Reportagens Especiais

Racismo não é privilégio

Colaborador Vós
27 de novembro de 2020
Por Leandro Godinho*

Tomo a liberdade de considerar que se você está lendo esse texto, é porque já sabe que, na noite de 19 de novembro passada, João Alberto Silveira Freitas foi espancado até a morte por duas pessoas que trabalhavam na segurança do supermercado Carrefour, em Porto Alegre.

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João Alberto, o Beto, era um negro
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Muito já foi dito sobre o ocorrido. Dentro desse muito, uma edição do podcast Bendita Sois Vós, publicado nesta quarta-feira, dia 25, que trouxe para a sua bancada outros dois jornalistas: Maikio Guimarães e Marcelo Nepomuceno. Aos 12 minutos e 20 segundos do programa, Geórgia Santos, a apresentadora do podcast, elabora uma pergunta que me fez sentar aqui para escrever essa espécie torta de resposta, ou tréplica — porque a pergunta, na verdade, foi respondida durante a gravação por Nepomuceno: aconteceria com uma pessoa branca o que aconteceu com o Beto?

Grande parte da tragédia do nosso racismo, para mim, passa pela dificuldade de responder a essa pergunta. Não porque o racismo seja algo difícil de ser visto no Brasil. Alguém que esteja lendo essa frase nunca ouviu ou contou uma piada de preto na infância? Alguém nunca ouviu a frase “preto correndo é ladrão”? “Nêga do cabelo duro” não é título de apenas um grande sucesso do cancioneiro musical brasileiro, mas de dois. (E não estou citando todo um universo de dados computados que nos dizem, há anos, que a pele negra torna a vida de qualquer pessoa, mas em especial de pobres e mulheres, muito mais difícil no Brasil — o que não é privilégio nosso, porque o mesmo fenômeno acontece no mundo todo.)

A tragédia, penso, é que mesmo dentro dessa realidade, uma realidade onde a gente sabe o nome das pessoas negras que, por exemplo, sentam na bancada de um telejornal (porque todas as outras são brancas), ou são nomeadas para o Supremo Tribunal Federal (porque todas as outras são brancas), ou chegam a qualquer lugar de destaque onde as pessoas são sempre, sempre, sempre brancas, o racismo não vira um assunto.

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Porque para ser assunto, o racismo ainda precisa do aval das pessoas brancas, que não são as vítimas
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Acontece que não basta ser branco para não ser um fodido no Brasil. Existem pessoas brancas e pobres, e mais do que apenas pobres, mas fodidas — sem a perspectiva do acesso a uma vida melhor. Essas pessoas também são maltratadas pelo país, pela vida, também estão sujeitas ao que a vida reserva para quem não pode pagar plano de saúde, escola particular, condomínio: elas também não podem passear no shopping, entrar nos bancos, frequentar salas de embarque de aeroportos sem parecer corpos estranhos.

Talvez para essas pessoas, quando um negro acusa o racismo, ele está se valendo de algo que ela não tem — a pele negra — para fugir dessa miséria. O racismo, que é crime, pode ser confundido com uma espécie de privilégio dentro da nossa tragédia racial. Para essas pessoas, ser vista como alguém a ser esculachado porque parece pobre demais para ter direito a ter voz também deve ser uma realidade muito concreta. Quando uma pessoa negra aponta o racismo, essa pessoa percebe que perdeu mais uma vez: se acontecer comigo, o que vou dizer?

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Mas é claro: quando acontece, a gente sabe, a vítima tem pele negra
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Não é à toa que moramos num país onde minorias lutam para que racismo, feminicídio e homofobia sejam judicializados. Isso não é privilégio. Ser negro, ser mulher e ser gay nesse país não é privilégio. Pessoas negras, mulheres e gays sofrem violências cotidianas porque apenas são. Estar bem vestido não garante a quem tem pele negra a segurança de dormir em casa.

Beto, lembremos, estava com a sua esposa na fila de um supermercado, pagando as compras. Algo se passou nessa cena que atraiu os seguranças para Beto e partir daí, Beto deixou de ser um homem para ser um negro que não aceitou o esculacho. E foi assim que mataram mais um preto no Brasil.

*Leandro Godinho, servidor público

Texto originalmente publicado na página Peço Perdão, no Medium

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Imagem: montagem com foto de Luiza Castro, do Sul 21, durante protesto realizado em Porto Alegre em 20/11/2020

Reportagens Especiais

Para entender (e combater) o discurso racista

Colaborador Vós
23 de novembro de 2020
Por Maikio Guimarães*

Porto Alegre, 14 de maio de 1987. Júlio César de Melo Pinto foi executado por policiais militares, dentro de uma viatura, após ter sido confundido com o assaltante de um supermercado. Porto Alegre, 19 de novembro de 2020. João Alberto Silveira Freitas foi espancado até a morte na porta do supermercado Carrefour. Um intervalo de 33 anos separa os episódios. Em comum nas histórias, as mortes violentas de dois homens negros. Este parágrafo de abertura é apenas para lembrar que não passa de ilusão a ideia de que o racismo tem diminuído na sociedade brasileira.

Cena do documentário ‘O Caso do Homem Errado’, sobre a morte de Júlio César em 1987 – Divulgação

Racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento. Na base de grande parte dos problemas enfrentados pelos negros no Brasil, está o racismo estrutural, que integra a organização econômica e política da sociedade. Como destaca Silvio Almeida, as pessoas e as instituições possuem condutas racistas porque a sociedade é racista.

Nos últimos 132 anos, a narrativa racista foi permanentemente atualizada no Brasil. Pensando nisto, a partir deste ponto, serão apresentados alguns argumentos racistas em destaque hoje. Tente lembrar quantas vezes você já deparou com estas ideias.

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Argumento racista número 1 . O Brasil é uma democracia racial

A partir da década de 1930, as elites passaram a defender que existia uma convivência pacífica entre as raças em terras brasileiras. A miscigenação, neste cenário, passou a ser apontada como um item básico da identidade nacional. De fato, nunca existiu convivência pacífica entre raças no Brasil. O que perdura é um sistema de opressão que nega direitos aos negros. O conceito de democracia racial tem sido refutado por pessoas negras (dentro e fora do ambiente acadêmico) desde sempre. A ideia, no entanto, não foi definitivamente sepultada. Cada vez que um caso de racismo gera comoção, alguma autoridade branca resgata a mofada tese da democracia racial.

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Argumento racista número 2 . O Brasil não é um país racista

A pessoa que afirma não existir racismo no Brasil tem como propósito silenciar qualquer manifestação negra em defesa de direitos. Em um cenário onde todas as estatísticas comprovam categoricamente as desvantagens dos negros nas mais diversas áreas, não faz sentido a defesa de um argumento distante da verdade.

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Argumento racista número 3 . Querem dividir a sociedade com esta história de racismo

É uma manifestação perfeita para um esquete de humor. Quem faz tal afirmação costuma defender a fantasiosa ideia de uma democracia racial. Acredita que os negros vão liquidar a unidade social ao falarem sobre racismo. Não quero estragar o prazer de ninguém, mas informo que a sociedade brasileira nunca esteve unida. O leitor ou leitora não precisa acreditar em mim. Pesquise nos 520 anos de História do Brasil. Procure resquícios da encantada unidade da sociedade brasileira. Não vai achar nada. Quando se observa o histórico da convivência entre brancos e negros, fica evidente a existência de uma relação prejudicial aos negros. Defender que as pessoas querem “dividir a sociedade” ao tratar de racismo não passa de um argumento rasteiro de quem deseja ignorar a realidade e manter privilégios.

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Argumento racista número 4 . Racismo reverso

Do fim da escravidão aos dias de hoje, tem sido possível observar uma indiferença em relação às precárias condições de vida da população negra. Esta letargia se transforma em oposição ativa quando a demanda negra por mudança se torna forte. Basta observarmos a História do Brasil nos últimos 20 anos. Quando ganhou força o debate sobre a adoção do sistema de cotas nas universidades federais, velhos argumentos foram reciclados. Alegaram que não existia racismo no país. Defenderam que tal medida iria dividir a sociedade brasileira. Teve quem afirmou que pessoas brancas teriam suas vagas roubadas pelos negros. Todas estas alegações tinham como base a preocupação de um grupo focado em não perder privilégios. As universidades federais foram criadas para formar os filhos da elite brasileira. Estas instituições se mantiveram assim até o início do século 21. Quando os negros reivindicaram uma fatia do bolo, o grupo que detinha praticamente o monopólio do acesso ao ensino superior se sentiu ultrajado.

Argumentos semelhantes foram resgatados quando a rede de lojas Magazine Luiza informou que iria contratar trainees negros. Diversas pessoas utilizaram as redes sociais para manifestar repúdio. Em diversos comentários, “cidadãos de bem” apresentaram os brancos como vítimas de racismo reverso. Em uma situação pontual, uma pessoa branca pode ouvir uma manifestação preconceituosa. No entanto, brancos não são sistematicamente discriminados por causa da cor da pele. E outra. Os negros estão sub-representados na política, na direção de empresas e em quaisquer meios de dominação. Não seria sequer viável criar uma estruturar para subjugar os brancos.

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Argumento racista número 5 . O politicamente correto é uma chatice

Vale refletir o que faz uma pessoa reclamar do politicamente correto. Por muito tempo, a sociedade brasileira viu com naturalidade a circulação de manifestações de desprezo por minorias raciais na forma de humor. O chamado racismo recreativo. Ao longo do século 20, as pessoas negras foram rotuladas como burras, feias, bêbadas, fracassadas e sexualmente inadequadas.

Hoje, existe uma reação rápida a qualquer manifestação que procure desmerecer os negros. A internet potencializa mobilizações e manifestações de repúdio. A resposta negra frustra quem gosta de fazer piadas preconceituosas. Quem estava acostumado a rir dos negros é que considera o politicamente correto uma chatice.

“Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos. O preconceito e o desprezo ainda são iguais. Nós somos negros, também temos nossos ideais. Racistas otários, nos deixem em paz.” Este é um trecho da música “Racistas otários”, dos Racionais MC’s. Uma canção de muito sucesso na década de 1990. Como quase nada muda no Brasil, a mensagem segue atual.

*Maikio Guimarães, jornalista e professor universitário

 

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Imagem: montagem com reprodução do vídeo que mostra o momento em que Mateus Abreu Almeida Prado Couto, 31, disfere ataques racistas ao motoboy Matheus Pires

Reportagens Especiais

Epidemia de violência . 648 mulheres foram vítimas de feminicídio na primeira metade de 2020

Geórgia Santos
15 de outubro de 2020

Atualização em 19 de outubro de 2020 após a publicação do Anúario da Segurança Pública

“Mama olhou em volta. Manteve os olhos fixos no relógio da parede durante algum tempo, o que estava com um dos ponteiros quebrados, e então se dirigiu a mim: – Sabe aquela mesinha onde guardamos a Bíblia da nossa casa, nne? Seu pai quebrou-a na minha barriga – disse, como se estivesse falando de outra pessoa, como se a mesa não fosse feita de madeira pesada. – Meu sangue escorreu todo por aquele chão antes mesmo de ele me levar ao St. Agnes.” Esta Mama é uma personagem do livro Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adiche. Ela é vítima constante dos abusos psicológicos e físicos do marido Eugene, chamado pela narradora, Kambili, de Papa. Kambili também sofre com os abusos e rompantes violentos do pai. As duas foram transcritas da imaginação de Chimamanda para o papel e são apresentadas ao mundo em uma obra de ficção, mas elas não existem apenas nas trezentas e poucas páginas de papel de um livro. No Brasil e no mundo, milhares de mulheres sofrem com a violência doméstica todos os dias. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima  que 35% das mulheres já passaram por uma situação de violência em algum ponto da vida. Nós conhecemos muitas Mamas. Nós conhecemos muitas Kambilis. Você também conhece.

Na circunstância da pandemia do novo coronavírus e submetida a um isolamento com o marido violento e os dois filhos, a nossa Mama* viu a violência se acumular nas pupilas do companheiro conforme também aumentava a frustração com o insuportável “novo normal”. O abuso psicológico e a violência patrimonial antes latentes estavam escalando e ela ficou com medo de sofrer violência física. Então, ela fez o mais difícil.  Em cinco de agosto deste ano, a nossa Mama pediu ajuda a uma amiga, que encaminhou um pedido a um grupo de apoio:

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“Bom dia, gurias. Alguém sabe se existe algum lugar de acolhimento ou casa de passagem pra vítima de abuso, por enquanto psicológico, mas muito muito próximo de se tornar violência física? Seria pra ela e dois filhos, um de sete anos e outro de dois.”

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O pedido de ajuda é a parte mais difícil porque, geralmente, as mulheres que se encontram em uma situação de abuso pelo companheiro são constantemente ameaçadas, constrangidas e chantageadas. Especialmente as que sofrem de violência patrimonial, que, segundo texto da Lei Maria da Penha, é “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoas, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”  Ou seja, que é quando o parceiro controla o dinheiro da casa.

Era o caso da Mama criada por Chimamanda, que perguntava para a cunhada: “Para onde eu vou se sair da casa de Eugene? Diga, para onde eu vou?”. E era o caso da nossa Mama:

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“Ela não tem família ou amigos próximos, está desempregada, disse que ia tentar fazer bolos para vender na rua, mas o marido proibiu de fazer na casa e disse que não ia ficar com as crianças também.”
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E não tardou para chegar outra mensagem:

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“O cara surtou, quebrou as coisas todas das crianças e disse que ia matar ela e o mais velho.”
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Ela conseguiu o abrigo antes que o pior acontecesse e a promessa do homem violento não se concretizou. Outras Mamas, porém, não foram libertadas a tempo. Os números apresentados no Anúario Brasileiro de Segurança Pública mostram que, no primeiro semestre de 2020, cuja maior parte se deu no contexto da pandemia, houve um aumento da violência letal contra as mulheres. O documento produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indica que 648 mulheres foram vítimas de feminicídio na primeira metade deste ano, um aumento de 1,9% com relação ao mesmo período de 2019. Nota-se, ainda, um crescimento no número de chamadas para o 190. Houve um aumento de 3,8% nos acionamentos da PM em casos de violência doméstica. Ao todo, foram 147.379 pedidos de ajuda registrados em todo o país.

 

Segundo dados da ONU Mulheres, que é a entidade das Nações Unidas dedicada a promover a igualdade de gênero e o empoderamento feminino, uma em cada três mulheres sofre com violência física ou sexual no mundo, na maioria das vezes pelas mãos do companheiro ou algum familiar. Pesquisas locais indicam que, em alguns países, esse índice pode ser ainda maior e chegar a 70% das mulheres. No último ano, 243 milhões de meninas e mulheres entre as idades de 15 e 49 foram vítimas de algum tipo de abuso por parte de alguém do círculo íntimo de amigos ou familiares. Desde o início da pandemia de Covid-19, porém, dados emergentes e relatos de quem lida com essas mulheres cotidianamente dão conta de que o problema da violência contra a mulher aumentou. Principalmente a violência doméstica. A organização chama de Shadow Pandemic, que em tradução livre significa a Pandemia à Sombra. Nós chamamos de Epidemia de Violência.

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“Entrei na banheira e fiquei parada, olhando para ele. Não parece que Papa ia pegar um galho, e senti o medo, ardente e inflamado, encher minha bexiga e meus ouvidos. Não sabia  o que ele ia fazer comigo. Era mais fácil quando eu via o galho, porque podia esfregar as palmas das mãos e retesar os músculos das panturrilhas para me preparar. Mas Papa jamais me pedira para ficar de pé dentro da banheira. Então percebi a chaleira no chão, ao lado dos pés de Papa, a chaleira verde que Sisi usava para ferver água para o chá e para o garri, aquela que apitava quando a água começava a ferver. Papa apanhou-a.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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A Kambili de Chimamanda conhecia os hábitos do pai. Ela já havia apanhado incontáveis vezes de maneiras pouco sofisticadas mas extremamente dolorosas. A tortura com água quente foi uma novidade. Novidade também foi a agressão a que foi submetida a nossa Kambili*. Ela vive com a mãe e o padrasto que, antes do início da pandemia, parecia o homem perfeito para uma mulher que saíra de um casamento abusivo, em que era submetida a agressões verbais e violência patrimonial. Ninguém imaginou que ele seria uma pessoa violenta.

O aumento nos casos de violência contra a mulher pode ser explicado a partir do que a ONU chama de fatores exacerbantes, ou seja, situações estressantes e limítrofes que podem piorar o comportamento de quem já é agressivo. No caso da violência doméstica, antes de tudo aparecem as preocupações com dinheiro, segurança e saúde. Depois, são listados problemas como condições precárias de moradia, que fazem com que as pessoas precisem ficar juntas em espaços apertados em situações de isolamento social e o fato de se isolar com o abusador. Além da restrição de movimentos. Foi o caso do padrasto da nossa Kambili, um homem frustrado profissionalmente que, quando se percebeu isolado em casa e sem perspectiva, recorreu ao álcool e libertou uma persona agressiva. O homem compreensivo e acolhedor agora agredia Kambili verbal e fisicamente. Assustada, ela se trancou no quarto e chorou até adormecer. A mãe da nossa Kambili fez o mesmo e só foi despertada com os socos que sacudiam a porta do quarto.

Pesquisa realizada pelo C6Bank e Datafolha mostra que, no Brasil, nos últimos cinco anos, pelo menos 24% das mulheres já foram agredidas verbalmente pelo companheiro ou por alguém que more na mesma casa e pelo menos 10% já foram agredidas fisicamente. O estudo investigou a ocorrência de 14 tipos de violências entre a população brasileira. A preocupação com dinheiro como um fator de risco para o aumento no número de casos de violência doméstica encontra guarida no mesmo estudo, que mostra um crescimento importante de situações de violência patrimonial desde o início da pandemia do novo coronavírus, especialmente durante o período em que o isolamento social foi levado mais a sério. A pesquisa mostra que, entre março e julho de 2020, houve aumento relativo especialmente nas incidências relacionadas a participação no orçamento financeiro familiar, na decisão de compra, negação e apropriação de recursos e uso do nome sem consentimento. “Ou seja, as restrições orçamentárias e dificuldades financeiras têm aumentado os pontos de conflito doméstico de várias formas”, indica o texto do estudo.

