Voos Literários

Os desastres de Cristiane

Flávia Cunha
30 de janeiro de 2018

Os desastres de Sofia é o título de um livro infantojuvenil escrito ainda no século 19 mas que faz até hoje muito sucesso no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Escrito pela Condessa de Ségur, a obra tinha como protagonista uma menina mimada e bagunceira, que só se metia em confusão.

Na literatura, especialmente para crianças, parece divertido haver uma anti-heroína atrapalhada e que não obedece regras. Mas, se pensarmos que uma pessoa com essas características poderá ocupar um cargo no primeiro escalão do governo brasileiro, a ideia perde toda a graça. A minha singela analogia refere-se à deputada federal Cristiane Brasil, impedida pela Justiça de assumir o cargo de ministra do Trabalho, por ter sido condenada judicialmente na área em questão.

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Pois a nossa desastrada Cristiane, assim como a Sofia da ficção, achou por bem aprontar mais uma travessura. Gravou um vídeo, acompanhada de amigos sem camisa em uma lancha, defendendo-se das acusações.  O tom é jocoso, com os amigos da deputada minimizando o fato dela ter processos trabalhistas

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O vídeo viralizou na Internet, passou a ser notícia em todos os meios de comunicação, com uma avaliação negativa. Ou seja, se a situação da não-empossada ministra do Trabalho que já era ruim, ficou ainda pior. Aqui está o vídeo para quem ainda não viu e para quem deseja rever:

Essa é a nota oficial da deputada sobre o assunto:

“A deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ) afirma que a gravação e a divulgação do vídeo foram manifestações espontâneas de um amigo, editadas fora do contexto. A deputada reitera ainda o seu respeito à Justiça do Trabalho e à prerrogativa do trabalhador reivindicar seus direitos.”

No twitter, o pai de Cristiane, Roberto Jefferson, se posicionou assim sobre o ocorrido:

“Sobre o vídeo, a repercussão fala por si. Também teve muita deturpação. Eram famílias no barco, havia crianças passando. Dito isso, penso que uma figura pública deve se portar como uma figura pública, e usar ferramentas como Facebook e Instagram apenas em caráter institucional.”

“Aliás, como tem troglodita nas redes, hein? Menos moralismo e menos machismo, por favor.”

 

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Vale lembrar que no livro da Condessa de Ségur, Sofia nunca se dá bem. Seria esse também o destino das pessoas mimadas no mundo real? Torço fortemente que sim.

 

Voos Literários

Duda Calvin – Uma dica de leitura punk para empreendedores

Flávia Cunha
16 de janeiro de 2018

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A coluna Voos Literários vai apresentar, ao longo de 2018, dicas de leituras de personalidades do meio cultural do Rio Grande do Sul. A nossa seleção não se restringiu a envolvidos com Literatura, justamente por acreditarmos na leitura como um hábito acessível a qualquer pessoa e não apenas a intelectuais e estudiosos da área.

O primeiro convidado é Duda Calvin, vocalista da banda Tequila Baby, professor de história e produtor:

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“Para todos aqueles que querem tocar seus projetos pessoais em frente, como uma banda de punk rock, por exemplo, A Cauda Longa, do Chris Anderson mostra que o mundo neste novo século mudou a forma como se consome cultura e os produtos ligados à ela. A Internet mudou a forma como se divulgam as coisas e como vamos chegar a estas novas informações. Antes, todos os músicos concorriam ao segmento pop, tudo era medido por execuções em rádio.  Agora, existem outros instrumentos de medição de popularidade, downloads, acessos, likes, etc… E uma banda tem o seu nicho de trabalho, e dentro deste seu nicho, sua popularidade é quantificada. Como trabalhar com isso? Confere no livro.”

 

 

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Confira um trecho da apresentação de A Cauda Longa (Long Tail):

“Este livro é, em parte, um projeto de pesquisa econômica, com a ajuda e a participação de alunos e professores das escolas de negócios de Stanford, MÍT e Harvard. Também é o fruto de mais de cem palestras, de sessões de brainstorming e de visitas físicas a empresas e a grupos setoriais que estão vendo a Cauda Longa mudar seus mundos. E ainda é produto da colaboração com dezenas de empresas e de executivos que comigo compartilharam muitos megabytes de dados internos, proporcionando-me visão sem precedentes da microeconomia de mercados emergentes na era on-line. 

