Fomos assistir ao novo filme do Touro Ferdinando na semana passada. Fomos em família. Cléber, os sobrinhos Tom e Benjamin e eu. O clima era de sangue doce e diversão, com os pequenos pedindo chocolate antes de o filme começar e os tios cedendo, estragando as crianças como deve ser. Eu estava empolgada, sempre gostei daquele bovino com grandes cílios e cara querida, que parava para cheirar as flores e se recusava a seguir a natureza taurina da boa briga.
Ferdinando é um touro gigante que vive na Espanha e, diferente de todos os outros de sua espécie, não tem o desejo de participar de touradas. Prefere viver em paz com a natureza, feliz em meio às flores.
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Não se trata de medo, ele simplesmente não entende o apelo da briga, não compreende a razão pela qual deva bater cabeça com outros touros e toureiros. Sem motivo algum
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A história foi escrita em 1936 pelo autor americano Munro Leaf a pedido do ilustrador Robert Lawson. Em 1938, a Disney adaptou o romance para o curta Ferdinand the Bull, que rendeu o Oscar aos estúdios e doces lembranças a quem assistiu.
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O filme novo é diferente. Ferdinando é maior, mais imponente. Já não pisca com longos cílios. Mas é uma superprodução, obviamente mais elaborada do que o curta de 80 anos atrás pelas facilidades tecnológicas do século 21. Além de ser muito divertido. Eu tive ataques de riso com os ouriços dançando macarena e os cavalos alemães trotando provocadores, efeminados e malvados. Mas quando a sessão terminou, não foi isso que ficou comigo. Eu só conseguia pensar em um diálogo específico que Ferdinando trava com a cabra Lupe. É mais ou menos assim:
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Ferdinando: Eles todos me odeiam
Lupe: É, eles TE odeiam, ME odeiam, SE odeiam. É muito ódio. Esmaga sua alma se você se permite pensar sobre o assunto.
E não é que esmaga, mesmo
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Desde que saí do cinema, não paro de pensar sobre quão melhor seria o mundo se a gente simplesmente deixasse de odiar. É tanto ódio por nada. Ódio por futebol, ódio por partido político, ódio pela cor da pele, ódio pelo gênero, ódio por quem troca de gênero, ódio pela roupa, ódio pelo lugar em que vive, ódio pelo lugar em que os outros vivem. É muito ódio. Esmaga sua alma se você se permite pensar sobre o assunto.
Dói pensar que a nossa sociedade foi construída sobre um alicerce tão virulento, de intolerância e violência. E a história de Ferdinando é prova disso. Não me refiro ao enredo do romance, mas à história da publicação. No período em que o livro foi lançado, aliados do ditador espanhol Francisco Franco classificaram a obra como pacifista. Veja bem, não era um elogio, era um crime. Tanto que o livro foi proibido em muito países cujos regimes eram fascistas. Também por isso, a história de Ferdinando foi classificada como propaganda esquerdista.
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É tão irônico quanto trágico. Uma história que promove a paz é motivo para guerra. E olha que estamos falando de um tempo em que não havia redes sociais
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Mas ignoremos a política e tratemos de bom senso. O Touro Ferdinando pode salvar a humanidade. Se a humanidade quiser. O manual já está escrito, basta sentar no meio da arena e cheirar as flores em vez de empunhar a espada e fazer sangrar.
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*O Touro Ferdinando é um filme da Blue Sky Studios dirigido por Carlos Saldanha, o diretor de “Rio”. É inspirado no livro “A História de Ferdinando”, de Munro Leaf e Robert Lawson.

