Voos Literários

Clarice Lispector: repórter por mais de um dia

Flávia Cunha
29 de agosto de 2017

Eu já falei por aqui de escritores brasileiros que precisam trabalhar na imprensa para pagar as contas. Participando desse grupo movido pela urgência financeira, está a figura ilustre de Clarice Lispector. Em diversos momentos de sua vida, teve que recorrer a empregos em jornais e revistas, mesmo sendo uma autora de livros prestigiados pela crítica.

Um registro expressivo da escritora como repórter pode ser conferido em Clarice Lispector: Entrevistas. A obra é uma compilação de textos publicados na revista Manchete, nos anos de 1968 e 1969, e também na revista Fatos e Fotos: Gente, em 1976, um pouco antes de falecer.  Entre os entrevistados, grande nomes como Nelson Rodrigues, Emerson Fittipaldi e Ferreira Gullar.

Minha entrevista favorita é com Vinicius de Moraes. Selecionei alguns trechos desse bate-papo entre essas duas personalidades importantes da literatura brasileira, com personalidades distintas porém igualmente marcantes.

A conversa começa já bem descontraída:

– Vinícius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é um grande amante. Sobre poesia porque você é um dos nossos grandes poetas. Sobre música,  porque  você é o nosso menestrel.

Em determinado momento, Clarice decide saber sobre a porção músico do poetinha:

– Fale-me sobre sua música.

– Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções.

Depois, a conversa flui para a porção escritor de Vinicius:

– Você sabe que admiro muitos seus poemas, e, mas do que gostar, eu os  amo. O que á a poesia para você?

– Não sei, eu nunca  escrevo poemas abstratos , talvez   seja o modo de tornar a realidade mágica  aos meus próprios olhos.  De envolvê-la com esse tecido que dá uma dimensão  mais profunda e consequente mais bela.

Clarice como repórter deixa transparecer seus sentimentos e relata inclusive os instantes de silêncio entre os dois:

Fizemos uma pausa. Ele continuou:

– Tenho tanta ternura pela sua mão queimada…..

( Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de carinho.)

O comentário de Vinicius refere-se à sequela de um incêndio que a escritora escapou, em 1966. O fogo começou devido a um cigarro esquecido por ela, que destruiu todo o seu quarto e atingiu sua mão direita, que por pouco não foi amputada.

Para fechar esse texto, mais uma reflexão do poeta da paixão.

Vinicius disse, tomando um gole de uísque:

– […] Eu só sei criar na dor e na tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não deprimo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo num movimento de equilíbrio infecundo do qual estou tentando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um ideal humanamente atingível.

A entrevista completa está nesse site.

Para saber mais:

https://claricelispectorims.com.br/

http://www.viniciusdemoraes.com.br/

 

Geórgia Santos

Sobre bunda e política

Geórgia Santos
31 de julho de 2017

 

Vivo nos Estados Unidos há alguns meses por conta de uma pesquisa de doutorado na área da Ciência Política. Isso fez com que, naturalmente, eu passasse a conhecer movimentos que não nos são familiares no Brasil. Alguns interessantes, outros menos; alguns produtivos, outros desprezíveis. Faz parte. Um deles é o Alt-Right, conhecido como uma espécie de direita alternativa e que ficou “famoso” no mundo ao endossar a candidatura de Donald Trump com fervor.

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De maneira superficial, pode-se dizer que na base do seu pensamento está o nacionalismo e a supremacia branca, ou europeia como gostam de denominar com eufemismo desavergonhado. Eles defendem o nacionalismo branco

Uau! – só que não

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Fiquei intrigada e decidi pesquisar mais sobre qual é a desses caras. A verdade é que apesar do nome “moderninho” e do trocadilho batido com a tecla “alt”, esse povo representa o que há de mais antigo e retrógado do mundo. São basicamente racistas e preconceituosos, são homofóbicos, islamofóbicos, TUDOfóbicos. Com frequência, seus interesses se misturam aos do neonazismo. Delícia.

