Igor Natusch

Sem Lula, Ciro Gomes é o alvo – e a artilharia só começou

Igor Natusch
12 de abril de 2018

Se havia dúvida sobre quem se destacaria no campo da centro-esquerda após a saída de Lula da lista de pré-candidatos, as ações de MBL e seus apêndices no começo desta semana deixaram pouca ou nenhuma margem para dúvida. Ciro Gomes (PDT) e sua equipe podem ir se preparando, pois é com ele que os setores mais à direita – incluindo, é claro, o submundo das redes sociais – devem se entreter nos próximos meses.

.

O cálculo é simples. Se o seu candidato não vai poder contar com nenhum dos votos que seriam organicamente de Lula (e quanto mais à direita, mais improvável essa herança se torna), o ideal é que esses eleitores sejam pulverizados ao máximo, diminuindo o impacto geral de suas escolhas e aumentando as suas chances de chegar ao segundo turno com os votos que já estão ao alcance.

.

Ciro Gomes é o candidato que mais obviamente herda votos de Lula, em especial se o barbudo não fizer uma indicação explícita para alguma outra candidatura. Crítico severo dos rumos de Michel Temer, inúmeras vezes se posicionou a favor de Lula na disputa jurídica que acabou levando-o para a prisão. É visto, de forma difusa, como candidato viável contra o bloco solidamente direitista, e conta com suporte partidário e financeiro bem maior do que Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos, que estiveram mais visivelmente ao lado do ex-presidente nos últimos dias.

.

Ciro Gomes adotou uma postura menos explícita em seu apoio a Lula: buscou ser ouvido, mas não ser visto. O que pode ganhar a antipatia de defensores mais entusiasmados do petista, mas evita a geração de imagens que podem prejudicar o pré-candidato do PDT junto ao eleitor mais moderado, que eventualmente deteste Lula, mas também não esteja lá muito inclinado para o lado mais conservador (ou mesmo reacionário) da balança.

.

Por tudo isso, Ciro vira alvo, na tentativa de abatê-lo antes que possa decolar. Não foi outra coisa a presença, no começo da semana, do youtuber Mamãe Falei no Fórum da Liberdade: a missão era provocar Ciro, tirá-lo do prumo, colher elementos visuais e midiáticos que possam convencer pessoas a não votar nele. Não deu muito certo (o ridicularizado  nas redes, no fim das contas, foi o próprio aliado do MBL), mas seguirá sendo um objetivo – e considerando o bem conhecido pavio curto do pré-candidato, é temerário dizer que não possa dar certo em uma ocasião futura.

Nesse sentido, a equipe de Ciro Gomes precisa estar atenta. Aliás, me surpreende que os assessores dos pré-candidatos ainda sejam pegos de surpresa pelas ações de provocadores como Mamãe Falei. Todo mundo sabe quem são, o que buscam e de que modo tentam obter o capital político desejado. Cada um dos que trabalham ao lado dos presidenciáveis deveria, por pura questão estratégica, estar preparado para reconhecer essas pessoas e evitar que entrem em contato direto com pré-candidatos. E figuras como Ciro Gomes, por mais experientes e habilidosas que sejam, precisam estar preparadas para agir quando um desses aparecer em sua frente, com respostas afiadas ou, quem sabe, resposta nenhuma. Não é possível que, a essa altura do campeonato de brutalidade que virou a política brasileira, alguém ainda seja traído pela ingenuidade.

.

SÓ PARA NÃO PASSAR EM BRANCO:

Diante da mobilização de vereadores e deputados em diferentes esferas, incorporando “Lula”, “Moro” e “Lava-Jato” a seus nomes, não sei se fico tocado pela singeleza da estratégia ou preocupado pela falta de profundidade na hora de expor posições e divergências políticas. É o fenômeno dos nomes com Guarani-Kaiowá (eles mesmos questionáveis talvez, mas certamente mais incisivos enquanto posicionamento) degradado ao nível de bate-boca juvenil e escancarado nos telões de casas legislativas Brasil afora. Mas enfim, não é de hoje que a política brasileira virou um puxadinho do Facebook.

Foto: Murilo Silva/CAPOL

Reporteando

A política imita a vida

Renata Colombo
11 de abril de 2018

Por muito tempo, até já adulta, eu não tinha certeza sobre onde me encaixava no espectro político. Eu nem gostava muito de politica porque não acreditava nos políticos. Não gostava de radicalismos. Meus pais votavam no trabalhismo ou na direita, mesmo não sendo radicais, e também não o faziam por ideologia. Minha madrinha já era esquerda roxa. Fazia greve e estava sempre lutando por direitos e igualdade.

Questionava-me se era possível gostar só de um político e não do partido dele, e vice e versa. Me arrepiava com o “Lula lá” desde 89, mas na minha volta sempre falavam mal do PT

Até o dia em que descobri que o posicionamento político da gente tem mais a ver com o nosso posicionamento na vida do que com qualquer outra coisa. Os dois tem extremos, e eu achava errado. Talvez por isso me sentia confusa. Mas foi só perceber que muitos são mais fortes que um só e que defender igualdade e direitos básicos dos cidadãos são obrigações. Foi só olhar para a história é perceber que grandes nações precisaram de radicalismos, de revoluções, para viverem de respeito pleno.

Que se preocupar com os outros e não só consigo mesmo, se revoltar com injustiças e desigualdades, não achar normal gente morando na rua e criança pedindo comida, querer mudar um pedacinho do mundo são parte de uma personalidade, da minha personalidade, genuína de que pensa no próximo, de quem não consegue se ver como indivíduo sozinho no mundo.

Eu cobri dois momentos tristes da nossa história: o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Eu cobri uma mobilização popular em cada um destes eventos, de gente que acredita tanto nestes valores que quer recuperá-los.