A pesquisa foi conduzida a partir de 1503 entrevistas e acessa tanto as ocorrências de violência patrimonial nos últimos cinco anos quanto as sofridas pela primeira vez durante a pandemia. E os dados mostram de houve um aumento de 37% nos casos em que alguém da família negou recursos financeiros para compras que atendessem necessidades pessoais. Além disso, o estudo mostra um aumento de 47% nos casos de entrevistados que foram impedidos de participar das decisões de compra de produtos e serviços para casa e família. Ainda houve um crescimento de 26% no número de ocorrências em que alguém da família tenha se apoderado do dinheiro que a pessoa ganha ou ganhou por considerar que ela não tem a capacidade para administrar esses recursos.

Observa-se, ainda, alta sobreposição entre agressões verbais e todas as outras formas de violência avaliadas, especialmente restrições na participação do orçamento e das decisões de consumo da familiar e acesso aos recursos financeiros. Todas essas situações, segundo o estudo, tendem a ser agravadas pela crise econômica e, simultaneamente, tornam-se fatores exacerbastes para a escalada da violência doméstica e outros problemas de âmbito familiar.

Especificamente no período da pandemia de coronavírus, o monitoramento Um Vírus e Duas Guerras, realizado por sete veículos de jornalismo independente, identificou que 497 mulheres foram assassinadas entre março e agosto de 2020. Foi um feminicídio a cada nove horas- ou três mortes por dia. São Paulo, Minas Gerais e Bahia foram os estados que registraram o maior número absoluto de casos, com 79 mortes em SP, 64 em MG e 49 na BA. O índice médio de mortes no país foi de 0,21 por 100 mil mulheres. O que faz com que 13 estados estejam acima da média nacional de feminicídios: Mato Grosso (1,03), Alagoas (0,75), Roraima (0,74), Mato Grosso do Sul (0,65), Piauí (0,64), Pará (0,62), Maranhão (0,47), Acre (0,44), Minas Gerais (0,43), Bahia (0,39), Santa Catarina (0,38), Distrito Federal (0,37) e Rio Grande do Sul (0,34).

De maneira geral, houve uma redução de 6% no número de casos em comparação com o mesmo período do ano passado, mas a queda não é necessariamente um indicativo real de diminuição da violência.  Primeiro porque, em se tratando deste estudo em específico, sete estados não enviaram os dados solicitados ao coletivo (Amazonas, Amapá, Ceará, Goiás, Paraíba, Paraná e Sergipe). Tanto que nos dados do Anuário, o registro é de aumento entre janeiro e julho. Segundo porque existe uma enorme subnotificação.

O Anúario da Segurança pública indica que, apesar do aumento de feminicídios, houve uma redução nos registros de lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de vulnerável, assim como caíram os registros de agressões em decorrência da violência doméstica nas delegacias de polícia – uma queda de 9,9% com relação ao ano passado.

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“- Eugene vai vir nos apanhar. – Escute… Tia Ifeoma falou num tom mais suave; ela deve ter percebido que um tom firma não penetraria no sorriso fixo no rosto de Mama. O olhar de Mama continuava vidrado, mas ela parecia ser outra mulher, não a mesma que saltara do táxi de manhã. Parecia estar possuída por outro demônio. – Fique pelo menos alguns dias, nwunye m, não volte tão cedo. Mama balançou a cabeça. Não havia nenhuma expressão em seu rosto, a não ser um sorriso duro. – Eugene não anda bem – disse ela – Tem tido enxaquecas e febre. Ele carrega mais sobre os ombros do que qualquer homem deveria carregar.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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A Mama de Chimamanda não denunciou o marido. A nossa Mama também não. A nossa Kambili também não. De acordo com a promotora Carla Souto, do MP-RS, dois grandes pontos fazem com que a vítima não denuncie: medo e a vergonha. E agora, o isolamento.

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SUBNOTIFICAÇÃO

O Anúario Brasileira da Segurança Pública indica que, como a maior parte dos crimes cometidos contra as mulheres no âmbito doméstico exige a presença da vítima para a instauração de um inquérito, as denúncias começaram a cair na quarentena em função das medidas de distanciamento social e de isolamento, cuja consequência é uma maior permanência em casa. A presença constante do agressor nos lares agrava a situação porque constrange a mulher a pedir ajuda, a fazer um telefone e, principalmente,  de procurar as autoridades competentes para comunicar a violência sofrida.

Isso significa que a diminuição do registro de algumas ocorrências no período da pandemia de Covid-19 não representa necessariamente uma redução de casos de violência contra a mulher, mas mostra que as mulheres encontraram obstáculos para denunciar a situação de abuso a que foram submetidas. A defensora pública Liseane Hartmann, que é dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher (NUDEM) da Associação das Defensoras  e dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (ADPERGS), explica que é extremamente difícil para a mulher denunciar a violência doméstica. Quando isso acontece, geralmente é porque ela já passou por diversas situações de humilhação. “É muito difícil romper o ciclo da violência, então até que a vítima se sinta encorajada a procurar uma instituição e poder denunciar, infelizmente, ela já passou por muito sofrimento. Ela já viveu muitas situações de violência que são variadas. Pode ser violência física, patrimonial, moral, sexual e psicológica. Aliás, tem muito a questão da violência psicológica, que não deixa marcas evidentes mas afeta a vida de todos.”

Os motivos para a subnotificação são muitos, mas costumam estar associados ao fato de o agressor ser, na maioria das vezes, o companheiro da vítima – ou, pelo menos, parte da família. Isso faz com que as mulheres agredidas tenham receio de prosseguir com a denúncia porque não querem prejudicar o companheiro, porque tem medo de retaliação ou tem até vergonha da violência. Segundo a defensora Liseane Hartmann, isso faz com que o número de denúncias seja sempre muito inferior em relação aos fatos. “Se nós pensarmos nos dois primeiros meses da pandemia, em que o isolamento social foi levado a cabo, aumentaram os feminicídios no Rio Grande do Sul, por exemplo, mas o número de ocorrências de lesão corporal diminuiu. Isso nos leva a crer que tenha ocorrido uma subnotificação importante em razão da dificuldade ainda maior de conseguir fazer essa denúncia. Nós sabemos que as tensões familiares aumentaram e se intensificaram. A mulher passa mais tempo em contato com o opressor e isso pode dificultar o acesso à denúncia, fica mais difícil pedir ajuda.”

A promotora de Justiça Carla Souto, da Promotoria Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), inclusive alertou para o fato de que em alguns casos de feminicídio não havia nenhuma denúncia anterior. “Os dados da Polícia Civil que indicam uma diminuição nos registros de ocorrência são muito preocupantes, porque se chega a conclusão de que há um número muito grande de mulheres sendo agredidas e sem buscar ajuda. Sem ter ajuda.”

Um levantamento inédito sobre a violência doméstica realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) entre os meses de março e abril deste ano apontou que os casos de feminicídio no País aumentaram em 5% em relação a igual período de 2019. Somente nesses dois meses, 195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019 foram 186 mortes. Entre os 20 estados brasileiros que liberaram dados das secretarias de segurança pública, nove registraram juntos um aumento de 54%, outros nove tiveram queda de 34%, e dois mantiveram o mesmo índice. Os casos de feminicídio cresceram 22,2%,entre março e abril deste ano em 12 estados do país. Intitulado Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, o documento foi divulgado hoje (1º) e tem como referência dados coletados nos órgãos de segurança dos estados brasileiros.

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MÁSCARA ROXA

No Rio Grande do Sul, um dos estados que registrou crescimento no número de feminicídios, 28 mulheres foram assassinadas por questões de gênero nos meses de março, abril e maio, . Os dados são da Secretaria de Segurança Pública. Em abril, o aumento foi de 66,7% em relação ao mesmo período do ano passado. O aumento no número de feminicídios entre março e abril  e o fato de o confinamento dificultar a denúncia das vítimas levou o Comitê Gaúcho ElesPorElas, da ONU Mulheres, a criar a Campanha Máscara Roxa, que permite que mulheres vítimas de violência façam a comunicação do crime em farmácias. Para facilitar,  os estabelecimentos credenciados apresentam o selo “Farmácia Amiga das Mulheres”, que serve para que as vítimas as identifiquem.

O procedimento é bastante simples: a vítima precisa ir até uma farmácia que tenha aderido à campanha e pedir por uma “máscara roxa”, que é a senha para que o atendente saiba que se trata de um pedido de ajuda. O profissional, que recebeu capacitação online para realizar o procedimento de forma adequada e garantir a segurança das mulheres,  vai responder que o produto está em falta e vai solicitar alguns dados para que possa avisá-la quando a suposta máscara chegar. Ele pede pelo nome, endereço e dois números de telefone para contato. O deputado estadual Edegar Pretto (PT), coordenador do Comitê e idealizador da campanha, explica que a necessidade dos dois números de telefone é porque, em muitos casos, o agressor está vigiando a vítima. “Uma das dificuldades que as mulheres encontram para pedir ajuda é justamente porque são vigiadas e constrangidas, isso quando o agressor não está de posse do aparelho. Então é importante que tenha um contato alternativo”, diz. Fornecidos os dados, o próximo passo é passar essas informações para a Polícia Civil por meio do WhatsApp, para garantir também o anonimato do atendente. A partir daí, os policiais ficam responsáveis por auxiliar a vítima.

A campanha foi lançada em 10 de junho no RS e já está em milhares de farmácias de todo da capital e do interior – em grandes redes e lojas individuais. A Polícia Civil disponibilizou um número específico para receber as denúncias da campanha, que fica “ligado” 24h por dia. Até o final de setembro foram registradas 31 denúncias em farmácias do Rio Grande do Sul. Também foram efetuadas três prisões em flagrante nos municípios de Porto Alegre, Caxias do Sul e Rio Grande.

Pretto , que faz parte do Comitê Eles por Elas desde a criação do He for She, em 2013, explicou que ele e sua equipe pensaram nessa iniciativa a partir da recomendação da ONU para que as nações membros da Organização constituíssem politicas afirmativas de facilitação de denúncias. “O governo brasileiro não deu importância, diferente de outros países europeus e mesmo sulamericanos como Argentina, que criou a campanha da Mascara Roja, e do Chile. Então nós entendemos que algo deveria ser feito.”

Foto: Leandro Molina

A percepção do parlamentar, de que o governo brasileiro não tomou medidas efetivas para o combate à violência doméstica do país, foi confirmada pelo estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo as informações publicadas no Anúario da Segurança, a ONU fez uma série de recomendações para orientar os países no enfrentamento da violência contra a mulher nesse período. A Organização destacou uma série de medidas possíveis, como a necessidade de se aumentar os investimentos em serviços de atendimento online, de se estabelecer serviços de alerta de emergência em farmácias e supermercado e ainda a importância de criar abrigos temporários para vítimas de violência de gênero. Apesar das recomendações, o documento produzido pelo Fórum indica que, embora o governo federal tenha se posicionado publicamente sobre a questão, em comparação com outros países, as iniciativas divulgadas no Brasil não foram suficientes para combater a violência doméstica neste período. Pelo contrário.

As medidas anunciadas pelo governo de Jair Bolsonaro eram campanhas voltadas a recomendações gerais sobre atuação das redes de proteção. Isso também é importante, mas não foram apresentadas saídas concretas e imediatas. Enquanto isso, países como França, Espanha, Itália e Argentina, por exemplo, transformaram quartos de hotéis em abrigos temporários e criaram centros de aconselhamentos em farmácias e supermercados para que as denúncias fossem realizadas por meio de “palavras-código”, exatamente como a iniciativa crida no Rio Grande do Sul.

A Campanha da Máscara Roxa mobiliza diversas instituições em torno da combate à violência de gênero. Ela se concretiza a partir de um termo de cooperação assinado por Ministério Público do Rio Grande do Sul; Tribunal de Justiça do RS;  Poder Executivo gaúcho, por meio do Departamento de Políticas Públicas para as Mulheres, Polícia Civil e Brigada Militar;  Defensoria Pública; ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos;  Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem); Agência Moove; Grupo RBS; e Rede de Farmácias Associadas. A defensora pública Liseane Hartmann conta que cada participante assumiu o compromisso de divulgar da forma mais ampla possível o trabalho das instituições no sentido de que as vítimas tenham um fácil acesso aos canais de denúncia. “Hoje nós já contamos com o trabalho online das delegacias de polícia, porém, nós sabemos em alguns casos a vítima está em contato direto com o ofensor e não tem o acesso facilitado por parte de um computador ou celular. Então, ela podendo se dirigir a uma farmácia amiga das mulheres, ela simplesmente solicitar uma máscara roxa.

Uma pesquisa conduzida pela promotora de Justiça de São Paulo Valéria Diez Scarance Fernandes investigou 364 denúncias provenientes de feminicídios. O estudo mostrou  que 30% das mortes aconteceram aos sábados ou domingos. Ou seja, quando a maioria das delegacias está fechada. A pesquisa ainda indicou que a cada quatro feminicídios, um tem uma segunda vítima, como filhos ou outros parentes. Em 66% dos casos, as mortes ocorreram em casa. E de todas as vítimas, 97% não tinham medida protetiva e só 4% tinham registrado boletim de ocorrência. Os números só reforçam a importância de se viabilizar um canal de denúncia alternativo às mulheres.

A promotora de Justiça Carla Souto, do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ressalta a importância da denúncia, que ela chama de “mais um ato de coragem”. “Eu falo em coragem porque é, realmente, muito difícil. Não é fácil denunciar o agressor que muitas vezes é o companheiro, pai dos filhos. Em tempos de pandemia, em que as pessoas se encontram isoladas dentro de casa, esse desafio fica muito maior. Além de a vítima tomar a decisão de denunciar, e não é simples em razão do ciclo da violência, ela tem que ter como fazê-lo. E sem saídas para o trabalho, ela isolada junto como agressor é extremamente difícil.”

Nossa Mama não conseguiu fazer uma denúncia formal, mas conseguiu pedir ajuda. Esse foi o primeiro ato de coragem e foi recompensado. No dia seis de agosto deste ano, chegou uma nova mensagem pelo WhatsApp.

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“Conseguiram o abrigo, vão buscar a mãe e os 2 meninos hoje. E foi bem em tempo. Tudo muito triste, mas todos bem (fisicamente) e hoje saem de lá. Valeu mesmo.”

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ENTENDA O CICLO DA VIOLÊNCIA

Ciclo da Violência tem três fases. Na Fase 1, ocorre o aumento da tensão. Nesse momento, o agressor se mostra tenso e irritado por coisas pequenas. É agora que ele começa a ter acessos de raiva, humilhar, fazer ameaças e quebrar objetos. Neste ponto, a mulher tenta acalmar o agressor e evitar qualquer coisa que possa provocá-lo. Em geral, na fase 1, a vítima tende a negar que isso esteja acontecendo com ela. Ela esconde o jogo, não conversa sobre a situação com ninguém e inclusive se sente culpada, acha que mereceu, que fez algo errado. Ou seja, ela justifica o comportamento violento do agressor. Lembra da Mama de Chimamanda falando do peso que o marido carregava? Essa tensão pode durar dias ou anos. Mas conforme aumenta, é provável que leve à Fase 2.

Nesse segundo momento ocorre a explosão. A tensão da primeira fase se materializa em violência verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. A vítima se sente perdida e paralisada. Neste ponto, ela sofre de uma tensão severa que pode levar à insônia, perda de peso, fadiga constante e ansiedade. Ela sente medo, ódio, solidão, vergonha. É agora que ela pode tomar a decisão de buscar ajuda, denunciar ou se esconder na casa de conhecidos. O que leva à Fase 3.

O terceiro momento do Ciclo da Violência é conhecido como lua de mel. O agressor se mostra arrependido e passar a se comportar de forma carinhosa. Diz que nunca mais fará aquilo novamente.

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“A dor me queimava agora, estava mais parecida com mordidas, porque o metal caía sobre as feridas expostas na lateral do meu corpo, em minhas costas, minhas pernas. Chute. Chute. Chute.

[…]

O rosto de Papa estava próximo do meu. Tão perto que seu nariz quase tocou o meu, mas mesmo assim vi que seus olhos estavam mansos, que ele falava e chorava ao mesmo tempo. -Minha filha preciosa. Nada vai acontecer com você. Minha filha preciosa.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

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Na fase 3, a mulher pode se sentir confusa e pressionada a manter o relacionamento, especialmente se o casal tem filhos. Se a mulher decide retomar o relacionamento, o período subsequente costuma ser calmo e ela se sente feliz por ter dado uma nova chance. E como há, geralmente, a demonstração de remorso, ela se sente responsável por ele. isso estreita a relação de dependência entre vítima e agressor. A mulher, porém, continua confusa e, por fim, a tensão volta. E com ela, as agressões da Fase 1. E tudo recomeça.

A nossa Kambili não recebeu propriamente um pedido de desculpas, mas a mãe dela ouviu a promessa de que aquilo não aconteceria mais, mesmo que o agressor continue bebendo demais, ignorando o alcoolismo da família que, antigamente, era gatilho para a violência do próprio pai.

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COMO E ONDE PEDIR AJUDA

Mas se a nossa Kambili ou a mãe conseguirem romper o ciclo, elas não estarão sozinhas.  Primeiro, a mulher pode ligar para o 180, que é o número do serviço da Central de Atendimento à Mulher, um serviço que presta escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência e que registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes. Em caso de emergência, a mulher pode ainda ligar para o 190 e acionar o serviço da Polícia Militar. Para o caso do registro de ocorrência, a vítima pode fazer isso pessoalmente em uma Delegacia de Polícia ou fazer o registro online. No Rio Grande do Sul, ela ainda tem a opção de fazer a denúncia nas farmácias, usando a senha “Máscara Roxa”.

Mas há uma série de instituições que podem ajudar as mulheres no processo e quebrar o ciclo da violência. A Defensoria Pública também presta atendimento jurídico às vítimas de violência de gênero, inclusive doméstica e familiar. Em Porto Alegre, o Núcleo de Defesa da Mulher realiza ações e atividades voltadas à prevenção, defesa e garantia dos direitos das mulheres no âmbito da defensoria. “A nossa atuação é tanto na área criminal como na área cível, então a assistência às vítimas de violência na solicitação de medidas protetivas de urgência, que são previstas na Lei Maria da Penha, e também a questão da parte cível, que compreende as ações de divórcio, dissolução de união estável, pensão, guarda dos filhos e visitas”, explica a defensora Liseane Hartmann. Mas também há ações extra-judiciais, como orientação acerca dos direitos das vítimas e informação quanto à rede de proteção à mulher, com auxilio da Defensoria, Delegacias, Brigada Militar e Ministério Público. “O problema da violência doméstica é multidisciplinar. É preciso olhar para o problema como uma questão de saúde, assistencial e de segurança”, disse.

