Reporteando

A bolha nossa de cada dia

Évelin Argenta
19 de agosto de 2018

No mês de junho eu passei duas semanas produzindo  uma série de reportagens para falar sobre um tema que respeito muito: segurança pública. O desafio era mapear os principais problemas de segurança do estado mais rico da federação e lançar para os postulantes ao Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista.

Passei um dia inteiro lendo, relendo matérias, teses, artigos, conversando com especialistas da área até, enfim, delimitar cinco temas (correspondentes a cada um dos dias da semana). Passei outro dia inteiro digerindo a ideia de contar cada um deles em apenas três minutos e 30 segundos. É, amigos…rádio não é mais um latifúndio. Em tempos de 140 caracteres, quem tem três minutos é rei.

O resultado foi bom. Na exata semana em que a matéria foi ao ar, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou seu anuário mostrando problemas, justamente, nas áreas que eu tinha selecionado. No dia da estréia a Ouvidoria das Polícias de São Paulo divulgou um relatório enfatizando os métodos bastante questionáveis da PM paulista.

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O primeiro capítulo foi ao ar falando sobre os desafios para frear a letalidade da polícia que mata muito. Em 2017, os policiais paulistas (civis e militares) mataram 942 pessoas. Isso. Quase mil pessoas foram mortas em 365 dias.

 

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Foi um recorde histórico desde 2001 – quando o acompanhamento começou a ser feito – e motivo de luz vermelha até para a Ouvidoria das Polícias. O órgão constatou que em 70% dos casos de morte houve excesso por parte dos policiais.

Para falar dessa história, conheci um grupo de mães que me contou como cada um de seus filhos havia sido morto “em confronto” com policiais. Curiosamente, esses casos não envolviam confronto embora, sim, esses jovens estivessem cometendo crimes na hora que foram mortos. Crimes pelos quais nunca foram julgados, por razões óbvias. Para lidar com a dor sozinhas, sem amparo do estado, elas formaram o Mães em Luto da Leste, um grupo de apoio para encorajar outras mães vítimas da violência policial.  A história de cada uma delas renderia uma série inteira.

Eu sabia que a repercussão entre os ouvintes paulistas – paulistanos, em sua maioria – seria negativa. Aqui, no estado mais rico do país, a segregação geográfica (a periferia é, de fato, na periferia) cega ainda mais a percepção dos cidadãos para a violência que acontece lá, depois das marginais.  Mas o que me surpreendeu foi a reação bastante legítima de uma colega que me questionou se eu não estava “falando só para a nossa bolha”.  Ela adorou a matéria, mas me alertou para o fato de a reportagem  “não tocar o coração” dos nossos ouvintes, já que a real preocupação deles era com a “sensação de insegurança” no estado.

Isso me fez pensar muito sobre as bolhas. Será que falar do perigo que representa termos uma polícia altamente letal é falar para um nicho específico? Será que a grande maioria das pessoas entende quando ouvimos especialistas falando em “necessidade de intervenção séria para frear a alta letalidade policial, fruto de uma escolha política, desde os tempos da república velha”

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“As pessoas não querem ouvir do candidato que ele vai investir em políticas públicas de educação para evitar que jovens entrem para o crime”, me disse ela. “Elas querem ouvir da boca do candidato: não vou deixar seu filho virar bandido”, completou.

 

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E faz todo o sentido. Faz todo o sentido na nossa sociedade pautada pelo medo. O medo de morrer num assalto, o medo de morrer por engano, o medo de ser estuprada, o medo de reagir mal, o medo de sair na rua.  A tal sensação de insegurança.  Faz todo sentido que isso toque o coração de uma sociedade que tem 29% dos adultos de 15 a 64 anos analfabetos funcionais – o equivalente a cerca de 38 milhões de pessoas. Como esperar que seja feita uma relação complexa de causa e efeito, quando o básico não fica claro.

É aí que está o perigo daqueles (não vou nomear, pois não é preciso) que falam o que o cidadão amedrontado quer ouvir e, por outro lado, daqueles (novamente não falo nomes)  que defendem a salvação do mundo através de saraus de poesia e aulas de bambolê.

Pensei muito sobre isso e sobre a nossa real função no jornalismo, na comunicação. Será que estamos falando para bolhas? Esse medo exagerado também não é, de certa forma, fruto do viés que escolhemos para tratar da criminalidade? Fruto do estereótipo do criminoso? Do desespero por achar culpados? Não seria essa sensação se insegurança também uma bolha?

A repercussão das outras matérias não foi diferente. Quando mostrei a falta de estrutura e superlotação dos presídios paulistas e que, por isso, prender demais  não resolve, recebi um e-mail de um ouvinte dizendo: “não quer chorar no rádio, não cria filho bandido”. Quando falei da falta de controle que o estado tem sobre as armas apreendidas e registadas, recebi outro dizendo “ah, então só o bandido pode ter arma, mocinha”?

No final dos cinco capítulos  eu me questionei mais do que quando comecei a empreitada. Por estar fora da lida diária da reportagem há um tempinho, isso mexeu comigo, especialmente. Mas acho que fiz a coisa certa. Não estamos aqui só para criar conteúdo sob demanda. É preciso causar desconforto. Nem que seja em nós mesmos, nas nossas convicções.