Richard Spencer é considerado um dos líderes da Alt-Right. O comediante W. Kamau Bell conversou com ele no programa United Shades of America (algo como “Tons Unidos da América”, tons se referindo aos diferentes tons de pele) e foi absolutamente brilhante. A conversa é bastante esclarecedora para quem não está familiarizado com o movimento.

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Mas afinal de contas o que tudo isso tem a ver com bunda,

dona Geórgia?

Perdão por este nariz de cera, como chamamos no jornalismo. Mas é importante para dar contexto. Acontece que durante minhas pesquisas sobre esses caras, encontrei um texto em que um ser humano falava que os Estados Unidos estavam dando um testemunho de mediocridade a partir do momento em que os americanos estavam deixando os SEIOS de lado e preferindo as BUNDAS. Sim, é isso mesmo.

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Ele dizia que POR CULPA DA ESQUERDA, o país estava ficando cheio de imigrantes latinos e de negros, e que isso estava fazendo com que os homens passassem a gostar mais de BUNDAS do que de SEIOS e que isso era sinal de decadência.

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Vocês acreditam nisso? Eu não vou colar o link aqui porque me recuso a dar mais audiência para um imbecil desses. Mas o argumento dele se organiza em torno do fato de que homens ricos, sofisticados e DE BERÇO preferem os seios das mulheres. E homens pobres e sem modos preferem a bunda, porque são primitivos e era como as mulheres atraíam os homens quando ainda não éramos Homo Sapiens Sapiens. Logo, se a preferência nacional se tornar a bunda, será um testemunho de decadência.

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Agora me diz se pode um negócio desses?

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Eu juro que comecei a rir. Aquilo era tão absurdo, tão vulgar, tão grotesco e tão pequeno que simplesmente não valia a pena. Isso que nem mencionei o quanto isso é agressivo com as mulheres, né. Mas pensei que era só um maluco berrando sozinho na internet e pronto.

Qual não é minha surpresa quando vejo um JORNALISTA da REDE GLOBO DE TELEVISÃO, conceituadíssimo (por muitos, não por mim), escrevendo isso:

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Então cá estamos, lendo que os americanos são mais evoluídos porque gostam de seios e os brasileiros merecem as merdas que acontecem com eles porque gostam de bunda

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Isso foi escrito por um jornalista do mainstream, fora do submundo dos Alt-Right na internet – e curtido por MILHARES DE PESSOAS;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que acha que o aquecimento global é uma farsa porque faz frio no sul do Brasil;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que acha que precisamos revisar a idade penal;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que ficou chocado com os “maus modos” das senadoras que protestavam contra a reforma trabalhista;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que diz que Direitos Humanos é pra defender bandido;

Isso foi escrito pelo mesmo cara que debochou DO LATIM do relator da denúncia contra Temer – e cometeu um erro ao fazê-lo;

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Isso foi escrito por um comentarista político e econômico da Rede Globo, âncora de telejornais da Globo News e que é seguido por mais de 250mil pessoas

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Então cá estamos, lendo que os problemas políticos e sociais que os brasileiros enfrentam todos os dias é culpa da bunda. E isso, claro, é culpa da esquerda. Agora me digam se não tá tudo errado nesse mundo. Ou com esse cara, pelo menos.

Foto: Pixabay

Reporteando

Precisamos (?) ser mais versáteis

Renata Colombo
6 de junho de 2017

Sou contratada como repórter. É o que mais gosto e melhor sei fazer como jornalista. Seria muito feliz sendo repórter o resto da vida. Porém, de uns tempos pra cá venho observando que o mercado nem sempre nos leva pelo caminho mais romântico ou nem sempre conseguimos conduzir nossa carreira por ele. Precisamos ser, digamos assim, mais versáteis.

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A gente amadurece e é surpreendido a cada passo. Se descobre também. Vê que tem outros talentos. E isso também pode ser legal.

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Digo isso não pra jogar a toalha, mas porque as coisas estão mudando muito e toda esta movimentação das “placas jornalísticas” desperta o vulcão da reflexão sobre a necessidade de sermos cada vez mais versáteis e, no bom linguajar popular, “pau pra toda obra”. Um exemplo: a figura do repórter especial tem sido extinta aos poucos. Não encontramos mais nas redações um cara destacado somente para grandes matérias ou coberturas especiais.