Já a promotoria de Justiça de Combate à Violência Doméstica de Porto Alegre, por exemplo, atua em duas frentes: medidas protetivas e processos criminais.

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COMO FUNCIONAM AS MEDIDAS PROTETIVAS?

Medidas protetivas são decisões judiciais rápidas que tem o objetivo de proteger a mulher e evitar o desgaste da vítima. A ideia é que, com uma medida protetiva, a mulher esteja resguardada e não precise de peregrinação em busca de assistência jurídica. Existem vários tipos de medidas protetivas, mas as mais comuns são o afastamento do agressor do lar; a proibição da comunicação entre o agressor e a vítima ou seus familiares; suspensão de procurações concedidas pela vítima ao agressor; prestação de alimentos aos filhos menores; e a suspensão do porte de arma de fogo do agressor; separação de corpos; proibição de contato ou aproximação com a vítima; restrição ou suspensão das visitas a dependentes menores; restituição de bens indevidamente subtraídos; encaminhamento da vítima a programa de proteção ou atendimento.

Quando a vítima faz o registro de ocorrência, via de regra, ela é questionada sobre o interesse em medidas protetivas. A promotora Carla Souto explica que essas medidas são muito importantes também porque tem um caráter inibidor. “Nós já temos dados que nos indicam que as mulheres que tem medidas protetivas realmente consegue evitar que se chegue ao mal maior, que é o feminicídio. Esse ano, durante a pandemia, em abril nós tivemos um número absurdo de feminicídios e, aqui no RS, só uma delas tinha medida protetiva.”

Segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), 76% das vítimas de feminicídio e 85% das mulheres que sofreram de tentativa de feminicídio haviam sofrido atos de perseguição nos 12 meses anteriores ao ato. Mais do que isso, 41% dos agressores voltam a praticar violência contra as mesmas vítimas no período de até dois anos e meio após um incidente anterior de violência. A maioria das mortes que decorrem da violência de gênero ocorre no contexto de um relacionamento marcado por violência.

O caminho para conseguir uma medida protetiva é o seguinte: a vítima faz o registro de ocorrência e comunica que precisa de medida protetiva. Esse pedido vai direto ao Judiciário, para que o juiz defira ou não. Deferido o pedido, o agressor é intimado pessoalmente. “Ele não pode se aproximar da vítima, nem do local de trabalho e não pode manter nenhum tipo de contato, nem por WhatsApp ou telefone. Então isso nos traz uma referência que funciona”, explica a promotora. A medida protetiva ainda tem uma outra função: o agressor que descumpre uma medida protetiva pode ser preso em flagrante.

O Ministério Público ainda atua nos processos criminais. “Neste ponto, é importante que se diga que vai chegar o momento em que a vítima será chamada a comparece ao Fórum para falar sobre o que aconteceu. E é importante que ela compareça, senão a gente fica sem poder comprovar o que se falou no registro de ocorrência e se tem muitas absolvições”, alertou a promotora.

No ano passado, o MP lançou a cartilha virtual “Todos e todas pelo fim da violência contra a mulher”.  O documento explica, de forma didática, o que é violência doméstica e familiar  e como funciona o ciclo, além de identificar todas as formas de violência. mostra como opera o ciclo de que seja compartilhada pelas redes sociais digitais. A cartilha também traz  informações sobre onde e como buscar ajuda e pode ser compartilhada em redes sociais.

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EM BRIGA DE MARIDO E MULHER, METE-SE A COLHER

A promotora de Justiça Carla Souto lembra que é importante falar sobre o assunto. “Nós precisamos falar muito sobre isso, para que a gente consiga alterar a cultura que ainda existe em algumas pessoas, de que é uma questão do marido e da mulher e que ninguém tem que interferir. A questão da violência doméstica é um problema de cada um de nós, é uma questão que envolve os Direitos Humanos, a dignidade. É um problema de saúde pública. As vítimas da violência, para além da violência física, estão desenvolvendo problemas de saúde mental extremamente graves. Depressão, ansiedade. Afora isso, tem os filhos. Porque o menino que vive em um lar violento vai ter a tendência, no futuro, de reprisar aqueles mesmo atos de violência. E a menina a ser tolerante com a violência. Então o problema vai pra muito além.”

Ela alerta para o fato de que a violência de gênero não causa tanta comoção como outros crimes. Percebe cultura de culpabilização da vítima e ela cultura alimenta o ciclo da violência e que faz com que as vítimas permaneçam caladas. Porque ela tá em todos nós. E a mulher acaba acreditando nisso, porque a questão da violência psicológica é extremamente grave. Seguidamente em audiência a gente ouve as mulheres dizendo “eu que provoquei”, “eu que quis estudar”.

“Eu acredito que nós estamos em um momento único na questão do olhar pra violência doméstica. Agora, no RS, foi lançada essa campanha da qual o MP é parceiro. E com isso, eu percebo uma mudança institucional importante no Ministério Público, no sentido do quanto é importante o trabalho dos promotores nessa área. E pela Polícia Civil, eu só vejo excelência no que eles estão produzindo. Isso mostra que as instituições estão conseguindo compreender o ciclo da violência.”

A promotora Carla Souto ainda alerta para o fato de que as pessoas que estão no entorno dessas mulheres devem prestar atenção às microviolências. “Às vezes a própria vítima não entende que está em um relacionamento abusivo. Então é importante que nós, como amigas ou conhecidas, estejamos atentas. Se de uma hora para outra essa mulher mudou de forma drástica, vamos perguntar. É importante denunciar, mas é importante, também, falar. O primeiro passo é falar para alguém, contar para uma amiga, para um familiar. Há algo que eu uso enquanto promotora e como amiga. Se por dez vezes ela voltar para aquele agressor, por onze vezes eu vou estar aqui, apoiando e dando suporte. Também a família e os amigos não podem desistir.” Segundo a promotora, a violência contra a mulher é uma epidemia, é um problema de saúde pública.

“Isso não pode continuar nwunye m – disse tia Ifeoma. – Quando uma casa está pegando fogo, a gente sai correndo antes que o teto caia em cima da nossa cabeça.”

Hibisco Roxo – Chimamanda Ngozi Adichie

 

*Os nomes foram modificados e a verdadeira identidade protegida a pedido das entrevistadas

Reportagens Especiais

Epidemia de ansiedade . Pesquisa indica que 81% dos brasileiros estão mais ansiosos desde o início da pandemia

Geórgia Santos
30 de agosto de 2020

“Mrs Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.” O romance de Virgínia Woolf que leva o nome da protagonista e foi publicado originalmente em 1925 começa assim. Uma rotina parecida com a da nossa Clarissa*, acostumada a comprar as flores – ou a assumir o comando das coisas enquanto lida com a ansiedade.

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Por Flávia Cunha  e Geórgia Santos

O dia transcorria tranquilamente, exceto pelo peso de mais uma responsabilidade. Pela primeira vez desde o início da pandemia de coronavírus, ela precisaria participar de uma reunião presencial. A ideia não era confortável por uma série de motivos, mas talvez o principal fosse o medo de se expor ao vírus. Ela temia não apenas ficar doente, mas principalmente infectar alguém da família. Afinal, Clarissa divide a casa com outros três e ajuda a cuidar dos pais idosos e, também por isso, convive bastante com eles e com as irmãs. Ela não saía de casa há meses, mas mesmo assim era obrigada a dividir o espaço, pelo menos, com essas pessoas. Naquele momento, era quase imperceptível, mas ela sentia que uma espécie de aflição estava tomando conta do corpo e da mente de uma forma que ela sentira poucas vezes antes.

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Rosas, pensou, sarcasticamente. Bobagens, minha cara, Pois em verdade quando se tem de beber comer e deitar, tanto nos bons como nos mais dias, a vida não tem nada a ver com rosas.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Ela lembrava de duas ocasiões em que algo parecido aconteceu. Mas não deu atenção àquela lembrança, afinal, em ambos os casos ela estava em viagem e esse deveria ser o motivo dos desconfortos passados. Nada a ver com o acontecia agora, ela acreditava. O que acontecia agora parecia, de alguma forma, mais potente, mais intenso. Nem por isso cogitou faltar ao compromisso. Em vez disso, decidiu ligar para a filha e espairecer.

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“Oi, tudo bem?
Tudo e por aí?
Não sei, tenho que ir a uma reunião amanhã, mas não queria.
Então não vai, tem mil justificativas pra não participar de uma reunião a essas alturas. ?
Eu preciso ir, mas acho que fico com medo de me expor.
É normal sentir medo, eu também teria. Mas se tu não tem como faltar, é só se proteger bastante. Usa máscara, leva álcool gel e fica longe das pessoas. O lugar é grande?
Sim, é bastante espaçoso e tem uma mesa grande, nós podemos nos sentar e ficar longe uns dos outros, eu acho.
E é bem ventilado?
Tem uma janela.
Fica perto da janela, então, já ajuda.
Mas tá muito frio, guria.
Aguenta, oras. (risos) Tá, não precisa ficar NA janela, mas fica perto. Vai ter muita gente?
Acho que não, umas cinco ou seis pessoas. ?
Ah, então fica tranquila. Toma esses cuidados e tentem não ficar mil anos conversando. Faz tudo rapidinho.
Pera aí que a campainha tá tocando, já te ligo.”
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A sensação de aflição e de angústia que Clarissa estava sentindo era uma manifestação de ansiedade. Algo bastante comum na população em geral, especialmente durante uma pandemia, em que o medo de se infectar ou de ser responsável pela contaminação de outras pessoas pode ser sufocante. Mas além do medo, há outras dois fatores de estresse: a sobrecarga com questões de casa e da família e o isolamento em si.

Tanto é assim que Clarissa não está sozinha. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil vive uma epidemia também de ansiedade. É o país com a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade no mundo. O levantamento indica que 9,3% dos brasileiros têm algum tipo de transtorno nesse sentido, o que corresponde a mais de 18 milhões de pessoas. E o problema se agravou agora. Pesquisa do Datafolha/C6 Bank realizada em julho deste ano com mais de 1500 entrevistados mostra que 81% dos brasileiros se sentiram mais estressados ou ansiosos com os cuidados com a família e a casa desde o início da pandemia de coronavírus, em março. Além disso, 68% afirmam que as exigências e obrigações dentro do ambiente familiar também aumentaram, especialmente para as mulheres.

A pesquisa ainda mostra que 43% dos entrevistados se sentem solitários e que esse sentimento de isolamento e solidão é mais intenso entre os moradores do interior. O número chega a 46% ante 39% dos residentes nas regiões metropolitanas. Além disso, os integrantes das classes D/E (definições pré-estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)) também relatam sentir mais os efeitos da solidão. O percentual chega a 51% dos entrevistados. Também nesse caso os efeitos parecem ter um peso extra sobre as mulheres, que tendem a sentir mais os efeitos do isolamento social uma vez que os relatos de aumento nas exigências e obrigações na família, o sentimento de isolamento e o uso de medicamentos para a ansiedade são mais frequentemente citados do que entre os homens.

Àquela altura, Clarissa ainda não fazia parte dos 19% de mulheres que responderam precisar de remédio para controlar a ansiedade, mas, como ela ficaria sabendo em seguida, esse dia não demoraria a chegar.

Quem estava à porta de Clarissa era um dos colegas que participariam do encontro no dia seguinte. Ele queria discutir algumas coisas antes da reunião. A simples presença daquela pessoa à porta foi suficiente para despertar um medo que ela jamais havia sentido. Era um pavor paralisante que começava no peito e era irradiado para as extremidades do corpo. Ela não convidou o amigo para entrar, mas conforme se afastava dele, ele se aproximava. E a cada passo, o pânico aumentava. Ela tratou de encerrar a conversa o mais rápido possível e, assim, achou que ficaria mais tranquila, mas não foi o que aconteceu. O medo aumentou e uma sensação de urgência tomou conta.

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Horrível, pensava, adivinhar mover-se nela aquele monstro brutal! ouvir ramos estralejando e sentir aqueles cascos nas profundezas dessa floresta cheia de folhas, a alma; nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura, pois a qualquer momento o animal podia estar movendo-se; ódio que, especialmente depois da sua doença, fazia-lhe sentir um doloroso arrepio na espinha; causava-lhe uma dor física, todo o prazer da beleza, da amizade, do bem-estar, de sentir-se amada, de tornar a casa deliciosamente acolhedora, tudo vacilava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes, como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor próprio! e aquele ódio! 

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Ela começou a limpar o chão que ele havia pisado com água sanitária. Em seguida, usou álcool 70% para higienizar maçaneta, porta, tudo o que via pela frente. Mas nada parecia funcionar, o cérebro simplesmente não entendia os sinais que ela queria enviar. Então, a respiração começou a ficar mais intensa, mais rápida, da mesma forma que as batidas do coração. Ele pulsava de maneira frenética e ela ficou assustada. Isso era novo. Pensamentos horríveis invadiram sua mente e ela achou que poderia morrer ali, naquele momento. Ofegante, resolveu ligar para a filha novamente.

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Oi.
Oi, tá tudo bem? Tu tá ofegante.
Não, eu não sei o que aconteceu. O Pedro* veio aqui e de repente eu fiquei tomada de medo.
Mãe…
Eu acho que nem ouvi o que ele falou e não sei se eu articulei as palavras direito.
Mãe…
Comecei a limpar tudo, limpei onde ele pisou, acho que ajuda, né?
Sim, mas…
E agora eu não sei, eu tô ofegante, meu coração tá batendo rápido.
Mãe, tu tá tendo uma crise de ansiedade.
Será?
Sim, teu coração tá batendo mais forte?
Sim.
Tá ofegante, como se não conseguisse respirar direito?
Sim.
Tá com medo?
Tô, tô tremendo.
Tá achando que vai morrer agora?
Sim.
Tu tá tendo uma crise de ansiedade. Senta em uma cadeira e apoia os pés firmes no chão e respira fundo. Isso vai passar. Tenta respirar de forma bem lenta e calma e focar teus pensamentos na respiração. Inspira em quatro, prende quatro e solta em quatro. faz isso algumas vezes. Depois, faz um chá de camomila. E fica conversando comigo. Pode deixar no viva-voz. Amanhã a gente fala com teu médico.

*O nome foi modificado a pedido da entrevistada

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Ao 61 anos, pela primeira vez na vida, a advogada estava conhecendo uma crise de ansiedade. A manifestação, também chamada de ataque de pânico, ocorre de forma abrupta no momento em que os sintomas de ansiedade alcançam um pico e  sobrecarregam o indivíduo. Quando as sensações de medo dominam a mente, elas ativam gatilhos que geram uma espécie de curto-circuito que provoca extrema insegurança e descontrole. O organismo libera, então, noradrenalina e adrenalina, que são substâncias responsáveis, além de outros processos, pelas manifestações físicas que duram alguns minutos em alta intensidade. A noradrenalina é um hormônio e neurotransmissor cuja principal função é preparar o corpo para uma ação específica, tanto que é conhecida como uma substância de luta ou fuga. Já a adrenalina, um hormônio secretado pelas glândulas suprarrenais,  é liberada em casos de estresse extremos e age como um mecanismo de defesa para uma ação rápida. Por isso são liberados em momentos de pânico.

Para o psiquiatra Érico Moura, a crise de ansiedade é uma manifestação física como um todo. Assim como aconteceu com a Clarissa, é possível notar sintomas cardiovasculares, autonômicos e psicológicos. “São sintomas muito desconfortáveis. Normalmente a pessoa tem uma sensação de que ela vai morrer agora, que ela não vai suportar, vai cair, desmaiar, ter um infarto, um AVC, então dá um medo de morrer. E com relação às repercussões físicas, a pessoa normalmente tem uma taquicardia, o coração acelera, dá palpitações, aquela sensação de que o coração vai sair pela boca, dá um nó na garganta. Algumas pessoas descrevem como uma bola na garganta, que sobe e desce. E tem as repercussões de suar, tremer, pode dar, às vezes, diarreia, tontura e a pessoa se sente mal ao ponto de precisar deitar porque a pressão baixou. E são sintomas que começam rápido. Ela pode passar o dia ansiosa, mas uma crise de pânico acontece abruptamente. De uma hora pra outra esse gatilho dispara”, disse. Foi o que aconteceu com Clarissa, de uma hora para outra, o gatilho disparou.

Segundo o médico, se o paciente conhece uma crise de ansiedade, se já passou por uma, é relativamente mais fácil lidar com ela, porque já está acostumado com os sintomas e reconhece a manifestação. Mas quem nunca teve uma crise de ansiedade, sofre ainda mais.  Para Érico Moura, são as pessoas que mais sofrem. “Elas, de fato, acham que estão tendo um infarto, um AVC, ou, agora, que estão com coronavírus. E aí é mais complicado porque ainda não tem conhecimento de si, não sabe que é portador de um transtorno mental de ansiedade. Por isso, se estiver sozinho, é importante tentar se acalmar e ligar para alguém. Pra um familiar, amigo ou pra um canal de atendimento solidário em saúde mental.”

Clarissa, mesmo sem saber, agiu de forma adequada e ligou para a filha, que, por experiência própria, recomendou um exercício de respiração. “Há medicações que podem ser usadas apenas em crises de ansiedade e são prescritas por médicos. Mas se é a primeira vez que acontece, há medidas comportamentais que podem ser adotadas, como ir para um lugar silencioso, mais escuro, sem estímulos visuais e sonoros e procurar puxar o ar lentamente pelo nariz e soltar lentamente pela boca. Durante uma crise de ansiedade, como o coração acelera, a respiração acelera junto para compensar a resposta cardiovascular. E quando a gente acelera a respiração, a gente acumula gás carbônico e dá uma sensação muito ruim de mal estar que pode causar até desmaio. Então, é importante respirar lentamente. Algumas pessoas usam até um canudinho porque ajuda mecanicamente a puxar o ar mais devagar e soltar mais calmamente”, explicou o psiquiatra.

Sentir ansiedade neste e em outros momentos é absolutamente normal, segundo o psiquiatra Érico Moura. É preciso estar atento, porém, aos efeitos que isso causa na rotina. Ou seja, quando a ansiedade começa a atrapalhar a rotina e impacta a saúde ou causa prejuízos sociais e profissionais, é necessário procurar um médico psiquiatra, porque a pessoa pode estar lidando com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), depressão ou Síndrome do Pânico, cuja incidência, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), é estimada em 1,5% a 3,5% da população. Novamente, acomete mais mulheres do que homens, na proporção de 2 para 1.