Para entender, sugiro a audição da série de reportagens

Violência Policial você ouve aqui

Desvalorização das polícias investigativas você ouve aqui 

Superlotação dos presídios e PCC você ouve aqui 

Descontrole no uso de armas de fogo você ouve aqui 

Crescimento nos registros de estupro você ouve aqui 
Vós Ativa

A tradição de violência no estado mais politizado do Brasil

Colaborador Vós
29 de março de 2018
Porto Alegre - RS , 20/09/2010; Desfile Civico-Militar Farroupilha de 20 de setembro, na avenida Edivaldo Pereira Paiva(Beira-Rio), em Porto Alegre. Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Por Eduardo Amaral, jornalista

Cresceu nas últimas semanas o orgulho gaúcho pela truculência. Tudo porque um grupo de velhos coronéis resolveu demonstrar todo o respeito que tem pela democracia durante visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao estado. Confrontaram apoiadores com armas na cintura, apedrejaram ônibus e pessoas e “deram de relho” em quem se opusesse. A Caravana Lula pelo Sul seguiu e foi alvo de tiros no Paraná. O fato surpreendeu, mas não é tão distante da nossa realidade.

Detesto dizer a vocês, leitores, mas atirar contra adversários políticos é uma constante dos municípios gaúchos

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Tradição de violência

A primeira vez em que deparei com a truculência política foi em Trindade do Sul, município localizado no norte do RS. Ainda adolescente, resolvi fazer uma visita a uma amiga que acabara de se mudar para aquela bucólica e, aparentemente, pacata cidade. Era período eleitoral. Qual não foi minha surpresa ao saber que dois grupos distintos se reuniram no centro da cidade e o confronto acabou com um orgulhoso defensor de seu candidato disparando, sem nenhum pudor, contra os adversários políticos.

Outra oportunidade para ver como funciona a política no interior foi no pleito de 2016, quando eu atuava em um jornal no Vale do Taquari. No município de Encantado, quando correu a notícia de que um grupo de homens armados chegara à cidade fazendo questão de mostrar as armas para quem quisesse ou não vê-las. Todos eles se hospedaram no hotel que pertencia ao candidato a vice de uma das chapas. O grupo foi detido e, graças à falta de discrição, foi possível evitar que algo mais grave acontecesse. O que mais me surpreendeu neste caso foi a frase do promotor eleitoral quando entrei em contato com ele para esclarecer o caso. “Eu mesmo já fui ameaçado quando ia votar.”

Minha última experiência com a violência política foi no ano passado, quando trabalhava na cidade de Paraí, na Serra Gaúcha. Uma eleição suplementar foi convocada e não demorou para eu entender como as coisas funcionam no município quando o assunto é política. Logo nos primeiros relatos, soube que o filho de um dos candidatos havia sido ameaçado, com uma arma na boca. A nova eleição não acalmou os ânimos e não demorou muito para um novo atentado com armas. Os militantes que trabalhavam para os candidatos se encontraram no centro da cidade, na praça, no meio da tarde, e demonstraram toda a tolerância política entre eles com duas armas sendo sacadas e tiros atingindo os rivais.

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O estado mais politizado do país

Em nenhum desses casos houve morte. Em todos esses casos, porém, escutei relativização. Quase a normalização das ações criminosas no chamado “estado mais politizado do país.” A verdade é que o Rio Grande do Sul nunca foi tão politizado como se diz, mas sim um lugar repleto de animosidade e ódio, nem sempre escondidos. É justamente devido a este cenário coronelista que a reação à chegada do ex-presidente não surpreende, faz apenas lamentar que o RS não consiga abandonar velhos e péssimos costumes.

Envoltos na própria arrogância, os gaúchos passaram anos negando a realidade, sem conseguir olhar para si e admitir as artimanhas de poderosos para manter sua força política

Nós poderíamos aproveitar este momento para olhar para a sociedade gaúcha e perceber como este histórico modelo político tem nos levado ao atraso e tem grande influência nos problemas do estado. Mas isso não vai acontecer. Infelizmente, por tudo que se viu até agora, não será esta a chaga utilizada para expurgar velhas práticas, muito pelo contrário.

Até aqui vimos um Poder Judiciário que se calou diante dos atos de violência cometidos contra os manifestantes pró-Lula. O Ministério Público, tão afoito para fiscalizar torcidas organizadas (mesmo em outros países), parece achar natural que um grupo armado distribua “relhaços” naqueles dos quais discordam.

Os políticos intimamente vinculados ao agronegócio fizeram questão  de justificar e aplaudir as agressões. Inclusive o deputado federal Jeronimo Goergoen (PP), que tem se empenhado para votar e aprovar o projeto que torna as ações do MST e do MTST em terroristas. Semanas atrás, o parlamentar mostrou toda a indignação com o fato de os grupos bloquearem estradas e queimarem pneus, o que ele chama de “atitudes criminosas”. Curiosamente, o deputado parece ter mudado de ideia quando questionado sobre o comportamento dos contrários a Lula, que fizeram exatamente a mesma coisa durante a passagem do ex-presidente. De acordo com Goergen, o petista apenas recebeu o troco pelo que “provocou”. Postura semelhante teve a colega de partido de Goergen, a senador Ana Amélia Lemos, que em um evento interno do partido parabenizou os homens que “colocaram para correr” os defensores do petista.

Pelo visto, os dois mandaram às favas o respeito às instituições democráticas e ao debate civilizado, tudo para não desagradar seus potenciais eleitores

A postura cínica de políticos, seja de qual espectro for, não é nenhuma novidade, afinal, o cinismo e a política andam umbilicalmente ligados. Porém, espera-se sempre o mínimo de decência de quem está no poder, um pingo de respeito aos seres humanos que militam em lados opostos e, principalmente, pelo regime pelo qual foram eleitos. Entretanto, os “progressistas” preferiram imitar a irresponsabilidade de um pré-candidato à presidência, aquele que desrespeita a democracia elogiando torturadores do regime militar.

Enquanto isso, o Rio Grande do Sul se coloca na vanguarda do atraso e segue orgulhoso de façanhas nem um pouco nobres. Mais uma vez, as façanhas de nossa terra são um modelo apodrecido e lamentável, e podemos ver os políticos deste estado apoiando um período tenebroso que está por vir.

