Igor Natusch

Sergio Moro, a Lava-Jato e a Operação Mãos Sujas

Igor Natusch
10 de junho de 2019

Dizer que a Lava-Jato foi ferida de morte seria uma grande besteira, é claro. Mas não há exagero em apontar que a operação, personificada em suas figuras definidoras, está definitivamente desmoralizada a partir da série de reportagens divulgadas pelo The Intercept Brasil no último domingo. A broderagem explícita, escandalosa e ilegal entre Moro e a operação, em especial o procurador Deltan Dallagnol, estava há tempos visível, mas ainda existia em um terreno, digamos, não material. Agora, com a revelação de conversas indecentes e dos acordos absurdos que qualquer um pode ler, está escancarada de forma acachapante, impossível de ignorar.

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Os justiceiros estão nus, e sua nudez é tamanha que ignorá-la deixou de ser um acordo coletivo para virar profissão de fé. A Operação Mãos Limpas Made in Brasil revela suas mãos encardidas, imundas. A casa caiu, em suma

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Estivesse o Brasil em condições normais de temperatura e pressão, o ministro Sergio Moro renunciaria ao cargo ainda hoje

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Sabemos, no entanto, que o Brasil está muito longe das CNTP dos tempos de escola. As reações de Moro e Dallagnol até aqui, fazendo pouco ou nenhum caso das graves revelações, demonstram uma aposta na força do capital político e social adquirido: isso é algo menor, não nos tira do rumo, olhem tudo que já fizemos pela nação, seguiremos atuando de forma incansável para combater a chama corrupta que consome o país. Difícil imaginar que as multidões que organizaram “Acampamentos Sérgio Moro” e usaram camisetas com o rosto do ídolo vão simplesmente abandoná-lo a essa altura – afinal, como bem sabemos, a idolatria não deixa de ser uma forma de teimosia.

Apostar em uma rápida desidratação que forçasse Moro a juntar os cacos de dignidade e pedir a renúncia seria apostar em um Brasil onde a razão, o respeito às instituições e o bom senso fossem levados em conta. Talvez esse Brasil exista em algum best seller de livraria de aeroporto, porque no mundo real não há nem sinal dele.

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Ainda assim, o golpe é duríssimo. O capital moral de Moro e da Lava-Jato sangra em praça pública, com consequências imensas e potencialmente imprevisíveis

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O STF, apenas para citar o aspecto mais óbvio, tem em mãos material mais do que suficiente para botar abaixo boa parte da Lava-Jato – o que, por óbvio, implica sim em tornar nulos os casos contra Lula e soltá-lo o mais rapidamente possível. Se isso de fato ocorrerá, veremos nos próximos capítulos.

Verdade que nada do que vem sendo exposto significa que não tivemos desvios criminosos na Petrobrás e que agentes públicos não tiveram envolvimento na bandalheira. Nada inocenta Lula ou qualquer outra pessoa das acusações imputadas. Mas não se pode, em um Estado que se pretende de Direito, manter alguém preso apenas porque se deseja que ele fique atrás das grades, muito menos tolerar que o julgador atue como acusador. Se o absurdo uso de escutas de advogados para montar o caso contra o ex-presidente já seria suficiente para abalar decisivamente a condenação (e é), os fatos agora revelados deixam tudo ainda mais inescapável.

Se houve tabelinha entre juiz e força-tarefa para prender Lula (e quem duvidará que houve, depois de tudo que se revelou desde ontem?), o caso revela-se nulo, sua condenação nada vale e ele é um homem livre. Agir de forma diferente é confirmar que a Constituição virou papel para acender lareira, que estamos no reino do arbítrio e nada vale senão a vontade de quem tem poder. Se o material publicado pelo The Intercept Brasil foi obtido pelo hacker de forma ilegal, ainda assim ele serve para declarar nulidade de processos – o que, aliás, diz o próprio ministro Alexandre de Moraes, em livro elogiado por sua doutrina.

É um jogo de muitos riscos – e soltar Lula, é claro, também envolve riscos tremendos para muitas pessoas. Mas a disputa de poder entre Lava-Jato e Supremo não é de agora, e fica difícil visualizar os ministros perdendo a chance de aplicar em seus inimigos um golpe potencialmente mortal. Isso para não falarmos no quanto o sonho de Moro em tornar-se ministro do STF fica distante depois do escândalo em torno de seus procedimentos.

Além disso, temos as ruas. A revelação das conversas nada institucionais de Moro surge dias antes de uma greve geral, convocada para o dia 14 – um ato que, desde o início, amplia a pauta dos cortes em universidades em um discurso potencialmente mais amplo, mais aberto ao combate à reforma da previdência, por exemplo. Não é nada difícil imaginar que os setores que pedem Lula Livre estão inflamados, e engrossarão ainda mais essas manifestações daqui para frente.

