de Dilma Rousseff”? Não disse que o erro do regime foi torturar e não matar? Não “brincou” que queria “fuzilar a petralhada”? Bolsonaro sempre foi isso. Autoritário, preconceituoso, cruel, torpe.
Ninguém é obrigado a responder mamadeira de piroca
Igor Natusch
1 de agosto de 2019
A frase do título foi publicada no Twitter pelo editor-executivo do The Intercept Brasil, Leandro Demori. Deveria ser alçada ao status de mantra, ser adotada sempre que nos fosse exigido um posicionamento sobre alegações absurdas e ridiculamente mentirosas. É tudo muito simples, na verdade: tudo que é falso e mentiroso ganha uma estranha espécie de legitimação quando recebe a dignidade de uma resposta. Não alimente os trolls. Não responda mamadeira de piroca.
Infelizmente, as coisas não estão funcionando assim. E é profundamente preocupante quando a legitimação, mesmo indireta, vem dos próprios veículos e espaços criados para combater a falsidade, para deslegitimar a mentira sem-vergonha com a exposição implacável da verdade e dos fatos. Vejamos, por exemplo, essa manifestação do Lupa, especializado em fact-checking:
Com todo o respeito aos profissionais que trabalham no veículo, mas essa manifestação é um absurdo
Mais: é um absurdo perigoso
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Sites como Boatos.org e Snopes prestam um excelente serviço, basicamente porque partem de uma ótima premissa: ser uma database de desmentidos. O valor que oferecem, embora dialogue de forma óbvia com o noticiário, pouco tem a ver com instantaneidade: é ser uma fonte confiável a ser consultada sempre que o usuário da internet tiver dúvida sobre a veracidade de alguma alegação. Você tem dúvidas, e vai até eles fazer uma consulta. É eficiente, e com alto potencial de convencimento.
Veículos de fact-checking como Lupa são diferentes. Sua proposta é enfrentar fake news de forma dedicada e jornalística. O que é igualmente importante nesses tempos difíceis que vivemos, embora com uma metodologia diversa. Há uma informação que finge ser jornalística, e ela é desmontada a partir do próprio método jornalístico.
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Mas checar fatos é muito diferente de checar o que o outro lado tem a dizer
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Glenn Greenwald e David Miranda não têm que dizer absolutamente nada sobre a mentira cretina da qual foram vítimas. Por vários motivos, mas acima de tudo porque é uma mentira cretina, disseminada de forma cretina via redes sociais. Não é como se estivéssemos diante de uma denúncia séria, feita por uma instituição confiável ou a partir de uma metodologia adequada: é uma safadeza absoluta, feita para agredir desafetos políticos e ganhar alguns cliques e likes no processo.
De qualquer forma, o hospital onde supostamente a internação ocorreu já havia negado tudo. O próprio David Miranda havia publicado, no momento em que se disseminava a mentira, um vídeo ao lado do marido, sorridente e tranquilo no quarto do casal. Ainda assim, e mesmo com o histórico nada recomendável do pseudo-veículo que publicou a sujeira, os profissionais da Lupa, que “duvidam por essência”, não se sentiam seguros para cravar um “falso”.
Se a Lupa acha que Glenn Greenwald e David Miranda não “negaram de forma clara a alegação”, é porque o veículo começa a assumir, enquanto procedimento, que a fake news é uma indagação “respondível” e não uma mentira a ser desmascarada. Isso inverte a própria lógica que se espera do fact-checking, de uma forma degradante e que coloca sua própria função de existir em risco.
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Se não tinham convicção de que era falso, o problema não é de Glenn ou do Intercept Brasil: é do seu próprio método e, mais ainda, da sua concepção sobre o próprio trabalho
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É crescente o risco de criar-se uma espécie de simbiose com as fake news. As agências de fact-checking não apenas não saem da postura reativa, nunca conseguindo antecipar os movimentos da indústria de desinformação (o que é difícil mesmo, sem dúvida) como parecem estar retirando o seu próprio valor, por assim dizer, da existência das fake news. Não estão apenas desmentindo, mas sendo pautados por elas. E, na medida em que se permitem ficar em tal posição, vão reforçando o mecanismo que dá a essa indústria seu poder de persuasão.
Pois, em um cenário desses, não são mais apenas os veículos de checagem que precisam se antagonizar à mentira; a realidade também precisa dizer que é a verdade, e não uma versão calhorda dela, que define sua existência. E quem aqui não sabe que, se Glenn Greenwald diz que é mentira, isso será visto, pelos que os detestam, justamente como prova de que tudo é exatamente como as fake news estão dizendo?
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Há um limite, e ele precisa ser delimitado. Ninguém deve ser convocado a responder sobre mamadeira de piroca
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O fact-checking não é, e não pode virar, uma mera tabelinha com as fake news. Não há dois lados no combate a pseudo-notícias mentirosas. Checagem é o espírito do jornalismo, mas como forma de buscar os fatos, não de dar uma satisfação aos que vivem de disseminar a mentira.
Suponhamos que um estado de exceção seja como uma macarronada. Como sabemos, dá para usar muitas coisas diferentes na hora de fazer uma macarronada. Mas, no fim das contas, tudo se resume a dois ingredientes principais: macarrão e molho.