 

Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Igor Natusch

Do relho, já chegamos nos tiros – e a tendência é descer ainda mais

Igor Natusch
28 de março de 2018

Meter tiros em ônibus no meio da estrada não é uma questão de debate político: é um caso de polícia. É coisa de jagunços, de coronéis do interior, de bandidos. Atirar contra um dos ônibus da comitiva de Lula na Região Sul constitui um atentado, e os envolvidos precisam ir, todos, para a cadeia. Nenhuma diferença faz se Lula está condenado em segunda instância: dar tiros em veículo transportando um condenado é crime do mesmo jeito. Já íamos mal com apedrejamentos, bloqueios para evitar que a comitiva entrasse em municípios, ameaças a jornalistas, agressões e tudo mais. Com os balaços, descemos ao nível da imundície e da infâmia. Relativizar isso – ou as graves ameaças contra o ministro Edson Fachin, para citar outro exemplo – é ser tosco e estúpido, é perder completamente a civilidade. É colocar-se, intelectualmente falando, abaixo dos animais de fazenda.

 

Mas esse crime, embora crime seja antes de tudo, tem um elemento político indiscutível. Demonstra, de forma escancarada, como nosso ambiente democrático degradou-se ao ponto da intolerância xucra e bestial. E deixa claro, em diferentes ângulos, que o fair play político já era no Brasil, com consequências nefastas que recém estamos começando a vivenciar

 

Para que a política institucional funcione, é preciso que certas regras sejam levadas a sério. Nunca será um jogo limpo, e interesses poderosos sempre estarão influenciando todos os movimentos: isso é notório, e não é a esse aspecto que me refiro. Mas é preciso, no mínimo, acreditar que o jogo vai ser limpo. Alguns freios comuns precisam existir, senão não existe jogo, nem tabuleiro, nem nada.

 

Esse acordo de cavalheiros não existe mais. Já vinha deteriorando desde bem antes do impeachment de Dilma Rousseff, mas desde que ele se tornou realidade – e não pelo impedimento em si, mas pelo modo como foi conduzido – o processo acelerou de forma desoladora

Quando o lado que perde a eleição não reconhece que deve ser oposição, um equilíbrio fundamental se desfaz. Basta lembrar dos pedidos de recontagem de votos, feitos pela candidatura de Aécio Neves logo após o segundo turno da eleição (e sem nenhum fiapo de suspeita concreta, vale lembrar) para perceber que o resultado da urna nunca foi aceito e que nasce ali, e em nenhum outro ponto, a ideia de tirar Dilma da presidência. Ou alguém dirá que a denúncia veio antes da vontade de encontrá-la, alguém terá esquecido como se tateou, de acusação em acusação, até encontrar uma que tivesse o mínimo de solidez? Some-se essa recusa em aceitar a derrota a um temor coletivo da classe política acossada pela Lava-Jato e surge um cenário onde cavalheiros atraiçoam uns aos outros e o tabuleiro é chutado para longe, sem cerimônia.

Aponto essas coisas não para lamentar a saída da ex-presidente em si, mas para frisar a gravidade do abalo que o processo atabalhoado de sua derrubada acabou gerando. Do ponto de vista estritamente institucional, foi um desastre.

 

Em um cenário que já era de acirramento, o impeachment liberou o dedo no olho, a cusparada na cara. Uma situação explosiva, ainda mais grave na medida em que o ódio foi transformado, de forma doentia e irresponsável, em arma política.

 

Quando a senadora Ana Amélia Lemos, de modo chocante e irresponsável, parabenizou atos de pura violência contra a caravana de Lula (que depois, frisemos, ela tratou de minimizar como “força de expressão”), ela reproduziu, em termos próprios, essa sensação de que o dedo no olho está liberado. Quando, anteriormente, a senadora Gleisi Hoffmann disse que haveria “muitas mortes” caso prendessem Lula, também amplificava esse sentimento. Se o golpe de relho for nas paletas dos opositores políticos, tudo bem; se prenderem um dos meus, não se surpreendam se tiver sangue. Isso para não mencionar o governador paulista e presidenciável Geraldo Alckmin, que achou por bem dizer que o PT e Lula “colhem o que plantaram” quando levam tiros na estrada. Uma fala desastrosa, pois nenhum posicionamento civilizado sobre uma tentativa de homicídio pode começar por qualquer outro ponto que não seja a condenação imediata, enfática e sem ressalvas de semelhante absurdo.

São falas e ações que, vindas do ambiente político, são profundamente preocupantes, simplesmente porque legitimam o ódio e a deslealdade contra o opositor político. Quando todas as instituições fraquejam e os líderes políticos não se constrangem com a infâmia, o que se pode esperar de quem pouco ou nada entende de política, pouca ou nenhuma base intelectual tem para interpretar e enfrentar semelhante caos? Quando até os nossos maiores representantes dizem que o jogo institucional não vale nada, como se pode esperar que os mais xucros entre nós respeitem suas regras? Resta a nós um mergulho nessa piscina de pesadelo, onde uma vereadora é metralhada e hordas se dedicam a caluniar seu cadáver, onde metem tiros em um ônibus que carrega ex-presidente e se diz que é bem feito, onde a família de um ministro do STF é ameaçada de morte e há quem dê risada.

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Do relho, já chegamos no tiro – e agora,

quão mais baixo podemos afundar?

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Há muitos, muitos outros aspectos que se poderia analisar no gravíssimo momento que vivemos. Por enquanto, fico nesse. Quem poderia dizer para baixarmos a bola está encorajando o carrinho desleal. Não há perspectiva positiva, menos ainda com a decisão sobre a prisão de Lula batendo à porta. A violência virou argumento, tanto nas redes sociais quanto nos palanques, e nos resta esperar que os incitadores da pancadaria respondam, em algum momento, por sua irresponsabilidade.

