Raquel Grabauska

O drama da Feira do Livro

Raquel Grabauska
9 de novembro de 2018

Desde que foram concebidos os guris estiveram no palco. Criei espetáculos com eles na barriga, apresentei até 15 dias antes do parto, voltei a apresentar quando tinham três meses. Crianças de cochia. Familiarizados com a arte, com o palco, com a movimentação do ofício da mãe.

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Agora, tenta ir numa peça com eles!!!!!

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Fui na Feira do Livro. Para convencer a entrar no auditório, quase rolou chantagem. Da minha parte, é claro. Quando o espetáculo começou, os ouvidos doíam que iam explodir. Sendo que o era no mínimo mil vezes mais baixo do que qualquer grito deles.

O mais velho tinha um livro nas mãos. Isso foi ajudando. Um pouco olhava o livro, um pouco a peça. Lá pelas tantas, via algo bem legal no livro e eu tinha que fazer um delicado “psssssst!” para os mil comentários sobre o que ele tinha visto. O mais novo teve a ideia genial de levar um boneco de Lego.

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Claro, quando o mais velho estava concentrado na peça, o boneco maldito caiu arquibancada abaixo. Mas não todo o boneco. Só o capacete. Preto. No paralelepípedo. Embaixo da arquibancada.

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Adivinhem quantos dois segundos demorou para o choro? O pai das crianças já estava embaixo da arquibancada procurando. Eu tentando manter alguma dignidade. A peça lá no palco. Aí mais velho fala: “mamãe, o papai não pode ir ali! Eles avisaram que não podia ir! Se caísse algo era pra chamar alguém de azul!” E explica pra ele. O pai embaixo. O irmão chorando. A peça acabou.

Alguns bons samaritanos do público, entendendo o drama, ajudaram a procurar. A equipe de produção TODA ajudou a procurar. Quando as lágrimas já estavam secas e ele quase conformado, nós já indo embora, o pai achou. Super pai, super herói. Me deu vontade de acender fogos de artifício.

Enquanto isso,  filha da minha amiga que não é do teatro, depois de assistir a peça toda, estava olhando os livros.

Voos Literários

Os Livros Fora do Armário na Feira da Resistência

Flávia Cunha
15 de novembro de 2017

Prestigiei um evento sobre literatura LGBT na Feira do Livro de Porto Alegre. Tema instigante, com escritores talentosos e que sabiam falar muito além de sua própria obra. Seria apenas mais uma atividade bacana da área cultural da capital gaúcha se por trás disso não houvesse uma verdadeira batalha para sua realização.

Primeiro, o evento Os Livros Fora do Armário – A Literatura Orgulhosamente LGBT seria realizado no Santander Cultural. Aquele lugar mesmo, da polêmica exposição Queermuseu. O que ocorre é que a programação da Feira do Livro é fechada meses antes e, por isso, o Santander não podia prever a repercussão que daria mais um evento envolvendo sexualidade e gênero em suas dependências. Não deu outra.

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Pressão de grupos conservadores fez com que o evento fosse trocado de lugar

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O que ninguém poderia imaginar é que a direção do novo local escolhido, o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, também temesse problemas devido ao debate e recuasse da ideia de sediar o evento. Mesmo assim, a organização da Feira do Livro, em uma atitude que considero corajosa, manteve a programação. O painel passou para o Teatro Carlos Urbim, na Praça da Alfândega, contando com policiamento da Brigada Militar.

Foi esse o panorama que antecedeu a conversa entre Natalia Borges Polesso (autora do livro Amora) e Samir Machado de Machado (autor do livro Homens Elegantes), com mediação de Nanni Rios. A imprensa da Feira fez um relato muito bom sobre o evento, que foi transmitido ao vivo pelo Facebook e que não contou com protestos conservadores.

Durante o debate, pouco se falou sobre sexo e erotismo e muito se comentou sobre presença e apagamento LGBT na literatura. E para não se dizer que não houve momento político e ideológico, cabe enfatizar que o vilão do livro Homens Elegantes chama-se Conde de Bolsonaro. O enredo conta com um protagonista gay, o que torna muito simbólica a escolha desse nome. Na visão do autor, ele precisava denominar o personagem de uma forma que fosse facilmente identificado como alguém vil. Eis a descrição do personagem no livro:

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“O olhar de colonizador, condescendente e paternal. É o olhar de quem considera a própria superioridade um fato estabelecido, uma verdade dogmática, e do alto de sua arrogância observa o mundo que o cerca como sendo habitado por selvagens ignorantes. Ao falar, inclina a cabeça para trás e ergue o queixo, tem um modo estranho de cobrir os dentes com o lábio superior, como se estivesse sempre, a todo instante e a muito custo contendo uma explosão de raiva.

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O canto esquerdo da boca é caído, como que congelado numa expressão de eterno desgosto com o mundo. Há algo de errado naquele rosto – mas o quê? É redondo e comum, emoldurado pela peruca branca, vistosa e cacheada. A pele do pescoço é murcha, coisa da idade – sessenta anos, talvez?

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Nem a boca, nem a bochecha, nem o olho. Sua voz anasalada tem a entonação e os trejeitos de quem dá a entender que tudo é óbvio, muito óbvio, tão óbvio que é sempre uma bobagem que ainda precise ser dito, mas ele o faz mesmo assim, uma concessão entediada em abrir a boca e estabelecer qualquer diálogo. Tudo nele exala arrogância

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Sim, não restam dúvidas: o conde de Bolsonaro é a pessoa mais desagradável que Érico já conhecera em toda a sua vida.”

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Na Feira do Livro da resistência, como bem definiu a patrona Valesca de Assis ao assumir o cargo, nada mais animador do que romper com a lógica de ceder ao medo e promover, sim, conversas instigadoras. A feira já contou com protestos conservadores lá no seu início, mirando contra as causas feministas.

A Feira segue até o dia 19, transformando o centro de Porto Alegre numa área de efervescência cultural. Essa que vos escreve vai mediar um bate-papo nessa quarta-feira, voltado ao público infantil. Torço para que as novas gerações não sejam contaminadas por esse momento lamentável de incentivo ao preconceito que vivemos atualmente.

Sigamos juntos. Resistindo.