O mais fascinante neste momento é que a economia do século XXI já está esboçada de maneira evidente nos bancos de dados das Googles, Amazons, Netflixes e iTuncs da vida, em cujos muitos terabytes sobre comportamentos dos usuários se encontra uma pista de como os consumidores atuarão nos mercados de escolhas infinitas, questão que até recentemente ainda não era significativa, mas cuja compreensão agora tornou-se fundamental.

[…]

Finalmente, gostaria de acrescentar uma nota sobre paternidade. Embora eu tenha cunhado o termo “The Long Tail” (Cauda Longa), não posso reivindicar qualquer crédito pelo desenvolvimento do conceito de usar a economia eficiente do varejo on-line para compor um grande estoque de itens com baixo volume de vendas. Essa proeza coube a Jeff Bezos, por volta dos idos de 1994. Devo boa parte do que aprendi às minhas conversas com ele, a seus colegas na Netflix e na Rhapsody e a outros que há anos estão atuando nessa área.

Esses empreendedores são os verdadeiros inventores das ideias aqui expostas. O que estou tentando fazer é sintetizar os resultados num referencial único. Obviamente, essa é a função da economia: ela busca desenvolver modelos simples e facilmente compreensíveis que descrevam os fenômenos do mundo real. O desenvolvimento desse arcabouço já é em si um avanço, embora seja algo que se esmaece diante das invenções originais de todos os que descobriram e analisaram o fenômeno em primeira mão.”

Também quer mandar tua dica de leitura para a gente? Escreve para flavia@vos.homolog.arsnova.work.

*Foto: VINÍCIUS COSTA/AGÊNCIA PREVIEW – Arquivo Pessoal (Facebook)

Voos Literários

Ler mais precisa ser uma meta para 2018?

Flávia Cunha
9 de janeiro de 2018

Sempre fico meio receosa quando chega nessa época de fim/início de ano e todo mundo começa a traçar metas e promessas. É dieta, academia, viajar mais, ter mais dinheiro, um emprego melhor e por aí vai. Nesse misto de ansiedade e expectativa, nos enchemos de obrigações e deveres e nos frustramos ao não conseguir atingir um patamar tão elevado de um “novo eu” para um “novo ano”.

Sobre a leitura, claro que é legal a gente incluir na nossa rotina um bom livro ao invés de ter somente as horas livres dedicadas a maratonas intermináveis de seriados, por exemplo.

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Mas me arrisco a dizer que colocar a Literatura como uma obrigação tira o encantamento que uma obra de qualidade pode trazer às nossas vidas

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E isso vai depender do gosto de cada um. Por isso, não acredito em imposições. Digamos que vocês aí que estão me lendo não tenham atingido um número de leituras em 2017 da qual possam se orgulhar. Digamos que 12 livros por ano poderia ser um bom número, não? Um livro por mês, bem na manha. Daí eu respondo. Depende. Se vocês se propuseram no ano passado a ler Guerra e Paz, essa tarefa de terminar em apenas um mês não se torna tão simples. (Depende da edição, mas a obra-prima de Tolstói tem uma média de 600 páginas).

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Por isso, não se deixe contaminar por número e metas. Leia o que lhe dá prazer. Leia o que tem vontade. E deixe seu 2018 mais leve

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No meu caso, aproveitei o recesso de final de ano para ler, de forma bem despretensiosa e por total acaso, três livros com a palavra “menina” no título.

A Menina Má, um clássico de William March, foi um precursor das histórias com crianças psicopatas. Rhoda é uma linda garotinha de 8 anos que parece ter tendências homicidas. A mãe dela se angustia com a possibilidade da menina ter cometido mais de um assassinato. Daqueles livros para ler de um fôlego só.

A adaptação de A Menina do Fim da Rua, de Laird Koenig, fez sucesso no cinema com Jodie Foster, ainda adolescente, como protagonista. O enredo do livro é sobre uma jovem de 13 anos que mora em uma casa com o pai, que nunca é visto pelos vizinhos. A menina é uma intelectual, apaixonada por música clássica e por poemas de Emily Dickinson. Mas Ela também tem segredos muito bem guardados que geram reviravoltas interessantes na trama.