Macarrão é fácil de obter. Toda nação tem uma massa impressionável, exausta pelos abusos de todos os dias, que pouco entende das disputas políticas e que, por isso mesmo, mostra-se relativamente fácil de manipular.
Esqueça o macarrão, portanto. Esse ingrediente está sempre à disposição de quem deseja fazer uma macarronada. Não é sobre ele que vamos falar.
Essa é uma história sobre como se faz extrato de tomate.
Na última terça-feira, foi disparada pela Polícia Federal a Operação Spoofing, que cumpriu mandatos de prisão associados à suposta invasão do celular do ex-juiz federal e atual ministro da Justiça, Sergio Moro. Quatro pessoas foram presas no interior de São Paulo e levadas até Brasília. E isso é, quase literalmente, tudo que sabemos de oficial: mais detalhes, só no dia seguinte, quando será enfim levantado o sigilo sobre a investigação. Escrevo no final da noite de terça-feira; não sei, portanto, de nada que os leitores e leitoras do futuro já devem saber.
Longas horas de incerteza. Uma noite inteira, talvez uma manhã completa e uma boa parte da tarde para especulações, insinuações, palpites. Para disseminar, pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, as mais delirantes leituras e as mais infames acusações.
Ninguém que esteja lendo esse texto esteve na nebulosa de Orion nas últimas semanas, então vocês provavelmente sabem que o ministro Sergio Moro e procuradores da Lava-Jato (entre eles, o amigão de Moro, Deltan Dallagnol) estão às voltas com uma série de matérias constrangedoras. Essas matérias estão sendo feitas a partir de material obtido pelo The Intercept Brasil: milhares de diálogos via celular, demonstrando uma série de desvios éticos (e algumas ilegalidades flagrantes) cometidas por Moro, Dallagnol e outros super-heróis da moralidade nacional.
Segundo Moro e a Lava-Jato, esse material foi obtido por um hacker. A única evidência disso, até agora, é a palavra dessas pessoas, e mais nada. Ao que se sabe no momento em que escrevo, sequer uma perícia nos celulares foi realizada.
O mesmo Moro havia denunciado ter sido vítima de um hacker, pouco antes da revelação que o Intercept tinha obtido arquivos comprometedores. Invadiram meu celular, reclamou Moro. Sem demonstrar, mas reclamou.
É o mesmo hacker? Não sei. Ninguém sabe. E é assim que precisa ser, se queremos fazer um bom extrato de tomate. Ninguém pode saber com certeza de coisa alguma.
Enquanto a gente não sabe, a gente vai especulando.
Esse é um elemento que ajuda a dar o ponto para a receita, sabe. A gente fica vulnerável à especulação. Nervosos, inseguros. Impressionáveis. Fica com medo da denúncia do jornalista ser verdade, e também fica com medo que ela seja mentira.
Claro que essa panela de pressão não esquenta de uma hora para outra. Muita coisa foi insinuada e vociferada nos últimos dias. Pavões misteriosos falando de Bitcoins russos. Negociatas envolvendo suposta compra de mandato pelo marido do jornalista à frente das reportagens. Acusações de que fazer matéria jornalística com material vazado é crime, algo que poderia gerar até deportação. Pretensas adulterações de conteúdo das quais muito se fala, mas nada se evidencia. Muita coisa, enfim.
Mas o mais importante é insistir na narrativa. Ninguém viu provas do hacker, mas o ministro Moro diz que foi hacker, então ninguém pode duvidar. E se o informante for alguém do Ministério Público, talvez um membro da própria Lava-Jato? Pode até ser, mas não pode ser. Foi hacker, você não viu? Foi Sergio Moro quem disse – e agora a PF, mesmo sem ter dito, disse também. Foi hacker. Um perigoso e maligno hacker, usando tecnologia desconhecida para atacar um dos super-heróis da nação. Talvez vários hackers. Imagine: uma gangue de hackers. Contratados por alguém. Quem são os hackers? Quem contratou os hackers? O que eles vão dizer?
É mais ou menos nessa hora que as pessoas começam a perguntar: e aí, ninguém vai fazer nada?
O extrato de tomate está ficando no ponto.
É possível, dentro do cada vez menos relevante mundo real dos fatos e acontecimentos verificáveis, que os hackers não tenham nada a ver com a #VazaJato. Que sejam apenas uns golpistas meia-boca, que usaram um cavalo de troia para tentar roubar umas senhas bancárias de Moro ou algo assim. Talvez não sejam nem mesmo isso.
Mas, e aí está o segredo que dá o sabor especial à receita: você não sabe. Até quarta-feira à tarde, ou talvez ainda depois, ninguém vai saber. Mas todo mundo vai querer saber. Todo mundo vai pensar sobre qual é, no fim das contas, a verdade. E todo mundo vai estar querendo que alguém resolva logo essa situação.
Quando a gente quer que alguém resolva logo a situação, a gente fica mais tolerante com atalhos. A gente fica menos apegado ao modo certo de fazer as coisas.
O estado de exceção adora isso. Um líder autoritário gosta muito de tomar atalhos.