 

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SINAIS

O psiquiatra Érico Moura recomenda prestar atenção aos detalhes, porque toda mudança de funcionamento do organismo, especialmente o padrão de sono e apetite. “Eu gosto de dar atenção especial ao sono, ele funciona como um termômetro do humor. Quando a gente está deprimido, normalmente tem alteração no sono. Ou dorme pouco, ou dorme muito. E quando a gente está ansioso, geralmente dorme pouco ou tem dificuldade para começar a dormir, então tem que estar atento a isso. Se ficar dois ou três dias com o sono alterado, é bom procurar o médico ou o serviço de saúde para saber o que fazer”, orientou.

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Bem, pensava Clarissa pelas três horas da madrugada, lendo o barão Marbot pois não conseguia dormir, isso demonstra que ela tem coração.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Passada a crise de ansiedade, Clarissa foi capaz de perceber que há alguns dias havia algo errado. Ela não dormia bem há mais de uma semana e comia pouco. Sem notar, havia emagrecido bastante. Era o sinal de que ela realmente precisava de ajuda médica.

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Mesmo o sabor (Rezia gostava de sorvetes, chocolates, coisas doces) não tinha gosto para ele. Pousava a xícara na mesinha de mármore. Olhava as pessoas lá fora; pareciam felizes, reunindo-se no meio da rua, gritando, rindo, discutindo por nada. Mas não conseguia saborear, não conseguia sentir.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Segundo o psiquiatra Érico Moura, esse é o caminho a seguir. Inclusive quando a pessoa perceber que se sente atrapalhada para realizar as atividades de rotina  e até mesmo a higiene pessoal. “Tem um canal online que a Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul e outras entidades criaram pra receber essa demanda. É um coletivo de sociedades de psicologia, psiquiatria e psicanálise em que voluntários se disponibilizaram para atender essa demanda durante a pandemia e eu sou um desses profissionais. A gente ouve as queixas e dá o melhor encaminhamento possível”, diz. Para atendimento online, basta preencher este formulário e aguardar o contato. No Rio grande do Sul, ainda é possível contatar o serviço pelo telefone (51)  32243340, das 9h às 18h. O serviço é oferecido pela Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Centro de Estudos de Psiquiatria Integrada, Centro de Estudos de Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência, Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia, ITIPOA e Centro de Estudos Luís Guedes.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) também produziu o Manual Saúde Mental e Covid-19, que traz sugestões de como reduzir o impacto negativo do isolamento social e da quarentena na saúde mental.

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HISTÓRICO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO

Tudo isso foi uma novidade para Clarissa, que sempre se viu como uma pessoa prática e racional. Não estar no controle da situação foi uma novidade e ainda é difícil de aceitar que ela esteja sofrendo com depressão e TAG. Mesmo assim, ela está em tratamento, medicada e engajada em sessões de psicoterapia. E, assim como ela, há muitas pessoas que descobriram esses sentimentos agora, durante a pandemia do novo coronavírus. Mas também há milhões de pessoas que já tinham histórico de ansiedade e depressão e agora precisam lidar com um novo problema global. Além de ser o país mais ansioso do mundo, dados da OMS ainda indicam que o Brasil é o quinto em casos de depressão, que atinge  5,8% da população.

E essas pessoas, apesar de relativamente acostumadas ao problema, precisam de atenção redobrada neste período. O psiquiatra Érico Moura ressalta que a pessoa que já foi diagnosticada deve manter as orientações recebidas pelo médico e manter o uso da medicação, se for o caso. “Se estiver sem uso de medicação, apenas fazendo psicoterapia, pode tentar manter o atendimento online. É muito importante manter as suas rotinas, as atividades diárias.”

Profissionais da área de saúde mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, instituição pública ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizaram uma pesquisa durante a pandemia. O estudo O impacto do distanciamento social nos ritmos biológicos e na saúde mental: um estudo da efetividade de intervenções em ritmos biológicos e sono foi feito à distância, com voluntários selecionados pelas redes sociais. A jornalista do Vós Flávia Cunha foi uma das escolhidas e,  seguir, compartilha um pouco da rotina de monitoramento.

Cada participante recebeu um actígrafo, um equipamento para monitorar ciclos de atividade e descanso. O aparelho, semelhante na aparência a um relógio de pulso, devia ser usado ao longo dos cerca de 40 dias de estudo. A outra parte da pesquisa era o preenchimento diário de um questionário online, com questões relacionadas ao sono, energia e concentração. Também havia perguntas sobre a frequência de hábitos, como assistir noticiários, praticar exercícios físicos e fazer atividades de lazer.

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UM DIA RUIM

“Acordei meio zonza depois de uma madrugada de insônia e ansiedade. Os pensamentos negativos foram se acumulando, enquanto as horas se passavam e o sono não vinha. Me imaginei contaminada. Como conseguiria atendimento sem plano de saúde? De que forma daria conta dos projetos que assumi? E aquele livro que estou produzindo, será lançado se eu ficar doente? E o evento online lá em novembro? O que aconteceria? O coração foi apertando, enquanto eu pensava nas contas que ficariam atrasadas se eu não pudesse trabalhar devido ao Covid. Mesmo estando confinada, há tantos meses, corro risco porque meu marido segue trabalhando e convivendo com várias pessoas. Sai de casa de máscara, tranquilo e sem pensar na possibilidade de ser mais um na longa lista de casos da doença. Gostaria de ser assim, de não me preocupar… Porque agora estaria dormindo, como ele. Depois de poucas horas de sono, acordo e preencho o formulário da pesquisa. Nada muito bom para relatar.”  – Flávia Cunha

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O medo de se infectar, segundo o médico psiquiatra Érico Moura, é normal. Isso não significa que seja fácil lidar com ele. “Eu acho que tem duas estratégias, uma individual e outra social ou familiar. Do ponto de vista individual, a gente tem que parar pra pensar no que está acontecendo. Existem muitos sentimentos. Neste momento, o medo é um sentimento predominante, seja o medo de ficar doente, de se contaminar, de contaminar as pessoas que a gente ama ou as pessoas que estão ao nosso redor. E o medo de todos, o medo da morte. Ao identificar o que nos dá medo e gera angústia ou apatia, ajuda bastante procurar canais pra resolver isso.” Ele explica que é importante não sufocar esse sentimento. Ou seja, é fundamental procurar resolver com algum profissional ou conversar com as pessoas que estão à nossa volta. “É importante falar sobre as coisas. O tédio, o vazio, a angústia, o que a gente tem que fazer, o que deixou de fazer, o que a gente vai perder em termos de ganhos financeiros, de oportunidades. Porque as pessoas que estão ao nosso redor estão sentindo coisas parecidas, perdendo coisas. Então pensar sobre isso é fundamental.”

O psiquiatra Érico Moura alerta, ainda, que é importante estar bem informado e procurar usar as fontes mais confiáveis do jornalismo. Mas sem exageros. “Existe uma música do Jorge Drexler que diz “Data, data, data, data, data, data, data / Cómo se bebe de una catarata”. Ou seja, com essa quantidade de dados que a gente recebe, como beber dessa cachoeira. Eu acho que é como uma dieta, a gente não pode comer muito, mas também não pode não comer nada. Então eu acho que a qualidade da nossa comida, da nossa informação, é fundamental para que a gente possa fazer uma digestão boa. Se a comida for muito pesada, vai demandar uma digestão mais longa. Então, nesse momento, o ideal é “comer” a informação aos poucos. Ficar se “embebedando” de uma informação tóxica, não ajuda, só aumenta a ansiedade. A gente tem que saber o que está acontecendo no mundo, ao redor da gente, mas o mais importante é a informação confiável.”

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UM DIA BOM

“É possível ser feliz durante uma pandemia? Me questiono, enquanto vibro com uma conquista profissional alcançada no privilégio do home office classe média. Cheia de energia e foco, meus dedos percorrem com agilidade o teclado do notebook, terminando mais um texto antes do dia do prazo final. Me levanto da cadeira sorrindo e vou tomar uma água. Decido me exercitar em casa ao som de uma boa música. Quase uma hora de atividade física, enquanto meus pensamentos percorrem as tarefas que preciso executar durante a semana. Penso nos milhares de mortos pelo coronavírus e meu entusiasmo diminui um pouco. Olho o celular, confiro as mensagens. Dou risada de um meme engraçado, com um pouco de remorso. O preenchimento do formulário acusará minha boa energia nesse dia e não sei se fico feliz ou triste com isso. A alegria na quarentena é um pouco envergonhada.”  – Flávia Cunha

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Todo sentimento é válido. No livro Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, existe um abismo entre quem os personagens são, o que cada um sente na intimidade e o que parecem ser. Septimus, por exemplo, carrega um trauma vivido na Primeira Guerra e não consegue falar dessa dor; Lucrezia, esposa de Septimus, não entende o marido e sofre com o fato de que a vida é diferente do que ela esperava; Peter lamenta um amor não correspondido; Richard tem dificuldade de expressar o que pensa. Na vida fora dos livros, decerto, não é diferente. E em um momento como esse, o ajuste é ainda mais difícil e delicado.

Esse é um momento em que a gente precisa se adaptar às mudanças, que são constantes. Cada dia uma nova disposição, cada dia um novo decreto, uma nova tragédia, uma nova esperança. Isso demanda calma e paciência. Mas ninguém precisa suportar isso sozinho. Milhares de pessoas estão enfrentando problemas como ansiedade e depressão e isso é absolutamente normal. Segundo o psiquiatra Érico Moura, o caminho está sendo construído dia a dia, ele não está pronto. “Lidar com a impotência, com a nossa fragilidade, é difícil. É difícil pensar que um vírus pode causar esse caos na sociedade. Então tem, sim, muitas coisas pra gente refletir. Mas podemos também aproveitar para pensar em construir uma sociedade mais democrática, mais igualitária, mais justa, em que as diferenças não sejam tão grandes de oportunidades, tratamento médico, de condições, de uma vida saudável, produtiva e de uma vida social gratificante e rica do contato humano.”

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 Assim, num dia de verão, as ondas se juntam, balançam e tombam; e o mundo inteiro parece dizer: “Isso é tudo”, cada vez mais forte, até que o coração, no corpo estendido sob o sol da praia, também diz: “Isso é tudo”. “Não mais temas”, diz o coração. “Não mais temas”, diz o coração, confiando a sua carga a algum mar que suspira coletivamente por todas as dores, e recomeça, ergue-se, tomba. E o corpo sozinho ouve a abelha que passa; a onda se quebra; o cão, lá ao longe, ladrando, ladrando… 

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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*A identidade foi preservada a pedido da entrevistada

Reportagens Especiais

“Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira”

Geórgia Santos
10 de dezembro de 2019

Por Flávia Cunha e Geórgia Santos

Nos Estados Unidos, 99% dos casos de violência doméstica incluem o que se conhece por violência patrimonial, que ocorre quando o parceiro utiliza o dinheiro para controlar a mulher. No Brasil não há dados compilados sobre o crime previsto na Lei Maria da Penha, mas a transformação do papel da mulher na sociedade mostra que a educação financeira pode ser um passo importante para a superação de um relacionamento abusivo e usada como prática de combate à violência patrimonial


Ela sempre sonhou com aquele apartamento. Não que ela tivesse passado dificuldades na infância, mas aquele imóvel era a projeção de uma vida confortável para a família que ela havia construído. Era lindo. Grande. Tinha 137 m², três quartos, dois banheiros, sala ampla e churrasqueira. Isso sem falar no condomínio com piscina, salão de festas, playground, espaço kids, salão de jogos e quadras esportivas. O sonho de sempre da administradora Maria* custava aproximadamente R$ 1 milhão. O dinheiro não seria um problema. A família havia atingido um patamar financeiro estável já que o marido era um profissional da área da saúde com rendimentos muito acima da média nacional de todos os trabalhadores ocupados, que em 2019 está RS2.234. Mas o preço que ela pagaria seria infinitamente mais alto que o valor monetário. O apartamento tão desejado viraria palco de brigas e discussões frequentes – muitas delas presenciadas pelas duas filhas pequenas do casal. O apartamento dos sonhos abrigaria, então, um casamento recheado de traições, abuso psicológico, humilhações. Um casamento em que o dinheiro desempenhava um papel central de controle.

“Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira, que tinha planejado a separação para ficar com o dinheiro dele. Ele que me traiu e eu que estava errada”, recorda Maria
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Em 2017, o casamento de 12 anos acabou após uma violenta discussão dentro das dependências do edifício de alto padrão. “Ele disse que me mataria, que eu era uma vagabunda e interesseira, que tinha planejado a separação para ficar com o dinheiro dele. Ele que me traiu e eu que estava errada”, recorda Maria. Na iminência de uma agressão física, um dos seguranças do prédio interferiu e evitou que algo pior acontecesse. A polícia chegou a ser chamada ao local e o agora ex-marido devolveu as chaves, contrariado. Saiu fazendo xingamentos. Maria não via assim à época, mas ela era vítima de um relacionamento abusivo.

 

Fonte: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família

O estopim para o final do relacionamento foi uma mistura entre traição e descaso como pai. “Eu tinha visto no celular dele muitas mensagens marcando encontros com diversas mulheres, algumas falando de mim de uma forma nada respeitosa. Ali foi a gota d´água. Ele recém havia voltado de uma viagem e mal tinha entrado em contato conosco, apesar de a nossa filha mais velha ter ficado hospitalizada durante uma semana. Depois, descobri que ele estava com outra mulher no Rio de Janeiro, enquanto eu estava aqui cuidando da família”. Ela também recorda que o marido não agia como se fossem realmente um casal, em que os bens seriam divididos. “Dizia que eu não teria direito a nada. Sempre teve esse tipo de chantagem psicológica para tentar evitar a separação”, lamenta.

A psicóloga Daniela Zanetti, especialista em terapia de casal e família, explica que a chantagem emocional e a manipulação podem fazer com que muitas mulheres tenham dúvidas se estão realmente em um relacionamento abusivo. “É preciso estar atento aos sinais, principalmente o controle e o ciúme excessivos, camuflados de amor e cuidado”, enfatiza. Ela destaca que a tecnologia pode ser usada como uma forma tóxica de fiscalização constante, por meio de aplicativos com GPS que monitoram os passos da parceira. “O ideal é não dar espaço para esse tipo de comportamento, já que um relacionamento saudável pressupõe confiança”, aconselha Daniela.

 

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VIOLÊNCIA PATRIMONIAL

No caso de Maria, mais do que estar em um relacionamento abusivo, ela ainda sofria com a violência doméstica. Ela não sofreu nenhum tipo de agressão física ou sexual, mas ela foi vítima de outros tipos de violência: psicológica, moral e patrimonial. Segundo a Lei Maria da Penha, a primeira é entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e que tenha por objetivo, entre outras coisas, controlar a vítima mediante ameaça, constrangimento, humilhação, insultos e ridicularização. Enquanto a violência moral diz respeito às ações que configurem calúnia, difamação ou injúria. Já a violência patrimonial, segundo o texto, é “qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoas, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.”

Maria percebe que o dinheiro sempre desempenhou um papel central no relacionamento com o ex-marido. Ele nunca quis, espontaneamente, proporcionar uma vida confortável para as próprias filhas, por exemplo. Ele reclamava de cada gasto. Roupas infantis, brinquedos e mensalidades escolares eram tratados como uma exploração por parte de uma mulher gananciosa e pouco confiável. Por outro lado, entendia que sua única responsabilidade era a financeira, tanto que era um pai ausente emocionalmente e pouco disposto a se envolver nos cuidados com as filhas e nas tarefas domésticas. “Se chegava em casa e a janta não estava pronta, me humilhava na frente das crianças”, recorda. Quando ela descobria traições, a reação do marido era sempre a mesma: dizer que não era importante, que ficaria tudo bem e convidá-la para ir a um shopping para comprar um presente ou dizer que faria uma transferência bancária generosa. “Para ele, o dinheiro comprava tudo.”

A psicóloga Daniela Zanetti explica que, em casos como o de Maria, também é comum o homem sugerir que a mulher largue o emprego ou tenha uma atividade profissional com menos carga horária do que o usual, fazendo com que a remuneração da parceira seja a menor dentro do relacionamento. “É uma forma de o controle se estabelecer. Em um primeiro momento, o discurso é de cuidado e preocupação, para que a mulher tenha mais tempo livre para se dedicar para a família, por exemplo.” De acordo com a especialista, o abusador espera essa nova dinâmica se estabelecer para, então, reclamar da falta de dinheiro e do fato de ser o principal provedor da casa. “É um discurso ambivalente, que oscila entre momentos de agressividade e demonstrações de afeto, desestabilizando a parceira.” Em relacionamentos tóxicos, despesas familiares são tratadas como uma forma da mulher “se aproveitar” do marido.

O Brasil ainda carece de dados no que tange à violência patrimonial. Não há informações sobre o número de casos no país. O Dossiê Mulher 2018 (ISP/RJ), do Instituto Patrícia Galvão, é o que temos de mais concreto. O documento indica as mulheres foram as maiores vítimas do crime no Estado do Rio de Janeiro em 2017. O principal tipo foi o dano, que aparece em 50,4% dos casos, seguido da violação de domicílio (41,8%) e da supressão de documentos, 7,8%. Além disso, o texto mostra que 43,3% dos casos ocorreram na casa da vítima, por namorados, maridos ou ex-companheiros. Se forem somados os pais, padrastos, parentes e conhecidos, o número chega a 59,9%.

A fundação americana Purple Purse, que se dedica a quebrar o ciclo de violência por meio do empoderamento financeiro indica que, nos Estados Unidos, 99% dos casos de violência doméstica envolvem abuso financeiro. “Acontece todos os dias e não discrimina. Afeta todas as classes, raças e comunidades. E homens são vítimas também.” Para testar a solidariedade dos americanos, a organização produziu um vídeo em que uma mulher esquece uma bolsa roxa (purple purse em inglês) em um táxi. Assim que um novo passageiro entra no veículo, o telefone celular está dentro da bolsa começa a receber mensagens ameaçadoras, supostamente do parceiro. Em seguida, a mulher liga para próprio aparelho em busca de seus pertences. O vídeo abaixo mostra alguns dos casos em que as pessoas se preocuparam com o bem-estar da dona da bolsa roxa.

A Purple Purse recomenda ficar alerta aos primeiros sinais. Como qualquer violência doméstica, a violência patrimonial começa com um padrão abusivo de comportamento, usado para controlar e intimidar a parceira. É uma conduta que começa de forma sutil, progride com o tempo. Além da chantagem emocional e das ações listadas pela psicóloga Daniela Zanetti, a organização ainda indica que há outras maneiras pelas quais o companheiro pode tentar assumir o controle dos recursos financeiros da mulher. As principais delas são: restringir os gastos diários; desviar recursos da esposa; impedir o acesso às contas bancárias; sabotar a educação e o emprego da parceira; excluir a mulher do planejamento financeiro; e criar dívidas.