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O repórter que consegue fazer pautas mais trabalhadas é o mesmo que apurou ocorrência policial a semana toda e que fez bico na produção quando o colega foi para o departamento médico.

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Outro exemplo: as editorias estão sendo extintas. O enxugamento das redações provoca a pulverização das pautas conforme a demanda e a equipe. Hoje eu cubro economia, amanhã me pautam para meio ambiente. Provoca também dança das cadeiras, o que nem sempre agrada a gregos e troianos. Mais um exemplo: oportunidades diferentes/inéditas surgem conforme o andar da carruagem. Quando menos se espera, vem o convite para cobrir uma editoria aqui, uma ancoragem ali, uma função nova acolá.

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Aproveitar estas janelas pode ser uma forma de descobrir novos talentos e aptidões.

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Último exemplo: a boa notícia desta movimentação é que ela abre espaço, e muito, para iniciativas e projetos inovadores dentro do jornalismo. Enquanto a mídia convencional está encolhendo, uma mídia ousada, em tempo real, também confiável, às vezes até bem segmentada, está crescendo.

Volto a dizer: não sou a favor de jogar a toalha e desistir de toda a estratégia inicial de jogo, mas voto na versatilidade. Aproveitar novas oportunidades não é perda de tempo. E repórter que é repórter vai ser sempre, porque isso tá no sangue.

Reporteando

Silêncio também é furo jornalístico

Renata Colombo
18 de maio de 2017
(Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Alan Santos/PR

Vocês estão assistindo, meus caros, de camarote no cenário político brasileiro, a um exemplo do que chamamos de preservar o sigilo da fonte. Durante cerca de um mês, pelo menos cinco  instituições diferentes compartilharam das mesmas informações enquanto uma ação da Polícia Federal – nunca antes vista – estava em curso. NINGUÉM vazou sequer uma frase sem sentido. NADA veio a público até o momento certo.

Procuradoria-geral da República (Ministério Público Federal), Supremo Tribunal Federal, delatores da JBS, advogados da JBS, o jornalista Lauro Jardim. O que eles têm em comum? Guardaram um grande segredo durante o tempo necessário para que a operação Lava Jato chegasse ao presidente Michel Temer, ao senador Aécio Neves e a outros políticos do alto clero do governo federal.

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O segredo garantiu que a PF tivesse tempo para colocar carimbos em notas para pagamento de propina e chip rastreador nas malas, para que a corrupção transcorresse da forma mais tranquila possível para os envolvidos – sim, é isso mesmo

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Isso é muito raro, muito. Na maioria das vezes nós, repórteres, somos ansiosos, queremos garantir o furo jornalístico, não admitimos perder. Infernizamos a vida de advogados e assessores para conseguir vazar uma mísera informaçãozinha e eles fazem o mesmo conosco. Porém, segurar a ansiedade também nos permite contar histórias como esta e escrever uma nova versão do Brasil. Porque este livro está um pouco empoeirado, precisando de uma limpeza.

Foto: Alan Santos/PR
Reporteando

Checagem não é um palavrão

Renata Colombo
2 de maio de 2017
Marcos Santos/USP Imagens Tecnologia da informação

Jornalistas, repórteres e editores são seres humanos normais, e não robôs dotados de informação programada, caso ainda haja alguma dúvida. Aquele combinado de informações que chega até as pessoas foi escrito e apurado (guarde estas palavras: apuração e checagem) por uma pessoa como eu, como você, que erra, se confunde e, ao mesmo tempo, também tem ideias brilhantes.

 

Por que digo isto? Porque a apuração é o princípio mais básico dos básicos para um jornalista

Conheci, ao longo da carreira, muito repórter que divulgava informações que não havia apurado – que fazia uma reportagem com base em outros veículos, sem perguntar nada para fonte alguma. Conheci editor e produtor mais preocupado com o imediatismo da notícia do que com a divulgação correta da história. Conheci plantonista que matou o cara errado porque não checou duas vezes o que estava escrevendo.