Do lado de cá de tudo que está rolando, noto que o pessoal ainda está muito preocupado com o macarrão. Talvez achem que o macarrão pode ser devolvido à prateleira. Talvez achem que, conversando com o macarrão, ele vá se recusar a ir para a panela cozinhar.
Bobagem, digo eu. O macarrão está sempre à disposição. É a parte mais fácil da receita.
O que interessa, agora mais do que nunca, é o extrato de tomate.
Talvez ainda esteja em tempo de estragar a macarronada de domingo. De repente a receita do extrato desande, ou um pontapé bem dado possa até derrubar a travessa no chão. De repente dá para esquentar a panela além da conta e fazer o prato inteiro queimar, ficar intragável e impossível de servir. Mas não é boa ideia perder tempo. Como a gente sabe, uma vez que se tenha o macarrão, fica faltando só o molho para servir uma tremenda macarronada.
(Washington, DC - EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PR
Na última semana, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que pretendia indicar o terceiro filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. O comunicado informal foi feito no dia 11, um dia depois de Eduardo completar 35 anos, idade mínima necessária para assumir o cargo de embaixador. Em tempos de sociedade da informação, a reação negativa foi praticamente instantânea na internet. Da oposição, é claro, mas também os aliados se mostraram contrários à decisão de Bolsonaro. O “guru” Olavo de Carvalho disse que se tratava de um retrocesso.
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Até os apoiadores do Twitter roeram a corda
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Foto: Reprodução /Twitter
É NEPOTISMO?
O primeiro “problema” é, obviamente, o fato de o presidente indicar o próprio filho para a função de embaixador no que se pode chamar de país mais importante do mundo. Não há precedentes em outras democracias. O único estadista a indicar o filho para a Embaixada dos EUA foi um rei saudita. Bolsonaro garante que não há nepotismo, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem decisões difusas sobre a legalidade do tema. Em agosto de 2008, foi aprovada uma súmula que proíbe a nomeação de cônjuge ou parente até terceiro grau para cargos em comissãos, de confiança ou função gratificada. Isso vale para todos os poderes em níveis municipal, estadual e federal. A questão é que não está claro se a regra vale para cargos de natureza política, como ministros de Estado e embaixadores.
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ELE PODE SER INDICADO?
Uma segunda crítica com relação à decisão de Bolsonaro provém do fato de que ele Eduardo não é um diplomata, logo, não poderia ocupar o cargo. Mas não é bem assim. É verdade que a legislação brasileira estabelece que os chefes das chamadas missões diplomáticas permanentes devem ser escolhidos entre os ministros de primeira ou segunda classe do Itamaraty. Mas há uma exceção. Brasileiros natos que não pertençam aos quadros do Ministério das Relações Exteriores e que sejam maiores de 35 anos de idade podem ser indicados para embaixadas. A prerrogativa de escolha é do presidente. Desde que sejam cidadãos “de reconhecido mérito e com relevantes serviços prestados ao país.” E é aí que a porca torce o rabo.
Jair, na mesma ocasião em que anunciou a possibilidade de indicá-lo, garantiu que Eduardo é a melhor pessoa para ocupar o posto de embaixador nos Estados. “Ele é amigo dos filhos do Trump, fala inglês e espanhol, e tem uma vivência muito grande no mundo. Poderia ser uma pessoa adequada e daria conta do recado perfeitamente”, disse o presidente.
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Poderia, mas não é
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Eduardo discorda e, na mesma hora, disse estar honrado com a escolha. Não apenas isso, garantiu estar preparado para o desafio. “É difícil falar de si próprio, né? Mas não sou um filho de deputado que está do nada vindo a ser alçado a essa condição, tem muito trabalho sendo feito, sou presidente da Comissão de Relações Exteriores, tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos, no frio do Maine, estado que faz divisa com o Canadá, no frio do Colorado, em uma montanha lá. Aprimorei o meu inglês, vi como é o trato receptivo do norte-americano para com os brasileiros”, disse o parlamentar.
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EDUARDO É QUALIFICADO?
Dificilmente fritar hambúrguer no frio do Maine faça alguma diferença para quem quer ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Além do mais, alguns veículos brasileiros informaram que a lanchonete onde ele diz ter trabalhado não serve hambúrguer. Já falar inglês é importante. Mas também, há vídeos do terceiro filho de Bolsonaro que circulam pela internet e mostram o deputado falando um inglês sofrível, o que indica que ele consegue se comunicar em inglês, mas que não é fluente.
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Diante das críticas aos seus atributos, ele resolveu responder divulgando no Twitter o que ele chamou de “breve currículo”
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Foto: Reprodução /Twitter
Ai, não foi uma boa resposta. Especialmente errando a sigla da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, no caso. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro não recuou. Uma semana depois de iniciada a polêmica, ele finalmente decidiu por indicar o filho Eduardo Bolsonaro como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. E se mostrou surpreso com a “pressão” que a família vem sofrendo.
“Por que essa pressão em cima de um filho meu? Ele é competente ou não é competente? Dentro do quadro de indicações políticas, que vários países fazem isso, e é legal fazer no Brasil também, tá certo”, disse.
Não, ele não é competente, caro presidente. E o currículo que ele tanto exibe é, binariamente, uma prova bastante contundente da falta de preparo de Eduardo – e da irresponsabilidade da indicação.