Acho que agora, já adulta e com a ajuda da minha profissão, minha pergunta foi respondida e as coisas ficaram mais claras. Sim, eu estou triste com o que estão fazendo com a nossa democracia. Sim, nós precisamos de novos líderes políticos e uma geração menos corrupta. Sim, há um grande líder, apesar de você.

Geórgia Santos

Coração bobo

Geórgia Santos
2 de abril de 2018

Meu coração tá batendo como quem diz: não tem jeito. Canta Alceu Valença e canto eu. Ele canta que o coração dos aflitos pipoca dentro do peito. Canto eu que o coração dos aflitos encolhe dentro do corpo. Coração bobo. Encolhe a cada palavra de ódio, encolhe toda vez que alguém perde a razão, encolhe sempre que a empatia se apaga, encolhe quando o absurdo se torna a verdade de alguns.

.

O coração dos aflitos pipoca dentro do peito

O coração dos aflitos encolhe cada vez mais

.

É como se a gente não conseguisse fugir do destino de que já não há mais coração. A gente se ilude dizendo: já não há mais coração. Canta Alceu Valença e canto eu. Já não há. Não pode haver diante do absurdo que se torna a verdade de alguns. Ontem mesmo, o procurador da República Deltan Dallagnol escreveu no Twitter sobre o que ele chamou de “Dia D da luta contra a corrupção na Lava Jato.” Nada fora do comum. É prerrogativa de ofício e ele já havia se posicionado sobre o tema da prisão em segunda instância. “Uma derrota significará que a maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo país, jamais serão responsabilizados, na Lava Jato e além.” A derrota seria a concessão do habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nenhuma novidade. Inclusive concordo que o precedente é perigoso, embora considere que a prisão em segunda instância talvez seja o precedente uma vez analisado o texto da constituição. Mas ele continua: “O cenário não é bom. Estarei em jejum, oração e torcendo pelo país.”

.

Um procurador da República discorre sobre uma questão jurídica e espera que ela se resolva não com a análise de legislação do Estado laico em que vive, mas com oração, com jejum, com torcida. O absurdo que se torna a verdade de alguns está normalizado. Já não há coração que aguente. Não pode haver.

.

Pouco tempo depois, o juiz federal Marcelo Bretas respondeu: “Caro irmão em Cristo, como cidadão brasileiro e temente a Deus, acompanhá-lo-ei em oração, em favor do nosso país e do nosso povo.” Assim, em alguns minutos, duas autoridades transformaram uma discussão jurídica absolutamente válida em uma disputa entre o bem e o mal. Por meio da narrativa, mistura-se religião ao judiciário – para além da questão do aborto. O absurdo que se torna a verdade de alguns é reforçado. Já não há coração inteiro. Não pode haver.

O colunista da Veja, Ricardo Noblat, solta o balão de ensaio e escreve que um “ministro muito próximo do presidente Michel Temer duvida que haja eleições em outubro próximo.” Já não há coração. Não pode haver. Os amigos de Michel Temer são presos e a resposta do Planalto é que não passa de conspiração. Já não há coração. Não pode haver. Tiro, relho, racismo, hipocrisia. Já não há coração. Não pode haver.

A desesperança me toma e, como já não há mais coração, penso que talvez aquele de quem não falamos o nome deva mesmo ser o próximo presidente do Brasil. Quem sabe assim o fundo do poço não chegue mais depressa e mais depressa podemos sair de lá.

.

Mas não. Esse papo de que já não há mais coração é uma ilusão

A gente se ilude

Canta Alceu Valença e canto eu

.

A letra que sugere uma desilusão amorosa é uma homenagem ao Clube Náutico Capibaribe, que por anos demoliu o coração do torcedor pernambucano. Mesmo diante de derrotas, porém, os aflitos sempre voltam para casa. É assim comigo. A desesperança é só da boca pra fora, é só um desabafo de um coração cansado.

Eu continuo acreditando nas pessoas, continuo acreditando na democracia representativa, no Estado de bem-estar social, na liberdade de expressão, religião e associação, nos Direitos Humanos, na igualdade.

.

Coração bobo, bobo, bobo, bobo, bola, bola, bola de balão

A gente se ilude dizendo: já não há mais coração

 

Imagem: Pixabay

Vós Ativa

A tradição de violência no estado mais politizado do Brasil

Colaborador Vós
29 de março de 2018
Porto Alegre - RS , 20/09/2010; Desfile Civico-Militar Farroupilha de 20 de setembro, na avenida Edivaldo Pereira Paiva(Beira-Rio), em Porto Alegre. Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Por Eduardo Amaral, jornalista

Cresceu nas últimas semanas o orgulho gaúcho pela truculência. Tudo porque um grupo de velhos coronéis resolveu demonstrar todo o respeito que tem pela democracia durante visita do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao estado. Confrontaram apoiadores com armas na cintura, apedrejaram ônibus e pessoas e “deram de relho” em quem se opusesse. A Caravana Lula pelo Sul seguiu e foi alvo de tiros no Paraná. O fato surpreendeu, mas não é tão distante da nossa realidade.

Detesto dizer a vocês, leitores, mas atirar contra adversários políticos é uma constante dos municípios gaúchos

.

Tradição de violência

A primeira vez em que deparei com a truculência política foi em Trindade do Sul, município localizado no norte do RS. Ainda adolescente, resolvi fazer uma visita a uma amiga que acabara de se mudar para aquela bucólica e, aparentemente, pacata cidade. Era período eleitoral. Qual não foi minha surpresa ao saber que dois grupos distintos se reuniram no centro da cidade e o confronto acabou com um orgulhoso defensor de seu candidato disparando, sem nenhum pudor, contra os adversários políticos.