Foto:  MST Brasil / Divulgação

Igor Natusch

Intervenção federal: mais um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
21 de fevereiro de 2018

Vamos falar sobre a intervenção federal no Rio de Janeiro? OK, vamos.

 

Era uma vez um iceberg. Vamos imaginar, em nome de facilitar o nosso contar de história, que o nome do iceberg é “violência urbana“. Ele é um iceberg bem grande, mas vem se tornando mais problemático a cada ano, na medida em que não para de derreter e molhar as pessoas. Sendo feito de gelo, o iceberg sempre derreteu, pois derreter é de sua natureza, e sempre foi necessário enxugá-lo de alguma forma. O problema é que o iceberg está muito perto de uma fonte desgraçada de calor, daquelas que deixa tudo quente para caramba – e que ninguém sequer cogita desligar, porque muitos acham conveniente que essa calefação siga ligada, mesmo que só alguns poucos de fato esquentem os pés a partir dela. Segue o calor perto do iceberg, segue o iceberg derretendo mais do que o normal, e segue o problema permanente de enxugar esse gelo todo.

São as pessoas mais pobres da comunidade em torno do iceberg as que moram mais próximas dele, e que portanto se molham mais com a água que não para de derreter. Mas o pessoal um pouco mais distante, que também se incomoda mesmo não vivendo tão perto do iceberg, é quem grita mais alto contra a situação. Precisamos enxugar esse iceberg mais rápido, dizem elas. O derretimento do iceberg está completamente fora de controle.

Estando um pouco distantes como estão, não conseguem enxergar o perrengue pelo qual estão passando os enxugadores de iceberg: as toalhas de péssima qualidade e em quantidade menor que o necessário, a falta de treinamento dos enxugadores mais novos, a inexistência de uma estratégia para que a enxugada seja um pouco mais eficiente. Alguns enxugadores desviam toalhas para o mercado negro, outros jogam as toalhas encharcadas em cima das comunidades mais próximas, molhando aquelas pessoas ainda mais do que já estão. Uma bagunça, enfim.

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Mas o pessoal que está um pouco mais longe do iceberg, mesmo que tenha a melhor intenção e a mais justa das preocupações, não consegue enxergar direito essas coisas todas. Tudo que veem é a água do iceberg invadindo o pátio, entrando por baixo da porta de casa.

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E então erguem a voz para falar com o andar de cima, que coordena as tropas de enxugadores e, ao mesmo tempo, é quem fabrica e vende as toalhas para a operação. Isso tudo dá a eles muito dinheiro, fazendo com que possam pagar pelas confortáveis peças do andar de cima. Alem disso, estão com os pés bem quentes pelo uso contínuo da calefação e, uma vez morando acima de tudo que está acontecendo, há pouco ou nenhum risco real de se molharem em meio à bagunça lá de baixo. Erguem então a voz, os que moram no andar de baixo, e gritam aos de cima: precisamos de mais toalhas. Façam alguma coisa.

Gritam assim uma, duas, inúmeras vezes.

Com o tempo, porém, começam a se dar conta de algo. Começam a perceber que são os do andar de cima que fabricam as toalhas, ganham dinheiro a partir delas e que, quem sabe, não estão realmente dispostos a resolver o problema do iceberg. Começam a notar que eles descem a escada, dizem “OK, está tudo sob controle”, fazem um discurso motivador e ufanista para os enxugadores, sobem de novo aos seus aposentos e o problema segue mais ou menos igual. Percebem que, à menor menção de que desligar a calefação seria uma boa ideia, os donos das coberturas ficam muito irritados, gritam bonitos palavrões, mudam quase imediatamente de assunto. E mais importante: os que estão um pouco mais longe, mas não distantes o suficiente para que a água gelada do iceberg não os alcance, percebem que lá, no confortável andar de cima, os seus líderes nunca irão se molhar. E, é claro, se chateiam com essas coisas todas.

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Desçam aqui embaixo, gritam os que estão no meio do caminho entre a cobertura e o iceberg. Vocês não prestam para nada! Venham se molhar junto com a gente! Chegam, vejam só, a ameaçar subir as escadas e expulsar os atuais proprietários do andar de cima, insistem que vão arranjar outras pessoas para comandar as tropas de enxugadores de gelo.

Isso, é claro, deixa os donos do andar de cima um pouco preocupados.

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Diante dos protestos crescentes, acabam inventando uma solução. Convocam os protetores da fronteira, que impedem os povos de outros vilarejos de eventualmente invadirem aquela área, ainda um pouco mais seca, fugindo de seus próprios icebergs insolúveis. Eles não são bons em manusear toalhas: na verdade, já foram chamados algumas vezes, em situações de suposta emergência, e não houve qualquer melhora visível no derretimento do gelo. Mas são muito respeitados pelo pessoal do andar de baixo, que enxergam neles os homens mais fortes de toda aquela comunidade. E é isso, acima de tudo, que os do andar de cima têm em mente.

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Convocam os protetores de fronteira e dizem: agora vocês serão a elite dos enxugadores de gelo.

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Dão a eles as toalhas mais sofisticadas que conseguem tecer – mas não muitas, claro, pois se houver abundância periga até conseguirem manter o iceberg seco por algum tempo. Entregam a eles também uns esfregões, que não são de muita utilidade para enxugar a água que está no chão, mas causam um belo impacto visual. Anunciam sua chegada com banda de música, câmeras, pompa e circunstância. E dizem: vão lá, campeões de nosso povo. Deem o seu melhor. Enxuguem esse iceberg por alguns meses e temos certeza que, depois disso, ele não derreterá nunca mais. Confiamos em vocês!