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Quem viveu 2013 sabe que os protestos se transformaram em fenômeno viral justamente quando se tornaram permeáveis a outros gritos, indo (de forma não raro histriônica e caótica) muito além da pauta original do transporte público. Em uma semana que se promete horrorosa para o governo, os movimentos de oposição ao governo Bolsonaro ganham uma boa chance de saírem das cordas de vez

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Não se trata, aqui, de tentar prever uma onda de arrependidos abandonando Moro e Bolsonaro rumo à oposição. É um cenário meio fantasioso, na verdade, e que no fundo pouco interessa. O que surge, a partir das conversinhas de Moro e da inserção delas em um cenário já incerto e conturbado, é a possibilidade de um movimento agregador de insatisfações, até aqui, pulverizadas. Impossível dizer se acontecerá, mas os fatores estão presentes. E, caso ocorra uma escalada da crise, somada a um fortalecimento de seus antagonistas, Lava-Jato e governo Bolsonaro estarão colocados, juntos, no olho do furacão. Tudo por força de Sergio Moro, o elo que liga essas duas pontas em risco.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Igor Natusch

Algo está acontecendo no Brasil. E isso é péssimo para Bolsonaro

Igor Natusch
16 de maio de 2019

Fiquei durante cerca de 20 minutos no topo do Viaduto Otávio Rocha, nesta quarta-feira, observando os manifestantes de Porto Alegre que passavam logo baixo, de um ponto a outro da avenida Borges de Medeiros. Em nenhum momento consegui enxergar o final da massa humana, seja de um lado, seja do outro. Não sou bom nesse tipo de conta e não vou me arriscar, mas era muita gente. Mesmo. Bem mais do que eu imaginava que seria. Muitos universitários, sim, e muita gente ainda mais jovem, que quer ter a chance de ser universitário ou universitária um dia.

Ouvi buzinas e vi pessoas aplaudindo das janelas. Ouvi o motorista do ônibus que me levou até o Centro de Porto Alegre comentando com passageiros sobre o protesto, demonstrando concordância, explicando os cortes na educação com bastante propriedade. Vi outro cobrador, no circular que me levou ao trabalho no começo da tarde, usando o celular para registrar, solidário e sorridente, professoras que se dirigiam ao abraço simbólico em um instituto federal. Não vi um xingamento sequer – seja contra vagabundos, contra petralhas ou qualquer outra coisa.

Segundo o Nexo, manifestações em defesa da educação aconteceram em cerca de 200 cidades brasileiras.

Os atos de 15 de maio foram um grande sucesso. São indicativo claro de que algo está acontecendo. E, seja lá o que for, não é nada bom para Jair Bolsonaro.

A tentativa de listar brevemente os problemas do governo é um esforço condenado ao fracasso, pois é impossível ser breve com tanta coisa a mencionar. No curto espaço da metade de uma semana, vimos a derrota brutal do governo na convocação do ministro Amadeu Weintraub ao Congresso, observamos líderes partidários outrora favoráveis fumegando de raiva após serem chamados publicamente de mentirosos, vimos o presidente da Câmara dar repetidos sinais de que está lavando as mãos. A reforma da previdência, praticamente um sine qua non para a viabilidade do governo, parece uma miragem inalcancável. Os investimentos fogem do país, o desemprego cresce, os índices sociais são cada vez piores. Até a visitinha improvisada ao Texas rende constrangimentos à entourage presidencial, com um ex-presidente norte-americano admitindo que recebeu Bolsonaro em sua casa no improviso, apenas para não cometer uma indelicadeza com um chefe de Estado.

Jair Bolsonaro está desnorteado, sem trunfos na mão, carente de amigos, ausente de aliados. E tudo isso sem citar a quebra de sigilo bancário de Flávio Bolsonaro, que coloca a família inteira diante de perspectivas funestas na esfera criminal.

A posse, vale lembrar, foi há menos de cinco meses.

Penso que não há sentido em procurar grandes estratégias onde nada indica que elas existam. O que estamos vivenciando, no Brasil, não é um esforço coordenado e metódico de construir um regime duradouro: o que se vê é um plano semi-articulado de autoritarismo de direita, à Viktor Orban / Recep Erdogan, incapaz de manter sua própria coesão interna e ruindo muito antes de conseguir consolidar seus alicerces. Aliás, se há algo que esses regimes nos ensinam, é que o autocrata moderno não se faz com explosões espalhafatosas, mas contaminando e sequestrando a legalidade. É trabalho para populistas, sim, mas não para tolos: requer método, paciência e manutenção do apoio popular.

Dos três itens, Bolsonaro só tem – ainda – o último.

E aí está a tragédia que 15 de maio simboliza para o presidente: é um sinal claro de que essa popularidade está se esvaindo.

Brigar com as universidades foi um desastre tático. Graças a esse confronto inútil, rancoroso e impulsivo, as ruas trocaram de sinal. Agora, o barulho que ecoa delas é contra Bolsonaro.

Será preciso muito mais que sinais de arminha com a mão e hashtags fajutas no Twitter para reverter esse quadro.

Foto: Carol Ferraz / Sul21

Igor Natusch

Um governo de tarados

Igor Natusch
27 de abril de 2019

É tentador tratar os diferentes núcleos de interesse que constituem o governo de Jair Bolsonaro como uma coisa só. Uma inclinação que surge não só como atalho, mas também como reação: afinal, não é o que essas mesmas pessoas fazem o tempo todo, rotulando toda divergência como comunismo, todo conhecimento como libertinagem universitária, toda pauta identitária como ameaça à sociedade e à família?