A Menina da Neve tem um tom mais mágico, de contos de fada. Um casal sem filhos aproximando-se da velhice vai morar no Alasca para tentar vida nova. Ao criarem um boneco de neve, começam a enxergar uma criança na floresta perto da casa deles. Alucinação ou verdade? A história se desenvolve com delicadeza e ternura, em um final que pode provocar lágrimas nos leitores mais sensíveis. O livro de Eowyn Ivey foi um dos finalistas do conceito Prêmio Pulitzer, há cinco anos.

Voos Literários

Leituras para 2018 e uma retrospectiva de 2017

Flávia Cunha
26 de dezembro de 2017

2017 foi um ano “daqueles” para todos, eu imagino. Mas em vez de reclamar do que passou, vamos recorrer à literatura como uma forma de reagir ao momento sociopolítico conservador e tenso.

Para se inspirar com uma leitura, comece o novo ano com o novo romance da Carol Bensimon. Ela é uma das minhas escritoras favoritas pelo simples motivo de ser dona de uma escrita que me faz não querer desgrudar do livro até chegar em sua última página. Em O Clube dos Jardineiros da Fumaça , o protagonista é um professor de Porto Alegre que vai morar em uma região da Califórnia que concentra a maior produção de cannabis sativa dos Estados Unidos. Em pauta, a descriminalização da maconha, em um enredo que mistura realidade e ficção.

*Bônus Para quem não conhece o estilo da escritora, recomendo seu livro de estreia Pó de Parede.

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E agora, vamos a uma retrospectiva de textos, que podem ajudar a fazer o ano de 2018 mais literário e engajado

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Fevereiro – Dizem que o ano não começa antes do Carnaval. Nesse texto comentei sobre livros que tem a ver com a festa de Momo. Para quem não curte a folia, a leitura é sempre um  bom refúgio.

Março – O terceiro mês do ano é marcado pelo Dia Internacional da Mulher. Tem quem se contente com uma flor, mas o legal mesmo é apoiar a mobilização da mulherada nessa época do ano.  E respeitar as minas, sempre.

Abril – Primeiro de abril será a Páscoa em 2018, quando os adultos darão de presentes para a criançada muito chocolate. Mas e se ao invés disso, a opção for dar livros de presente? Aqui tem algumas sugestões de obras literatura infantil.

Maio – 2018 será um ano eleitoral, não podemos esquecer. E em maio acaba o prazo para regularizar o título de eleitor. Mas do que adianta ter esse documento em dia, se não houver uma consciência sobre os perrengues que estamos vivendo no Brasil? Esse texto pode ajudar em um reflexão sobre o assunto.

Junho – Esse também será um ano de Copa do Mundo. Se alguém por aí não é de futebol, não precisa se sentir mal. Eu, por exemplo, sou adepta do slogan da antiga MTV: desliga a TV e vai ler um livro.

Julho – Esse é um mês de férias de inverno para a criançada. E desculpem se posso parecer repetitiva, mas vale muito a pena incentivar a leitura dos pequenos.

Agosto – É o mês em que começará a propaganda eleitoral nas ruas e nos meio de comunicação. Como aguentar essa barra? Vamos de Caio Fernando Abreu que sempre dá certo.

Setembro – Eis que o nono mês chega, com aquele ufanismo do dia 7. Para quem anda meio sem vontade de compartilhar desse sentimento, recomendo esse texto sobre política e poder em um clássico literário.

Outubro – E chega o momento das eleições, em um cenário em que muita gente anda por aí defendendo a volta da ditadura. Nesse texto tem uma reflexão sobre porque devemos prezar a democracia, mesmo com seus percalços.

Novembro – Então, chegamos ao resultado das eleições. Desculpem parecer pessimista, mas o independente do resultado, o que deve rolar é o costumeiro “toma lá, dá cá”.

Dezembro – Mas não vamos desanimar. Para o último mês do ano, que tal um pouco de esperança, relembrando essa linda história da menina que salvou livros ao ter sua casa invadida pelas águas?

E em 2018 também terá novidades nessa singela coluna. Aguardem. Nos vemos no ano que vem!!

 

Voos Literários

Eu, Robô – Na ficção e na política brasileira

Flávia Cunha
12 de dezembro de 2017

Um candidato às eleições enfrenta duras críticas e uma denúncia de um opositor. Parece atual? Pois saibam que a sinopse é a de um conto do livro Eu, Robô, escrito por Isaac Asimov lá em 1950.

