Voos Literários

Livro Livre . um slogan para a resistência

Flávia Cunha
6 de novembro de 2018

A Feira do Livro de Porto Alegre, um dos eventos literários mais tradicionais do país, vai até o dia 18 de novembro, no centro da capital gaúcha. A Feira, em sua 64a edição, é um exemplo de resiliência. Todos os anos é necessário um esforço para garantir sua realização, por meio de patrocínios, apoios e parcerias. Acompanho os bastidores do evento desde 2015, quando comecei a atuar na área editorial e conheci uma parte dos responsáveis pela organização da feira, que é uma das responsabilidades da Câmara Rio-grandense do Livro.

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São pessoa apaixonadas pelo que fazem e que lutam contra a falta de recursos financeiros com jogo de cintura e  valentia

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E foi preciso coragem (e diplomacia) para enfrentar a prefeitura de Porto Alegre, que queria cobrar uma taxa de milhares de reais pelo uso do espaço público, já que uma das características – e charmes – da Feira do Livro é ser realizada a céu aberto, em uma das principais praças do centro da cidade. Houve pressão por parte do meio cultural, além de  negociações diretas com o poder público. No fim, o prefeito Nelson Marchezan, do PSDB, cedeu e desistiu da cobrança. Na abertura oficial da feira, no dia 10, ele ironizou a situação e resolveu dar mais esclarecimentos, citando que em época de fake news era melhor deixar claro o que tinha ocorrido na época. ““A Feira do Livro é uma das poucas unanimidades que temos na nossa cidade. A partir de agora, o evento vai contar com segurança jurídica para acontecer todo ano, independente de vontades pessoais”, ressaltou.

Ele se referia à modificação de um decreto que tornou isentos de compensação financeira eventos que estejam classificados como bem cultural e de natureza imaterial.  É o caso da Feira do Livro de Porto Alegre, que já recebeu distinções como a Ordem do Mérito Cultural, em 2006, concedida pela presidência da república por ser um dos eventos culturais mais importantes do Brasil. Em 2005, foi declarada como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio Grande do Sul e, em 2010, passou a integrar o Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial da cidade.

Mesmo assim, foi necessária um embate com a prefeitura para que enfim não ocorresse essa cobrança que inviabilizaria um evento com 100% das atividades gratuitas. E são muitas. Nesse ano, serão mais de 700 sessões de autógrafos, de autores de todos os gêneros literários. E cerca de 500 atividades, como oficinas, mesas de debate, palestras e espetáculos teatrais.

Em meio a esses percalços, a organização seguiu com o planejamento das ações para a feira do livro de 2018. E criou uma campanha com um slogan que tem tudo a ver com o momento atual: Livro Livre – Um Mundo na Praça.

É necessário se falar em liberdade, quando muitos querem cercear a liberdade de professores em sala de aula, uma das profissões que mais podem incentivar a leitura no país. É preciso ter livros livres para que possamos ter senso crítico, inclusive para discordar de forma articulada e racional do que estamos lendo. É preciso interpretação de texto para evitar sermos enganados por notícias falsas, tão comum nos dias atuais.

E é preciso ter eventos culturais como esse. Livres e ocupando espaços públicos. Um dos exemplos do que estou me referindo foi um debate sobre a luta para o acesso a leitura promovido por representantes de bibliotecas comunitárias.

O Slam Conexões trouxe poesia para a praça, sem deixar de lado o engajamento político, com o coro de: “Racistas, fascistas, não passarão!”

Outro evento que merece destaque é a Mostra da Resistência, que contará com o lançamento de um e-book sobre o legado de Paulo Freire.

Pessoalmente, estou envolvida com duas atividades na programação oficial da Feira do Livro de Porto Alegre, o que me traz muito orgulho. Um é um evento cultural infantil chamado MúsicaLivro ao Vivo, no qual conto com a parceria generosa de músicos para fazerem essa conexão entre musicalidade e literatura.  Será nessa terça-feira, dia 6, no Teatro Carlos Urbim, na Praça da Alfândega.

No dia 8, quinta-feira, participarei de um painel com a jornalista de São Paulo, Gabriela Romeu, sobre produção cultural para a infância e seu espaço na mídia.  Gabriela também é escritora, documentarista e crítica de teatro infantil. Será um bate-papo em que o cerceamento à liberdade certamente virá à tona durante a conversa.

Sigamos livres!!