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Apesar disso, a escolha de Bolsonaro faz sentido
Explico
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Bolsonaro já mostrou ser bastante desconfiado de maneira geral, o que faz com que se cerque, cada vez mais, de sua família. Esse é um traço que o presidente do Brasil tem em comum, justamente, com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Afinal de contas, o conselheiro sênior de Trump é, nada mais, nada menos, que seu genro, Jared Kushner. O currículo dele é, com certeza, mais impressionante que o de Eduardo Bolsonaro, mas sua experiência como investidor e magnata do ramo imobiliário nunca o credenciaram para que ele ocupasse a posição que ocupa. Além de Jared, Ivanka Trump, a filha do presidente americano, é figurinha carimbada na administração e em eventos internacionais. Quem não lembra das caretas com que ela nos brindou durante as reuniões do G20?
Fotos: Getty Images
Ivanka acompanhou o pai durante todo o tempo. Ela inclusive sentou ao lado dos chefes de Estado como se fosse algo absolutamente normal, como se pode ver em uma das imagens acima. Da mesma forma que Eduardo fez durante a primeira viagem oficial de Jair Bolsonaro aos Estados.
(Washington, DC – EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PRbaix(Washington, DC – EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PR
Não acho que seja uma boa escolha, não acho que Eduardo Bolsonaro tenha o mínimo de preparo intelectual e experiência necessários para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Mas, dentro da lógica de Trump, que montou um “negócio de família”, faz sentido. “In family we trust”, parafraseando um ministro aí.
A defesa de Schrödinger de Moro e Dallagnol convence cada vez menos
Igor Natusch
18 de julho de 2019
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.
A defesa por insinuação vem sendo, praticamente desde o início, a tática de Sérgio Moro e procuradores da Lava-Jato diante dos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil. Eles dizem que as mensagens não têm nada de mais, são absolutamente normais, mas ainda assim podem ter sido adulteradas e enfim, todo mundo já está por dentro da argumentação. O problema é que a conversa fica cada vez menos convincente, na medida em que as revelações se sucedem. E disfarça cada vez menos o que se esconde por trás da falta de ênfase: o desconforto em estar sempre na defensiva, e a incerteza sobre o tamanho do problema que está por vir.
Como exemplo ilustrativo, tomemos a declaração da conta oficial de Sergio Moro no Twitter, datada do último dia 16:
Sou grande defensor da liberdade de imprensa, mas essa campanha contra a LavaJato e a favor da corrupção está beirando o ridículo.Continuem, mas convém um pouco de reflexão para não se desmoralizarem. Se houver algo sério e autêntico, publiquem por gentileza.
Trata-se de uma fala muito interessante, que traz várias revelações em suas entrelinhas. Para começo de conversa: se não há nada sério no material revelado, qual a necessidade de manifestar-se? Terá um ministro da Justiça, mesmo em licença (inesperada e um tanto estranha, diga-se), tempo para desperdiçar com frivolidades sem valor, para brincar de Schrödinger e defender-se do gato que, segundo ele, nem mesmo está na caixa?
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Ao contrário do que pretende o ministro, a própria manifestação atesta a seriedade do assunto e fornece indício a favor da autenticidade das informações
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Mais: se o que foi revelado não é autêntico, o que impede Sergio Moro de atestar a adulteração com seus próprios registros ou arquivos? Se o material divulgado por tantos veículos de mídia é editado de forma a falsear seu conteúdo, e levando em conta o desgaste evidente causado pelos diálogos, o que aguarda o ministro para ingressar com uma ação por calúnia, por exemplo? Se Glenn Greenwald e sua equipe estão mentindo sobre tudo, dando aparência de crime onde nada de ilícito ocorreu, basta a Moro apresentar as evidências e liquidar, de um só golpe, com a carreira do jornalista inglês.
Nada disso. Para contestar diálogos, Moro usa apenas o Twitter. Para provar que são falsos, parece esperar a intervenção da Polícia Federal – que, segundo boatos fortes dos últimos dias, estaria organizando operação para capturar o suposto hacker responsável pelos vazamentos. Sergio Moro insinua um crime grave contra sua imagem pública e sua honra, mas não move um dedo para desmascará-lo; parece, na verdade, aguardar que isso seja feito por alguma força externa. Por que?
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Parece válido imaginar que, se Moro não prova que é vítima de calúnia, é porque não pode
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Na verdade, são justamente as evasivas dos envolvidos na #VazaJato que nos oferecem a maior certeza de que há mais coisa pela frente, que a amizade entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol é ainda mais fraterna e não-republicana do que se revelou até aqui.
Se houver a necessidade de uma cabeça decapitada (e quem poderá dizer que não será necessário, quando a única certeza é a incerteza sobre o que virá?), é razoável supor que o pescoço de Dallagnol é um candidato nada desprezível. Afinal, ninguém usou máscaras com seu rosto em protestos, ou criou acampamentos e vigílias em sua homenagem
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Os fatos se sucedem, de qualquer modo. Nas poucas horas que tirei para batucar esse texto, a Folha de São Paulo já trouxe outra grave denúncia: a de que Sergio Moro interferiu em acordos de delação durante as negociações dos mesmos – o que é absolutamente vedado ao juiz, tanto por procedimento quanto por simples lógica. A resposta do ministro, claro, veio pelo Twitter – dizendo uma verdade (que é dever legal do juiz exigir mudanças ou recusar a homologação) para desviar do ponto central (que isso se dá ao fim da negociação conduzida pelo Ministério Público, não durante o processo).