 

 O problema é que, às vezes, o errado vira norma e a gente se vê no meio do turbilhão de equívocos

 

Em uma dessas situações, preocupada em não divulgar o que não havia apurado, me neguei a ler certa informação no ar – era uma notícia dada por outro veículo e da qual eu não tinha nenhuma confirmação com minhas fontes. Comprei uma briga por causa disso, mas dormi tranquila e aliviada. Horas depois da desavença, veio a publicação de uma errata a respeito da nota que não li. A informação estava equivocada.

 

O colega que errou era um repórter como eu, não era um robô com um big data no cérebro. Não sei se faltou checagem ou houve outro problema, essas coisas acontecem. Mas sei que se eu não me preocupasse com apuração, duas pessoas teriam errado

 

Me arrependo da briga? Lógico que não. Comprarei outras como esta? Óbvio que sim. Para o ouvinte, leitor ou telespectador, o que vale é o que chega até ele. A errata não tem garantia. Para ele fica a imagem de um jornalista confiável ou não. E não quero ser a segunda opção, já tem muitos por aí.

Igor Natusch

O sigilo da fonte não é para Eduardo Guimarães: é para todos nós

Igor Natusch
22 de março de 2017
Jornalismo. Foto: Igor Natusch

Um jornalismo sem capacidade de obter informações sensíveis é frágil e submisso – e é exatamente isso que políticos mal intencionados querem

A condução coercitiva do blogueiro Eduardo Guimarães, responsável pelo Blog da Cidadania, foi mais um dos gestos questionáveis oriundos da força-tarefa da Lava-Jato – uma investigação (e digo desde já para tirar essa pedra do caminho) muito importante, plenamente justificada e que deve, sim, ser conduzida até o limite, sem piedades ou simpatias eletivas. O pior dela, porém, não é o procedimento jurídico questionável em si, mas seu objetivo confesso: forçar o blogueiro a revelar quem havia vazado a informação, depois confirmada, de que Lula seria alvo direto de ações da operação. Ou seja, Sergio Moro e seus colegas queriam que Guimarães abrisse mão do sigilo da fonte, um dos pilares que sustenta toda a atividade jornalística. Para justificar a ação, a Justiça Federal do Paraná lançou uma nota onde, entre outras coisas, se lê o seguinte:

“Não é necessário diploma para ser jornalista, mas também não é suficiente ter um blog para sê-lo. A proteção constitucional ao sigilo de fonte protege apenas quem exerce a profissão de jornalista, com ou sem diploma.”

Isso não é novo. Há tempos jornalistas brasileiros têm sido assediados, de diferentes formas, para que revelem fontes de interesse para suas investigações. Eu mesmo, quando editor do Sul21, passei por algo parecido, ao acompanhar um colega chamado a depor pelo singelo motivo de ter entrevistado um representante de um movimento social – que não quis se identificar na matéria, e que a polícia desejava identificar a qualquer custo. Na ocasião, invocar o direito sagrado de sigilo da fonte foi suficiente – mas não são poucos as movimentações que querem relativizar ou mesmo acabar com essa barreira.

O motivo pelo qual esse direito constitucional não pode cair está no próprio texto da Justiça Federal paranaense. Quem definirá a linha de corte? Sua Majestade, o excelso Juiz Federal? Um Homem ungido para dividir bons e maus com um golpe de sua justa espada, eternamente iluminado e infalível? Caberá a ele, o Juiz Federal, determinar quem faz comentário jornalístico e quem não faz, quem dá notícia e quem não pode dar – e a nós todos não caberá senão dobrar os joelhos de forma obediente, aceitando a decisão do excelso Juiz como pia, boa, justa e severa na medida certa? Ou talvez caiba ao Deputado ou ao Senador, eleitos pelo voto popular, iluminados pelo aval do povo para dizer quando a fonte pode ficar em segredo e quando não pode? Talvez possa ser o Presidente, o mais poderoso entre todos, a figura a delimitar essa fronteira – afinal, ele será justo, será desinteressado, pensará exclusivamente no bem de nossa combalida coletividade?