Fontes: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família / Lei Maria da Penha

Para quem olha a situação de fora, pode parecer impossível que uma mulher não se afaste de alguém que a agrida diariamente. Que a faça sofrer. Que a humilhe e insulte constantemente. Mas a violência patrimonial paralisa. Não bastassem chantagens emocionais e as constantes ameaças, a supressão de documentos e a limitação de acesso aos recursos financeiros do casal deixam a mulher isolada e sem ter a quem recorrer. No website da fundação Purple Purse, os visitantes são convidados a assumir o papel da vítima em uma situação de violência doméstica durante uma experiência de realidade virtual chamada Trapped – Descubra por que vítimas de violência doméstica não podem sair de casa.

Nós decidimos fazer o teste. Assim que a experiência começa o visitante assume o papel de uma mulher de 33 anos que é dona de casa, tem filhos e é casada desde o final da faculdade. Nos últimos anos, o estresse do trabalho, segundo o texto, transformou o temperamento do parceiro de ciumento para controlador até que chegou ao ponto da agressão física. Ela já não se sente mais segura na própria casa. Neste momento, a pessoa pode escolher entre sair ou permanecer. Nós clicamos no botão que indicava a saída e prontamente surgiu a dúvida: para onde você vai? Uma das opções era família, e foi a que nós escolhemos. Em seguida, surgiu o seguinte texto: 65% das americanas não acreditam que sua família saberia se elas estivessem em um relacionamento financeiramente abusivo. A experiência continua e é aterrorizante.

Você pode ver como funciona aqui – apenas tenha cuidado, pois pode ativar gatilhos
Foto: Reprodução

“As pessoas acham que você pode simplesmente sair; que você pode simplesmente se levantar e ir. Não é sempre assim”, diz Susan, em um dos depoimentos disponíveis no site. “Nós ficamos juntos por dois anos e eu levei dois anos para me afastar dele. Não era claro para mim o quão profundo havia sido o abuso financeiro”, completou Krista. Mas para Ana a violência era muito clara. Ela já havia apanhado do namorado incontáveis vezes quando decidiu terminar a relação. Mas ele não aceitou. Além de espancá-la, recusava-se a sair do imóvel que ela tinha comprado sozinha, com muito esforço. Só o fez quando ela decidiu chamar a polícia, mais de um ano depois. Ainda assim, ele espreitava a casa à noite na tentativa de intimidá-la. Foram anos até que ela pôde sentar na sacada sem medo.

Maria também tinha receio de romper com aquele relacionamento, apesar das infidelidades e da ausência de demonstração de afeto para ela e as crianças. Ela tinha medo de não conseguir manter o padrão de vida e de prejudicar financeira e emocionalmente as filhas. E essa é, de fato, uma das principais preocupações das mulheres que sofrem com a violência patrimonial, elas tem medo de não conseguir pagar as contas, receiam passar por dificuldades extremas e sofrem com a possibilidade de não poder sustentar os próprios filhos.

A saída de um relacionamento abusivo não é simples nem rápida. Algumas mulheres não tem a quem recorrer, estão alienadas dos amigos e familiares e sem acesso a recursos financeiros. Há mulheres que não tem para onde ir. Há mulheres sem emprego, cuja única fonte de renda era o marido. Mesmo assim, a psicóloga Daniela Zanetti insiste que é preciso procurar ajuda profissional, antes de qualquer coisa. Se a mulher tiver condições financeiras, deve procurar um terapeuta. No caso de mulheres vulneráveis, a orientação é procurar ajuda de uma assistente social, que fará o encaminhamento adequado. “O psicólogo dará o apoio necessário para a mulher começar a reagir àquela situação”, garante Daniela Zanetti. A profissional explica que cada paciente tem suas particularidades, tanto no tempo para se dar conta dos danos provocados por uma relação tóxica quanto para recuperar a autoestima e independência emocional. “Depois desse fortalecimento é que podemos trabalhar, durante a terapia, em questões mais práticas.”

Fonte: Daniela Zanetti, psicóloga, especialista em terapia de casal e família

A psicóloga ressalta que o principal nesse momento de fragilidade é a mulher não ter vergonha de suas atitudes e decisões, caso tenha se afastado de amigos e familiares em função de um casamento que revelou-se abusivo. “Ter uma rede de apoio é fundamental para essas mulheres”. Passado o início desse processo de cura, a fundação Purple Purse ainda orienta que a mulher procure informações sobre educação financeira.

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EDUCAÇÃO FINANCEIRA

No caso de vítimas de violência doméstica, a educação financeira pode ser o passo definitivo para encerrar um ciclo de violência patrimonial que tem uma raiz profunda na sociedade patriarcal em que as mulheres não são educadas para lidar com o dinheiro. E é muito mais que planejamento. Consiste numa série de ações que tem por objetivo diminuir despesas, aumentar ganhos e, eventualmente, investir e acumular recursos. Ou seja, é um conjunto de práticas que minimizam os riscos no que diz respeito à situação financeira com escolhas conscientes e planejadas.

Com isso em mente, a educadora financeira Leila Ghiorzi e a advogada Gabriela Souza pensaram a oficina “Dinheiro também empodera: como o autocuidado financeiro pode proteger as mulheres da violência doméstica”, em Porto Alegre.

“Nós vivemos em uma sociedade muito machista e patriarcal e isso faz com que tenha, sim, uma bagagem diferente com relação aos gastos”,  disse Leila. Ao homem, cabe o fardo de ser o responsável pelo sustento de uma família, à mulher, cabe o fardo de ser submissa e dependente financeiramente. “Isso é construído socialmente. A questão de o homem ter que arcar com tudo vem de uma época em que a mulher não podia trabalhar e do mito que a mulher é interesseira. Essa é uma herança de quando a única forma de ascensão social da mulher era casar com um homem rico. Era a única forma, porque não podia sair da casa dos pais sem casar, não podia trabalhar, então era única a opção. Mesmo que isso significasse passar por certas humilhações e violências pra manter o casamento”, explicou. E, como vimos anteriormente, é fato que muitas relações ainda se sustentam porque, se o casal se separar, a mulher não tem como se sustentar financeiramente.

Isso não significa que as mulheres gastem mais, não há evidências que comprovem esse fantasia sustentada por muitos machões. Por outro lado, as mulheres pedem mais ajuda. E essa é uma porta importante para conectar a educação financeira à quebra do ciclo da violência doméstica.

Leila conta que já atendeu diversas mulheres que procuraram ajuda para organizar a vida financeira e que não percebiam que estavam sendo vítimas de violência patrimonial. E as situações eram as mais variadas, inclusive casos em que a mulher ganhava mais dinheiro mas era o companheiro quem gerenciava os recursos da casa – e não por uma opção dela. Na oficina, essa porta fica ainda mais aberta, pois é um espaço seguro de compartilhamento. “Acontece muito de alguém ouvir uma história e dizer: “Ah, eu já passei por isso e não tinha me dado conta que era violência.” Por isso a fundação Purple Purse recomenda que, após a ajuda psicológica, a educação financeira seja o primeiro passo para se livrar de uma relação abusiva e da violência patrimonial.

Mas não é um processo simples. Leila diz que não há um modelo estanque a ser seguido por todas as mulheres, até porque a violência patrimonial ocorre com mulheres de todas as classes, mas há alguns passos que por onde se pode começar. Primeiro a pessoa precisa procurar orientações sobre como reorganizar as finanças, fazer um mapeamento da própria condição e um levantamento dos danos. Se houver muitas dívidas, Leila sugere que se procure a Central de Mediação de superendividamentos, na Justiça Estadual. Depois disso, é possível tomar medidas mais simples. “É importante que a pessoa entenda que o dinheiro é limitado. Não dá pra fazer tudo. Então, tem que direcionar para aquilo que faz sentido. Por exemplo, não tem porque pagar tarifa bancária quando há bancos digitais com contas gratuitas”, explica Leila. Então, a primeira recomendação é procurar um banco que não cobre tarifas para a manutenção da conta. Além disso, seguindo uma recomendação da Purple Purse, é importante que essa conta seja individual, para que nenhuma outra pessoa tenha acesso. A seguir, é recomendado que faça um pente fino nas contas fixas. “Liga para as operadores, tenta reduzir as contas de internet, TV, celular, vê o que é preciso manter e o que não é. O segredo é identificar as áreas em que não faz sentido gastar”, explica Leila. Por fim, conforme as finanças forem se reorganizando, é importante guardar dinheiro para uma reserva de emergência. “O ideal é que se tenha, pelo menos, o suficiente para viver por três meses”.

Fonte: Leila Ghiorzi, educadora financeira / Purple Purse Foundation

A educação financeira não é, obviamente, a solução para todos os problemas. Especialmente em um país como o Brasil, em que muitas mulheres, além da violência, são acossadas pela desigualdade e pelo racismo, que também são formas de violência. Especialmente em um país em que o machismo ainda está entranhado nas relações sociais. Mas a ideia de entender a educação e a inclusão financeiras como ponto de partida para a transformação pode ser potente.

E Maria é um exemplo disso. “Eu posso estar mais apertada financeiramente por ter assumido mais despesas, mas estou muito mais feliz e tranquila. E as minhas filhas também. Consegui reduzir o que era supérfluo sem prejudicá-las.” Passados dois anos da separação, o apartamento dos sonhos é alvo de uma disputa extrajudicial e a pensão alimentícia das filhas ainda não foi acertada. “Todo mês, eu preciso negociar os valores a serem pagos. Percebo que é uma forma de tentar manter o antigo controle e poder, mas isso não me afeta mais. Espero conseguir passar o imóvel para o nome das minhas filhas. Ele já comprou outro apartamento, então lugar para morar não é um problema para ele.”

Ela também conseguiu se recuperar emocionalmente. Pouco depois da separação, começou um novo relacionamento. Um namoro em que o dinheiro não é o mais importante e em que as demonstrações de afeto e cuidado para ela e as filhas fazem parte do dia a dia. Olhando para trás, a sensação é de alívio. “A gente não sabe como pode terminar uma relação tão doentia, com uma pessoa que acha que pode comprar tudo, que considera o dinheiro mais importante do que o afeto.”

* Os nomes e profissão foram trocados a pedido das entrevistadas.

Foto de capa: Montagem / Geórgia Santos

Reportagens Especiais

O Evangelho Segundo a Prisão . como as igrejas disputam a devoção dos presos em penitenciárias abandonadas pelo Estado

Geórgia Santos
10 de outubro de 2019

Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago promove o encontro de Cristo com Deus e o Diabo. Mas não é um Jesus santo. Não. É um Jesus humano. De carne. Gente. E a intimidade de uma conversa de 40 dias em que os três ficam confinados a um pequeno barco em alto mar faz com que essa humanidade seja levada ao extremo enquanto Deus e o Diabo disputam sua fidelidade com a mesma estratégia: a manipulação da palavra. Ambos fazem juras. Ambos prometem milagres. Ambos seduzem.

No que vamos chamar de O Evangelho Segundo A Prisão, mostramos que as igrejas neopentecostais fazem o mesmo. De certa forma, reproduzem a lógica sedutora da narrativa das facções para disputar a devoção desses detentos que também não são santos, mas humanos. De carne. Gente. Em casas penitenciárias abandonadas pelo Estado e geridas por facções criminosas que controlam até a comida, os missionários oferecem proteção e cuidado aos presos em troca de obediência. E segundo Gilmar Bortolotto, procurador de justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, a religião, hoje, é a única alternativa de recuperação de um detento. “Só tem isso.”

A reportagem a seguir foi dividida em três partes que mostram, respectivamente, as condições do sistema prisional brasileiro e os motivos que levaram à superlotação dos presídios; a forma como as facções cooptam os novos apenados; e a maneira pela qual as igrejas evangélicas neopentecostais disputam a devoção desses mesmos detentos e se transformam na única alternativa de recuperação. No sistema prisional brasileiro, ceder à tentação, seja de Deus ou do Diabo, tem preço.

Culto de Natal na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ). Foto: Geórgia Santos

A CADEIA. 1 Início do Evangelho Segundo a Prisão. 2 Está escrito no artigo 5ª da Constituição Federal, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, que “todos são iguais perante a lei.” 3 Ainda, “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. 4 Mas são versículos que não cabem aqui. 5 No Brasil, os presos são predominantemente jovens negros com pouca ou nenhuma escolaridade. 6 O país tem a terceira maior população carcerária do mundo e não há vagas para todos. 7 As penitenciárias estão superlotadas. 8 Os detentos são submetidos à condições degradantes. 9 E o Estado não tem controle sobre eles ou sobre os espaços.

 

Para o senso comum do brasileiro médio que habita as caixas de comentários do Facebook e sites de notícia, o presídio perfeito é um forte. Algo como um calabouço. Talvez deva se parecer com uma masmorra. Idealmente, os presos devem sofrer muito. Danem-se, não tem mais volta. Sem privilégios, devem comer o mínimo e dormir não mais do que o suficiente. Devem estar ocupados, mesmo que seja em trabalho forçado. De preferência com uma bola de ferro amarrada às canelas, como em um filme de Clint Eastwood, que imortalizou o presídio mais famoso do mundo no filme Fuga de Alcatraz. “Bota uma bola de aço com uma corrente na perna e deixa na rua”, aconselha o leitor de uma reportagem sobre presos empilhados dentro de camburões. “Como diz o Bolsonaro, é só não matar, roubar, estuprar. Que não se vai pra lá e acabou chega de reclamar querem hotel 5 estrelas me poupe!”, diz outro, esquecendo a compaixão e as vírgulas. Um terceiro avisa que uma bala de munição custa somente R$ 5.

A Penitenciária Federal de Alcatraz, em São Francisco, nos Estados Unidos, talvez seja a epítome desse imaginário. Situada em uma ilha cercada por correntes marítimas gélidas, era praticamente impossível de escapar. A severidade fez com que se tornasse um exemplo do sistema carcerário estritamente punitivo. Durante o período de funcionamento, entre 1934 e 1963, os presos mantinham uma rotina rígida, com horário para acordar, fazer refeições e dormir e o livro de regras continha 27 itens que não podiam ser desobedecidos sob hipótese alguma. A regra número 5 tratava do que diziam ser favores: “Você tem direito a comida, roupas, abrigo e atenção médica. Qualquer outra coisa que você recebe é um privilégio.” Se algum dos itens fosse desobedecido, as punições formais e informais variavam da tortura à morte. Também havia o confinamento na solitária, uma cela de dois metros quadrados em que o preso recebia banhos de água fria, dormia no chão, e era privado de comida e luz por tempo indeterminado. Supostamente, tratava-se do melhor e mais eficiente sistema de punição das américas, pelo qual passaram Al Capone e George “Machine Gun” Kelly.

Com exclusividade, entrevistamos o detento 1259AZ de Alcatraz, o último ainda vivo. William G. Baker começou a vida no crime quando tinha 18 anos, em Oregon, nos Estados Unidos. Depois de escapar da prisão estadual, roubou um carro, foi capturado e transferido para Alcatraz aos 23 anos, onde permaneceu entre 1957 e 1960. Ele não era necessariamente um preso exemplar e foi alvo de muitas das punições dos guardas. Mas isso não parece ter solucionado o problema. “Eu era um criminoso melhor (mais competente) quando eu saí de lá”, disse, com um sorriso irônico no rosto. Ele aprendeu a falsificar cheques com outro detento e foi o que ele fez até quase 80 anos. Viveu do crime e lucrou até a velhice com o “ofício” que aprendeu dentro da cadeia. Dentro da mais severa e mais rígida cadeia.

 

A história de Baker é apenas um exemplo, mas é também um indício de que um sistema carcerário estritamente punitivo pode não ser a solução, mesmo que funcione do ponto de vista administrativo. “Presídio que funciona não é só o presídio que tem tudo certinho. Presídio americano tem muito investimento, mas a reincidência é parecida com a nossa”, explica Gilmar Bortolotto, procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul.  Ele diz que um dos problemas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, está no fato de que o número de entrada de presos não para de crescer – e 70% deles passam pelo sistema carcerário mais de uma vez.

Hoje, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos, atrás apenas de Estados Unidos e China. Segundo dados do Levantamento Nacional De Informações Penitenciárias (Infopen) de junho de 2017 e divulgado em 2019, o Brasil tem 726.354 pessoas privadas de liberdade. Marcos Rolim, que é jornalista, sociólogo e especialista em segurança pública, entende, no entanto, que a quantidade de presos no Brasil deve ser maior.  É preciso considerar a defasagem dos dados.  Com um crescimento médio de 8% ao ano, é provável que o país já tenha mais de 800 mil apenados. “E isso vai levar o Brasil rapidamente a uma população de mais de um milhão de presos dentro  de um ou dois anos. É muita gente presa”, diz.

“E isso vai levar o Brasil rapidamente a uma população de mais de um milhão de presos dentro  de um ou dois anos. É muita gente presa”

Marcos Rolim, especialista em Segurança Pública

Mas mesmo os números mais conservadores são expressivos. A taxa de aprisionamento no Brasil é de 352,6. Isso significa que há 352,6 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes. Em 2000, essa taxa era de 137. O dado fornecido pelo Infopen indica que a quantidade de pessoas presas no Brasil é duas vezes maior que a registrada há dez anos e oito vezes maior em 1990, quando a população carcerária de todo o país era de 90 mil. São 636 mil presos a mais.

A proporção desse crescimento revela que há um processo de encarceramento em massa em curso, que além de evidenciar o número de presos, chama atenção para a capacidade discutível da prisão de reduzir a violência e para a desproporcionalidade racial e etária. No Brasil, o perfil do detento não é aleatório: 56% das pessoas privadas de liberdade são negras; 34% estão presos sem condenação; 54% tem entre 18 e 29 anos; 89% não concluíram os estudos, ou sequer começaram (entre analfabetos e Ensino Médio incompleto). Ou seja, a maioria é negra, jovem e com estudo incompleto.