Os protetores de fronteira sentem uma ponta de orgulho pela consideração recebida, mas parecem um pouco confusos. Seguram os toalhões de forma desajeitada, usam os esfregões sem nenhuma perícia, molhando bastante e até machucando os que estão bem pertinho do iceberg. Mas o pessoal que mora um pouco mais longe está em êxtase. Era exatamente disso que precisávamos, vibram. Enfim o andar de cima tomou um gesto corajoso. Chega de gente fraca enxugando gelo. Chega do iceberg lá, debochando da gente sem que ninguém fizesse nada. Viva o andar de cima!

Alguns tentam criticar a decisão dos coordenadores, dizem que os protetores de fronteira não deveriam enxugar gelo, que isso não vai dar certo. Mas a satisfação da maioria sufoca esses protestos. Quem não enxuga que não atrapalhe! Iceberg bom é iceberg seco! Que venha a elite!

Sorridentes e aliviados, os moradores da cobertura voltam a repousar em seus confortáveis divãs, voltam a esquentar os pés no calorzinho gostoso da calefação. E lá vai a elite dos enxugadores, sob aplausos, marchando de forma ritmada e firme, atacar o iceberg que não para de derreter.

O que as pessoas que moram ao lado do iceberg pensam disso tudo, ninguém sabe. Mas enfim, não dá para levar em conta o lado de todo mundo em um conto de fadas como esse.

Foto: Andrew Malone

Geórgia Santos

Touro Ferdinando pode salvar a humanidade

Geórgia Santos
22 de janeiro de 2018
Fomos assistir ao novo filme do Touro Ferdinando na semana passada. Fomos em família. Cléber, os sobrinhos Tom e Benjamin e eu. O clima era de sangue doce e diversão, com os pequenos pedindo chocolate antes de o filme começar e os tios cedendo, estragando as crianças como deve ser. Eu estava empolgada, sempre gostei daquele bovino com grandes cílios e cara querida, que parava para cheirar as flores e se recusava a seguir a natureza taurina da boa briga.
Ferdinando é um touro gigante que vive na Espanha e, diferente de todos os outros de sua espécie, não tem o desejo de participar de touradas. Prefere viver em paz com a natureza, feliz em meio às flores.
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Não se trata de medo, ele simplesmente não entende o apelo da briga, não compreende a razão pela qual deva bater cabeça com outros touros e toureiros. Sem motivo algum 

 

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A história foi escrita em 1936 pelo autor americano Munro Leaf a pedido do ilustrador Robert Lawson. Em 1938, a Disney adaptou o romance para o curta Ferdinand the Bull, que rendeu o Oscar aos estúdios e doces lembranças a quem assistiu.
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O filme novo é diferente. Ferdinando é maior, mais imponente. Já não pisca com longos cílios. Mas é uma superprodução, obviamente mais elaborada do que o curta de 80 anos atrás pelas facilidades tecnológicas do século 21. Além de ser muito divertido. Eu tive ataques de riso com os ouriços dançando macarena e os cavalos alemães trotando provocadores, efeminados e malvados. Mas quando a sessão terminou, não foi isso que ficou comigo. Eu só conseguia pensar em um diálogo específico que Ferdinando trava com a cabra Lupe. É mais ou menos assim:
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Ferdinando: Eles todos me odeiam

Lupe: É, eles TE odeiam, ME odeiam, SE odeiam. É muito ódio. Esmaga sua alma se você se permite pensar sobre o assunto. 

E não é que esmaga, mesmo

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Desde que saí do cinema, não paro de pensar sobre quão melhor seria o mundo se a gente simplesmente deixasse de odiar. É tanto ódio por nada. Ódio por futebol, ódio por partido político, ódio pela cor da pele, ódio pelo gênero, ódio por quem troca de gênero, ódio pela roupa, ódio pelo lugar em que vive, ódio pelo lugar em que os outros vivem. É muito ódio. Esmaga sua alma se você se permite pensar sobre o assunto.
Dói pensar que a nossa sociedade foi construída sobre um alicerce tão virulento, de intolerância e violência. E a história de Ferdinando é prova disso. Não me refiro ao enredo do romance, mas à história da publicação. No período em que o livro foi lançado, aliados do ditador espanhol Francisco Franco classificaram a obra como pacifista. Veja bem, não era um elogio, era um crime. Tanto que  o livro foi proibido em muito países cujos regimes eram fascistas. Também por isso, a história de Ferdinando foi classificada como propaganda esquerdista.
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É tão irônico quanto trágico. Uma história que promove a paz é motivo para guerra. E olha que estamos falando de um tempo em que não havia redes sociais

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Mas ignoremos a política e tratemos de bom senso. O Touro Ferdinando pode salvar a humanidade. Se a humanidade quiser. O manual já está escrito, basta sentar no meio da arena e cheirar as flores em vez de empunhar a espada e fazer sangrar.
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*O Touro Ferdinando é um filme da Blue Sky Studios dirigido por Carlos Saldanha, o diretor de “Rio”. É inspirado no livro “A História de Ferdinando”, de Munro Leaf e Robert Lawson.
Tão série

O fim da p*** do mundo

Geórgia Santos
20 de janeiro de 2018

No feriado do Ano Novo, minha prima e afilhada e antenada e adolescente de 15 anos me falou sobre uma estreia da Netflix programada para janeiro. The End of The F*** World (algo como O Fim da P*** do Mundo), uma série de humor negro sobre um adolescente psicopata que pretende deixar de matar animais para assassinar algo um pouco maior. Ela sabe que eu gosto de um sanguinho. Assisti ao trailer.

https://www.youtube.com/watch?v=vbiiik_T3Bo

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Amei. Aguardei. Assisti ao primeiro episódio, ao segundo, ao terceiro … ao oitavo. Amei. 