Outra oportunidade para ver como funciona a política no interior foi no pleito de 2016, quando eu atuava em um jornal no Vale do Taquari. No município de Encantado, quando correu a notícia de que um grupo de homens armados chegara à cidade fazendo questão de mostrar as armas para quem quisesse ou não vê-las. Todos eles se hospedaram no hotel que pertencia ao candidato a vice de uma das chapas. O grupo foi detido e, graças à falta de discrição, foi possível evitar que algo mais grave acontecesse. O que mais me surpreendeu neste caso foi a frase do promotor eleitoral quando entrei em contato com ele para esclarecer o caso. “Eu mesmo já fui ameaçado quando ia votar.”

Minha última experiência com a violência política foi no ano passado, quando trabalhava na cidade de Paraí, na Serra Gaúcha. Uma eleição suplementar foi convocada e não demorou para eu entender como as coisas funcionam no município quando o assunto é política. Logo nos primeiros relatos, soube que o filho de um dos candidatos havia sido ameaçado, com uma arma na boca. A nova eleição não acalmou os ânimos e não demorou muito para um novo atentado com armas. Os militantes que trabalhavam para os candidatos se encontraram no centro da cidade, na praça, no meio da tarde, e demonstraram toda a tolerância política entre eles com duas armas sendo sacadas e tiros atingindo os rivais.

.

O estado mais politizado do país

Em nenhum desses casos houve morte. Em todos esses casos, porém, escutei relativização. Quase a normalização das ações criminosas no chamado “estado mais politizado do país.” A verdade é que o Rio Grande do Sul nunca foi tão politizado como se diz, mas sim um lugar repleto de animosidade e ódio, nem sempre escondidos. É justamente devido a este cenário coronelista que a reação à chegada do ex-presidente não surpreende, faz apenas lamentar que o RS não consiga abandonar velhos e péssimos costumes.

Envoltos na própria arrogância, os gaúchos passaram anos negando a realidade, sem conseguir olhar para si e admitir as artimanhas de poderosos para manter sua força política

Nós poderíamos aproveitar este momento para olhar para a sociedade gaúcha e perceber como este histórico modelo político tem nos levado ao atraso e tem grande influência nos problemas do estado. Mas isso não vai acontecer. Infelizmente, por tudo que se viu até agora, não será esta a chaga utilizada para expurgar velhas práticas, muito pelo contrário.

Até aqui vimos um Poder Judiciário que se calou diante dos atos de violência cometidos contra os manifestantes pró-Lula. O Ministério Público, tão afoito para fiscalizar torcidas organizadas (mesmo em outros países), parece achar natural que um grupo armado distribua “relhaços” naqueles dos quais discordam.

Os políticos intimamente vinculados ao agronegócio fizeram questão  de justificar e aplaudir as agressões. Inclusive o deputado federal Jeronimo Goergoen (PP), que tem se empenhado para votar e aprovar o projeto que torna as ações do MST e do MTST em terroristas. Semanas atrás, o parlamentar mostrou toda a indignação com o fato de os grupos bloquearem estradas e queimarem pneus, o que ele chama de “atitudes criminosas”. Curiosamente, o deputado parece ter mudado de ideia quando questionado sobre o comportamento dos contrários a Lula, que fizeram exatamente a mesma coisa durante a passagem do ex-presidente. De acordo com Goergen, o petista apenas recebeu o troco pelo que “provocou”. Postura semelhante teve a colega de partido de Goergen, a senador Ana Amélia Lemos, que em um evento interno do partido parabenizou os homens que “colocaram para correr” os defensores do petista.

Pelo visto, os dois mandaram às favas o respeito às instituições democráticas e ao debate civilizado, tudo para não desagradar seus potenciais eleitores

A postura cínica de políticos, seja de qual espectro for, não é nenhuma novidade, afinal, o cinismo e a política andam umbilicalmente ligados. Porém, espera-se sempre o mínimo de decência de quem está no poder, um pingo de respeito aos seres humanos que militam em lados opostos e, principalmente, pelo regime pelo qual foram eleitos. Entretanto, os “progressistas” preferiram imitar a irresponsabilidade de um pré-candidato à presidência, aquele que desrespeita a democracia elogiando torturadores do regime militar.

Enquanto isso, o Rio Grande do Sul se coloca na vanguarda do atraso e segue orgulhoso de façanhas nem um pouco nobres. Mais uma vez, as façanhas de nossa terra são um modelo apodrecido e lamentável, e podemos ver os políticos deste estado apoiando um período tenebroso que está por vir.

 

Foto: Paula Fiori / Palacio Piratini

Igor Natusch

Do relho, já chegamos nos tiros – e a tendência é descer ainda mais

Igor Natusch
28 de março de 2018

Meter tiros em ônibus no meio da estrada não é uma questão de debate político: é um caso de polícia. É coisa de jagunços, de coronéis do interior, de bandidos. Atirar contra um dos ônibus da comitiva de Lula na Região Sul constitui um atentado, e os envolvidos precisam ir, todos, para a cadeia. Nenhuma diferença faz se Lula está condenado em segunda instância: dar tiros em veículo transportando um condenado é crime do mesmo jeito. Já íamos mal com apedrejamentos, bloqueios para evitar que a comitiva entrasse em municípios, ameaças a jornalistas, agressões e tudo mais. Com os balaços, descemos ao nível da imundície e da infâmia. Relativizar isso – ou as graves ameaças contra o ministro Edson Fachin, para citar outro exemplo – é ser tosco e estúpido, é perder completamente a civilidade. É colocar-se, intelectualmente falando, abaixo dos animais de fazenda.

 

Mas esse crime, embora crime seja antes de tudo, tem um elemento político indiscutível. Demonstra, de forma escancarada, como nosso ambiente democrático degradou-se ao ponto da intolerância xucra e bestial. E deixa claro, em diferentes ângulos, que o fair play político já era no Brasil, com consequências nefastas que recém estamos começando a vivenciar

 

Para que a política institucional funcione, é preciso que certas regras sejam levadas a sério. Nunca será um jogo limpo, e interesses poderosos sempre estarão influenciando todos os movimentos: isso é notório, e não é a esse aspecto que me refiro. Mas é preciso, no mínimo, acreditar que o jogo vai ser limpo. Alguns freios comuns precisam existir, senão não existe jogo, nem tabuleiro, nem nada.