Ninguém em sã consciência acredita nisso. Justamente porque o sigilo permite que essas mesmas pessoas – o deputado, o presidente, o juiz federal até – sejam denunciados e investigados por seus supostos malfeitos, como tantas vezes já se viu. Se fiscalizar os poderes é uma das funções do jornalismo (e inegavelmente o é), enfraquecer sua capacidade de obter informações sigilosas é decepá-lo, tanto faz se com boas ou más intenções. Que o jornalismo hoje é, na média, submisso ao interesse de fontes, infelizmente é algo notório – e algo que se revela tanto nos vazamentos seletivos quanto em situações como as “entrevistas informais” de promotores da Lava-Jato com jornalistas selecionados, situações igualmente subservientes e questionáveis. O fim da obrigatoriedade do diploma (e não estou fazendo juízo de valor a esse respeito, deixando claro) também contribui para esse quadro de incerteza. Mas são problemas que a atividade precisa resolver consigo mesma, pelos próprios mecanismos, sem a necessidade de uma voz iluminada surgida do firmamento para trazer uma resposta. Mesmo porque, como diz de forma cristalina o texto constitucional:

XIV – e assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional

Sim, eu sei que você percebeu: o trecho não fala em “ser jornalista”, o que hoje está menos definido do que nunca, mas em “exercício profissional”. Tire daí as suas conclusões.

Eduardo Guimarães é um blogueiro pelo qual não tenho absolutamente nenhuma admiração. Seu trabalho me parece, em vários aspectos, lamentável. Seu blog parece mais uma ferramenta de guerra política, financiada por setores políticos – não raro, e de forma profundamente condenável, com dinheiro público. É um fenômeno para mim repulsivo, e que fará muito bem em desaparecer para sempre. Mas quem dá informação (e, mesmo por linhas tortas e não raro mal cheirosas, é o que o blogueiro fez) exerce, em princípio, uma atividade jornalística – e, mesmo que tenham retirado a régua legal para delimitar as fronteiras da atividade, não é nada seguro confiar essa decisão à subjetividade da autoridade de ocasião.

Políticos, integrantes do Judiciário, empresários de vulto, grandes proprietários rurais – todos, na medida em que eventualmente tenham maus interesses, vão se sentir bem mais à vontade na medida em que jornalistas tenham (ainda mais) dificuldade para atuar. E, na medida em que eu diminuo o direito de Eduardo Guimarães de preservar sua fonte sem ser coagido a revelá-la, estou encorajando um monstro muito feio que, na primeira oportunidade, baterá à minha porta. E à sua também. Discutir se Eduardo Guimarães é ou não jornalista é uma forma engenhosa de desviar a atenção do principal: o que querem remover dele, e a partir daí pode ser removido de todos e todas, é um direito constitucional fundamental para o jornalismo. Se a definição de quem é jornalista ou não tornar-se algo subjetivo, algo que a autoridade da vez decide no poder de um canetaço, estamos todos sob risco – não só os profissionais, mas a sociedade inteira e sua capacidade de fiscalizar poderosos, em todas as esferas.

Foto: Igor Natusch

Reporteando

A dúvida é a humanidade da reportagem

Évelin Argenta
22 de março de 2017

A ideia fixa é a morte do jornalismo. Dar o passo e comprovar uma tese é o pior caminho para a reportagem. O exercício da dúvida, o permitir-se titubear é o que ainda nos mantém no rumo certo. É o exercício mais complexo a ser feito em momentos de ideias confortáveis. A dúvida é a humanidade da reportagem.

Depois de alguns anos contando histórias, encontrei uma que não queria contar. pelo menos não do jeito tradicional, desse jeito de rádio que aprendi a fazer quase automaticamente. Sei reconhecer a melhor sonora em poucos minutos. edito, falo no improviso, sei o ponto certo de engatar outra. Assim, em um minuto e meio, resumo o mundo.