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Esse clássico da ficção científica traz o texto Prova, em que um promotor que anseia tornar-se prefeito é acusado de ser um robô, no ano de 2032

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No contexto social criado por Asimov, os robôs são tão semelhantes fisicamente aos seres humanos que é bastante complexo fazer essa distinção, o que dificulta saber se o candidato em questão é ou não uma máquina. Não vou dar  do final do conto, mas o mais interessante do enredo é a forma com que essa questão é apresentada.

No trecho abaixo, o candidato rival ao suposto robô fala para um cientista que é coagido a provar esse fato que o mais importante é fazer com que uma suposição pareça uma verdade:

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“– O senhor espera que ele lhe diga: “fulano é um robô porque quase nunca come com outras pessoas; porque nunca adormeceu no tribunal; porque, certa vez, quando olhei pela janela, de madrugada, ele estava sentado, lendo um livro; porque, quando dei uma busca na geladeira dele, não encontrei comida”?

– Se ele dissesse tal coisa, o senhor mandaria buscar uma camisa de força para ele. Mas ele lhe diz: “Ele nunca dorme; ele jamais come”. Então, o choque da afirmativa faz com que o senhor se esqueça de que tais afirmações são impossíveis de provar.”

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Só que a acusação, em vez de prejudicar o candidato, deu-lhe visibilidade. É o que o personagem explica, no trecho abaixo:

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“– Tudo o que vi até o momento é o seguinte: longe de ser um advogado metropolitano relativamente conhecido, mas um tanto obscuro, transformei-me em uma figura de fama mundial. Você é mesmo um ótimo publicitário.

– Mas você é um robô!

– É o que dizem – mas não provam.

– Já está provado de modo suficiente para os eleitores.”

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Pensando no contexto político brasileiro atual seria bom ou ruim ter um robô como ocupante de um cargo público? Se usarmos como base o discurso de uma das personagens do conto de Asimov, que é robopsicóloga, um político não-humano seria muito bom para a sociedade:

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“Se fosse criado um robô capaz de ocupar um alto cargo público, creio que seria o melhor administrador possível. Pelas Leis da Robótica, seria incapaz de causar mal a seres humanos, de praticar atos de tirania, de corrupção, de estupidez ou de preconceitos. E depois de servir durante um intervalo decente, sumiria, muito embora fosse imortal, porque seria impossível para ele magoar os seres humanos com o conhecimento de que foram governados.”

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Voltando à realidade brasileira, infelizmente os robôs que já existem não são éticos como os descritos nesse clássico da ficção científica. O que já está acontecendo de verdade é o uso dos chamados ciborgues, uma mistura de seres humanos e máquinas para influenciar as eleições. Como funciona? Empresas são contratadas para criar e gerenciar perfis falsos nas redes sociais. Longe de ser ficção, a realidade da política nacional e internacional criou um nada admirável mundo novo.

Para quem se interessou pelo assunto, o site da BBC Brasil traz uma reportagem bem completa.

 

Voos Literários

Caio Fernando Abreu – Inspiração para a sobrevivência diária

Flávia Cunha
28 de novembro de 2017

“De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria, em cada noite, descobrir um motivo razoável para acordar amanhã.”

Caio Fernando Abreu – Ovelhas Negras

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Sempre que o caos impera internamente e externamente, lá vou eu recorrer a Caio Fernando Abreu. Já fiz isso durante o mês de agosto e agora, em meio ao estresse de final de ano, sobrecarga de projetos profissionais somado ao cenário sociopolítico cada vez mais preocupante, lá vou eu de novo recorrer ao meu guru.

Em 2012, escrevi esse texto para justificar a escolha de Caio F. como objeto da pesquisa para a dissertação de mestrado em Letras pela UFRGS:

“Minha paixão por Caio Fernando Abreu começou de forma quase clichê: um exemplar de Morangos Mofados chegou por acaso às minhas mãos e foi amor à primeira leitura. Por tratar-se de uma era ainda pré-internética, nos já longíquos anos 90, pouco sabia sobre o escritor no momento de ler a obra e ainda demorou um tempo até saber algo sobre a vida de CFA. Tempos depois, tive acesso a outros livros, comprados com esforço ou então pegos por empréstimo na biblioteca do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre.

Depois, veio o objeto de desejo: Cartas, organizado por Italo Moriconi. Era caro para o meu bolso e eu passei meses namorando a obra, pela Internet ou em livrarias. Em um aniversário, ganhei-o de um grupo de amigos, que perceberam que esse seria o melhor presente para uma amante da literatura e fã confessa do escritor gaúcho.