 

Esse acordo de cavalheiros não existe mais. Já vinha deteriorando desde bem antes do impeachment de Dilma Rousseff, mas desde que ele se tornou realidade – e não pelo impedimento em si, mas pelo modo como foi conduzido – o processo acelerou de forma desoladora

Quando o lado que perde a eleição não reconhece que deve ser oposição, um equilíbrio fundamental se desfaz. Basta lembrar dos pedidos de recontagem de votos, feitos pela candidatura de Aécio Neves logo após o segundo turno da eleição (e sem nenhum fiapo de suspeita concreta, vale lembrar) para perceber que o resultado da urna nunca foi aceito e que nasce ali, e em nenhum outro ponto, a ideia de tirar Dilma da presidência. Ou alguém dirá que a denúncia veio antes da vontade de encontrá-la, alguém terá esquecido como se tateou, de acusação em acusação, até encontrar uma que tivesse o mínimo de solidez? Some-se essa recusa em aceitar a derrota a um temor coletivo da classe política acossada pela Lava-Jato e surge um cenário onde cavalheiros atraiçoam uns aos outros e o tabuleiro é chutado para longe, sem cerimônia.

Aponto essas coisas não para lamentar a saída da ex-presidente em si, mas para frisar a gravidade do abalo que o processo atabalhoado de sua derrubada acabou gerando. Do ponto de vista estritamente institucional, foi um desastre.

 

Em um cenário que já era de acirramento, o impeachment liberou o dedo no olho, a cusparada na cara. Uma situação explosiva, ainda mais grave na medida em que o ódio foi transformado, de forma doentia e irresponsável, em arma política.

 

Quando a senadora Ana Amélia Lemos, de modo chocante e irresponsável, parabenizou atos de pura violência contra a caravana de Lula (que depois, frisemos, ela tratou de minimizar como “força de expressão”), ela reproduziu, em termos próprios, essa sensação de que o dedo no olho está liberado. Quando, anteriormente, a senadora Gleisi Hoffmann disse que haveria “muitas mortes” caso prendessem Lula, também amplificava esse sentimento. Se o golpe de relho for nas paletas dos opositores políticos, tudo bem; se prenderem um dos meus, não se surpreendam se tiver sangue. Isso para não mencionar o governador paulista e presidenciável Geraldo Alckmin, que achou por bem dizer que o PT e Lula “colhem o que plantaram” quando levam tiros na estrada. Uma fala desastrosa, pois nenhum posicionamento civilizado sobre uma tentativa de homicídio pode começar por qualquer outro ponto que não seja a condenação imediata, enfática e sem ressalvas de semelhante absurdo.

São falas e ações que, vindas do ambiente político, são profundamente preocupantes, simplesmente porque legitimam o ódio e a deslealdade contra o opositor político. Quando todas as instituições fraquejam e os líderes políticos não se constrangem com a infâmia, o que se pode esperar de quem pouco ou nada entende de política, pouca ou nenhuma base intelectual tem para interpretar e enfrentar semelhante caos? Quando até os nossos maiores representantes dizem que o jogo institucional não vale nada, como se pode esperar que os mais xucros entre nós respeitem suas regras? Resta a nós um mergulho nessa piscina de pesadelo, onde uma vereadora é metralhada e hordas se dedicam a caluniar seu cadáver, onde metem tiros em um ônibus que carrega ex-presidente e se diz que é bem feito, onde a família de um ministro do STF é ameaçada de morte e há quem dê risada.

.

Do relho, já chegamos no tiro – e agora,

quão mais baixo podemos afundar?

.

Há muitos, muitos outros aspectos que se poderia analisar no gravíssimo momento que vivemos. Por enquanto, fico nesse. Quem poderia dizer para baixarmos a bola está encorajando o carrinho desleal. Não há perspectiva positiva, menos ainda com a decisão sobre a prisão de Lula batendo à porta. A violência virou argumento, tanto nas redes sociais quanto nos palanques, e nos resta esperar que os incitadores da pancadaria respondam, em algum momento, por sua irresponsabilidade.

Foto:  MST Brasil / Divulgação

Igor Natusch

No julgamento de Lula, temos um vencedor: o próprio Lula

Igor Natusch
24 de janeiro de 2018

Escrevo na noite anterior ao julgamento em segunda instância do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, realizado no TRF-4, em Porto Alegre. Não sei, portanto, qual foi a decisão dos três desembargadores – embora, neste momento, pouca ou nenhuma dúvida haja de que Lula será condenado. É o cenário, e muito dificilmente cenários urdidos durante tanto tempo se desfazem assim, em questão de poucas horas.

.

Mesmo assim há algo que, penso eu, pode ser dito com bastante segurança, sem muito medo de errar: em sua estratégia, Lula venceu

.

Mesmo que seja efetivamente declarado culpado. Mesmo que fique de fato inelegível, não podendo concorrer (e muito possivelmente vencer) em outubro deste ano. Mesmo que acabe atrás das grades, símbolo final de um discurso que atribui ao governo petista nível nunca antes vistos de corrupção e crime organizado. Ou, quem sabe, seja justamente a partir desses elementos que a vitória do discurso de Lula, já garantida, se tornará ainda mais definitiva

Desde o impeachment de Dilma Rousseff, e até antes disso, tudo tem se tratado de um confronto entre narrativas. A que retrata a ex-presidente Dilma como uma injustiçada, pessoa íntegra condenada por criminosos sem ter cometido crime algum, teve considerável sucesso – mas nem se compara ao enredo em torno de Lula, herói dos pobres brasileiros, caçado pelos poderosos e corruptos de sempre e que agora armam para neutralizá-lo, enquanto se atropelam para destruir o legado que o bom homem deixou. Defendê-lo, injustiçado que é, torna-se algo além de sua própria figura, embora sem nunca apagá-la: agora, trata-se de defender a própria democracia brasileira, assaltada por gananciosos e perversos em um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo.