Tentador, sim, mas equivocado e até mesmo contraproducente. O governo Bolsonaro está muito, muito longe de ser todo uma coisa só. E me parece que só é possível compreendê-lo minimamente (e, a partir disso, agir contra seus aspectos mais nefastos) reconhecendo as muitas distinções entre seus grupos, admitindo que estamos diante de uma geleia de motivações primárias e muitas vezes incoerentes entre si – mas que encontraram, na figura caricata de Jair Bolsonaro, um eficiente avatar coletivo.

O que não quer dizer, é claro, que nada aproxime esses núcleos. Estão, sim, unidos em vários aspectos.

O principal deles, penso eu, é a pressa.

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Talvez se possa dizer, em um resumo grosseiro, que se trata de um bando de recalcados. Não deixa de ser verdade, mas acho que outro termo define ainda melhor: penso que são, na verdade, uma legião de tarados.

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Não quero dizer, é claro, que são todos pervertidos sexuais. Alguns possivelmente sejam, e é evidente que questões de origem sexual estão no coração de boa parte das maluquices que temos testemunhado nos últimos tempos. Mas não quero brincar de psicanalista amador aqui. Me refiro à fixação doentia, que distorce o objeto da obsessão ao ponto de transformá-lo em monstruosidade intolerável – e que motiva o impulso incontrolável de reação, de confronto e, se possível, de destruição.

Como descrever, por exemplo, os discípulos de Olavo de Carvalho que querem “limpar” a educação brasileira? Pessoas forjadas no pleno desprezo às universidades supostamente apinhadas de comunistas, que defendem a necessidade de buscar o conhecimento fora do ambiente ideologizado da academia – e que, ao mesmo tempo, inventam títulos acadêmicos em um esforço de legitimação? Pessoas obcecadas em gravar cada ato de professoras e professores, resumindo os incontáveis problemas e carências das escolas brasileiras à atuação de doutrinadores desonestos contra crianças indefesas? Pessoas que não recebem o reconhecimento que consideram justo para sua suposta erudição e, como retaliação, atacam as faculdades que os rejeitam, querem extinguir os filósofos e sociólogos que se mancomunam para negar-lhes a glória? Não estamos nós diante de gente obsessiva, com recalques não resolvidos e que, agora, se apressa em eliminar o alvo ao mesmo tempo desejado e temido?

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Não são, por acaso, um bando de tarados?

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Não existe algo de tara em um ministro que, incapaz de disfarçar sua absoluta inaptidão para as relações internacionais, chega a convocar coletivas para enumerar suas ideias supostamente revolucionárias, ao mesmo tempo em que corre para deitar-se aos pés dos Estados Unidos como um cãozinho fiel? Não são, a seu modo, tarados os que loteiam o Ministério do Meio Ambiente para liberar a exploração irrestrita de recursos naturais, que aniquilam a Funai para lançar sobre os povos originários brasileiros a perspectiva de um genocídio ainda mais acelerado e brutal?

Não serão movidos por uma espécie de tara os que inserem na incontornável discussão sobre a Previdência maldades contra idosos em situação de miséria e trabalhadores rurais, para citar apenas dois casos? E não são tarados, mesmo que não sejam todos membros formais do atual governo, os que transformam a lei em salvação da alma nacional, os que fazem acusações a aplicam penas como se em missão divina, os que esperam que a lei se dobre à punição, e não o contrário?

Evidente que há muitas nuances e interesses atuando nesse cenário, e dizer que o Brasil está na mão de gente que só pensa na satisfação imediata de impulsos depravados seria cair no erro que coloquei lá no começo, de pegar uma etiqueta só e colocar em todos os produtos do estoque. Não existe uma só extrema-direita, e não existe só uma onda no mar reacionário, ainda que os efeitos terríveis sejam basicamente os mesmos. Mas não estariam juntos se algo não os unisse, e não é exatamente a família Bolsonaro que promove essa coesão, embora ela funcione bem como imagem pública e discurso catalisador.

Trata-se de um governo de tarados: cada um com um impulso diferente, mas todos consumidos pela mesma urgência, transformados em pelotão pela ânsia e pelo frenesi.

Foto: Divulgação / Governo Federal

Raquel Grabauska

Vontade de outono

Raquel Grabauska
26 de abril de 2019

Hoje eu caminhei na rua. Vestido leve, sentindo o vento. Gosto de sentir o vento e a sensação de quase frio do outono. Pensei que queria um mundo de outono. Sem verão, sem inverno. Na primavera nem pensei, confesso. Um mundo sem extremos. Quando vi que o meu desejo pra hoje era o outono, senti vontade imensa de chorar.