Ou seja, os acontecimentos em si são imprevisíveis, mas o padrão de reação que despertam é mais que claro: respostas nunca enfáticas, sempre oscilando entre desprezar o conteúdo e insinuá-lo fraudulento, com a sombra de um hacker nunca revelado insinuando crimes e conspirações. “Não há gato dentro da caixa, mas o gato não é meu!”
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É um esforço não de esclarecimento, mas de realce das sombras
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Não condiz com a postura de quem nada tem a temer. E apenas reforça a importância do trabalho da imprensa em pressionar os poderosos da vez, além de reiterar a necessidade de ir cada vez mais fundo no que esses arquivos têm a dizer. É nisso, no fim das contas, que a sociedade pode contar para não mergulhar de vez no nevoeiro.
Disse o presidente Jair Bolsonaro sobre trabalhar quando era criança:
“Não fui prejudicado em nada. Quando um moleque de nove, dez anos vai trabalhar em algum lugar, tá cheio de gente aí ‘trabalho escravo, não sei o quê, trabalho infantil’. Agora quando tá fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada”.
Meu pai sustentava nossa casa. Quando eu tinha 11 anos, ele ficou muito doente. E permaneceu doente até eu ter 17 anos, quando ele faleceu. Passou a maior parte desse tempo em hospitais, internado. A minha mãe ficava bastante tempo com ele – e eu também. Isso significa que durante um grande período da minha infância – e toda a adolescência – eu passei trabalhando e/ou em um hospital. Sem vitimismo, é só a minha história. Eu sei como é.
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Mas senhor presidente, vai chupar um prego, por favor!
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Criança precisa brincar. Criança deve brincar. É direito. É o que faz com que se cresça, é como elaboramos as ideias, é o que nos torna adultos com capacidade de aproveitar a vida. E não é aproveitar a vida fumando crack, senhor presidente. É assumindo responsabilidades, descobrindo o prazer de trabalhar.
Meus filhos brincam muito. Criamos um Espaço de Brincar para crianças. Fazemos espetáculos infantis. Podemos não ter os bolsos cheios. Mas temos ideias, criatividade e uma vontade de viver que são impagáveis.
O governo Bolsonaro é revolucionário – e isso não é nada bom
Igor Natusch
3 de julho de 2019
Presidente da República Jair Bolsonaro chega ao Comando Militar do Sudeste.
Jair Messias Bolsonaro está sendo uma figura revolucionária na política brasileira. Gostando ou não das consequências disso, o fato é esse, e só se torna possível compreender minimamente os primeiros seis meses do governo Bolsonaro a partir dessa constatação.
Esse texto não vai ser uma viagem agradável, então peço que o leitor ou leitora tome fôlego antes de seguirmos em frente.
A partir do atual mandato, o presidencialismo de coalizão à brasileira está encerrado. Esqueça os tempos do passado, quando os grupos políticos construíam, por diálogo, compra ou cooptação, consensos que permitiam algum tipo de governabilidade: isso está no passado, e vai demorar para retornar plenamente, se é que vai voltar um dia.
O Brasil de Bolsonaro propõe uma nova política: impositiva, onde a divergência só se manifesta enquanto conflito, onde o objetivo nunca é convencer, mas sim coagir grupos divergentes a aderir a determinado pensamento. Ou, se isso for impossível, tentar fazer com que desapareçam.
O consenso nada significa para Bolsonaro. Sua trajetória política jamais teve qualquer interesse pela construção: típico deputado “do fundão”, ele nunca liderou uma comissão, jamais defendeu projetos de lei minimamente significativos, migrou entre partidos e vendeu sua própria candidatura sem nenhum constrangimento, dentro de suas próprias regras. A política, para Bolsonaro, sempre foi um projeto pessoal e familiar – e poderíamos acusá-lo de várias coisas nesses primeiros seis meses, mas jamais de estar agindo de forma incoerente.
O conflito é mais que uma estratégia de governo: é uma manifestação espontânea e mais, o ethos e a alma desta administração. Talvez possamos falar em um presidencialismo de crise, em que a estabilidade e a resolução de conflitos não são apenas menosprezadas, mas até mesmo indesejáveis para que o sistema siga em funcionamento.
São dois processos básicos, em permanente sucessão: deixar claro quem são os inimigos e manter os aliados sempre à distância, tratando-os como transitórios e descartáveis – livres, enfim, para serem arremessados para o lado adversário na primeira oportunidade.
Não é à toa que os mais recentes atos em favor do governo incluíram entre os inimigos do santo governo mesmo grupos como o MBL, que são tudo, menos esquerdistas. Não é à toa que aliados fundamentais, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sejam tratados como obstáculos do Executivo, ou que o STF esteja permanentemente acuado a cumprir sua única função aceitável, que é manter o ex-presidente Lula na cadeia. Não é à toa que Bolsonaro estava “por aqui” com Joaquim Levy, que o general Santos Cruz foi ridicularizado publicamente antes de ser afastado do governo, que o general Juarez Cunha foi afastado dos Correios por agir “como um sindicalista”.