Mas essa história não merecia uma sonora. Merecia horas do nosso mundo

Era o juri de um caso complexo, mas sem polêmicas. Não havia polêmica alguma, discordância alguma nas imagens que mostravam três policiais militares assassinando a tiros um homem rendido, sentado no chão, em uma área nobre de São Paulo. O homem era um jovem de 18 anos e tinha roubado uma moto minutos antes. Provavelmente nem estaria naquele bairro cheio de condomínios fechados se não fosse a circunstância. Foi perseguido, entregou-se e morreu. Assim, às duas da tarde de um feriado de independência. O caso veio à tona dias depois, quando as imagens das câmeras de segurança de uma dessas ilhas de sossego chegaram à imprensa. Nem o noticiário sangrento e gritado dos fins de tarde apedrejou “os bandidos” e, quase dois anos depois, veio o dia do veredicto.

O julgamento

No tribunal, os três Policiais em nada lembravam aqueles das imagens. Em suas fardas, tinham passos certos, quase ensaiados e um desfecho pronto. Em frente ao júri eram a imagem do achaque. “Sim senhor.” “Não senhor”. “Não fiz isso, não, senhor”. Eram jovens também. O mais velho não passava dos 30. Nossos olhares nunca se cruzaram. Eu olhava pra eles e eles olhavam pro chão.

Enquanto defesa e acusação se enfrentavam numa espécie de festival de atuação, eu olhava para eles e buscava a humanidade que eu não queria encontrar. Eu queria que fossem condenados. Que pagassem pelo crime que cometeram. Eles não deveriam despertar em mim qualquer traço de piedade. “Mataram um homem sem chance de defesa” era o que dizia o promotor. “A sonora perfeita”, meu espírito de rádio. Mas eles precisavam ser julgados. Precisavam ter a chance da defesa.

Os advogados

Ao lado deles, cinco dos melhores advogados de São Paulo. Um deles, conhecido por defender Policiais Militares e conseguir bons resultados. Uma das únicas derrotas foi o caso Carandiru, que teve o julgamento anulado recentemente. Não teve nenhuma grande derrota, então.

O júri

Os jurados, cinco homens e duas mulheres, olhavam atentamente para os gestos daquele homem que esvoaçava a toga preta aberta. Parecia um corvo, curvo. Gritava o mantra dos tempos obscuros. A cada “bandido bom é bandido morto”, me contorcia na cadeira, sempre sob o olhar de um policial militar que fazia a segurança do fórum. Levantei duas vezes durante as oito horas de debate para passar informações à redação. Do outro lado da linha, pouco importava o embate. Queriam a sentença. Aceitei a minha.

Não atendi a alguns telefonemas que mostravam no visor “Estúdio do Ar”. Se era a sentença o interesse, não podia resumir o mundo todo naqueles “você tem quarenta segundos, flor!”. Como não podia usar o celular no tribunal, me dediquei como a uma aula de história. Maldita tecnologia que me tirou a mania de andar com cadernos e canetas marca texto!

O processo

Sem o peso da ansiedade das sonoras, resolvi ouvir com atenção a todos os argumentos dos advogados, que alegavam legítima defesa dos policiais. Sim, eles estavam se defendendo de um homem rendido, sentado no chão e sem camisa. E se estivessem? Me permiti fazer essa pergunta em silêncio. E se aqueles homens, que ganham pouco e não têm preparo algum para a rua tivessem, realmente, se assustado com um movimento brusco do suspeito (como dizia o advogado) e tivessem atirado por reflexo? Então talvez o réu devesse ser outro. Quem deveria responder pela morte do jovem?

O promotor também prendeu minha atenção quando perguntou o que diferenciava aqueles homens “da lei” dos homens “fora da lei”, que matam “por susto” em latrocínios? O que transformava os últimos em bandidos bons e mortos e os primeiros em heróis condecorados? Por que a vida de uns vale menos que uma moto?

A sentença

Foram mais de duas horas de sala secreta, quando os jurados se reúnem para determinar a sentença. Na sala de imprensa a opinião era quase unânime: “Vão ser absolvidos”. O que nos levava a tal conclusão era um vídeo exibido pela defesa nos 10 minutos finais, com imagens de policiais sendo rendidos e mortos por “bandidos maus e vivos”. Cada imagem era narrada aos gritos pelo advogado. Ex-policial, engasgou o pedido de absolvição num início de choro.