Li e reli Cartas nesses quases dez anos. Naquelas páginas, descobri que CFA atuava no jornalismo por obrigação, como forma de sobreviver. Ter um ponto em comum com o ídolo sempre é uma surpresa para um leitor devoto. Assim, o livro transformou-se em uma espécie de oráculo para mim. Folheava aleatoriamente o exemplar e começava a ler aquelas linhas que pareciam ter sido escritas especialmente para aquela ocasião. Normalmente, funcionava (e ainda funciona). Em dias de baixo astral, Caio me consolava ao falar da beleza das flores, de como é importante cultivar as amizades e de como as possibilidades e impossibilidades do amor são o que há mais de humano em nossas vidas. Em momentos de revolta, principalmente com as injustiças da profissão de jornalista, CFA me acalentava, ao sofrer dos mesmos males, ao reclamar dos salários, das cobranças, das péssimas condições de trabalho.

Por amor à obra de CFA, adentrei na área de Letras. Primeiro, na graduação. Depois, em um desses movimentos que eram típicos na vida do escritor mas que aconteceram poucas vezes comigo, acabei saltando para a pós-graduação antes mesmo de concluir a faculdade. O destino colocou em meu caminho uma professora especialista no escritor e que, quase por acaso, sugeriu o tema da atual dissertação: a trajetória de CFA no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Uni, assim, duas áreas do conhecimento: o jornalismo, muitas vezes cruel mas ainda necessário para minha subsistência,  e a literatura, minha grande paixão desde criança.”

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Caio me inspira e me dá forças para seguir adiante. E, como já contei nesse texto, abandonei o jornalismo em redação para trabalhar em projetos ligados ao meio editorial, após tantas inspirações literárias.

Sigo sendo uma ovelha negra. O que pode ser muito bom, como diz Caio no texto de abertura de Ovelhas Negras, obra com uma seleção de textos escritos pelo autor entre 1962 e 1995: “Remexendo, e com alergia a pó, as dezenas de pastas em frangalhos, nunca tive tão clara certeza de que criar é literalmente arrancar com esforço bruto algo informe do Kaos. Confesso que ambos me seduzem, o Kaos e o in ou dis-forme. Afinal, como Rita Lee, sempre dediquei um carinho todo especial pelas mais negras das ovelhas.”

 

 

 

 

Voos Literários

Os Livros Fora do Armário na Feira da Resistência

Flávia Cunha
15 de novembro de 2017

Prestigiei um evento sobre literatura LGBT na Feira do Livro de Porto Alegre. Tema instigante, com escritores talentosos e que sabiam falar muito além de sua própria obra. Seria apenas mais uma atividade bacana da área cultural da capital gaúcha se por trás disso não houvesse uma verdadeira batalha para sua realização.

Primeiro, o evento Os Livros Fora do Armário – A Literatura Orgulhosamente LGBT seria realizado no Santander Cultural. Aquele lugar mesmo, da polêmica exposição Queermuseu. O que ocorre é que a programação da Feira do Livro é fechada meses antes e, por isso, o Santander não podia prever a repercussão que daria mais um evento envolvendo sexualidade e gênero em suas dependências. Não deu outra.

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Pressão de grupos conservadores fez com que o evento fosse trocado de lugar

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O que ninguém poderia imaginar é que a direção do novo local escolhido, o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, também temesse problemas devido ao debate e recuasse da ideia de sediar o evento. Mesmo assim, a organização da Feira do Livro, em uma atitude que considero corajosa, manteve a programação. O painel passou para o Teatro Carlos Urbim, na Praça da Alfândega, contando com policiamento da Brigada Militar.

Foi esse o panorama que antecedeu a conversa entre Natalia Borges Polesso (autora do livro Amora) e Samir Machado de Machado (autor do livro Homens Elegantes), com mediação de Nanni Rios. A imprensa da Feira fez um relato muito bom sobre o evento, que foi transmitido ao vivo pelo Facebook e que não contou com protestos conservadores.