No presidencialismo de crise bolsonarista, o conflito é a assinatura, e nenhuma aliança tem qualquer tipo de solidez.
Além da estética do enfrentamento permanente entre os Poderes, que aproxima o momento brasileiro de uma interminável tentativa de sequestro, é escancarada a falta de solidariedade e lealdade dentro da própria gestão. Como já disse aqui várias vezes, Bolsonaro não é líder, mas sim o avatar que representa vários grupos heterodoxos. Entre eles, a única pauta comum é o patriotismo chão e tosco, profundo como uma poça d’água. Fora disso, não há interesse em construir nada, nenhum respeito a bandeiras alheias, sequer um gesto de consideração. Nem mesmo seus medos, ódios e preconceitos os aproximam, pois não são sempre os mesmos, e cada um reconhece o seu recalque como mais urgente que os demais. Nessa aliança entre figuras que se desprezam, todos querem ser protagonistas, brigam às cotoveladas para ver quem receberá primeiro os aplausos da torcida.
Diante de tão sufocantes exigências de fidelidade, e com quase nenhuma lealdade oferecida em retribuição, quem vai ser aliado de Bolsonaro?
A resposta é simples: ninguém.
A tendência será de pagar deslealdade com deslealdade, de tratar como descartável um governo incapaz de ser um aliado confiável.
E aí se impõe a questão que Bolsonaro e seus apoiadores próximos, sejam quais são, deveriam fazer: é possível atuar em tantos campos de batalha ao mesmo tempo?
Dizer que Bolsonaro não conta com apoio popular seria uma tolice. Verdade que seus índices de popularidade são os mais baixos de um presidente recém-eleito desde a redemocratização, mas ainda há muita gente ao seu lado: os que desejam andar armados nas ruas, os que sentem-se oprimidos pela comunidade LGBT, os que acreditam que seus filhos correm risco real de doutrinação esquerdista nas escolas e universidades do país. Os que se agarram no patriotismo sem reflexão e em gritos de guerra paupérrimos para terceirizar o próprio senso crítico estão com Bolsonaro, e ao lado dele estarão por bastante tempo ainda – afinal, ninguém projeta tanto em um pretenso herói para abandoná-lo no primeiro solavanco da viagem. Mas quem muito exclui pouco agrega, e os atos pró-governo do dia 30 de junho – menores de público, inchados de inimigos – mostraram isso com clareza. E as manifestações contra Bolsonaro, significativas e numerosas em todo o país, também entram nessa equação.
Não haverá paz. Jair Bolsonaro não é o gerador de crises: ele é a crise, ele a personifica e dela necessita para legitimar a própria existência.
E nisso reside também o caráter exaustivo de seu governo: sem a crise, ele é um conjunto vazio. Então, é preciso reproduzir o conflito o tempo todo, para que se discuta a tomada de três pinos ao invés de falar de um crescimento econômico ínfimo ou de mais de 13 milhões de desempregados no Brasil. A revolução personificada em Bolsonaro é feita apenas de pressa e ímpeto, de tal forma que nem mesmo sua figura principal está no controle e até seu próprio líder é, em boa medida, dispensável. Se deixada livre, tende a deixar somente terra arrasada em seu lugar – e por isso mesmo precisa ser temida, exposta, questionada e combatida.
(Santa Maria - RS, 15/06/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores da população de Santa Maria.
Foto: Alan Santos/PR
Durante evento na cidade de Santa Maria (RS), no último sábado (15), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) voltou a defender que os brasileiros tenham acesso a armas de fogo. Mas desta vez, a justificativa foi além da autodefesa e do papinho de que “se os bandidos estão armados, os cidadãos de bem também precisa estar”. Ele disse que é preciso armar a população para evitar golpes políticos.
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“Nossa vida tem valor, mas tem algo muito mais valoroso do que a nossa vida, que é a nossa liberdade. Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”, disse Jair Bolsonaro
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Primeiro que eu tenho dificuldades para entender o conceito de liberdade sem vida, mas vamos deixar isso de lado. O que importa aqui é que Bolsonaro descreveu o que se conhece por formação de milícias armadas com objetivos políticos. E ele o fez de forma bastante direta.
É curioso que ele tenha proposto isso enquanto ele é o presidente. Ele quer armar a população para que os cidadãos não permitam que ele se perpetue no poder? Provavelmente, não é o caso. É mais provável que ele queira armar a população para que ninguém permita que ele seja removido do poder.
Infelizmente, a história recente da política latino-americana não permite que essa sugestão seja entendida como mais uma ideia de Bolsonaro a não ser levada a sério ou, pelo contrário, seja encarada como a visão de quem defende a democracia e a liberdade acima de tudo. Isso porque, pasmem, foi exatamente o que Hugo Chavez fez na Venezuela.