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Fazia tempo que eu não sentia desejo de algo tão simples

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Ontem passei por uma rua onde uma pessoa estava sendo morta num assalto. Com meus dois filhos pequenos. Polícia, sirene, viatura na contramão. Pânico. E eu só queria ver se a academia de artes marciais era legal pra eles. Desejei não ter saído, desejei que eles não tivessem visto tudo aquilo, desejei que o rapaz não tivesse sido baleado, desejei que o outro rapaz não tivesse atirado, desejei que a família do rapaz que morreu não sofresse. Desejei dar colo pra mãe dele.

Dias atrás uma amiga querida infartou. Desejei que não tivesse infartado. Mãe de dois meninos, 6 e 9 anos. Desejei que não sofressem. Testes para morte cerebral. Desejei que os testes dessem esperança. Desejei que ela visse os filhos crescerem. Desejei que o companheiro tivesse sua companhia para seguirem viajando, sendo parceiros, existindo como a família querida que admiro.

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Desejei que não conhecer a história da Marielle, pois só conheci depois da sua morte
Desejei não saber de Brumadinho, de Mariana
Desejei não chorar pela África
Desejei não chorar por Suzano

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Hoje quando desejei o outono, me senti egoista. Depois tive vontade de sentar e chorar. Saudade do tempo em que a gente podia desejar coisas simples.

Geórgia Santos

O dia da mentira

Geórgia Santos
1 de abril de 2019

Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram. 

O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos. 

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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico

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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia.  Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.

 

Algumas mentiras da ditadura

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1. “A ditadura no Brasil foi branda”

Convencionou-se chamar a Ditadura Militar brasileira de “ditabranda” porque, segundo as pessoas que se apoiam nesse termo, foi um regime menos cruel e sanguinário que outras ditaduras latino-americanas, como as instituídas na Argentina e Chile, por exemplo. O termo foi utilizado, inclusive, em editorial do jornal Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2009. 

Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura. 

O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas. 

OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.

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2. “A educação era melhor”

Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).

Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.

Também com relação ao ensino superior os números da democracia são superiores. Entre 1980 e 2016, a população brasileira cresceu 1,7 vezes. No mesmo período, o número de matrículas cresceu 4,75 vezes.

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3. “A saúde funcionava”

Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.

O saneamento básico, fundamental quando o assunto é saúde, também era um problema.  No início da década de 1980, o percentual de lares com acesso à agua potável não chegava a 60%, agora, esse número está perto de 100%. 

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4. “Não havia corrupção no Brasil”

É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.

O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.

Nenhuma descrição de foto disponível.

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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”

João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.

O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.

Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango. 

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6. “A população queria a ditadura”

Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava. 

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7. “O Brasil cresceu”

É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre. 

Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.

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Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.

Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.

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8. “Só morreram vagabundos”

Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenas  durante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.

Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.  Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.


OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.

 

Foto de capa original: Arquivo / Estadão Conteúdo

Geórgia Santos

Eu perguntei ao meu avô sobre a ditadura

Geórgia Santos
31 de março de 2019

Recomendaram-me perguntar ao meu avô sobre o período que se iniciou em 1964. Não foi diretamente. Eu li em um daqueles cards mequetrefes que se proliferam em redes sociais como larvas do mosquito da dengue em água parada. Em um deles, de tom esverdeado e bem sem graça, lia-se o seguinte:

“Não acredite no seu avô gente boa, honesto e trabalhador de 80 anos, que viu tudo acontecer antes, durante e depois de 64, e até hoje diz que foi ótimo! Acredite no seu professor maconheiro de história, de 35 anos formado na USP, que mora com a mãe e diz que foi horrível demais!”

Depois da provocação colegial, foi a vez de um dos filhos do excelentíssimo senhor presidente da República desafiar os cidadãos brasileiros. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) não apenas celebrou o 31 de março de 1964, data do golpe, como agradeceu aos militares.

“Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”

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Eu perguntei

Essa bobagem de mandar perguntar para o avô é apenas uma nova versão de negação da História, de negação da ciência. Ignora-se a factualidade, as evidências, os registros. Tudo vira subjetivo e, de repente, relega-se o fato à opinião. Mesmo assim, eu perguntei.

Meu avô, o seu Orozimbo, é um homem de 85 anos e muito simples, apesar de bastante vaidoso. A vida aconteceu e a educação formal foi pouca. O que não o impede de ser muito inteligente e, principalmente, consciente. O vô é um cara curioso, ele não gosta de não saber das coisas. Então ele pergunta, pergunta muito. Sobre a internet; sobre política; sobre novas formas de fazer jornalismo, para entender meu ofício; sobre minha tese de doutorado; sobre outros países; novas experiências. Mas ele também tem muito a contar.

Nunca viajou de avião, mas conta com orgulho de quando andou de helicóptero na época em que serviu ao Exército Brasileiro, no início dos anos 1950. Ele tem várias fotos daquele período em que ele parecia ser mais alto e, definitivamente, mais magro. Dos tempos em que era caminhoneiro e motorista de ônibus, sobram contos sobre todos os cantos desse país. Ele conhece o Brasil muito melhor do que qualquer outra pessoa da família que tenha milhas e milhas acumuladas em companhias aéreas. Com relação à política, nunca se encolheu, e a escolha pelo MDB desde muito cedo deixa isso bastante claro. Ainda assim, eu perguntei.