Durante o debate, pouco se falou sobre sexo e erotismo e muito se comentou sobre presença e apagamento LGBT na literatura. E para não se dizer que não houve momento político e ideológico, cabe enfatizar que o vilão do livro Homens Elegantes chama-se Conde de Bolsonaro. O enredo conta com um protagonista gay, o que torna muito simbólica a escolha desse nome. Na visão do autor, ele precisava denominar o personagem de uma forma que fosse facilmente identificado como alguém vil. Eis a descrição do personagem no livro:

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“O olhar de colonizador, condescendente e paternal. É o olhar de quem considera a própria superioridade um fato estabelecido, uma verdade dogmática, e do alto de sua arrogância observa o mundo que o cerca como sendo habitado por selvagens ignorantes. Ao falar, inclina a cabeça para trás e ergue o queixo, tem um modo estranho de cobrir os dentes com o lábio superior, como se estivesse sempre, a todo instante e a muito custo contendo uma explosão de raiva.

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O canto esquerdo da boca é caído, como que congelado numa expressão de eterno desgosto com o mundo. Há algo de errado naquele rosto – mas o quê? É redondo e comum, emoldurado pela peruca branca, vistosa e cacheada. A pele do pescoço é murcha, coisa da idade – sessenta anos, talvez?

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Nem a boca, nem a bochecha, nem o olho. Sua voz anasalada tem a entonação e os trejeitos de quem dá a entender que tudo é óbvio, muito óbvio, tão óbvio que é sempre uma bobagem que ainda precise ser dito, mas ele o faz mesmo assim, uma concessão entediada em abrir a boca e estabelecer qualquer diálogo. Tudo nele exala arrogância

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Sim, não restam dúvidas: o conde de Bolsonaro é a pessoa mais desagradável que Érico já conhecera em toda a sua vida.”

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Na Feira do Livro da resistência, como bem definiu a patrona Valesca de Assis ao assumir o cargo, nada mais animador do que romper com a lógica de ceder ao medo e promover, sim, conversas instigadoras. A feira já contou com protestos conservadores lá no seu início, mirando contra as causas feministas.

A Feira segue até o dia 19, transformando o centro de Porto Alegre numa área de efervescência cultural. Essa que vos escreve vai mediar um bate-papo nessa quarta-feira, voltado ao público infantil. Torço para que as novas gerações não sejam contaminadas por esse momento lamentável de incentivo ao preconceito que vivemos atualmente.

Sigamos juntos. Resistindo.

Voos Literários

O Velho e o Mar, uma inspiração para a resistência

Flávia Cunha
31 de outubro de 2017

Há duas semanas, escrevi esse texto fazendo algumas reflexões sobre a onda conservadora que resolveu usar o termo comunista como ofensa. Desde então, entre outros absurdos cometidos por aí, houve uma ameaça à aula sobre Revolução Russa em uma universidade do Rio de Janeiro.

A Revolução Russa completa 100 anos em 2017. Sendo assim, parece-me bastante natural seja analisada com certa deferência em cursos de história. O que chama atenção, no entanto, é a incoerência desse tipo de comportamento que prefere o silêncio ao debate. A pessoa  bradar contra a “ditadura comunista” que supostamente teria sido implantada pelo PT no Brasil mas fazer uso de truculência e exigência de silenciamento de assuntos que consideram contrários a seus interesses.

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Afinal, a falta de liberdade não é uma das críticas dessas mesmas pessoas ao regime implementado na ex-União Soviética e, até hoje, em Cuba?

É difícil de entender

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Mas voltemos ao xingamento que recebi, que motivou meu primeiro texto: um dos chavões do momento “Comunista, vai pra Cuba”. A verdade é que o mundo mudou muito desde 1959, quando ocorreu a Revolução Cubana, até os dias atuais, com o irmão de Fidel Castro no comando da ilha. Existem muitas controvérsias sobre se é bom ou ruim morar em Cuba.

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Porém, o que proponho agora é uma volta no tempo, antes de Fidel e Che Guevara tirarem do poder o ditador Fulgencio Batista, que tinha o apoio dos Estados Unidos

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Foi a partir de 1939 que o escritor norte-americano Ernest Hemingway escolheu Cuba como seu lar. Viveu lá por cerca de 20 anos. Os relatos são de que Hemingway gostava muito de morar naquele país e foi onde escreveu uma das suas obras mais famosas: O Velho e o Mar. Poderia ser simplória a narrativa do pescador Santiago, um idoso que fica 84 dias sem conseguir fisgar nada até entrar numa brava luta para conseguir chegar à costa com um enorme peixe.