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Só não é uma comédia de humor negro, como promete. Apesar de alguns momentos hilários e de diálogos impregnados de sarcasmo, a série britânica é um suspense. E dos pesados. Com direito a tensão, sofrimento por antecipação, angústia e muito, muito sangue. Sangue nível Tarantino. Sangue. Baseada na HQ homônima de Charles S. Forsman, a história ainda apareceu em um curta-metragem antes de ser transformada em série pelo serviço de streaming. 

A trama envolve dois adolescentes perturbados por motivos diferentes. James (Alex Lawther) é um psicopata calado, apegado à sua faca de caça, que fritou a mão para tentar sentir alguma coisa e agora quer matar alguém, pra ver como é. Apenas. Alyssa (Jessica Barden) é uma rebelde arrogante que fala sem parar e tem uma forte tendência maníaco-depressiva, pendendo para uma ninfomania wanna be. Os dois fogem de casa sem rumo. Levam apenas o desdém pelas figuras de autoridade que tem em casa – justificado, diga-se de passagem.

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Eles são tão estranhos que beiram à perfeição. Eu oscilava constantemente entre querer dar um soco no estômago de cada um e pegar no colo para fazer um carinho

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É como se eles estivessem presos em uma sociedade da qual não fazem parte. São desajustados e é injusto que isso seja um problema. Em uma cena fantástica do primeiro episódio, Alyssa quebra o próprio celular em um ataque de fúria. A colega que estava sentada diante dela havia enviado uma mensagem em vez de conversarem como duas pessoas normais que dividem uma mesa durante o almoço. James também não tem celular. Os dois apenas observam essa sociedade torta sem empatia, sem pares. Eles vão vivendo, sem futuro, enfrentando o sistema insolente que se apresenta como a salvação quando os dois sabem que é o carrasco.

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Eles vão vivendo, nessa roadtrip imprevisível. Absolutamente triste e linda

Uma viagem de descobertas e fins

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A arquitetura da série acompanha a sofreguidão do roteiro. São oito capítulos de 20 minutos, fáceis de consumir de uma só vez. Ela é projetada para ser consumida assim. E para facilitar, a trilha sonora é impecável. Se a série fosse um biscoito, a trilha com Graham Coxon (Blur), Fleetwood Mac, Mazzy Star, Shuggie Otis e Françoise Hardy seria o leite. Sem contar nas inúmeras referências à cultura pop.

Confesso que quando minha prima e afilhada e antenada e adolescente me falou sobre essa série, não achei que fosse gostar tanto. Por mais que a premissa do sangue e da psicopatia me interesse, nunca tive muita paciência para ficções que abordam conflitos adolescentes. Mas no final das contas, é simplesmente uma ótima produção que mistura humor negro, violência e bizarrices surreais de maneira primorosa. É uma arte subversiva. Entrenenimento na sua melhor forma. 

Igor Natusch

Violência urbana: um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
15 de novembro de 2017

Não sou bom desenhista, mas vamos lá.

A violência é um iceberg. Gigante, daqueles que a gente nem consegue olhar de tão enorme que é. Um iceberg, todos sabemos, é feito de gelo?—?e sendo gelo, está sempre derretendo um pouquinho, fazendo um pouco de água, por menos que a gente perceba. Sempre houve, portanto, a necessidade primordial e incontornável de enxugá-lo. Às vezes pouco, às vezes muito, mas não adianta: estamos sempre enxugando o gelo do iceberg, desde que o mundo é mundo, desde que seres humanos somos e percebemos que há um iceberg a enxugar.

Feito de gelo que é, o iceberg derrete mais rápido na medida em que há mais calor. O nosso modelo de sociedade, talvez a gente possa compará-lo com o aquecimento global?—?mas aí a parábola fica muito ambientalista, não é bem a ideia nesse caso. Basta dizer que a sociedade, em si mesma, produz calor, seja lá como ela queira se organizar. Basta juntar pessoas para que a temperatura ambiente fique mais alta. E o iceberg, claro, derrete.

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O problema é que a gente inventou um jeito especialmente quente de ficarmos juntos, uma engrenagem social que faz um calor dos diabos, daqueles que a gente fica suando sem parar. Uma calefação, que tal?

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Isso aí, cercamos o nosso mundo (e o iceberg) com uma calefação desgraçada, que está ligada há muito tempo e que ninguém sabe, ou se lembra, ou se importa em saber como desligar. E se a gente acaba ensopando de suor, imagina o quanto que o iceberg não derrete nesse caso?

Antes, quando o iceberg não derretia tão rápido, a gente tinha inventado algumas formas, mais ou menos eficientes, de enxugá-lo. Ele nunca ficava totalmente seco, claro?—?mas a gente dava jeito de evitar que o chão ficasse encharcado, pelo menos. Jogava umas toalhas no chão, colocava uns avisos de piso escorregadio, cercava algumas áreas mais críticas e, bem ou mal, dava para ir levando.

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Só que o calor da nossa calefação maluca fez com que nossas antigas estratégias não deem mais conta de tanto gelo derretendo. Tá tudo úmido, escorregando, fazendo poças d’água, um horror. Daqui a pouco ninguém mais fica seco nessa vida. Aí, o que a gente faz?

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Convocamos enormes tropas de enxugadores de gelo, é claro!

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Milhares e milhares, ou melhor dizendo, milhões de enxugadores munidos de toalhas bem felpudas e altamente absorventes. Mostramos o problema, damos coordenadas, é melhor atacar o iceberg nesse ponto e tal. E lá vão eles, bravos e determinados, enxugar o iceberg que derrete mais e mais. De início, até parece que vai dar certo. Todos sorriem, aliviados, protegidos e relativamente secos.

O problema é que, como sabemos, o gelo nunca vai parar de derreter. E logo as tropas começam a perder a batalha?—?o que aumenta, em consequência, nossa urgência em enxugar o iceberg.