Foi uma construção insistente, desgastante até em certos momentos, erguida a partir de uma disposição inabalável e do poder inegável de uma oratória singular. Pouco importa nosso grau de adesão a essa narrativa: o fato é que ela foi bem-sucedida. Colou. E muito.

.

Não são poucos os que verão justiça, total ou parcial, na condenação pelo TRF-4. Mas é quase inescapável a sensação coletiva de que Lula não teve um julgamento justo, de que no mínimo gente muito pior conspirou contra ele e continua aí, livre e sem medo de punição

.

Uma pessoa que se crê presa injustamente, mesmo atrás das grades, não se vê manchada pelo veredito. Ao contrário: no olhar de fora, são os algozes que ficam marcados pela injustiça cometida

Todos sabem disso, inclusive – e talvez especialmente – seus oponentes políticos. Se temos visto diferentes adversários de Lula – de Michel Temer a João Dória, passando por Fernando Henrique Cardoso – dizendo que seria melhor Lula passar pelo dito julgamento das urnas, sem perder seus direitos políticos, certamente não é por caridade, muito menos por convicção. Na verdade, esse cálculo não faz muito esforço para esconder seu principal subtexto: ninguém quer pagar a conta de ser associado a um eventual impedimento do ex-presidente.

Tendo iniciado de fato sua campanha há mais de seis meses, liderando com folga em todos as pesquisas, o barbudo conseguiu transformar em problema não só a sua candidatura, mas também (e talvez mais ainda) as consequências de acabar com dela. Sem ele, ninguém sabe exatamente para onde esses votos possam ir – mas certamente não irão para quem é visto pelos seus eleitores como responsável por essa interdição. A bravata de que Lula pode ser derrotado no voto, mais que aposta, torna-se forma de negar que haja motivos para impedi-lo de candidatar-se.

O que temos, então, é uma ala contrária prestes a obter uma grande vitória, mas que se recusa a erguer a taça de seu triunfo. Enquanto o suposto derrotado discursa para mais de 50 mil pessoas às vésperas de sua suposta ruína, os guerreiros de verde e amarelo que inundaram as ruas contra Dilma agora contam-se nos dedos da mão. Alguém acha mesmo que, uma vez declarado culpado, Lula cairá imediatamente em vergonha pública, que cuspirão nele nas ruas, que todos o verão como corrupto e malfeitor?

.

É claro que não.

.

Se escapar da sentença, vira milagreiro e avança de forma quase irresistível para o triunfo nas urnas. Se for condenado, vira mártir, sem perder quase nada da imagem pública que agora ostenta. Mesmo perdendo, não sai derrotado. E a prisão do ex-presidente, que o lado oposto tentava vender como golpe final no maior esquema de corrupção que o País já viu, não ostenta mais boa parte de seu apelo inicial – esvaziando, nesse processo, a própria narrativa que a sustenta

.

Essa vitória é poderosíssima, e frisá-la nunca será demais. Lula, uma vez mais, reafirma-se como gênio das massas e uma das figuras mais importantes da história política do Brasil – desta vez, em um cenário hostil como poucas vezes alguém terá enfrentado, seja aqui ou em qualquer outro lugar. Não é preciso gostar dele (ou desejá-lo presidente no ano que vem) para reconhecê-lo.

Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

Igor Natusch

O julgamento de Lula não vai acabar bem – e é isso que muita gente quer

Igor Natusch
4 de janeiro de 2018

O clima em torno do julgamento em segunda instância de Lula, que acontece no fim de janeiro em Porto Alegre, é tenso meio que de nascença. Que teremos enormes protestos e ruidosos antagonismos, isso até as formigas que andam no meio-fio em frente ao TRF-4 sabem. Mas é fácil constatar que nossas autoridades não trabalham no sentido de passar tranquilidade e mediar eventuais conflitos, mas sim de tensionar ainda mais a situação, criando algo próximo de uma preparação para a guerra civil.

De início, a Justiça decidiu proibir acampamentos do MST no entorno do TRF-4, em especial no Parque da Harmonia, que fica nas proximidades. Uma medida duplamente insólita, pois impede o que não é crime (ou cometiam crime os que estavam no Acampamento Sérgio Moro, no Parcão?) e proíbe algo que, convenhamos, os trabalhadores sem terra nunca pediram autorização para fazer. Essa semana tivemos a truculenta abordagem policial ao repórter fotográfico Guilherme Santos, do Sul21, que foi interrompido de arma em punho porque “alguém” achou “suspeito” que ele estivesse fotografando a fachada do TRF-4. E agora temos Nelson Marchezan Júnior, prefeito de Porto Alegre, pedindo a Força Nacional na capital gaúcha para os dias de julgamento – algo que, pelo jeito, não consultou ninguém para fazer, nem mesmo o gabinete de crise estabelecido no governo estadual para tratar do tema. E que já foi desconsiderado pelo secretário estadual de Segurança Pública.

Há um elemento específico no inesperado pedido de Marchezan, que se revela em suas próprias palavras, quando diz que assim procede devido às “manifestações de líderes políticos, que convocam uma invasão de Porto Alegre“. Lembrando que, quando das marchas em favor do impeachment de Dilma Rousseff, o próprio Marchezan participou abertamente, inclusive subindo ao carro de som para falar à massa. Como vem fazendo com frequência em seu governo, Marchezan fala a um público particular, que odeia e teme tudo que entende como petralha e/ou esquerdista, e faz uso de seu apoio imediato como um elemento de legitimação. Mas é possível ir além.

.

Não é apenas Marchezan que deseja a cidade hostil a manifestações neste momento, não é só ele que age para impedir completamente o que seria um grande grito coletivo dos que se reúnem em torno de Lula

.