Porém, o livro é uma grande metáfora da solidão e da velhice, no meu ponto de vista. Além de remeter à ideia de que nunca é tarde para sonhar e tentar alcançar nossos objetivos. Uma das minhas frases preferidas dessa grande obra é:

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“ – Mas o homem não foi feito para a derrota – disse em voz alta. – Um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado.”

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Acho que essa pode ser uma boa inspiração para os dias atuais. Sejamos como o velho Santiago, que não se deu por derrotado mesmo em meio a grandes adversidades.

Sobre Hemingway, é importante ressaltar que ele ganhou um Pulitzer e o Nobel de Literatura após a publicação de O Velho e o Mar, em uma época em que o autor já estava um pouco desacreditado pela crítica.

A respeito de Cuba, ainda resta dizer que ele viveu por lá até 1959. Com a Guerra Fria e o rompimento de relação com os Estados Unidos, precisou voltar para seu país de origem, onde suicidou-se alguns anos depois. Aqui tem uma matéria a respeito com detalhes interessantes sobre o assunto.

Agora, uma última provocação. Acho que Hemingway também não se importaria de ser mandado para Cuba pelos conservadores da atualidade. Ainda mais ele, que (dizem) simpatizou com a causa comunista na Guerra Civil da Espanha, na década de 1930.

Voos Literários

“Comunista, vai pra Cuba!!”

Flávia Cunha
17 de outubro de 2017

Essa frase (e variações dela) vem sendo reproduzidas em comentários pela Internet, essa rede criada para interligar as pessoas mas que parece cada vez mais ser usada como instrumento de propagação de ódio. Fiquei divagando sobre esse tipo de declaração, ao ter um comentário desses associado a um texto meu. Fiquei genuinamente intrigada. 

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O que faz com que o internauta em questão ache que eu sou comunista?

E “comunista” é xingamento?

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Então, fui fazer algumas pesquisas para propor reflexões a respeito. A verdade é que o tão temido comunismo nunca foi aplicado em nenhum país, por prever o fim do Estado com a chegada da igualdade absoluta entre os cidadãos. A sociedade, portanto, arranjaria uma maneira de se autorregulamentar. Seria, a grosso modo, a etapa final do socialismo, esse sim implementado na antiga União Soviética e em Cuba, por exemplo.

Para entender as raízes do ódio ao comunismo, cheguei num artigo sobre o anticomunismo e constatei que não  há um consenso nesse movimento. Liberais, conservadores, democratas cristãos, fascistas e nazistas têm (ou tiveram) em comum o ódio aos comunistas. O principal motivo, me parece, seria por essa ideologia prever o fim da propriedade privada.

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Mas o que está ocorrendo no Brasil para que de uma hora para outra tanta gente fale em comunismo de forma tão agressiva? Sempre foi assim?

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Nas minhas investigações de obras ligadas ao tema, encontrei alguns fatos curiosos. Em 1980, um livro da coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense com o título O Que é Comunismo? foi lançado sem problema algum em território brasileiro, mesmo antes da abertura política.  

Em 1985, era a vez de uma biografia sobre uma comunista virar sensação entre leitores de diferentes vertentes políticas. Olga, de Fernando Morais, aborda a trajetória da comunista e judia Olga Benário, como explica o jornalista, na introdução da obra:

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“A reportagem que você vai ler agora relata fatos que aconteceram exatamente como estão descritos neste livro; a vida de Olga Benario Prestes, uma história que me fascina e atormenta desde a adolescência, quando ouvia meu pai referir-se a Fílinto Müller como o homem que tinha dado a Hitler, “de presente”, a mulher de Luís Carlos Prestes, uma judia comunista que estava grávida de sete meses. Perseguido por essa imagem, decidi que algum dia escreveria sobre Olga, projeto que guardei com avareza durante os anos negros do terrorismo de estado no Brasil, quando seria inimaginável que uma história como esta passasse incólume pela censura.”

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Perceberam a última frase? Em 1985, era possível escrever sobre uma comunista sem ser execrado. Aliás, as críticas da época foram muito boas, como podemos notar pelas avaliações da imprensa da época, que constam nessa primeira edição.