A chance de ser preso está diretamente ligada ao grau de escolaridade, à posição na estrutura de classes, faixa etária e cor. Isso acontece tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Erin Haney é conselheira sênior da organização americana conhecida por CUT 50, uma iniciativa nacional e bipartidária que tem o objetivo de reduzir a população carcerária nos EUA. Segundo ela, o encarceramento em massa tem o racismo e o classismo na base. “É evidente o reflexo desses males ao fazermos uma análise das sentenças proferidas pelos juízes. Com isso, nós podemos rastrear a origem do encarceramento em massa até a escravidão.” Ela explica que hoje há mais pessoas negras sob a custódia do governo americano e privadas de liberdade do que naquele período. Isso significa que a chance de ser preso nos Estados Unidos é maior para uma pessoa negra. E os números do Infopen deixam claro que a realidade no Brasil é a mesma.

O sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor e pesquisador da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o aumento no número de prisões é também consequência direta da política criminal punitiva adotada pelo Estado brasileiro, que aplica pena de prisão em situações em que se poderia utilizar outras medidas – especialmente no caso de jovens réus primários. Dessa forma, o propósito correcional da prisão é substituído por um modelo em que os presídios se tornam depósitos de indivíduos. “E isso não funciona, porque essa é a receita que o Brasil tem adotado e ela não tem contribuído de forma alguma para que o problema seja, de alguma maneira, equacionado.”

O juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Penais de Porto Alegre, acompanha a situação da superlotação das casas prisionais desde o final da década de 1990 e concorda que um dos fatores para o aumento no número de presos diz respeito à forma como o país vem enfrentando o tráfico, a chamada “Guerra às Drogas”. “Há 20 anos, a quantidade de pessoas presas por tráfico ou crimes relacionados ao tráfico era menos de 5%. Hoje as pessoas condenadas por tráfico ou crimes relacionados talvez seja superior a 80%. Porque você tem porte de arma relacionado ao tráfico, roubo, receptação, tudo está relacionado”, explica.

Segundo Brzuska, o Brasil adota o combate ao tráfico pela repressão penal e não ataca o que se conhece por “ciclo completo”. Ou seja, não há uma preocupação do Estado  no que se refere à desativação dos pontos em que a droga é comercializada, assim como não há uma preocupação com o tratamento do usuário viciado. “Se faz o enfrentamento do tráfico pela apreensão de drogas e pela prisão de traficantes. Você faz o enfrentamento do tráfico pelo viés da repressão”. Isso não faz com que o crime perca força, apenas interrompe brevemente. E o resultado prático e imediato é um número maior de pessoas presas.

Um segundo problema, de acordo com o magistrado, é a forma como se negligencia a primeira infância. Outra falha do Estado que fica evidente quando se observa que 51% dos presos tem Ensino Fundamental Incompleto, ou seja, a maioria da população carcerária chegou a frequentar a escola mas desistiu na adolescência ou antes. Foi o que aconteceu a Eduardo Pauly, 31 anos. Ele lutou por mais de uma década contra o crack e o alcoolismo e foi preso por assalto. Hoje ele é pastor da Igreja Assembleia de Deus. Mas mesmo recuperado, não esquece como tudo começou. Aos onze anos, recebeu um bilhete da mãe:

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“ESCOLA ESTADUAL DE PRIMEIRO GRAU CANADÁ. ÔNIBUS CAPÃO DA PORTEIRA – PASSO DO VIGÁRIO.
CIDADE VIAMÃO.”

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Ela pegou o guri pela mão e levou a criança até a rodoviária de Novo Hamburgo. Desacompanhado, Eduardo embarcou em um ônibus sem saber exatamente para onde ia. Sequer tinha consciência de que estava, efetivamente, sozinho. “Fiquei quatro anos interno num colégio porque eu tinha o sonho de criança de ser veterinário e fui pra lá pra fazer o curso técnico em agropecuária. E lá, sem mãe e sem pai, tive o contato com as drogas. Sem nenhum tipo de amparo”, desabafou. No primeiro ano longe de casa, ele encontrou suporte na dormência de drogas pesadas. Aos 17 anos, já era viciado. “O crack me escravizou. Primeiro tirou meus sonhos, eu desisti dos meus sonhos. O meu objetivo era conseguir mais uma pedra, dar mais um teco. Eu não queria mais ser veterinário, eu queria usar mais droga. Eu saía de uma realidade que eu enfrentava e passava um momento mínimo de prazer que depois me trazia grandes frustrações. Comecei a roubar e, roubando, fui parar dentro de uma penitenciária”, contou. Virou estatística. Virou número. Um número que só aumenta.

Eduardo Pauly, ex-detento. Foto/arte: Geórgia Santos

Brzuska explica que é também nessa fase da adolescência em que se desenvolve a ideia de pertencimento. E quando tem esse vácuo do não-pertencimento, o que sobra para um jovem que teve uma primeira infância negligenciada inclusive pelo Estado e está vulnerável em áreas periféricas é o pertencimento à facção. “Aí vem o empoderamento que o crime dá, dá uma arma, vai fazer uma selfie com uma arma, com celular novo de última geração. E o próximo passo é a prisão,” conta.

Como um terceiro motivo para o aumento expressivo no número de apenados, o juiz da Vara de Execuções Penais ainda cita a forma com que os estados dispõem as polícias, sobretudo as militares – fator esse que está diretamente relacionado à disparidade promovida pelo racismo e classismo. Sidinei Brzuska mostra o exemplo do Rio Grande do Sul, em que o número de pessoas condenadas aumentou em dez vezes quando José Ivo Sartori assumiu o governo, a partir de 2015, e as autoridades da área da segurança alteraram o posicionamento do policiamento ostensivo. Na administração anterior, a média era de mil pessoas condenadas por ano. Em 2016, esse número passou para 6 mil; em 2017, pulou para 8 mil; e, em 2018, chegou a 10 mil. “Você troca a forma de manejar a polícia militar. Se você coloca uma viatura na esquina da praça da Encol [região de classe média alta de Porto Alegre], outra na esquina do Shopping Iguatemi, vão cruzar milhares de pessoas nesses dois pontos e não vão prender ninguém. Se você deslocar essas viaturas algumas quadras para dentro das vilas, já muda tudo”, conta Brzuska.

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“Você troca a forma de manejar a polícia militar. Se você coloca uma viatura na esquina da praça da Encol [região de classe média alta de Porto Alegre], outra na esquina do Shopping Iguatemi, vão cruzar milhares de pessoas nesses dois pontos e não vão prender ninguém. Se você deslocar essas viaturas algumas quadras para dentro das vilas, já muda tudo.”

Sidinei Brzuska, Juíz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre

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A estatística policial é expressiva e o alto número de prisões promove uma sensação de segurança. Vem na esteira da narrativa que ganha força no governo federal, que é de endurecimento da lei, de aumento das penas, redução da idade penal e extinção da progressão. Mas o problema continua não sendo atacado na raiz, apenas do ponto de vista da repressão. E é um problema que se acentuou muito nos últimos dez anos. “Um pouco tem a ver com a questão da lei em que o usuário passou a ser tratado como traficante”, diz Brzuska.

Em 2006, a nova Lei de Drogas sancionada pelo então presidente Luíz Inácio Lula da Silva (PT) prometia não encarcerar mais os usuários. Seria um ponto importante para reverter o crescimento do número de pessoas presas por crimes ligados às drogas. Mas a definição de quem seria usuário e quem seria traficante e da quantidade de droga que separa um do outro ficou nas mãos da polícia. Relatório da ONG Human Rights Watch mostra que a nova lei se tornou um fator fundamental para o aumento da população carcerária no Brasil. Hoje, um em cada três presos brasileiros responde por crimes ligados ao tráfico.

O sociólogo Marcos Rolim conta que essa legislação vai na contramão do que propõem outros países em que a quantidade de droga apreendida é um fator importante no momento de diferenciar o usuário do traficante, como Estados Unidos e Espanha. “Aqui nós não criamos nenhuma referência objetiva para diferenciar. Se tu fores pega com um cigarro de maconha e a polícia achar que é pra venda, vai ser presa pelo mesmo crime que um cara que está transportando uma tonelada de cocaína, não tem diferença”, diz. Mas tem uma diferença – ou duas. De novo, voltamos à questão da cor e a classe. “Se é pobre, é traficante. Se é rico, é usuário”, explica. L. tem 23 anos é o exemplo de cartilha dessa situação. “Eu não sou santo, mas me prenderam porque eu tinha um baseado. Me jogaram aqui. Mas eu não sou traficante, cara”.  L. é negro e de família pobre. Não teve a menor chance.

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Se é pobre, é traficante. Se é rico, é usuário.

Marcos Rolim, especialista em Segurança Pública

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O encarceramento em massa é um problema em si, mas é um processo que desencadeia uma série de efeitos colaterais porque, além do fator da quantidade de presos, há o problema da quantidade de vagas. Não há espaço para todos. Há apenas 423.242 vagas para os mais de 726 mil detentos. Isso gera um déficit de 303.112, segundo os dados divulgados pelo Infopen neste ano. Há praticamente dois presos por vaga no Brasil, uma taxa de ocupação de 171,62%. Mas também neste caso, segundo Rolim, são números conservadores em função da metodologia utilizada para contabilizar tanto a população carcerária quanto o déficit de vagas. “Quem informa é o diretor da penitenciária. Ele usa o critério da praxe prisional. Na praxe prisional, em cada cela cabem quatro, então, eles contam quatro vagas por cela. Se tiver cinco caras em uma cela, está faltando uma vaga.”

O problema  é que o critério legal indica que cada cela foi construída para um detento. “E o único critério que deve ser utilizado é o critério legal, que determina 6m2 por preso. O juiz teria que entrar no presídio e medir a área de instalação e ver quantos presos tem naquele espaço, e isso nunca se fez. E essa medida é dada pela legislação nacional e por todos os tratados internacionais aos quais o Brasil subscreveu”, explica Rolim.

O procurador do Ministério Público Gilmar Bortolotto atribui o problema à falta de cuidado do Estado de maneira geral. O Presídio Central de Porto Alegre, por exemplo, é a maior casa prisional do RS e já foi considerado o pior presídio do país pela CPI do Sistema Carcerário. Quando foi criado, em 1959, os funcionários geriam a penitenciária da maneira que achavam adequado e o poder público foi, aos poucos, abandonando, segundo o procurador. “Era uma lógica de “vai empilhando, só não pode dar estouro”. Quando deu o primeiro estouro, que os presos foram parar dentro do Plaza, tinha 10 funcionários pra gerenciar 1.773 presos no Central. Eles andavam com facão na cintura e eram usados como guardas. Desde lá, o Estado passa um só recado para o funcionário: é contigo. E o que o funcionário faz? Passa a responsabilidade para o preso. Obviamente eu estou falando em condições extremas de como isso começou lá atrás, mas é uma lógica que explica porque estamos nessas condições.”

Há 20 anos, Bortolotto foi transferido do interior para Porto Alegre como promotor da Promotoria de Justiça de Controle e Execução Criminal da capital, criada justamente para fiscalizar os presídios. Já em 1998 ele deparou com um sistema cheio de problemas. Antes de mais nada, decidiu ouvir. “Me sentei dentro das cadeias, cada dia em uma, e em alguns meses eu ouvi cerca de 3 mil presos. ?E comecei a entender um pouquinho melhor a lógica. Um pouquinho. Porque entender a lógica demora mais de década”, disse. Ele passou a ouvir também os familiares dos apenados, uma média de 10mil por ano, e egressos. Esse trabalho permitiu que o então promotor fizesse um mapeamento do sistema carcerário gaúcho.“Os presos começaram a trazer demandas que eram causas de rebelião e mortes. Desde colocarem gente que não podia estar ali (intencionalmente) até pequenas demandas que não tinham resposta, como de quanto era a pena e outros prazos. Encontrei, inclusive, muitas pessoas que já tinham cumprido a pena e ainda estavam lá. Prisões preventivas que tinham sido revogadas mas havia defeitos na comunicação. Decisões do juiz que não eram informadas. E, claro, em um ambiente de ignorância, os caras pedem uma vez, pedem duas, na terceira, botam fogo”, explica.

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 “Os familiares vinham também, “tem um que vai ser executado”; “outro que tá com tuberculose”; “outro que foi morto e enterrado dentro da área do semi-aberto”. Nós descobrimos vários cadáveres enterrados de gente que a mãe ia lá falar comigo e dizia: disseram que meu filho fugiu mas ele não apareceu em casa. A gente ia lá, conversava com os presos e descobríamos o corpo.”

Gilmar Bortolotto, Procurador de Justiça do MP-RS

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Os relatos de problemas se empilhavam e maioria estava relacionada à extorsão e violência. Bortolotto criou uma sistemática em que visitaria os presídios uma vez por mês para ouvir as demandas dos apenados e traria a resposta no mês seguinte. Nesse processo, chegava a atender 1500 homens por mês no Central. Mas eram mais de 20 casas prisionais. “Os familiares vinham também, “tem um que vai ser executado”; “outro que tá com tuberculose”; “outro que foi morto e enterrado dentro da área do semi-aberto”. Nós descobrimos vários cadáveres enterrados de gente que a mãe ia lá falar comigo e dizia: disseram que meu filho fugiu mas ele não apareceu em casa. A gente ia lá, conversava com os presos e descobríamos o corpo.”

OUÇA . Gilmar Bortolotto, procurador do MP-RS, diz que a sistemática que ele desenvolveu não resolveu todos os problemas, mas auxiliou a gerar uma espécie de cultura de paz, em que os presos entenderam que não precisavam “fazer o horror” para ter uma resposta.

 

Mas outros problemas relatados por presos e familiares não estavam relacionados à intimidação ou chantagem, e sim a questões de infraestrutura e modus operandi das autoridades de segurança dentro das casas prisionais. O relatório da ONG Human Rights Watch – assim como os relatórios de inúmeras visitas técnicas promovidas por comissões de parlamentares do Congresso Nacional e assembleias legislativas dos estados e até de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) –  revela que os detentos vivem em condições insalubres, em celas escuras,  sem ventilação e expostos a inúmeras doenças. O Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura ainda relatou casos de tortura em todos os estabelecimentos prisionais visitados entre abril de 2015 e março de 2016.

Os efeitos perversos do encarceramento em massa são prova de que  o Estado perdeu o controle. E não existe vácuo no poder. Segundo o professor Rodrigo Azevedo, se o Estado não tem condições de assumir o controle das penitenciárias, elas se tornam terreno fértil para o crime organizado. “Nós temos dois presos, praticamente, hoje, no Brasil, por vaga. Isso acaba dando às facções, que se organizam nesse ambiente, um poder muito grande. Porque elas acabam, com isso, tendo uma capacidade muito grande de cooptação de quem entra no sistema.”


AS FACÇÕES. 10 A superlotação impede o Estado de separar presos que pertencem ao crime organizado do restante da população carcerária. 11 Dessa forma, aumenta o poder de cooptação de novos presos por facções criminosas. 12 As organizações oferecem drogas, dinheiro, proteção, espaço e comida. 13 Em troca, exigem lealdade ao código e trabalho. 14 É um contrato impossível de romper. 15 Isso aumenta o poder das facções, que transformam as penitenciárias no sistema bancário do tráfico. 16 Dessa forma, o crime organizado assume o controle da prisão. 17 Aumenta a violência externa. 18 E torna impossível a recuperação de um apenado. 

Eduardo Pauly, que conheceu as penitenciárias da pior forma, é muito claro. “O presídio não tem condições alguma de recuperar um detento, a não ser produzir nele mais ódio, mais raiva, mais rancor.” No Rio Grande do Sul, um dos casos mais graves é o do Presídio Central. A Cadeia Pública de Porto Alegre tem capacidade para 1824 pessoas e abriga 4299 presos. São 2,3 presos por vaga. Em função da superlotação, a maior casa prisional do Estado já não divide os presos por celas. Lá, os apenados estão em 24 galerias localizadas em nove pavilhões cobertos por colchões no chão. Isso causa problemas de logística, por exemplo, já que as refeições precisam ser levadas até os presos – afinal, não há funcionários ou espaço suficiente para transportar mais de 4mil pessoas aos refeitórios, três vezes por dia. A equipe é composta por apenas 300 policiais militares e 70 funcionários da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe). Mais do que isso, todos convivem, diariamente, com infestação de ratos e baratas; lixo acumulado no pátio;  e banheiros com infiltração que forçam os presos a escoar as fezes por encanamentos improvisados com garrafas PET.

O Central é o maior e talvez o presídio mais emblemático quando se pensa em condições degradantes. Mas não é o único em que há graves problemas estruturais. Não é o único no país e sequer no Estado. A Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) é a segunda maior do Rio Grande do Sul e abriga 2572 presos em 1372 vagas. Eduardo Pauly passou por lá após ser preso por roubo e conta que as condições são degradantes. “Era tudo sujo, não tinha a menor condição. A gente enxergava rato e barata por tudo. Em algumas celas, todo chão ficava molhado, tinha lixo espalhado, pessoas com doenças, tipo tuberculose. Tinha comida vencida, mosca em cima. Só a galeria dos irmãos era limpa e organizada, o resto não tinha condição. Era desumano. Eu sei que as pessoas ali cometeram crimes, mas era desumano.”

A gente enxergava rato e barata por tudo. Em algumas celas, todo chão ficava molhado, tinha lixo espalhado, pessoas com doenças, tipo tuberculose. Tinha comida vencida, mosca em cima.

Eduardo Pauly, ex-detento da PEJ

Para dar um exemplo do problema, ele nos mostra trechos da reportagem “O pior lugar do mundo“, exibida pela RBSTV em 2012, quando a PEJ foi interditada pela justiça. Ele tinha razão, estava tudo ali. Os insetos, o lixo, o banheiro sem vaso sanitário, sem esgoto. Pessoas doentes isoladas em celas fétidas. “Como que um lugar aonde a pessoa é desprezada, esquecida, mal tratada, poderá mudar a situação de uma pessoa?”, desabafa Eduardo.

E os líderes das principais facções criminosas sabem disso. Eles sabem que as penitenciárias superlotadas e sem infraestrutura não tem condições de recuperar ninguém e se aproveitam disso. O procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul Gilmar Bortolotto explica que, atualmente, o ambiente carcerário não é dominado pelo Estado. Isso significa que há um vácuo deixado pelo poder público que é preenchido justamente pelas facções criminosas que se aproveitam desse vazio para aumentar o poder material e de recursos humanos. E nesse caso, não interessa o preso que já é faccionado, esse já vai solicitar transferência para um presídio que seja dominado pela facção da qual faz parte. O problema está no contato da facção com o homem que é preso pela primeira vez. “Tu olha pro Estado, o que tem pra o preso? Nada. Aí tu olha pra facção, os caras te oferecem 3 mil pra trabalhar em uma boca de segurança. O que tu vai pegar?”, questiona Bortolotto.