Antes, a gente treinava bem esses nobres soldados enxugadores; agora é água demais, gelo molhado demais, só dá tempo de jogar a toalha na mão dos recrutas e gritar vai lá, ser enxugador de gelo na vida. Alguns são determinados até demais, enxugam gelo com tanta fúria que acabam rasgando as toalhas, machucando pessoas em sua volta. Outros até tentam manter a calma, passar a toalha no iceberg do jeito e no ritmo que foram ensinados no treinamento. Nenhum deles tem muito sucesso. Eles enxugam, jogam longe as toalhas encharcadas e pegam novas toalhas secas sem parar.

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O iceberg, sendo o iceberg que é, segue derretendo. E o que a gente faz? Ficamos na ponta da sala, berrando: enxuguem mais! Mais rápido! Não tenham piedade do iceberg! Ninguém aguenta mais tanta água!

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Não ocorre a ninguém que a calefação, tão bonita e que nos manteve tão quentinhos em alguns meses mais frios, possa ser o problema.

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Desligar a calefação, então, nem se cogita. Alguns talvez até tenham cogitado, para falar a verdade, mas a ideia parece tão complexa e absurda que acabamos mandando esses desgarrados calarem a boca. Quem não enxuga que não atrapalhe, gritamos. Falar é fácil, quero ver segurar a toalha lá na frente!

Nesse cenário de pesadelo, onde o iceberg já começa a cair em pedaços e logo afogará todos nós com seu degelo, apenas um grupo de pessoas está se dando bem: os vendedores de toalhas. Esses aí estão bem felizes, ricos, poderosos e bem considerados pela sociedade tão assustada, tão dependente de toalhas para enxugar o iceberg sem fim. Se você prestar atenção, de vez em quando verá os vendedores de toalhas segurando seus megafones, subindo no ponto mais alto desse mundo de conto de fadas e gritando: o gelo está derretendo, pessoal. Alguém precisa fazer alguma coisa. Enxuguem mais, que tá pouco.

Foto: Wade Morgen

Samir Oliveira

Vídeo flagra agressão policial a travestis em Porto Alegre

Samir Oliveira
19 de outubro de 2017

Infelizmente, este é mais um texto sobre agressão a travestis por policiais. Na semana passada, escrevi a respeito da perseguição que a população T sofre em um bairro nobre de São Paulo. Desta vez o crime ocorreu em Porto Alegre, na Rua Ramiro Barcelos, em plena luz do dia.

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Um vídeo chocante mostra um policial militar agredindo uma travesti negra durante o que parece ser uma abordagem

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Em seguida uma brigadiana se aproxima, mas não faz questão de interromper o abuso ou chamar a atenção de seu colega. O material foi denunciado ao gabinete do vereador Roberto Robaina (PSOL) – que, junto com Luciana Genro, se reuniu com o governador José Ivo Sartori (PMDB) e o secretário de segurança Cezar Schirmer para apresentar oficialmente o caso e cobrar providências.

Vídeo flagra o momento em que travesti é agredida por policial militar na rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre.

Este caso, felizmente, chegou às mãos de autoridades políticas comprometidas com a luta LGBT. Isso, aliado com a ampla cobertura da imprensa, pode fazer com que alguma atitude seja tomada pelo Estado em relação à conduta dos servidores envolvidos. Mesmo assim, é preciso estar muito vigilante, pois o percurso que este tipo de denúncia toma nos escaninhos da burocracia policial quase sempre resulta em arquivamento. Ou em pizza, para utilizar um jargão da política.

Como repórter, já acompanhei diversos casos de abuso de autoridade por parte da polícia. Talvez o principal deles tenha sido o de dois jovens africanos que foram humilhados por uma brigadiana dentro de um ônibus. Tive uma longa conversa com eles, que retratei nesta reportagem. Percorri a cadeia de comando policial atrás de explicações, de respostas e de informações sobre o andamento das investigações. No fim, a servidora foi inocentada, mesmo tendo – sem nenhuma justificativa que não fosse o racismo – apontado uma arma carregada para dois jovens inocentes dentro de um ônibus em movimento, numa conduta que expôs todos os passageiros ao risco de levarem um tiro.

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A diferença é que agora existe um vídeo comprovando a denúncia

E existem agentes públicos dispostos a pressionar até mesmo o comandante em chefe da Brigada Militar – a saber, o governador – para que alguma providência seja tomada

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Sempre que uma denúncia dessas vem à tona, surgem apressados defensores da polícia para dizer que se trata de um “caso isolado”. O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, especialmente a população de travestis e transexuais. Nosso modelo policial é uma herança nefasta da ditadura militar que permaneceu intocada desde a redemocratização. Este tipo de conduta é praticamente uma tradição consagrada na polícia. Está longe de ser um “caso isolado”.

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Investigações independentes

Mudar esta realidade é uma luta que mesmo os policiais que entendem a importância do respeito aos direitos humanos precisam travar dentro da corporação. O sistema é estruturado para proteger este tipo de conduta criminosa. A rígida estrutura militar prevê punições severas para qualquer tipo de desrespeito à hierarquia policial, mas pouco ou nada faz em relação a condutas abusivas da tropa contra a população que deveria proteger.

É absurdo que a própria Brigada Militar seja responsável por avaliar as denúncias que chegam contra os integrantes da corporação. O mesmo vale para a Polícia Civil. Corregedorias vinculadas à própria instituição são o caminho mais seguro para o “deixa disso” do corporativismo.

Neste sentido, é importante a defesa que o ex-deputado Marcos Rolim faz da criação de uma corregedoria independente no Estado. Um órgão sem ligação direta com as polícias que atue para investigar denúncias de abuso e descontrole dos agentes. Não é algo que depende do governo federal. Trata-se de uma mudança institucional que cabe aos governadores e deputados estaduais aprovarem.