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“Além de ser um retrato de corpo inteiro de Olga Benario, o livro acabou sendo uma história completa da revolta comunista de 1935.” (O Globo)

“Estou impressionado com a qualidade do texto e com o belo profissionalismo com que o trabalho foi encarado. É, sem sombra de dúvida, uma excelente obra e um livro indispensável.” (Tarso de Castro – Tribuna da Imprensa)

“Não é apenas o relato da vida e da morte de Olga Benario, mas traz revelações inéditas e polêmicas sobre a revolta comunista de 1935.” (Jornal O São Paulo)

“Só agora a fascinante história de Olga é contada de verdade para nós – e de forma apaixonada.” (Marília Gabriela – TV Bandeirantes)

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O livro Olga foi reeditado com sucesso em 1994 quando também não houve nenhum tipo de comoção por abordar, com humanidade e alguma ternura, a trajetória de uma comunista. O filme Olga, de 2004, tampouco enfrentou críticas do gênero. Alguma coisa realmente parece ter mudado nesses últimos anos no Brasil. E, no meu ponto de vista, não foi para melhor.

Sobre Cuba, citada no título desse texto, falarei em breve. A abordagem será de uma obra passada na terra de Fidel e escrita por um norte-americano premiadíssimo. Aguardem!

Voos Literários

(Quase) toda a nudez será castigada nas redes sociais

Flávia Cunha
3 de outubro de 2017

A arte nunca esteve tão em evidência. Pena que o motivo seja o conservadorismo, que voltou com força total, com a defesa de que exposições de arte e performances não apresentem transgressões, como a nudez. No país do Carnaval, do fio dental nas praias e dos filmes pornô conhecidos mundo afora, de uma hora para outra parece que ficar pelado em cena ou retratar o sexo nas artes visuais tornou-se um tabu.

Em se tratando de literatura, é bom não esquecer a queima de livros em praça pública em cidades universitárias da Alemanha nazista. Capitaneada pelo governo e com o apoio de jovens (alô, MBL!!), o objetivo era buscar obras que fossem consideradas impuras, decadentes ou degeneradas. Tudo isso, claro, de acordo com o juízo de valor do regime nazista da época.

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Perceberam o perigo que existe na patrulha ideológica da atualidade?

Quem vai considerar o que é arte e o que é “sem vergonhice”?

Qual o critério?

E, principalmente, quem vai estudar a sério o assunto antes de destilar ódio e histeria nas redes sociais?

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No Brasil, Nelson Rodrigues foi um dos que sofreu duras críticas e censura por suas obras, principalmente ao escrever para o teatro. O curioso é ele não era de esquerda nem libertário, autodenominava-se reacionário e chegou a defender o regime militar. Porém, a criação de enredos com questionamento à hipocrisia das famílias tradicionais e recorrentes personagens levados ao incesto, fizeram com que os conservadores ficassem de cabelo em pé com Nelson, classificando-o como um autor maldito.

A terceira peça teatral rodrigueana, Álbum de Família, foi a primeira dele a ser proibida nacionalmente. O espetáculo Senhora dos Afogados também foi censurado e depois liberado. Apenas em São Paulo seguiu sendo proibida na época, por pressão da Liga das Senhoras Católicas. O mesmo fato ocorreu com Perdoa-me por me traíres. Essa liga devia ser muito forte em São Paulo nesse período, pelo jeito.  

A reação de Nelson? Aproveitar a publicidade gerada pela censura para conseguir mais público depois da liberação. É o que podemos ver nesse cartaz da peça Anjo Negro.

Toda nudez será castigada gerou polêmica foi no cinema. O enredo criado por Nelson Rodrigues no filme dirigido por Arnaldo Jabor foi considerado imoral pela censura. Três meses após sua liberação, os rolos da película foram apreendidos em todo o território nacional. Na mesma época, o longa-metragem foi premiado no Festival Internacional de Berlim, sendo então permitida sua exibição nas salas de cinema, com muitos cortes. Hoje, é considerado um dos melhores filmes brasileiros, de acordo com a Associação Brasileira dos Críticos de Cinema.

Moral da história? Os cidadãos de bem têm uma certa miopia para avaliar o que é Arte ou não. Existem longos debates no meio acadêmico justamente com essa questão. Nas minhas incursões no mundo das Letras, participei de muitas aulas onde era avaliado o que faz um texto ser considerado literário. E, só para constar, Nelson Rodrigues faz parte do cânone literário, mesmo tendo sido considerado um “imoral” lá nos idos de 1960/1970.