Colectivos
Os colectivos são organizações comunitárias criadas para dar suporte ao governo da Venezuela e à revolução Bolivariana. Oficialmente, apresentam-se como grupos dedicados à promoção da democracia, à promoção de grupos políticos e atividades culturais. Alguns deles de fato auxiliam com a manutenção de centros de cuidado infantil, programas para as crianças em horário alterando ao da escola, reabilitação de dependentes químicos e ainda atividades esportivas. Mas inúmeras organizações descrevem os colectivos como gangues armadas.
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Os colectivos podem ser considerados, então, grupos paramilitares que operam como milícias e, hoje, são um braço armado do governo
O jornalista Guillermo D. Olmo, Correspondente da BBC News Mundo na Venezuela, fez uma reportagem com integrantes dos colectivos. E todos deixam claro que, se necessário, usarão armas para impedir qualquer tentativa de derrubar o governo de Nicolás Maduro. Qualquer tentativa de golpe.
Não sei se as “tentações” a que Bolsonaro se refere são as suas ou as de seus opositores – embora eu arrisque um palpite. De todo modo, é interessante que o homem que se elegeu como a salvação a quem temia que o Brasil virasse a Venezuela seja tão simpático aos métodos do vizinho.
Ao fim e ao cabo, espero mesmo que não passe de uma conjectura minha e que seja somente mais uma ideia de Bolsonaro a não ser levada a sério. Porque duvido que seja apenas a visão de quem defende a democracia e a liberdade acima de tudo. Acima de tudo está outra coisa.
Para saber mais sobre a situação da Venezuela, ouça nosso podcast aqui.
Foto: Santa Maria – RS, 15/06/2019 / Alan Santos/PR
No último final de semana, o Brasil foi surpreendido com o #Vazajato. O The Intercept Brasil publicou uma série de reportagens que desnudam a Operação Lava Jato e mostram uma colaboração não permitida entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e o então juiz Sérgio Moro. A operação baseada na Mãos Limpas se mostrou suja, imunda. Mas de repente, o escândalo que mostra que a operação contra a corrupção também corrompeu o sistema virou um debate sobre práticas jornalísticas. Tá bom, vamos embarcar nessa então.
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Nunca fui fã de câmeras escondidas. Em debates com amigos jornalistas, porém, alguns colegas argumentaram que certas coisas jamais seriam descobertas de outra forma. Quantos políticos corruptos já foram desmascarados assim, afinal de contas. Eu discordei de alguns exemplos, concordei com outros e cheguei à conclusão de que é um recurso necessário, mesmo que de exceção. Ou seja, não pode ser a regra, mas precisa existir para os casos extremos, na minha opinião.
Mas a questão é que as câmeras escondidas nunca incomodaram o público, de maneira geral. Pelo contrário, as pessoas parecem gostar de ver um figurão caindo porque alguém gravou algo à espreita. Aquela imagem de qualidade não muito boa com um deputado contando maços de dinheiro dá aquela sensação inigualável de flagrante a quem assiste. Provoca uma reação natural e emocional de justiça. É visceral. Tira da garganta aquele “Toma!”
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Qual não foi minha surpresa, então, ao ver tantas pessoas – jornalistas ou não – questionando a retidão ética do The Intercept Brasil ao publicar conversas privadas que escancaram as relações da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro
Segundo os editores, as reportagens foram produzidas a partir de arquivos, enviados por uma fonte anônima, que continham mensagens privadas, gravações em áudio, vídeo, fotos, documentos judiciais e outros ítens envolvendo procuradores da Lava Jato e o hoje ministro da Justiça. Os jornalistas garantem que o único papel do veículo na obtenção do material foi recebê-lo e que eles foram contatados semanas antes da notícia de invasão do celular de Sérgio Moro – o próprio ministro garantiu que não houve “captação” de conteúdo.”
Mesmo assim, inúmeras pessoas se incomodaram com a publicação que consideraram uma invasão de privacidade. Nas redes sociais, não foram poucos os perfis que ignoraram o fato de que os procuradores da Lava Jato e Moro tenham realizado parte do trabalho em segredo – e de forma antiética -, atitude que impediu, inclusive, que o público pudesse avaliar a validade das acusações de que as figuras de acusador e julgador estavam misturadas. Lembrando que, no Brasil, a coordenação entre juízes e promotores não é permitida.
Na mesma linha, Sérgio Moro se defendeu questionando a legalidade do processo. Na sequência da publicação das reportagens, publicou nota em que não nega o teor das conversas, mas sugeriu os meios ilegais pelos quais os arquivos foram obtidos. “Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo”, disse.
Sobre a indicação de fonte, o sigilo é algo garantido aos jornalistas pela Constituição Brasileira. Sobre ser uma “invasão criminosa” nos celulares, também não há evidências de que seja o caso. Inclusive, o aplicativo de mensagens Telegram divulgou nota em que se afirma não haver indícios de hacker. “É mais provável que tenha sido malware [um tipo de vírus] ou alguém que não esteja usando uma senha de verificação em duas etapas”, diz a nota. Sem contar a possibilidade de vazamento interno. Sobre entrar em contato antes da publicação, foi uma escolha que o TIB se permitiu para garantir que nenhum dispositivo legal pudesse censurar a divulgação das reportagens, como aconteceu com a revista Crusoé no início em abril deste ano. Mas a defesa de Moro colou.