Mas não perguntei agora, sob o comando do projeto de capitãozinho. Havíamos conversado sobre isso há muitos anos e tocamos no assunto de novo no período da eleição. Eu disse a ele que o candidato que liderava as pesquisas dizia que a Ditadura tinha sido boa.

“E tem gente que acha bonito, vô. Tem gente dizendo que a Ditadura tinha que voltar.” [Ele fez uma careta estranha, meio que duvidando.]

“É verdade, pergunta pra mãe. Esse cara diz que a época da Ditadura era melhor e as pessoas acham que é verdade.” [Ele olhou pra minha mãe, que estava preparando a salada de batata com maionese para o churrasco de domingo. Ela assentiu e disse, “é verdade, pai.”]

“Tô te falando. Na verdade agora eles tão dizendo que não tinha Ditadura, que os militares salvaram o Brasil, que tudo naquela época era melhor.”

Foi quando ele disse

“Olha, a minha vida era boa, eu não tinha nenhum problema, mas também não tenho agora se tu for olhar. Mas não era assim pra todo mundo. Pergunta pro [nome da pessoa] como era, das vezes em que ele apanhou ou que não deixavam ele fazer reunião. E isso que eu tô falando de cidade pequena. Imagina em cidade grande. Não se podia falar contra. Nada, nada, nada. Quem falava, pagava. Só que as pessoas fingem que era tudo normal. Elas esquecem que tem coisas que a gente não mistura. Exército é Exército, política é política. E lugar do Exército não é no governo. Tudo tem seu lugar. Eu não tinha problema, mas não é porque não aconteceu nada comigo que tava tudo certo. As coisas não são assim, é errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.”

Como eu disse, meu avô é um homem simples e isso se expressa na forma como ele falou daquele período. Mas nada poderia ser mais cristalino. Não se podia falar nada contra. Lugar do Exército não é no governo. É errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode. 


Na última segunda-feira (25), o general Otávio do Rêgo Barros, porta-voz da presidência da República, informou que Jair Bolsonaro havia determinado “comemorações devidas” no dia 31 de março, data em que se iniciou o golpe em 1964. Dois dias depois, mudou o tom e disse que a ideia era “rememorar”, não comemorar. Bolsonaro mudou o tom, mas as comemorações entusiasmadas dos filhos dão o tom da celebração. Além disso, vídeo apócrifo que nega o golpe de 64 foi distribuído em canal de comunicação do Planalto. A Secretaria de Imprensa diz que o governo não produziu o material e nem sabe quem o fez, mas distribuiu mesmo assim.

A iniciativa não tem precedentes na América Latina. Na Argentina, o dia 24 de março é feriado, mas dedicado a lembrar e celebrar as vítimas da Ditadura civil-militar (1976-1983). O Dia da Lembrança pela Verdade e a Justiça reúne, todos os anos, manifestações contra um dos regimes mais sangrentos do período. No Chile, o dia 11 de setembro marca o golpe do General Augusto Pinochet e o bombardeio do Palácio de La Moneda, que deu início à Ditadura (1973-1990) e culminou com a morte do então presidente, Salvador Allende. Não é feriado, mas as escolas tem jornada reduzida e há homenagens. Mas não à Pinochet. Há entrega de flores em homenagem a Allende. No Paraguai, ninguém ousa celebrar o início da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) no dia 4 de maio. Recentemente, o ditador paraguaio, conhecido pela crueldade e, inclusive, acusações de pedofilia, foi elogiado por Bolsonaro, que o chamou de “homem de visão, um estadista”. No Uruguai, o dia 27 de junho é reservado para a memória das vítimas da Ditadura (1973-1985) do país. No Brasil, vivemos presos a um delírio coletivo provocado por amnésia recente. Só pode. Porque segundo meu avô gente boa, honesto e de 80 anos, a ditadura não era boa.

Geórgia Santos

Bom sujeito, não é

Geórgia Santos
12 de março de 2019

Há poucos dias, li algo curioso sobre a vida do Rei Ludwig II da Baviera, que reinou entre 1864 e 1886. No texto A Oktoberfest Escondida (tradução livre), o autor garante que o chamado “Rei de Contos de Fada” detestava a célebre festa bávara. Ao que tudo indica, Ludwig II era um misantropo que não gostava de grandes aglomerações, tinha pavor de cerveja e não gostava da Oktoberfest. O texto carece de fontes, embora a personalidade reclusa do monarca seja facilmente confirmada pela literatura e História. De qualquer forma, fiquei intrigada com esse regente  que não gostava de cerveja e desprezava a festa mais famosa de seu reino.

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Imediatamente, pensei que seria o mesmo que um presidente do Brasil detestar o carnaval

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Não propriamente impensável, afinal, cada um sabe de seu cada um, como diz meu pai. Mas seria curioso, especialmente depois de testemunharmos tantos presidentes aproveitando a folia à sua maneira. Quem não lembra de Itamar Franco curtindo um camarote ao lado de Lilian Ramos? Fernando Henrique Cardoso não foi à Sapucaí durante seu mandato, mas assistiu aos desfiles em 2013 e até deu entrevista enquanto molhava o bico. Luiz Inácio prestigiou o carnaval do Rio de Janeiro quando ainda era presidente. Tem até foto de Lula tascando um beijo na careca do Neguinho da Beija-Flor. Dilma, quando ainda era ministra, vestiu um chapéu colorido e assistiu ao Galo da Madrugada em Pernambuco.