Na leitura da sentença, todos os textos prontos, com alguns espaços para trocar as palavras “absolvidos” por “condenados”. Lacunas vazias esperando os anos de pena, caso a segunda alternativa se comprovasse.

A juíza, terceira mulher no meio de tantos homens julgadores, decidiu que a diferença entre os policiais e o ladrão de moto é tudo o que separa os dois mundos. Os homens da lei não tinham aquele passo ensaiado por acaso. Ele era ensaiado, de fato. Sabiam usar as permissões da lei a seu favor. O ladrão de moto não tinha nada por si.

Homicídio simples para um dos PMs. Doze anos e cinco meses. Bem menos que os 26 que a acusação queria, com todos os agravantes. Absolvição para os outros dois.

Vitoria da defesa. Satisfação da promotoria.

Reporteando

Sobre ser mulher no jornalismo

Renata Colombo
7 de março de 2017

Não é fácil ser mulher no jornalismo, por mais que a gente queira acreditar que não há diferenças de tratamento, de salários e coisa e tal. Especialmente quando se chega ao assunto do assédio a que somos submetidas constantemente.

Qual de nós, repórteres, nunca ouviu uma daquelas piadas infames na redação?

“Que espetáculo, hein fulaninha”

Quem nunca teve que conviver com a preferência da fonte pela jornalista mulher?

“Se é pra ela, eu conto tudo”

Quem nunca levou cantada de entrevistado e teve que sair de uma saia justa?

“Da próxima vez, em vez de um café te levo para tomar um vinho”

Falemos um pouco, verdadeiramente, sobre como é ser mulher em mais um universo machista e masculino. E aí não me refiro só ao ambiente jornalístico, a redação em si, mas a todos por onde a profissão transita, com destaque para o político e policial.

“Tua missão passa a ser não somente acompanhar os flagrantes, entrevistar e gravar, mas também tentar ser invisível”

Não existe coisa mais constrangedora do que repórter chegando em operação policial ou delegacia. Tua missão passa a ser não somente acompanhar os flagrantes, entrevistar e gravar, mas também tentar ser invisível. Sério, a gente se sente das duas uma: um ET ou um bife daqueles bem suculentos. Não é nem um pouco confortável. E olha que cobrir operação, perseguição, pode ser bastante interessante, principalmente para quem está em início de carreira.

Mulheres e o poder

Mas vamos, neste dia da mulher, à situação “mais mais” dentre as constrangedoras: ser repórter em Brasília. Político em Brasília se acha Deus – ou melhor, tem certeza que é. E nesta condição, a maioria daqueles homens, com todo aquele poder, pensa que pode olhar ou falar o que quiser e da maneira que quiser para as repórteres que circulam pelos corredores do poder. Não é raro ministros, senadores e deputados convidarem jornalistas para sair. Não é raro agirem como quem tem a resposta que tu queres e, por isso, acreditam que podem pedir o que quiserem em troca.

Só sei que em tempos de empoderamento feminino vale sempre lembrar que podemos, sim, responder e dizer não.

E aproveitando o gancho, neste dia 8 de março vai rolar um tuitaço de um grupo muito legal de jornalistas que luta contra essas “gracinhas” ridículas da profissão. Procura lá #jornalistascontraoassedio que tu vai encontrar reflexões bem interessantes.

Na minha modesta opinião, o problema não é receber flores nesta data, mas elas não serem entregues diariamente.

Reporteando

A fonte deve ser preservada

Renata Colombo
21 de fevereiro de 2017

Ao longo da carreira, jornalistas passam por maus bocados e situações que preferem não lembrar. Somos agredidos, ameaçados, chantageados. Nós, mulheres, frequentemente assediadas. Há algo em nosso trabalho que faz com que as pessoas pensem que somos propriedade delas, ou algo do tipo. Coisas de poder. Sem contar na pressão para divulgarmos nossas fontes. Parecem esquecer que a fonte deve ser preservada. E não sou eu que estou dizendo, é a Constituição Federal.