OUÇA . Gilmar Bortolotto, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, explica como acontece a cooptação

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A socióloga Camila Nunes Dias realizou uma pesquisa em penitenciárias de São Paulo durante os anos de 2003 e 2004 e identificou que o sistema prisional não admite uma variedade muito ampla no que se refere às identidades possíveis para um apenado.  Segundo Camila, há dois mundos antagônicos e opostos: o mundo do trabalho e o mundo do crime. Ao primeiro se associam as normas de conduta e valores que regulam a vida em sociedade de maneira geral.  Quem se identifica com o chamado “mundo do trabalho” se coloca à margem de facções criminosas e valorizam o trabalho, a família, a edução e traçam planos para retornar à sociedade. Mas isso não significa que esses presos não estejam também submetidos ao sistema normativo da cadeia, a que se chama de “código delinquente.”

Esse conjunto de regras se baseia, especialmente, na lealdade aos pares e nas atividades ligadas ao comércio e uso de drogas dentro da cadeia – e o código máximo é não delatar o companheiro. Esses dois pilares são sustentação ao segundo universo, o mundo do crime, e norteiam – mais do que as normas da administração prisional –  as relações dentro do sistema carcerário. Isso significa que o código delinquente deve ser seguido à risca por todos. “A desobediência ou a infração a alguma dessas regras ou leis acarreta sanções, que vão desde agressões físicas até a morte do transgressor.”

Camila ainda ressalta que quanto mais as facções se organizam dentro do sistema, esse código adquire formas mais perversas que diz respeito justamente ao fato de os líderes das organizações criminosas se tornarem responsáveis pelo funcionamento do sistema social prisional. Edson Ramiro da Silva havia saído da prisão há apenas 19 dias quando conversou conosco. Permaneceu em regime fechado por 3 anos e 4 meses. Natural de São Leopoldo, foi preso por tráfico de drogas. Cinco vezes. Ele garante que não pertencia à nenhuma facção, que era “só” viciado. Mas também diz que isso durou pouco.“Tu vai pra dentro da galeria e aquilo é uma escola do crime. Não tem como não te envolver. Ou tu faz parte porque tu quer ou porque eles te obrigam. Eles te ajudam com coisas, com dinheiro, dão apoio, às vezes droga. E aí não tem o que fazer”, contou.

“Ou tu faz parte porque tu quer ou porque eles te obrigam. Eles te ajudam com coisas, com dinheiro, dão apoio, às vezes droga. ”

Edson Ramiro da Silva, ex-detento

Sobre o envolvimento com a facção, fez mistério. Disse que não tinha Jesus na vida, mas encontrou a salvação na palavra de Deus largou o crime. Foi inspirado por Eduardo, que conheceu na PEJ. Mas, segundo ele mesmo, a maioria não consegue se livrar. 

Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ) – Foto: Geórgia Santos

O professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo explica que o mecanismo de cooptação das facções dentro do ambiente carcerário ainda tem um efeito colateral externo: aumentam a violência urbana tanto na disputa de territórios quanto na prática de outros crimes. Se a política de guerra às drogas adotada pelo Estado brasileiro é equivocada porque gera um aumento desproporcional no número de presos, ela também é equivocada porque desencadeia uma série de eventos violentos na sociedade. Hoje, se faz o enfrentamento do tráfico pela apreensão de drogas e pela prisão de traficantes. Ou seja, utiliza-se o viés da repressão. Mas não há política pública que atue na desativação do ponto de comercialização e no tratamento do usuário viciado.

O juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre, Sidinei Brzuska, explica que isso culmina com o aumento da violência em uma lógica perversa. “Se você não desativa o ponto e não trata o viciado, e você apreende a droga além de prender, você acaba descapitalizando aquele ponto – que segue ativo. Como esse ponto segue ativo e o traficante está descapitalizado, ele vai se capitalizar. E ele não vai buscar linha de crédito no BNDES ou na Caixa Federal, vai buscar o dinheiro na classe média pela via do roubo. Então, a apreensão de drogas sem a desativação do ponto e sem o tratamento do usuário, por via oblíqua, gera roubo. Por isso você tem muito roubo de carro, de banco, de celular. Porque isso está, pela via oblíqua, suprindo a linha de crédito daquele ponto de tráfico que não foi desativado. O dinheiro que abastece o tráfico é da classe média, seja pelo consumo ou vitima de roubo”, desenha. Isso sem contar que chega o momento em que a prisão constante de traficantes gera uma desestabilização nos pontos de comercialização. E aí partir daí surgem as disputas violentas por território, para ver quem assume o comando. E assim surgem as guerras de facções que geram um aumento expressivo no número de homicídios..

O juiz Brzuska não critica a prisão dos traficantes, obviamente, mas aponta para a necessidade de desativação concomitante dos pontos de venda a partir da elaboração de uma política pública multidisciplinar. “A repressão, pura e simples, não funcionará sem uma política de arruamento, saneamento básico, de cultura, de lazer, de esporte, você precisa de uma ação transversal pra desativar aquele ponto”, explica o magistrado. É preciso compreender, então, que todo roubo e assalto estão diretamente ligados à guerra às drogas. Ao tráfico, sim, mas também à forma com que se combate o tráfico. “O sujeito que vem roubar a pé, na corrida, é viciado e só quer dinheiro. Mas o sujeito que já vem com outro carro, que tem arma, isso é capitalização de boca”, conta Brzuska.

Com toda essa circulação, entre cooptação e capitalização, o movimento e demandas do tráfico cresceram muito. Como consequência, os presídios passaram a gerir uma quantidade gigante de dinheiro. Segundo Brzuska, os presídios viraram o sistema bancário do tráfico. “Tu verifica isso aqui em Porto Alegre pela questão do fuzil. Dez anos atrás, praticamente não tinha fuzil em Porto Alegre. Ele é mais utilizado para fazer segurança da boca, e como é uma arma cara, 30, 40, 50 mil, dependendo da arma, o traficante pequeno não consegue ter, porque é um investimento muito caro. Então esse traficante tem que entrar em rede para essa rede fazer a segurança do ponto. Senão ele não consegue competir. E no tráfico, a facção é essa rede que dá proteção e fornecimento. E esse dinheiro é controlado de dentro da prisão. O dinheiro circula digitalmente por dentro da prisão. Todo o comércio é controlado de dentro. Circula por ali. Não tá entrando malote de dinheiro, mas digitalmente esse dinheiro tá circulando ali dentro.”

OUÇA . Sidinei Brzuska, juiz da VEC  de Porto Alegre, explica como os presídios se tornaram o “sistema bancário do tráfico”

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O dinheiro circula digitalmente por dentro da prisão. Todo o comércio é controlado de dentro. Circula por ali. Não tá entrando malote de dinheiro, mas digitalmente esse dinheiro tá circulando ali dentro.”

Sidinei Brzuska, Juiz da VEC de Porto Alegre

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Todas as informações que se tem a respeito do sistema penitenciário brasileiro dão conta de que a cultura não é de recuperação. Tanto é assim que, segundo o procurador do MP-RS Gilmar Bortolotto, 70% dos presos voltam para a prisão. “Quando se olha para essa taxa de retorno, não se pode concluir que não adianta fazer nada porque os caras são ruins, mesmo. Não adianta fazer nada, não. Não estamos fazendo nada. E por isso a taxa é de 70%”, desabafa. O sociólogo Rodrigo Azevedo ressalta, então, a necessidade de mudar a receita. “Nós precisamos repensar a utilização da prisão para crimes em que ela realmente pode ter um efeito dissuasório preventivo, precisamos retirar o tema do mercado da droga, ou seja, pequenos traficantes presos não modificam em nada o problema e acabam até agravando pela superlotação e pelo fornecimento dessa mão de obra às facções e esse talvez seja um tema prioritário em se tratando de superlotação carcerária.”

Hoje, há poucas alternativas. O procurador Bortolotto provoca. “Tu tem que te imaginar no lugar do preso e se perguntar: por que eu mudaria minha lógica? O que me faria desistir do crime? Hoje, o que mais faz desistir do crime ainda é religião – dentro da cadeia. Porque só tem isso”. E só tem isso.

A cooptação de presos por facções ocorre de duas formas: medo ou sedução. A narrativa da sedução se refere justamente às juras e promessas que o Diabo faz ao Jesus humano de Saramago. Mas não esqueçamos da ficção no autor português, Deus lança mão das mesmas estratégias para convencer Jesus a entregar a ele sua devoção. O Evangelho Segundo A Prisão, funciona da mesma forma. O medo vem da narrativa de que o Jeová do antigo testamento é cruel no julgamento do que se faz em vida, a menos que haja arrependimento daqueles que pecaram contra os mandamentos. A sedução aparece quando as igrejas evangélicas neopentecostais estendem a mão a apenados abandonados com juras e promessas que garantem cuidado, proteção, comida, roupas limpas e a garantia de uma vida de retidão ao reencontrar a liberdade. Tanto o medo quanto a sedução são insistentes, não aceitam não como resposta. Cercam os desesperados até que se rendam e se entreguem ao Senhor. Independente de qual seja.


AS IGREJAS. 19 No Evangelho Segundo A Prisão, a única maneira de um apenado se recuperar no sistema prisional tradicional é por meio da conversão. 20 E evangélicos neopentecostais se apropriaram dessa oportunidade. 21 Por meio de uma narrativa que se assemelha à das facções no sentido que prometem melhorar a vida do preso em troca de lealdade, disputam adeptos com o crime organizado. 22 Prometem milagres e uma nova vida. 23 E, de fato, podem ser bem sucedidos. 

 

 

Foi tentando compreender o trabalho da igreja dentro das penitenciárias que nós conhecemos o Eduardo, que hoje é pregador da Assembleia de Deus. O vício em crack, já aos 17 anos, foi a porta de entrada para assaltos, mas o contato com o mundo do crime organizado não tardou. Embora ele não dê detalhes desse momento. “Já tinha tido contato com inúmeras drogas. Mas o crack me escravizou. Comecei a roubar e, roubando, fui parar dentro de uma penitenciária.”

Eduardo nos recebeu na sala de sua casa, no bairro Primavera, em Novo Hamburgo, onde mora com a esposa, Fernanda, e os dois filhos pequenos, Maria e Eliel. Fazia muito calor, então as portas estavam abertas. Ele mora no andar inferior de uma casa que não parece concluída e fica nos fundos de um terreno amplo, com um pátio grande e gramado bem verde. É bastante confortável e fresca, um bom lugar para ficar no final do mês de novembro em uma região em que as temperaturas são sempre altas nessa época do ano. Apesar do calor, ele estava bebendo chimarrão. E eu aceitei uma cuia. Ele fala bastante, é muito simpático e bem articulado e parecia empolgado em contar histórias sobre sua vida pregressa. “Eu não escondo meu passado, nem posso esconder, porque eu quero ajudar os outros. Como vou fazer isso se não falar do que eu passei?” Ele deu um salto da poltrona verde em que estava acomodado e começou a procurar por algo em uma gaveta. Em seguida alcançou um jornal local em que foi destaque. “Das drogas à pregação”, dizia o título da peça que contava a trajetória do cara que estava orgulhoso à minha frente.

Tanto é assim que ele não estava sozinho. Ao lado dele estava Edson Ramiro da Silva, a quem conheceu quando estava preso na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ). Edson estava na rua há apenas 19 dias, então Eduardo estava “de olho” nele. Edson vestia um terno, fatiota completa. Eles notaram que eu estranhei aquela roupa toda em um dia em que a temperatura se aproximava dos 30 graus, mas logo explicaram. “Ele está pronto para o culto de logo mais. Vamos conosco?”, perguntou Eduardo. Vamos, sim, mas até lá, eu queria saber mais.

“Eu nunca imaginei estar dentro de uma igreja, eu nunca pensei que eu entraria dentro de um presídio pra falar do amor de Deus. Eu passava cada vez mais longe das igrejas. Quanto mais eu me aproximava da droga, mais eu me distanciava de Deus”, disse ele. Dentro da penitenciária, condenado a 7 anos e 4 meses de detenção, ele estava consumido pelo vício até o dia em que recebeu uma visita do pai, que chorava e pedia pra ele deixasse de usar drogas. “Ele me dizia: Eduardo, deixa de usar droga (chorando). Eu não tenho mais da onde tirar dinheiro, e se tu usar, eles vão te matar. Porque eu mentia que eles iriam me matar e eles me davam mais dinheiro pra eu usar. Ele saiu chorando e no outro dia eu não usei mais.” Mas não foi um caminho fácil. Segundo ele, foi o líder de uma facção conhecida do Vale dos Sinos que sugeriu que ele “desse um tempo” na galeria dos evangélicos. Foi assim que ele entrou em contato com o que ele chama de “palavra de Deus.”

Há outras igrejas evangélicas que realizam o trabalho de recuperação dentro das penitenciárias, mas neste caso, a maior presença era a da Assembleia de Deus, que opera por meio do Ministério da Restauração. O sociólogo Clemir Fernandes coordenou uma pesquisa que constatou que os evangélicos são “incontestavelmente” o grupo mais numeroso nos presídios – principalmente no Rio de Janeiro. E os apenados evangélicos se destacam na multidão. Vestem-se de forma diferente e se comportam de maneira distinta da maioria da população carcerária. Um “irmão”, como são chamados, geralmente usa calça e camisa sociais e sapatos fechados, mesmo em dias quentes, e segue uma conduta discreta. A base é a condução de uma vida pura. O preso deve evitar aglomerações, jogos muitos competitivos e segue à risca as recomendações dos missionários. É proibido consumir qualquer tipo de drogas e bebida alcoólica, a comida deve ser dividida e o espaço deve estar sempre limpo. Na Penitenciária Estadual do Jacuí (PEJ), há inclusive uma galeria dedicada especialmente aos irmãos. E embora ilegal, a prática de espaços distintos para os presos evangélicos é bastante comum em casas prisionais de todo o país (link reportagem globo). Esse diferencial é um dos argumentos não ditos utilizados pelos evangelizadores que disputam a atenção dos presos com as facções. 

No caso da PEJ, os membros mais antigos da igreja Estrela do Cárcere são designados como missionários e tem o dever de levar a palavra a outros setores da penitenciária, inclusive os mais perigosos, com o objetivo de conquistar devotos. E esses devotos são disputados. De certa forma, com a mesma narrativa das facções, garantindo proteção e cuidado. Mas a moeda de troca é diferente: há regras rígidas presas às paredes para que ninguém se “desvie da palavra do senhor.”

Foi assim que Eduardo se tornou um pregador e decidiu abandonar a vida do crime. “Desde quando eu tomei uma posição com Deus e decidi me converter, brotou um sentimento no meu coração de não somente eu ser liberto, mas também de ajudar a tantos quanto eu tivesse a oportunidade”, explicou. Ele pediu licença para tomar um banho e se arrumar para o culto. Eu concedi, é claro, e aguardei enquanto conversava com Edson, que me garantiu que só estava no crime porque não tinha a religião na vida. “O objetivo de Jesus dentro da cadeia é que tu não volte pra ela”, diz.  Ele estava ansioso porque daria o seu depoimento no culto de logo mais, mas estava seguro de sua decisão de não ceder às tentações da facilidade que a vida do crime oferece. Natural de São Leopoldo, Edson não viveu uma vida de dificuldades, segundo ele, foi o vício e a preguiça que o seduziram. “Eu não fazia nada, não gostava de trabalhar, não entendi a nobreza do trabalho e o crime foi muito sedutor. Mas não vale a pena e Jesus me ajudou a enxergar isso.”

Eduardo ficou pronto, vestiu um terno cinza, camisa e gravatas escuras, cinto e sapato. Nos convidou para voltar depois, sua esposa estava preparando o jantar. “Crente não fuma e não bebe, mas come que é uma beleza”, garante. Nós agradecemos, mas estávamos curiosos pelo culto. Chegando à igreja, havia cerca de 30 pessoas aguardando pelo início da pregação. Algumas delas desesperadas. Conversei com uma senhora que não me disse o seu nome mas que mostrou suas lágrimas pelo filho que está preso. Ela não entendia porquê, mas esperava que a Igreja pudesse ajudá-la.

Especificamente naquela noite, o culto todo foi sobre o trabalho desenvolvido pela Assembleia de Deus dentro das Penitenciárias. Foi um serviço longo, com leituras, músicas e sermões, mas principalmente com os depoimentos de Edson e Eduardo. Os dois, com a ênfase conhecida dos pregadores evangélicos, bradavam os caminhos penosos que suas vidas traçavam até pouco tempo atrás. Da mesma forma enérgica, exaltavam a conquista que mudou suas vidas. Hoje, Eduardo trabalha com reciclagem de pneus e tem uma vida confortável. Mais do que isso, tornou-se um ativista da causa e da possibilidade de recuperação de detentos por meio da fé. “Uma procuradora que fiscaliza os presídios me disse: Eduardo, tu imaginou que um dia tu estaria sentado numa sala com as maiores autoridades do estado do Rio Grande do Sul? Eu olhei pra ela e disse: nunca imaginei. Mas doutora, a senhora imaginou que um dia, um rapaz que era viciado nas drogas, com sua vida totalmente destruída, eu fui encaminhado para o presidio pelo Instituto Psiquiátrico Forense, a senhora imaginou que um criminoso, ladrão, drogado, bêbado, mentiroso, sentaria em uma sala como essa pra tratar dos problemas das casas prisionais? Ela me disse que não. Então quando a senhora se encontrar com um presidiário, lembra que ele querendo, Deus pega ele pela mão e e coloca ele em lugares como esse”, disse em alto e bom som para que todos pudessem ouvir.

O trabalho, porém, é maior do que a pregação nas penitenciárias. A igreja atua na recuperação de dependentes químicos por meio de comunidades terapêuticas e ainda oferecendo amparo ao preso na questão jurídica. Para que eu pudesse ter dimensão do alcance, Eduardo me convidou para assistir ao culto de Natal dentro da Penitenciária Estadual do Jacuí. Eu aceitei.

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O culto na penitenciária

Chegamos à PEJ às nove horas da manhã do dia 22 de dezembro de 2017. Uma sexta-feira quente, em que o mesmo dia se confundia entre estar ensolarado e nublado. Fomos os primeiros a  chegar. Cerca de meia hora depois, chegaram Eduardo, sua esposa, Fernanda, e mais um grupo de cerca de 15 pessoas da Igreja. Homens e mulheres, entre músicos, ex-detentos pregadores e pastores que participariam do culto dentro da penitenciária. A revista foi rigorosa, como se espera de um presídio. Só podia entrar com a aliança de casamento. O equipamento necessário para o culto já havia sido inspecionado e estava instalado.