Enquanto isso não ocorre, seguimos lutando com as armas que temos e aproveitando todas as fissuras que existem dentro do sistema para criar brechas em favor de uma nova cultura democrática dentro dos rincões mais autoritários do Estado. Se os policiais entenderem que não podem esbofetear travestis – ou qualquer cidadão – durante uma simples abordagem, já teremos conquistado uma importante vitória. Mais uma, no marco de muitas que ainda precisam ser consolidadas.

Raquel Grabauska

Monstros e Ladrões

Raquel Grabauska
18 de agosto de 2017

Esse é o título do mais recente livro do Celso Gutfreind. Ele trata de um assunto que ninguém quer falar. Muito menos falar com crianças. Muito menos falar com os filhos. E precisa. Infelizmente precisa. A sinopse que está no site da Editora Edelbra.

Era uma vez um menino que era todo de prestar atenção para dentro, lá onde moram os pensamentos. Um dia, quando monstros começaram a aparecer, ele descobriu com seu pai – e o bigode dele – que sempre tem um jeito pra tudo. Pelo menos era nisso que ele acreditava até o dia em que o bigode do pai ficou todo nervoso por causa de uns monstros diferentes, que são gente, mas não lembram disso. E agora? Será que para isso também tem um jeito de resolver?

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A violência está aí. As crianças percebem

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Nós já fomos assaltados com os guris juntos. Foi bem difícil de explicar o que que tinha acontecido. De entender também, é claro. Desde então nosso filho mais velho sabe que temos pressa pra que ele entre e saia do carro. Que não se distraia na rua. Que seja rápido. Que seja menos criança. Esperando o tempo em que a gente posso brincar na rua de novo.

 

Geórgia Santos

Sobre o BBB17 e a normalização da brutalidade

Geórgia Santos
10 de abril de 2017

Vamos lá, podem me chamar de esquerdopatafeminazi ou de alguma outra atrocidade delirante, mas dedo na cara não é a norma e hematoma não é marca de amor. O que aconteceu no BBB17 é a normalização da brutalidade.

Nesta semana, um dos assuntos mais comentados no país foi a agressão protagonizada por Marcos Harter durante o Big Brother Brasil. Na cena assistida por milhões de pessoas, o médico é flagrado agredindo sua namorada, Emily, verbal e fisicamente. Visivemelmente agressivo e descontrolado, ele aponta o dedo para o rosto da companheira de casa, aperta o braço e belisca a jovem de maneira bruta. Eu não acompanho o programa mas, segundo informações de quem o faz, existia um padrão de constrangimento que vinha se perpetuando entre o casal.

Por bem, após analisar as imagens e, segundo Tiago Leifert, “ouvir especialistas”, a Globo decidiu expulsar Marcos do programa. A polícia foi até a casa do BBB e tomou depoimento de todos os envolvidos no caso. Ficou comprovada a agressão.

Agora veja bem, não sou eu, não é uma esquerdopatafeminazi, não é uma louca mentirosa que está dizendo. A polícia confirmou a agressão.

     Dito isso, acho que algumas coisas precisam ser discutidas:

  1. O que é agressão?

Segundo relatos da imprensa, Emily ficou bastante impactada com a decisão e tentou justificar a ação de Marcos, afirmando que ele “estava muito nervoso”. Após a saída, ela repetiu que sabia que ele jamais tinha a intenção de machucá-la. Na mesma linha, inúmeros telespectadores ficaram consternados com a saída do “brother”, afirmando que não houve agressão e que aquilo não passava de uma discussão normal de marido e mulher e que as pessoas (leia-se feministas) estavam exagerando e que ela também era culpada.

Não, amigos e amigas. Não é normal.

Isso apenas mostra o tamanho da nossa ignorância com relação ao que é aceitável em um relacionamento, seja amoroso ou não. Não precisa de tapa na cara ou um chute para se configurar agressão, que pode ser física (e aqui se inclui a sexual) ou psicológica.

Nesse caso, houve violência física, comprovada pelos hematomas deixados no braço da vítima após ela ser apertada e beliscada; e violência psicológica, que inclui constrangimento, humilhação e manipulação, insultos, entre outras coisas. Todas observadas na imagem quando ela foi praticamente “embretada” em um canto como se fosse um animal assustado.

Então, não, não é uma briga normal de casal. E se tu vês isso com naturalidade, eu sugiro que procure ajuda, sendo homem ou mulher.

  1. Qual o limite?

Nós já definimos agressão, mesmo que superficialmente, então talvez essa pergunta pareça relativamente mais fácil de responder. Mas não é. O limite dentro de um relacionamento abusivo pode ser uma linha bastante borrada e difícil de identificar. Quando Emily tentou defender o agressor, uma das colegas de casa replicou “Talvez tu gostasse tanto dele que tu não estivesse enxergando”, disse a advogada Vivian sobre o nível da agressão. Ou seja, o limite não estava claro.

Aparentemente, nem para a TV Globo, que não considerou as imagens perturbadoras o suficiente para caracterizar como agressão. Precisou esperar a polícia.

O lance é que nós vivemos em uma sociedade machista – e o fato de tantas pessoas acharem aquela briga normal prova isso – e o discurso vigente torna essa tarefa mais difícil. Mas É possível identificar alguns sinais e entender o limite que não deve ser cruzado.

O movimento Mexeu com uma, mexeu com todas produziu um material bastante elucidativo e que pode ajudar muita gente.

É fácil encontrar justificativas para a agressividade em uma sociedade em que a brutalidade é normalizada, mas elas são todas vãs. Então, não permita que nenhuma dessas coisas aconteça a você ou a alguém que você conheça.