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Os limites éticos do jornalismo
As primeiras críticas vieram de pessoas preocupadas com o que consideram ser um comportamento “imoral” por parte do The Intercept. Esse grupo entende que os jornalistas não deveriam utilizar dados obtidos de forma supostamente ilegal – mesmo que não tenha ficado claro. Mas chamou atenção que vários jornalistas que já utilizaram câmeras escondidas tenham endossado essa preocupação.
Se essa divulgação tivesse sido, de fato, equivocada, por que seria mais grave que o uso rotineiro de uma câmera escondida? Por que seria pior fazer imagens de alguém sem que essa pessoa saiba que está sendo gravada? Por que seria pior que gravar o áudio de uma conversa sem autorização? Eu acho que não seria.
Não consigo compreender no que essa divulgação é diferente, por exemplo, do caso Watergate, em que diversas fontes anônimas revelaram segredos da administração de Richard Nixon que provavam, entre outras coisas, abuso de poder. Entre 1972 e 1974, alguém questionou, além dos aliados de Nixon, a ética do The Washington Post por publicar reportagens a partir da indicação de fontes anônimas? Durante todo o processo que culminou com a renúncia do presidente dos Estados Unidos e ao indiciamento de dezenas de agentes públicos, os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein trabalhavam majoritariamente com fontes anônimas. A identidade da mais famosa dessas fontes, o Garganta Profunda, só foi revelada 33 anos depois, em 2005.
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No jornalismo investigativo, as fontes sigilosas, conhecidas como whistleblowers, são amplamente utilizadas para revelar ilegalidades e crimes e o caso Watergate é prova da eficiência do método
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Eu acho que debater o limite ético do jornalismo nunca é demais. Mesmo. Mas talvez estejamos fazendo esse debate no nível micro enquanto deveria ser feito no macro. Ou seja, devemos discutir os limites da investigação jornalística – se há – no que se pode chamar de sociedade da informação, em que o fluxo de dados não é unidirecional e atinge uma intensidade, velocidade e volume inéditos.
De todo modo, o limite ético da divulgação das conversas privadas de Dallagnol e Moro levou a uma segunda questão: a comparação entre o #Vazajato e o vazamento da conversas de Lula e Dilma há três anos.
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O grampo de Dilma
Em março de 2016, o então juiz Sérgio Moro retirou o sigilo de interceptações telefônicas do ex-presidente Lula. As conversas gravadas pela Polícia Federal incluíam um diálogo do petista com a então presidente Dilma Rousseff – que tinha foro privilegiado. Um dos diálogos todos conhecemos, é a conversa que Dilma manda “o “Bessias” junto com o papel” e Lula despede-se com o hoje infame “Tchau, querida”. À época, depois do estrago feito, Moro pediu desculpas pelo equívoco.
Estranhamente, o episódio está sendo usado como comparativo por todos os lados. Alguns veem ironia no fato de Moro questionar a legalidade de vazamentos uma vez que ele mesmo já lançou mão desse artifício. Outros, acham interessante que as pessoas que criticavam o então juiz agora se regozijem com o vazamento do TIB. O tuíte do humorista Antônio Tabet resume o sentimento:
Mas voltemos ao jornalismo. O que Tabet e outros críticos esquecem é que um jornalista e um juiz não tem a mesma função. Um juiz tem o dever de proteger um áudio que não tenha conexão com o processo. Um jornalista tem o dever de divulgar uma informação que seja relevante ao interesse público.
De novo, nunca é demais discutir a ética dos procedimentos e rotinas jornalísticas, mas não é o que se tem feito ao longo desse caso. Questionar a apuração do The Intercept Brasil tem servido somente para diminuir a gravidade de um problema que é de interesse público, que precisa ser de conhecimento do público porque traz à tona um sistema corrompido. As reportagens não mostram que Lula é inocente ou culpado, mas mostram que ele sempre esteve condenado, desde o início. Mostram que eram verdadeiros os alertas de que a Operação estava sendo instrumentalizada para servir a uma força política.
E esse tipo de reportagem precisa ser exaltado, não perseguido. Porque é por esse tipo de história que a liberdade de imprensa é fundamental em uma democracia e é por esse tipo de matéria que ela precisa ser preservada, para que as pessoas possam saber o que as autoridades dizem e fazem quando ninguém está olhando.
Para se ter uma ideia, um “influencer” que não merece menção porque eu não sou escadinha disse que o The Intercept Brasil tem que ser fechado, os “responsáveis” presos e Glen Greenwald tem que ter seu visto brasileiro cassado. O conteúdo foi retuitado por deputados federais do PSL e outros partidos da aliança que sustenta o governo federal. Sem contar as hashtags pedindo para que Greenwald – que já ganhou o Prêmio Pulitzer, considerado o mais importante do jornalismo – seja deportado e as histórias falsas que afirmam que ele e o marido são acusados de espionagem no Reino Unido e, por isso, ele teria encomendado que os hackers invadissem os celulares dos procuradores. Chega de passar pano.
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Ofereço um tuíte do próprio procurador Deltan Dallagnol, de 20 de março de 2016. “Para Dotti [jurista René Dotti que, na ocasião, estava defendendo Sérgio Moro] no conflito entre direito à informação sobre crime grave e direito à privacidade, ganha interesse público.”