São reações a algo mais concreto do que o medo de conflitos: há, como subtexto dessas iniciativas todas, uma vontade de deslegitimar a manifestação de um dos lados e, ao mesmo tempo, abrir a brecha para descer o sarrafo, caso ela ocorra. Incluindo aí a imprensa, que tem como dever profissional fazer a cobertura de tudo que acontecer dentro e fora do tribunal.

O clima para julgar Lula não tinha como ser agradável, é claro. Mas vivemos uma certeza de conflito, uma garantia de repressão brutal a qualquer manifestação favorável ao réu, que está longe de ser inevitável. Assim será porque a preocupação não é democrática, mas sim com a supremacia de uma teoria e a prevalência de uma ideia.

.

O gesto desastrado de Marchezan (mais um de uma longa lista, vamos combinar) é mais um sintoma de como a prefeitura de Porto Alegre está mergulhada em uma disputa ideológica que a ela deveria dizer pouco respeito, mas martelar demais em cima disso me parece, para usar o termo técnico, chutar cachorro morto

.

.

Ele acaba sendo, seja por oportunismo ou falta de traquejo político, mais um sintoma de algo maior e, sinceramente, bem mais grave

.

A beligerância e a intolerância são estratégias. Protestos pacíficos, como sabemos, só se agradam aos poderes estabelecidos e/ou as conveniências de momento. Assim era no próprio governo de Dilma Rousseff, que editou a esdrúxula lei antiterrorismo e reprimiu com gosto as manifestações durante a Copa do Mundo, para citar só um exemplo. No momento, os partidários de Dilma estão do lado que se prefere que fique quieto, mas o que deve ser protegido aqui não é a posição que defende Lula como um injustiçado, mas sim os alicerces mais básicos da livre manifestação. Não se justifica jogar tudo para o alto em nome de um alegado clima de guerra insuflado pelos mesmos setores que tratarão depois de, supostamente, debelá-lo. A democracia, amigas e amigos, vai muito mal no Brasil, e fica cada vez mais claro quem, no fundo, nunca deu a ela tanto valor assim.

Foto: Guilherme Santos/Sul21. A realização de imagens como esta foi a “atitude suspeita” que levou à abordagem, de arma em punho, por integrantes da Brigada Militar, no começo desta semana

Igor Natusch

Mesmo se não concorrer, Lula pode decidir a eleição – e ele sabe disso

Igor Natusch
13 de dezembro de 2017
07/12/2017- Rio de janeiro- Visita do ex-presidente Lula em Magé, no Rio de janeiro Foto: Ricardo Stuckert

Há algum tempo vem sendo dito em diferentes cantos da internet – por aqui, inclusive – que a ideia que move a pré-campanha de Lula à presidência nem é tanto viabilizar de fato a candidatura, mas inviabilizar ao máximo decisões judiciais que o tornem inelegível e, em última consequência, o coloquem na prisão. A situação se torna mais sólida na medida em que o TRF-4, com agilidade de todo incomum, já tem marcada a data do julgamento do barbudo: em 24 de janeiro do ano que vem a coisa começa, para o bem e para o mal, e o Brasil que se vire com um ano político já começando em tal intensidade.

Mesmo que o ex-presidente seja condenado em segunda instância (um cenário, no mínimo, bastante plausível), há considerável espaço para movimentos jurídicos de caráter protelatório, que podem arrastar a situação e permitir a candidatura. Mas penso eu que nem é esse o grande debate no momento.

.

A questão é: Lula está mesmo determinado a concorrer à presidência? Ou trabalha com outros cenários, cogitando – e talvez até mesmo construindo – uma situação favorável a outro candidato que não ele próprio?

.

Quem observa com atenção os recentes discursos do líder petista percebe que ele constrói duas narrativas paralelas. Em primeiro plano, coloca a si mesmo como um perseguido pela Justiça e por setores retrógrados do poder político nacional, um injustiçado que pode ir à cadeia sem que exista qualquer prova dos crimes que supostamente teria cometido. A outra esfera, menos óbvia, talvez, é talvez ainda mais importante: a de resgate de um passado recente pretensamente idílico, de negação das reformas promovidas pela gestão de Michel Temer ao mesmo tempo que acena para possíveis gestos de conciliação – algo que, vale dizer, ele está longe de ser a pessoa mais capacitada, neste momento, para propor.

.

A primeira dimensão não é uma plataforma política, por assim dizer. A segunda é. A primeira é, por óbvio, indissociável de Lula e de sua imagem; a segunda, não. Ao contrário: talvez seja ainda mais palpável na medida em que o barbudo não esteja no centro do cenário

.

Condenar Lula em segunda instância já é uma batata quente daquelas, com consequências políticas e sociais difíceis de prever. Há quem pense que a letargia da população facilita um cenário onde Lula vai pro xilindró; pessoalmente, não acredito muito nisso. Prender o ex-presidente é contrariar diretamente quase 40% da população que, segundo as pesquisas, manifesta interesse em elegê-lo novamente. Quem acha que isso pode ser feito sem que haja barulho e reação ou está na torcida, ou está sendo ingênuo.

.

Nesse sentido, é possível inclusive dizer que Lula já teve sucesso – ou alguém acha mesmo que, condenado, ele viraria um proscrito, seria rejeitado pelas massas que hoje o veneram, deixaria de ter qualquer importância nos rumos políticos do Brasil?

.

Ao contrário: talvez um veredito desfavorável o fortaleça ainda mais.

É difícil dizer, nesse momento, quem seria o plano B de Lula e do PT. Talvez uma figura mais jovem e menos desgastada da sigla, como Fernando Haddad? Quem sabe um outro candidato qualquer, sem chance de vitória, mas como um aceno a outras figuras de centro-esquerda, como Ciro Gomes ou até mesmo Marina Silva, para uma aliança no segundo turno? São cenários possíveis – e seguem perfeitamente possíveis, dentro do posicionamento que Lula vem adotando até aqui.