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De fato, seria curioso um presidente do Brasil detestar o carnaval

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Mas minha curiosidade seria satisfeita em breve, afinal, a realidade brasileira não decepciona, jamais. No dia do carnaval, o presidente Jair Bolsonaro fez o impensável. Publicou, no Twitter, um vídeo em que um homem urina sobre a cabeça de outro homem, na rua, durante a festa de um bloco de carnaval. Com a seguinte legenda:

“Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões.”

O vídeo foi publicado sem restrição, para que todos pudessem ver e, como disse o presidente, comentar. Como se a situação não pudesse ficar pior, perguntou, também no Twitter, o que era “golden shower”, em alusão ao ato praticado pelos protagonistas das imagens divulgadas pelo chefe de Estado. Essa foi a forma que Bolsonaro encontrou para responder às críticas que recebeu em blocos de carnaval Brasil afora, em que até o seu boneco de Olinda levou cerveja na cara.

Ludwig II podia não gostar da Oktoberfest. Aliás, o tal texto dá conta de que, em 22 anos de reinado, só foi à festa em seis ocasiões e, mesmo assim, relutante. Praticamente arrastado. Mas foi. Não só foi como não teve a intenção de desmoralizá-la, pelo que consta. Não apenas tolerava como compreendia a importância das festividades para o fortalecimento da cultura de seu povo. Ludwig II podia não gostar da Oktoberfest, mas a respeitava. Algo que Bolsonaro parece desconhecer.

Preferia ter ficado na curiosidade. Preferia não saber como é ter um presidente no Brasil que não aprecie a importância do carnaval. Como diria Dorival Caymmi, bom sujeito, não é. Ruim da cabeça ou doente do pé. 

 

 

 

 

Geórgia Santos

A involução da ética de Moro

Geórgia Santos
20 de fevereiro de 2019

As pessoas mudam de opinião. É do jogo. Aliás, é saudável. Não há nada mais triste que um ser humano não disposto a aprender e evoluir. Convicção, por outro lado, é outra história. É uma opinião obstinada, uma crença embasada, ainda que não científicamente, em evidências ou motivos particulares. E o juiz Sérgio Moro tinha uma série dessas convicções a respeito da política brasileira e as expressava com a legitimidade de quem combatia a corrupção de forma vigorosa. Como nunca antes na história desse país, diziam alguns.

Como uma das figuras mais importante da Operação Lava Jato, Moro sempre foi firme em suas convicções. O então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba foi quem condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá.

Moro sempre foi firme em suas convicções. Inclusive quando alguém tentava minimizar ocorrências como o Caixa 2, o então juiz era taxativo quanto à gravidade dos danos provocados por políticos em campanhas eleitorais. Durante palestra na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Moro disse que Caixa 2 é pior que a corrupção tradicional. Ou seja, que  que a corrupção para financiamento de campanha era mais grave que o desvio de recursos para o enriquecimento ilícito.

– Temos que falar a verdade, a Caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Me causa espécie quando alguns sugerem fazer uma distinção entre a corrupção para fins de enriquecimento ilícito e a corrupção para fins de financiamento ilícito de campanha eleitoral. Para mim a corrupção para financiamento de campanha é pior que para o enriquecimento ilícito. Se eu peguei essa propina e coloquei em uma conta na suíça, isso é um crime, mas esse dinheiro está lá, não está mais fazendo mal a ninguém naquele momento. Agora, se eu utilizo para ganhar uma eleição, para trapacear uma eleição, isso para mim é terrível. Eu não estou me referindo a nenhuma campanha eleitoral específica, estou falando em geral.

A fala de Moro foi aplaudida em Harvard e a cruzada contra a corrupção transformou o juiz em uma espécie de herói nacional e o Super Moro estampava camisetas em manifestações populares coloridas de verde e amarelo. Como consequência, mesmo tendo afirmado em mais de uma ocasião que jamais entraria para a política, aceitou largar a toga para se tornar ministro no governo de Jair Bolsonaro.   A contradição não incomodou aos fãs do paladino da Justiça. E assim que aceitou o convite, Moro deixou claro que o “Pacote anticorrupção” seria a base de sua gestão.

Mas, nem tudo saiu como grande parte da população esperava. Ao contrário do juiz, o ministro Sérgio Moro não parece tão firme assim em suas convicções. Ao apresentar o famoso pacote de medidas para combater a corrupção, Moro dividiu o planos em três e, pasmem, deixou de lado a proposta que criminaliza o Caixa 2. Não deixou de lado, propriamente. Deixou “em separado” porque houve reclamações dos políticos. “Alguns políticos se sentiram incomodados de isso ?o crime de caixa 2?ser tratado junto com corrupção e crime organizado. Fomos sensíveis”, disse o ministro. Foram sensíveis, disse o ministro.