Mas em meio a tanta coisa desagradável, temos nossos momentos de diversão. E, sim, rimos muito também.

Eu era uma repórter iniciante, uma “foca”, como chamamos no linguajar jornalístico. Era meados de 2009 e eu produzia uma reportagem dessas de prestação de serviços na área da saúde. Não lembro se era sobre gripe, vacinação ou falta de leitos em hospitais – algo bastante comum em Porto Alegre, infelizmente. Mas lembro que era para ser uma matéria trivial, cotidiana da cidade. Como já trabalhava em rádio há um tempo, tinha muitas fontes em hospitais e de profissionais da área e não era difícil o acesso às pessoas, na maioria das vezes. Então liguei para um médico “bam-bam-bam” pedindo uma entrevista para aquela tarde mesmo. Tinha que fechar a reportagem até o fim do dia.

“Dei início a entrevista e tudo corria tudo muito bem até que o telefone captou um ruído estranho vindo de dentro do consultório silencioso do médico”

Estávamos preparados, o operador na mesa de áudio e eu, que já estava no estúdio. Tudo estava certo. Até a hora de a gravação começar.  Dei início a entrevista e tudo corria tudo muito bem até que o telefone captou um ruído estranho vindo de dentro do consultório silencioso do médico. O operador e eu fechamos todos os microfones e tivemos ataques de risos. Daqueles fiasquentos, mesmo, de encher o olho de lágrimas e coisa e tal. Foi difícil finalizar. A conclusão a que chegamos é de que também era para ser silencioso o pum que o doutor deixou escapar.

Sim, ele soltou um peido, mesmo. No meio da gravação. E tão alto que conseguimos ouvir.

Guardo a gravação até hoje, mas é claro que, como sempre no jornalismo, não revelo a fonte nem sob tortura. É muito importante preservar as fontes.

Reporteando

Jornalista vende (?)

Renata Colombo
14 de fevereiro de 2017

Eu sou fã do jornalismo. A essa altura, penso que é alto que já  ficou bastante claro. Acho uma das profissões mais fantásticas e necessárias. E não somente porque é a minha, mas porque penso que cumpre um papel importante na vida em sociedade. Quando coloco algo aqui mais negativo ou reflexivo não é porque sou algum tipo de mensageira do apocalipse ou uma pessimista compulsiva.  Aliás, que fique claro, se tem algo que eu não faço é reclamar. Mas algumas curiosidades nesta vida reporteira chamam atenção. E às vezes não é algo positivo.

“Já vi jornalista vendendo marmita, brigadeiro, suco, salada de fruta, roupas, obras de arte, e por aí vai”

Que o glamour do jornalismo é totalmente  ilusório não se tem dúvidas, afinal, o colega homenageado ou premiado é o mesmo que pisou no barro, no cocô e voltou fedendo a fumaça. Mas uma coisa que tem crescido nas redações e vai além das agruras naturais da profissão é o famoso “bico”. Já vi jornalista vendendo marmita, brigadeiro, suco, salada de fruta, roupas, obras de arte, e por aí vai. Tudo para engordar o porquinho no final do mês, já que nosso salário não acompanha a inflação há muitos anos.

Piso salarial do jornalista

Para se ter uma ideia, o piso de jornalista no Rio Grande do Sul (entre os mais baixos do país) é de R$ 2.231,69 em Porto Alegre e R$ 1.900,34 no interior do Estado. Diria que é a média do país. No Brasil, nos estados em que o piso é definidos, os valores variam de R$ R$ 1.115,44 para jornalistas do interior do Rio de Janeiro (sim, acredite) a R$ 3.254,92 no Paraná.

Nem sei dizer se é simplesmente um direito do jornalista ganhar salários melhores de maneira geral, porque, afinal, precisamos nos sustentar como qualquer outra classe trabalhadora, ou se passa um merecimento por tanta dedicação e sacrifício a que somos submetidos diariamente, por ser da natureza da profissão. Afinal, não existe jornalista mais ou menos, este não se cria. Nessa profissão o mergulho é de cabeça.

E precisamos é garantir o plano de saúde em caso de afogamento.