Longe da “radicalização” pintada pelos que desejam colocá-lo como o extremo oposto de um Bolsonaro, Lula usa um discurso não só palatável para diferentes setores de oposição, mas que também pode colar com quem está cansado de guerra e pode ver como injustiça uma eventual nova condenação. E que possivelmente concorda com a ideia de que Dilma Rousseff foi injustiçada, outra narrativa bem construída pelo ângulo petista da discussão política. Há força e viabilidade eleitoral para um candidato de Lula, seja o próprio Lula ou não. E isso faz com que o julgamento no TRF-4, mesmo importantíssimo, não seja tão definitivo politicamente quanto parece.

Foto: Ricardo Stuckert

Igor Natusch

Lula e Bolsonaro estão distantes. A quem interessa colocá-los como iguais?

Igor Natusch
1 de novembro de 2017
Brasília - Eduardo Bolsonaro, e o pai, Jair Bolsonaro após o Conselho de Ética da Câmara arquivar duas representações (12/17 e 13/17) contra o deputado por quebra do decoro (Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agencia Brasil)

A mais recente pesquisa Ibope pintou um quadro favorável ao ex-presidente Lula. Líder em todos os cenários, o petista parece não sofrer grande desgaste junto a seu eleitorado cativo e até mesmo ganha gordura nesse momento desnorteante que vive a política brasileira. Na estimulada, tem 35% das intenções de voto, contra 13% do pré-candidato mais próximo, Jair Bolsonaro; na espontânea, de valor ainda mais acentuado nesse momento em que não há campanha eleitoral declarada, o resultado sorri ainda mais para o barbudo, com 26% dos consultados citando seu nome, quase o triplo dos 9% que citam Bolsonaro.

Assim sendo, é um exercício curioso passar os olhos pelas manchetes que alguns dos principais portais de notícias do Brasil deram para esse levantamento. “Ibope aponta segundo turno entre Lula e Bolsonaro em 2018“, diz o Uol, exatamente o que é ressaltado também pela Veja. “Lula e Bolsonaro liderariam eleição presidencial em 2018“, aponta o site da revista Exame, quase nos mesmos termos indicados pelo Terra.

.

Cresce no imaginário do eleitorado a ideia de que temos dois extremos. À direita, como sabemos, surge o discurso odioso e tóxico de Bolsonaro; no córner esquerdo, o combatente é Lula. Mesmo que a pesquisa Ibope aponte o ex-presidente muito à frente do deputado, sinal claro de que não há, no momento, um embate cabeça a cabeça entre ambos.

Porque nos falam, então, de um confronto direto que os números não mostram?

.

Embora o discurso do pré-candidato petista oscile entre promessas vagas de democratização da mídia e afagos surpreendentes naqueles que tiraram Dilma Rousseff do poder, materializar nele um dos extremos do rompimento político que vivemos é interessante para alguns setores. Para ele próprio, que vende a si mesmo como única chance de evitar a tragédia de um governo de extrema-direita; para Bolsonaro, que também se beneficia desse maniqueísmo nós-contra-eles; mas acima de tudo para quem quer emplacar uma terceira via, um candidato pacificador que não é radical nem por um lado, nem pelo outro. Uma opção de centro, mesmo que ela não seja tão centrista assim.

.

Há uma desonestidade flagrante nessa construção de antagonismos

.

Amando ou detestando Lula e sua visão de política, ninguém poderá negar que foi presidente de medidas significativas, cujos reflexos durarão ainda por muito tempo. É figura que já demonstrou grande capacidade de articulação, ainda recebe grande respeito internacional e, de qualquer modo, tem o triplo de intenções de voto de seu suposto antagonista. Bolsonaro, por sua vez, é um deputado federal de contribuição no máximo medíocre, com pouquíssimos projetos e que só se destaca pela desenvoltura com que vocifera discursos de ódio. Sua tentativa de se tornar mais palatável em uma viagem aos EUA foi um fracasso, e suas tentativas canhestras de aprofundar o discurso – como nas citações cheias de chutes e equívocos sobre o nióbio, antigo delírio dos ultranacionalistas – seriam cômicas, não indicassem profunda tragédia caso um despreparado desse quilate alcance mesmo a Presidência do Brasil.

.

Bolsonaro, além de ser uma figura rasteira, ainda é uma incógnita do ponto de vista eleitoral

.

No retrato de momento (que pode mudar, evidentemente, mas que no momento assim se materializa), está bem atrás de um Lula que não dá sinais de desgaste em seu carisma. Sem o petista, o Ibope indica um empate absoluto entre Bolsonaro e Marina Silva – ou seja, a confiar no levantamento, nem em um cenário teoricamente mais favorável o deputado se destaca na multidão. Alçado à condição de atual nome forte na batalha contra tudo de supostamente horrível que a esquerda traz em si, Bolsonaro ganha um protagonismo superior ao indicado por sua intenção atual de voto. E não precisa ser gênio para perceber que o potencial de criar um círculo vicioso a partir daí não é nada desprezível.

Se a aposta de certos setores é cindir o cenário político como quem separa o Mar Vermelho e, no corredor criado, lançar o suposto pacificador da vez (seja Dória, Huck, Alckmin ou qualquer outro), podemos dizer que é uma aposta de risco considerável.

.

Talvez a única coisa que aproxime de fato Lula e Bolsonaro seja estarem simbolicamente do lado de fora da política atual, um por ser outsider, outro por ser perseguido por ela

.

Para que esse mesmo núcleo político, tão rejeitado, consiga vender um de seus apadrinhados como opção razoável em um cenário de tempestade, vai precisar conjurar essa mesma aula de distanciamento – o que será, ao mesmo tempo, um esforço de mago e de camaleão. Não é inviável, mas não é fácil.