Foto de capa: Maria Ana Krack / PMPA

Foto – Evento bibliotecas comunitárias : Diego Lopes/Feira do Livro de Porto Alegre

Foto – Slam Conexões: Pedro Heinrish/Feira do Livro de Porto Alegre

Voos Literários

Os Livros Fora do Armário na Feira da Resistência

Flávia Cunha
15 de novembro de 2017

Prestigiei um evento sobre literatura LGBT na Feira do Livro de Porto Alegre. Tema instigante, com escritores talentosos e que sabiam falar muito além de sua própria obra. Seria apenas mais uma atividade bacana da área cultural da capital gaúcha se por trás disso não houvesse uma verdadeira batalha para sua realização.

Primeiro, o evento Os Livros Fora do Armário – A Literatura Orgulhosamente LGBT seria realizado no Santander Cultural. Aquele lugar mesmo, da polêmica exposição Queermuseu. O que ocorre é que a programação da Feira do Livro é fechada meses antes e, por isso, o Santander não podia prever a repercussão que daria mais um evento envolvendo sexualidade e gênero em suas dependências. Não deu outra.

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Pressão de grupos conservadores fez com que o evento fosse trocado de lugar

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O que ninguém poderia imaginar é que a direção do novo local escolhido, o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, também temesse problemas devido ao debate e recuasse da ideia de sediar o evento. Mesmo assim, a organização da Feira do Livro, em uma atitude que considero corajosa, manteve a programação. O painel passou para o Teatro Carlos Urbim, na Praça da Alfândega, contando com policiamento da Brigada Militar.

Foi esse o panorama que antecedeu a conversa entre Natalia Borges Polesso (autora do livro Amora) e Samir Machado de Machado (autor do livro Homens Elegantes), com mediação de Nanni Rios. A imprensa da Feira fez um relato muito bom sobre o evento, que foi transmitido ao vivo pelo Facebook e que não contou com protestos conservadores.

Durante o debate, pouco se falou sobre sexo e erotismo e muito se comentou sobre presença e apagamento LGBT na literatura. E para não se dizer que não houve momento político e ideológico, cabe enfatizar que o vilão do livro Homens Elegantes chama-se Conde de Bolsonaro. O enredo conta com um protagonista gay, o que torna muito simbólica a escolha desse nome. Na visão do autor, ele precisava denominar o personagem de uma forma que fosse facilmente identificado como alguém vil. Eis a descrição do personagem no livro:

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“O olhar de colonizador, condescendente e paternal. É o olhar de quem considera a própria superioridade um fato estabelecido, uma verdade dogmática, e do alto de sua arrogância observa o mundo que o cerca como sendo habitado por selvagens ignorantes. Ao falar, inclina a cabeça para trás e ergue o queixo, tem um modo estranho de cobrir os dentes com o lábio superior, como se estivesse sempre, a todo instante e a muito custo contendo uma explosão de raiva.

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O canto esquerdo da boca é caído, como que congelado numa expressão de eterno desgosto com o mundo. Há algo de errado naquele rosto – mas o quê? É redondo e comum, emoldurado pela peruca branca, vistosa e cacheada. A pele do pescoço é murcha, coisa da idade – sessenta anos, talvez?

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Nem a boca, nem a bochecha, nem o olho. Sua voz anasalada tem a entonação e os trejeitos de quem dá a entender que tudo é óbvio, muito óbvio, tão óbvio que é sempre uma bobagem que ainda precise ser dito, mas ele o faz mesmo assim, uma concessão entediada em abrir a boca e estabelecer qualquer diálogo. Tudo nele exala arrogância

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Sim, não restam dúvidas: o conde de Bolsonaro é a pessoa mais desagradável que Érico já conhecera em toda a sua vida.”

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Na Feira do Livro da resistência, como bem definiu a patrona Valesca de Assis ao assumir o cargo, nada mais animador do que romper com a lógica de ceder ao medo e promover, sim, conversas instigadoras. A feira já contou com protestos conservadores lá no seu início, mirando contra as causas feministas.

A Feira segue até o dia 19, transformando o centro de Porto Alegre numa área de efervescência cultural. Essa que vos escreve vai mediar um bate-papo nessa quarta-feira, voltado ao público infantil. Torço para que as novas gerações não sejam contaminadas por esse momento lamentável de incentivo ao preconceito que vivemos atualmente.

Sigamos juntos. Resistindo.