Obviamente o pacote não seria aprovado pelos deputados, entre os quais a prática do Caixa 2 é, sabidamente, muito comum. Mas ao desmantelar o pacote anticorrupção, Moro flexibilizou ainda mais suas convicções e atenuou a gravidade da prática ao dizer que “Caixa 2 não é corrupção”.

“Não, caixa dois não é corrupção. Existe o crime de corrupção e existe o crime de caixa dois. Os dois crimes são graves. Aí é uma questão técnica”, disse Moro.

 

Em 2016, Caixa 2 era trapaça.

Em 2017, Caixa 2 era pior que o desvio de recursos para enriquecimento ilícito e crime contra a democracia.

Em 2018, diminuiu a gravidade do Caixa 2 praticado – e assumido – pelo então deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), hoje ministro. “Quanto a esse episódio do passado, ele mesmo admitiu seus erros e pediu desculpas e tomou as providências para repará-lo”, explicou Moro.

Em 2019, após reiterar que era trapaça, Moro disse que Caixa 2 não era tão grave quanto o enriquecimento ilícito.

Aparentemente, a involução da ética de Moro acontece de acordo com as funções e cargos que ocupa. As convicções do juiz com relação à corrupção não se sustentam diante das opiniões do ministro.

Igor Natusch

Bolsonaro é o avatar divertido de um governo que ameaça desandar

Igor Natusch
15 de fevereiro de 2019

Ridicularizada por seus opositores, a insólita escolha de roupas para o encontro de ministros deve ter sido um dos maiores acertos de Jair Bolsonaro desde que assumiu a presidência. De sandálias, calça de tactel e camiseta pirata de time de futebol, o presidente faz uma poderosa declaração de princípios, que talvez passe batida para quem o detesta: afirma-se como outsider em todas as situações, o líder que despreza liturgias vazias, o cara simples que não se esforça em agradar os engravatados.

Ele não está tentando ser um dos poderosos: o presidente está, na verdade, trollando todos eles. E dessacralizando a instituição Presidência da República no processo.

Convenhamos: é exatamente para isso que os fãs de Bolsonaro o elegeram, é exatamente isso que esperam que ele faça. Essa inadequação deixa o sistema mais fraco diante de Bolsonaro, e não o contrário. Populismo moderno, em sua essência. Um golaço simbólico, goste você disso ou não.

Jair Bolsonaro é, de fato, muito bom em ser o avatar do movimento que encabeça. Talvez seja a única coisa em que ele é, de fato, acima da média.

A questão que fica é: será suficiente?

Porque qualquer um que olhe para os primeiros 45 dias de governo Bolsonaro com o mínimo de espírito inquiridor vai poder constatar que, no que se refere ao governar propriamente dito, o atual mandatário está sendo um desastre. Não há, por assim dizer, um governo: há uma maçaroca de interesses distintos e divergentes, uma coleção de agendas em conflito, uma explosão de impulsos, vaidades e recalques exigindo imediata gratificação.

O governo Bolsonaro é, na verdade, a geleia formada pela união dessas coisas todas, incapaz de passar firmeza e que dá sinais evidentes de estar prestes a desandar. E o comando de Jair Bolsonaro sobre esse agrupamento tem se mostrado precário, para não dizer inexistente.

A forma amadora e inepta como o governo federal lidou com a situação em torno de Gustavo Bebianno é o mais recente desdobramento dessa incapacidade – e, possivelmente, um dos mais graves para a gestão como um todo. Diante das graves acusações de candidaturas laranjas nas eleições de 2018, Carlos Bolsonaro não hesitou em expor o desafeto, chamando-o publicamente de mentiroso – e logo viria a própria conta de Jair Bolsonaro no Twitter dar RT na acusação, em uma fritura pública das mais escancaradas que já se viu.

O problema é que Bebianno, embora novato na política, não é um qualquer. Trata-se de uma figura bem vista pela ala militar do governo e um dos raros interlocutores do governo Bolsonaro no Congresso – ao ponto do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deixar bem claro que a saída dele daria um recado tão ruim aos parlamentares que até a reforma da previdência poderia entrar em risco.

Diante da necessidade inarredável de decidir, Jair Bolsonaro ausentou-se. Recusou-se a receber seu suposto braço-direito em reunião, ficou esperando que ele se demitisse por vontade própria e, quando ficou claro que isso não aconteceria, foi preciso que Onyx Lorenzoni fosse até Bebianno assegurar-lhe que não haveria demissão. Se pensarmos que, há cerca de três anos, Bebbiano e Bolsonaro sequer se conheciam, o temor em desagradar o companheiro na berlinda sussurra coisas nada tranquilizadoras para o país.

Recém saído de uma longa internação hospitalar, tudo que Bolsonaro se dispôs a fazer diante da crise foi aparecer em uma reunião de governo de chinelos e calça de abrigo, usando a própria falta de jeito como ferramenta midiática.