Enquanto isso, para vender a imagem de que Lula é batível tanto como candidato quanto – e talvez principalmente – como entidade, vamos legitimando alguém que traz um discurso venenoso capaz de inviabilizar de vez qualquer tipo de saúde política no país. Pelo jeito, a tempestade não é mesmo para chegar ao fim.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Igor Natusch

Palocci ataca não o Lula candidato, mas a imagem de homem honesto

Igor Natusch
27 de setembro de 2017

Não sei se a carta de desfiliação de Antonio Palocci, divulgada no começo da semana pela imprensa e que traz duras palavras contra o PT e Lula, tem o poder de, sozinha, colocar na lona o ex-presidente. Acredito que não, inclusive, já que Lula tem demonstrado uma capacidade impressionante de sobrevivência em meio à artilharia pesada contra ele. Mas é um documento não apenas pesado e constrangedor, mas histórico por todas as suas implicações. E que, além do impacto jurídico (que depende da devida investigação para se concretizar), traz um efeito político que é simplesmente impossível de ignorar.

Palocci não é um qualquer. Trata-se de uma das figuras mais importantes de todo o período de governo petista – e reforçar essa quase obviedade é importante, porque ela precisa ficar acima de argumentos relativizadores, que tentam colocar as palavras do ex-ministro de Lula e Dilma como mero espernear desesperado de um homem que deseja fugir de um longo período de prisão. Reduzir um estrategista inteligente como Palocci, figura central em todas as decisões da alta cúpula do partido nas últimas duas décadas, a um mentiroso que quer escapar do cárcere é quase ridículo, é quase tirar os outros para idiotas. O que Palocci diz tem peso simplesmente por ser dito por Palocci, e qualquer análise do que é dito que menospreze esse peso é defeituosa de nascença, para não dizer coisa pior. Isso posto, podemos avançar.

.

Muito além das acusações claras de malfeitorias que teriam sido cometidas, Palocci atira contra a imagem de Lula, contra a construção que o coloca como honesto e corajoso herói do povo brasileiro enfrentando malvados que querem destruir tudo que ele construiu

.

É uma construção intencional, que vem sendo feita desde antes da consumação do impeachment de Dilma Rousseff, e que no caso dela funcionou bem – convenhamos, não dá para dizer que a maioria do povo brasileiro veja a ex-presidente como uma ladra e criminosa, muito pelo contrário. Para Lula, essa construção é não só estratégica, mas uma chance de sobrevivência diante de acusações cada vez mais difíceis de rebater. O abismo que eliminou o meio-campo na discussão política não apenas é aceitável, mas desejável e incentivado nessa situação.

.

Diante da forte possibilidade de ser preso e tornar-se inelegível, Lula precisa ser heroico, não apenas para seguir forte como possível candidato em 2018, mas para que seja crível transformá-lo em mártir, caso não consiga concorrer e acabe condenado em segunda instância. Quem vê a provável candidatura como uma chance de salvar o Brasil está sendo ingênuo ou enganando a si mesmo: não há projeto algum, apenas oportunidade e tábua de salvação. Ou alguém escuta, nos discursos cada vez mais apelativos do barbudo, algo além de retórica e malabarismos, algo que indique um plano coletivo, qualquer coisa além da reafirmação obsessiva de si mesmo e do próprio caráter histórico?

.

É essa construção de narrativa o grande alvo da carta de Palocci. Ele não fala apenas à força-tarefa que investiga Lula, dizendo que tem o que oferecer em troca de uma fatia maior de liberdade; ele fala também na direção de Lula e do PT, dizendo que tem lama nas mãos, e está disposto a arremessá-la se julgar necessário.

“Até quando vamos fingir acreditar na autoproclamação do ‘homem mais honesto do país’, enquanto os presentes, os sítios, os apartamentos e até o prédio do Instituto (!!) são atribuídos a Dona Marisa?” Nessa frase, o que está antes da primeira vírgula talvez seja mais importante do que o que vem depois.

Julgar que um homem capaz dessa frase está apenas desesperado é, de novo, um argumento pífio. Estamos diante não de uma metralhadora de acusações aleatórias, mas de um efetivo estrategista político – e que, capaz de refinado raciocínio político que é, ataca seus outrora aliados onde o golpe é mais duro: na imagem de homem honesto e injustiçado em torno de Lula, o mais valioso elemento político de que dispõem no momento. Chega a insinuar um acordo de leniência, proposto por João Vaccari, que envolveria o próprio Partido dos Trabalhadores – e que, é claro, tem valor apenas argumentativo, já que seria impossível sem colocar o grande nome da sigla na berlinda de forma possivelmente definitiva.

.

Com sua carta, Palocci frisa que não é um homem honesto, e o faz justamente para acentuar a possível hipocrisia de quem, tendo feito o que se diz que tenha feito, vende a si mesmo como bastião de bravura e honestidade

Não sou honesto, diz Palocci- e, sem ser honesto, estive ao lado daquele que se diz o mais honesto de todos, conheço bem todas as suas fachadas e tenho meios para derrubá-las

.

Do ponto de vista estritamente político, discutir se Lula é culpado ou não das coisas que Palocci afirma ou insinua é contribuir para a aura em que ele e a cúpula partidária apostam nesse momento caótico. Debater se Lula é inocente ou culpado é sujeitar-se aos termos de uma cisão que interessa aos atores em disputa, e não necessariamente a quem tenta entender esse cenário. O central, me parece, é discutir se Lula segue capaz de dizer-se inocente – ou, dito de outro modo, até que ponto é visível a diferença entre ele e outros tantos que foram parar na prisão ou que estão com a imagem manchada. Quando o ex-presidente bate no peito e diz que é o homem mais honesto do país, o quão convincente ele é?

Para o líder petista, ser condenado é menos importante do que, condenado ou não, manter seu capital político em pé. E o maior risco que Palocci oferece não é ajudar a prendê-lo, mas ter força para colocar sua imagem pública no chão. É esse embate o que mais interessa, em termos de futuro político do país.

Foto: Bruno Spada/ABr.