Deu certo, até certo ponto: as redes sociais, pelo menos, estão discutindo mais o desalinho do presidente do que sua escancarada incapacidade de governar. Mas é pouco – e todos em Brasília e adjacências sabem disso, por mais que se esforcem para não admitir.

Preocupado com as manchetes, o governo precisa igualmente achar um jeito de, ao menos, tentar governar. Há uma reforma encomendada a aprovar, há investimentos internacionais para atrair, uma economia que ainda está longe de vender saúde, e nada disso irá embora com meia dúzia de aparições engraçadas e propostas (como a Lei Anti-Crime) que jogam para a torcida sem pensar no que virá depois. Isso pode funcionar para a fandom estabelecida, e tende a ter efeito transitório sobre os que depositaram um voto de angústia em Bolsonaro, mas nem todo mundo está disposto a apostar seu dinheiro e seu futuro em um avatar, como o Brasil fez. E logo grandes atores econômicos vão exigir algum tipo de certeza – de uma forma, ou de outra.

Mesmo porque, por mais divertidos que sejam, os avatares não são eternos. Quando a gente não se sente mais representado pela foto de perfil no Facebook, a gente troca por outra. Sabe como é.

Foto: Reprodução / @MajorVitorHugo / Twitter

Geórgia Santos

A falta que Boechat já faz

Geórgia Santos
12 de fevereiro de 2019

Toda morte repentina causa choque e traz aquela sensação egoísta de que não houve tempo para a despedida. A surpresa é inevitável e desconcertante. Parece que a qualquer momento alguém vai dizer que não é verdade, que foi um engano e tudo permanece bem, igual. Quando é alguém conhecido do grande público, a perplexidade se amplifica e o luto se alastra. Já não precisa ser íntimo  para chorar e doer. É assim sempre e foi assim com a morte do jornalista Ricardo Boechat, que faleceu após a queda de um helicóptero em São Paulo. O piloto, Ronaldo Quattrucci, também morreu no acidente.

A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos chocou o país. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos encheu de dor o coração da esposa, dos seis filhos, de amigos e colegas que destacam, incansavelmente, sua generosidade e profissionalismo. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos deixou um vazio no jornalismo brasileiro.

Não vou entrar no mérito sobre Boechat ser ou não o melhor jornalista do país. Ele é um ídolo e referência para milhares de profissionais. Assim como há pessoas que o respeitavam, mas que não tinham tanta afinidade com seu estilo. Assim como há pessoas que não gostavam do trabalho dele. Faz parte. É do jogo. Dito isso, é inegável que Boechat era uma voz corajosa e lúcida em um momento delicado.

Não concordei com tudo o que Boechat já disse. Pelo contrário. Frequentemente me incomodava com a forma com que abordava determinados temas. Mas mesmo me incomodando, era importante que um âncora de televisão e rádio de uma grande emissora tivesse a liberdade para sair do script do TP. A sua obsessão pela informação precisa e constante indignação eram mais do que necessárias em tempos de pós-verdade. Mais do que isso, eram uma raridade no jornalismo diário da mídia tradicional. E a prova de sua importância está registrada em diversos momentos marcantes de sua carreira.

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“…pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia”

Em 2015, colocou o dedo na ferida quando disse que era no âmbito de igrejas neopentecostais que acontecia  a incitação à intolerância religiosa. Mais que em outras esferas da vida em sociedade. A declaração provocou a fúria do pastor Silas Malafaia, que publicou no Twitter: “Avisa o jornalista Boechat que está falando asneira, dizendo que os pastores incitam os fiéis a praticarem intolerância; um verdadeiro idiota”. O pastor ainda convocou o jornalista para um debate. Em seu programa diário na rádio BandNews, Boechat disse, após mandar o religioso “procurar uma rola”, que Malafaia era “um idiota, um paspalhão, um pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia.”

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“Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber”

Em 2016, após o então deputado Jair Bolsonaro homenagear Brilhante Ustra durante sessão de votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, Boechat não deixou barato. “Registre-se a infinita capacidade do deputado Jair Bolsonaro de atrair para si os holofotes falando barbaridades sucessivamente. […] Torturadores não têm ideologia. Torturadores não têm lado. Não são contra ou pró-impeachment. Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber. São covardes, são assassinos e não mereceriam, em momento algum, serem citados como exemplo. Muito menos numa casa Legislativa que carrega o apelido de casa do povo”.

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“A culpa está no campo da Vale e da fiscalização”

No último programa que comandou, o jornalista Ricardo Boechat chamou a atenção para a impunidade que permeia os grandes desastres no Brasil, como foi o caso de Brumadinho. “A culpa não pode ter recaído sobre o Vaticano, nem na república da Bessarábia. A culpa está no campo da Vale, no campo da legislação”, disse.

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A falta que Boechat já faz é escancarada a partir do momento em que há quem comemore sua morte. Seja porque foi “um artífice do golpe”; “porque criticava Bolsonaro”; ou porque “mexeu com Deus e os pastores”. Uma sociedade em que as pessoas celebram a dor precisa, justamente, de alguém como ele. De alguém que não se intimida diante da ignorância, que não se acanha perante o obscurantismo.

Foto: Reprodução/Band