Ao entrar no pátio da galeria 5ª do A, a cena é surreal. Esqueça a imagem que traçamos anteriormente, de um ambiente hostil, sujo e degradante. O pátio de concreto lembra o de uma escola. Nas paredes, é possível ler as mensagens: “Jesus Cristo te ama e quer te ajudar”; “Quanto mais se esforça em mudar, mais se evita sofrer”. Também há duas goleiras, um pouco de grama verde e desenhos de personagens famosos pintados nas paredes. Minnie Mouse, Homem-Aranha, Pica-Pau, Turma da Mônica, e até o Tigrão e o Ursinho Pooh.

Cadeiras plásticas espalhadas pelo pátio e uma calma música instrumental tocando ajudam a confundir a cabeça de quem está no pátio de uma penitenciária. Estranhamente, é o clima da sala de espera de um consultório de dentista a céu aberto. Homens impacientes vestem calça social, sapato e camisa. Alguns estão usando até gravata e caminham com a bíblia na mão. De um lado a outro do pátio. Isso faz com que eu lembre que estou, efetivamente, em uma penitenciária. Eles caminham para frente e para trás, nesse mesmo espaço restrito, porque é o único espaço em que podem fazê-lo.

No único canto em que há sombra, quem não é crente observa de longe, alguns com um sorriso irônico, outros apenas com desdém. Mas a maioria olha de trás das grades de uma galeria em que ficam alguns dos detentos mais perigosos da PEJ. Eles gritam e provocam, mas nada abala aqueles homens que estão ajoelhados, apoiando os cotovelos nas cadeiras plásticas.

O culto começa. O calor se intensifica. Todos respeitam.  “Porque a palavra de Deus, ela tem poder para restituir, para regenerar e dirigir o ser humano a uma vida de pela comunhão com Deus, de bençãos e de paz”, diz Eduardo, que dá início ao evento que está sendo gravado pela igreja. “Será registrado para que não somente aqueles que estão aqui dentro, mas para quem está na rua poder ver o agir miraculoso de Jesus Cristo, que pega um homem com a vida destruída, restitui ele, e coloca de pé na sua presença”, prega Eduardo, que lista as galerias de onde vem os irmãos que assistem ao culto naquele final de manhã abafado. As próximas duas horas seriam de pregação, depoimentos e esperança. Marcos Aurélio de Almeida, 42 anos, está há oito na PEJ. “Eu vim pegando uma pena do ano de 98 do Estado do Mato Grosso do Sul, e fiquei cativo aqui até 2012. Em 2012 fui pro semi (aberto) de NH e fiquei até 2013. Em maio de 2013 fui recolhido de volta à penitenciária, respondendo a um assalto a banco.” Marcos era missionário, mas agora é pastor em uma galeria, responsável por cerca de 30 irmãos, e considerado um exemplo de sucesso. “Eu cometi vários crimes, várias atrocidades. Assaltos a banco e outras coisas. A ambição do ser humano. Foi onde acabei me perdendo. Mas agora não existe chance de eu voltar pra esse mundo porque foram muitos anos de sofrimento.”

Mas a conversão religiosa é um processo complexo de transformação que diz respeito a uma mudança radical de valores, crenças, comportamento e na forma de interpretar os acontecimentos. E partindo do princípio que os presos coexistem nos universos do crime e do trabalho, a conversão religiosa, segundo a socióloga Camila Nunes Dias se torna um processo de troca de mundos. Ou seja, o preso abandona as práticas e valores do mundo do crime e adota as normas do mundo do trabalho a partir da ótica da igreja. “A Igreja começa a mudar nossos pensamentos, nossa maneira de ser de agir”, diz Marcos. 

Essa frase é um ponto-chave para entender um dos problemas da ação da Igreja dentro das penitenciárias. Se por um lado oferecem um espaço de acolhimento e recuperam criminosos, por outro, há a acusação de “lavagem cerebral”, em que os detentos seriam ludibriados. Tanto é assim que a conversão abrupta e radical geralmente ocorre por meio de um “milagre”.

Rafael Cristiano Gonçalves da Silva, de 32 anos, talvez seja o exemplo perfeito. Ele é um dos detentos que faz a obra missionária no pavilhão. Preso por assalto, homicídio e tráfico de drogas, disse que se converteu porque Deus  fez um milagre em sua vida. “Curou do HIV”. Ele ignora a comprovação científica de que a AIDS não tem cura. Rafael não acredita. “Só quero fazer as coisas de Deus certinho, pra mim (sic) sair daqui uma nova pessoa. Antes minha vida era nas drogas, escravizado. Não sabia o que eu fazia, só droga e droga. ?Comecei com 12 anos. Me injetar na veia. Me envolvi com o crime, fui pra Febem, depois fui pra cadeia, fiquei dois anos e oito meses no Presídio Central. Depois passei pela PASC, Rio Grande, Bagé, Uruguaiana. Passei por diversas cadeias. Minha pena é de 25 anos e seis meses. Cumpri seis anos. Deus tá fazendo uma obra grande na minha vida. Pretendo sair daqui uma nova pessoa, construir uma família. Deus me deu uma família, uma esposa. Quero sair daqui e não quero voltar pro crime, voltar pra trás, só pra frente.” Durante um momento da pregação, ele disse que não é fácil ser missionário dentro da penitenciária, mas que vale a pena. “Deus tem uma obra na vida de vocês, agora eu tava ali no meu canto, Deus falou comigo, tu ali, J., de boné, tu mesmo, tu sabe o que Deus quer contigo”, provoca.

O discurso religioso ressignifica toda trajetória biográfica do preso, segundo Camila. O apenado que se converte às igrejas evangélicas neopentecostais passa a ver o passado criminoso como um pecado, uma traição às leis de Deus e a prisão como um castigo e, ao mesmo tempo, como uma oportunidade para se regenerar. “Fiquei sete anos cativo, tenho um filho de 18 anos, um garoto muito educado, estudioso, minha esposa também é uma benção, não há possibilidade de eu retroceder”disse Marcos, que pretende colocar um centro de recuperação para os jovens quando for solto. 

A religião ainda reacomoda a perspectiva de um futuro para um detento, permite sonhar e planejar uma nova vida, um recomeço. No caso das neopentecostais, também conforma o apenado a executar mesmo um trabalho que ofereça pouco prestígio social e pouco dinheiro, que é visto como ganância, pecado – embora as pessoas mais importantes dessas organizações vivam vidas luxuosas. Rafael, por exemplo, quer voltar a ser vendedor ambulante.

Eduardo entende que essa missão é sobre resgatar a humanidade que existe em cada um e sobre a possibilidade de todos encontrarem uma maneira de viver longe do crime. Mas é uma possibilidade que só existe com uma compreensão e empatia que vêm de fora. Algo muito distante da frase preferida da sociedade brasileira, que diz que “bandido bom é bandido morto”. Para Eduardo, não é o caminho. “Uma pessoa que expressa tal expressão não tem um sentimento de amor pelo próximo, ela se torna igual aquele que comete o tal crime. O mal não pode ser pago com o mal.” O culto acabou e todos voltaram para suas galerias. Os pregadores voltaram para casa, em liberdade.

Em 2017, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul criou uma Comissão Especial para Tratar da Função Social das Igrejas nos Presídios e Centros de Recuperação de Drogas no RS. O presidente da comissão era o deputado Sérgio Peres (Republicanos), a deputada Liziane Bayer (PSB) era a vice-presidente e o relator foi o deputado Missionário Volnei (PR). Como a alcunha do último já sugere, os três são vinculados a igrejas evangélicas neopentecostais, portanto, além do interesse público, também havia de fortalecer a imagem das organizações às quais pertencem. Peres, que se reelegeu para um novo mandato, é pastor da Igreja Universal; Bayer, hoje deputada federal, é pastora da Igreja Internacional da Graça de Deus; enquanto Missionário Volnei, que não se reelegeu, é parte da Igreja Mundial do Poder de Deus. 

Segundo o relatório apresentado em abril de 2017, os parlamentares visitaram sete casas prisionais. No Presídio Central, o mais emblemático do Estado, a comissão identificou vinte “denominações” religiosas que promovem assistência espiritual por meio de voluntários. Os encontros ocorrem na capela ecumênica do presídio, na área de visitas e no pátio do presídio. A administração do central informou à equipe técnica que as famílias também podem participar de eventos realizados em parceria com as igrejas. “Nós conseguimos perceber a mudança de conduta do preso que faz uso da assistência espiritual. Nesse segmento identificamos uma diminuição considerável da reincidência no crime e a inserção das pessoas no mercado de trabalho quando saem daqui”, observou o então diretor, tenente-coronel Marcelo Gayer. Da mesma forma que na Penitenciária Estadual do Jacuí, também há celas especiais chamadas de “galeria dos evangélicos” ou “galerias dos irmãos”, ocupada, à época, por 115 detentos. 

Na Penitenciária Modulada de Ijuí, os trabalhos religiosos da Assembleia de Deus, Adventista e IURD são realizados aos sábados e domingos, enquanto a Igreja Católica promove assistência aos detentos nas terças e sextas, duas vezes ao mês. No Presídio Regional de Santa Maria, oito instituições religiosas atendem aos detentos em reuniões que ocorrem às segundas, quartas e sextas. Neste caso, 50 detentos são beneficiados com o auxílio espiritual. No Presídio Regional de Caxias do Sul (antiga PICS), 12 instituições prestam assistência religiosa diariamente. 

Na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, o acesso ao acolhimento espiritual se dá somente aos sábados e quatro instituições se revezam. Ou seja, cada uma só tem acesso às detentas uma vez por mês, segundo o relatório da Comissão. Não à toa, ouvem-se gritos que perguntam se “são os homens de preto?” ou “é dos Direitos Humanos?”. Não à toa porque esse comportamento é sempre um pedido de ajuda, sempre um indicativo de que é mais uma casa prisional em que o Estado não cumpre com o mínimo. 

No Presídio Regional de Santa Cruz do Sul, três instituições promovem reuniões aos sábados. Neste caso, a visita técnica foi acompanhada pelo presidente do Conselho da Comunidade, Roberto Tailor Bandeira; pelo pastor da Assembleia de Deus Jorge Elemar de Souza; pelo representante da Igreja Universal Auri André Back; e pela evangelizadora Jaqueline da Silva Machado. A obreira da Igreja Internacional da Graça de Deus, à qual pertence a deputada Liziane Bayer, relatou à comissão – da mesma forma que Eduardo quando conversou conosco – que as igrejas prestam apoio de toda ordem, desde orientação espiritual até assistência social. “Perante a sociedade, são presidiárias. Mas assim como lá fora as pessoas têm perfis diferentes entre si, aqui também há mulheres com lutas distintas, são mães que querem nos falar dos problemas dos seus filhos. Algumas vezes conseguimos interceder para resolver questões de comportamento na escola, por exemplo.”

Já na Penitenciária Estadual de Canoas (complexo 1), há cultos diários comandados por pastores, evangelizadores ou organizados pelos próprios detentos da Galeria dos Cristãos, à época ocupada por 124 homens. Além disso, voluntários da Igreja Universal e da Sociedade Bíblica do Brasil prestam assistência nas celas de três galerias. No sábado, há cerimônias de batismo no pátio da instituição, onde os apenados também contam com biblioteca de obras cristãs.

Apesar de todas as visitas técnicas resultarem em uma experiência relativamente positiva no sentido de que, de alguma forma, todas as instituições disponibilizam o acesso à assistência religiosa, o  relatório final da comissão indica que, “devido à falta de conhecimento por parte das direções de diversos presídios e, por não haver uma prática de assistência espiritual padronizada e regulamentada, vem se impedindo um trabalho frequente e permanente.” Tanto que os parlamentares fazem uma série de sugestões para facilitar o trabalho dos evangelizadores dentro das prisões. Uma delas é que a Susepe tenha sob sua competência a “Regulamentação e Supervisão da Assistência Religiosa no Sistema Prisional”. Isso significaria “cadastrar, certificar, credenciar e autorizar religiosos devidamente subordinados às igrejas que os apresentem formalmente, para desenvolver trabalho evangelístico junto ao sistema carcerário.” Hoje, esse acesso não é uniforme e, como se pôde ver acima, depende de cada estabelecimento. Além disso, os deputados ainda sugeriram  a assistência religiosa como matéria curricular. O relator, que pertence a uma igreja evangélica neopentecostal, entende que a “inserção de uma Disciplina, sobre o Papel das Igrejas na Ressocialização da População Carcerária” poderia ser matéria de estudo na formação de servidores do sistema penitenciário. 

Mas mesmo que a comissão formada por parlamentares que também são pastores evangélicos tenha encontrado alguns problemas para o acesso de voluntários a apenados, a situação é ainda mais complexa quando se trata da Igreja Católica. E o motivo é bastante simples, as igrejas evangélicas focam na recuperação dos dependentes químicos e evangelização. O objetivo final é aumentar o rebanho. Isso significa que não há interesse em discutir os problemas estruturais do sistema prisional. Tanto é assim que a moeda de troca para atrair a devoção de um detento é justamente a proteção e o cuidado em galerias especiais, roupas limpas, comida e celas organizadas. A parte da Igreja Católica que trabalha com assistência espiritual em presídios, por outro lado, tem, por base, uma preocupação com as condições espaciais a que os presos são submetidos. Basicamente, preocupa-se em garantir, além da orientação religiosa, a aplicação dos Direitos Humanos. 

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O privilégio dos evangélicos

Relatório da Pastoral Carcerária de 2018 indica que em todo o Brasil há inúmeras justificativas para a restrição ao atendimento religioso em casas prisionais. A mais comum é impor aos agentes pastorais um longo tempo de espera até a liberação da entrada. Frequentemente, com o pretexto da garantia da segurança, a visita pastoral é impedida. Além da exigência de que agentes pastorais sejam submetidos revista que, segundo o relatório, é ilegal e vexatória. E para a Pastoral, as arbitrariedades que o Estado comete nesse sentido ocorrem em função da postura “de não ser indiferente e sempre se comprometer com a defesa da dignidade e da vida humana.”

Em estudo realizado em 2017, 40% dos entrevistados afirmam que a Pastoral Carcerária é discriminada na unidade prisional ou que outras igrejas são priveligiadas. Relatos dão conta de que existe uma diferença importante no tratamento entre as igrejas e que é comum que agentes prisionais permitam a entrada de evangélicos e barrem a entrada de católicos. 

“Não consigo esquecer o dia 12 de outubro, dia da Nossa Senhora Aparecida, que fomos impedidas de entrar na unidade prisional e [outras igrejas] fizeram as visitas normalmente.” 

“[Outra igreja] Entra com artigos religiosos com maior facilidade, tais como: livros e jornais em grande quantidade, óleo de cura.” 

“Até o ano passado, enquanto nós tínhamos só duas horas, outras igrejas ficavam lá dentro o dia todo.” 

“Nós podemos entrar com cinco pessoas, eles [outra igreja] entram com doze; nós temos que entrar de chinelo e calça sem nenhum adereço, enquanto eles entram de sapato fechado e roupa social.”

Vozes da Pastoral, depoimentos anônimos de agentes da Pastoral Carcerária 

 

A Igreja Universal do Reino de Deus é a pentecostal com maior influência dentro dos presídios – seguida pelos ministérios da Assembleia de Deus. A Universal Nos Presídios (UNP) começou o trabalho de evangelização há mais de 30 anos. O objetivo oficial é “levar Vida, por meio da Palavra de Deus, aos encarcerados, apoio espiritual e social, além de auxílio direto aos familiares deles.” Mas o objetivo real é atrair mais devotos à igreja fundada por Edir Macedo. 

A Universal considera o trabalho com os presos tão importante que, em 2012, a primeira aparição do bispo para o lançamento de sua biografia foi em um presídio. Três mil edições do livro “Nada a perder” foram doadas aos apenados do Centro de Detenção Provisória de Pinheiros (CDP 3), em São Paulo. “Aqui, não poderia deixar de vir. Para mim, é muito importante. Eu não posso dizer que é um prazer entrar num lugar onde há sofrimento e dor. Paradoxalmente, é um prazer porque a gente chega às pessoas mais aflitas e é como Jesus disse: “Os sãos não precisam de médicos, mas os doentes”, disse na ocasião.

Foto: Divulgação

Edir Macedo ainda organizou para que a versão cinematográfica da biografia chegasse aos detentos de todo o país no ano passado. O filme “Nada a Perder retrata a saga do bispo fundador da Universal e foi exibido em penitenciárias de todo o Brasil. 

A Universal ainda chega aos apenados por meio de um programa de rádio chamado “Momento do Presidiário”, transmitido diariamente pela Rede Aleluia de Rádio. O novo projeto da igreja é inaugurar espaços específicos dentro dos presídios para a realização de reuniões com os presos. No site da organização, a empreitada é considerada um sucesso. “O desafio tem dado tão certo que, desde fevereiro de 2017, a Igreja tem empenhado esforços para abrir o maior número de templos possível nas unidades prisionais de todo o País e em diversas partes do mundo, como mostrou, recentemente, uma matéria especial do programa “Domingo Espetacular”, da Record TV.”

Desconfiança

Mas há quem pense que alguns dos presos que se mudam para a galeria dos irmãos estão “se escondendo atrás da Bíblia”. Esse foi um fenômeno que nós pudemos notar em conversas com detentos da PEJ e reforçado pela pesquisa da socióloga Camila Nunes Dias. Eles o fazem por dois motivos: para poder viver na galeria dos irmãos e fugir do assédio das facções e da parte da cadeia em que as celas não tem condições de infraestrutura; ou para fugir de acertos de contas. 

Esse fenômeno expõe uma espécie de ambiguidade do presos evangélicos.  Se em um primeiro momento creditam a conversão a motivos sobrenaturais, conforme a conversa se aprofunda, fica claro que alguns decidem se converter após fato bastante concretos. Seja uma experiência de quase morte em função das drogas ou ainda ameaças.  Ambiguidade essa que também se percebe no resultado – igrejas ajudam porque?!

Os estudos que abordam a ação das igrejas no sistema prisional costumam focar as pesquisas na eficácia no processo de ressocialização. E essa é uma narrativa reforçada por autoridades que acompanham a rotina e o cotidiano das casas prisionais em todo o país. Como disse o procurador Gilmar Bortolotto, “só tem isso”. Em uma penitenciária abandonada pelo Estado, a conversão é a única chance de ressocialização. Nessa linha, há dois caminhos, segundo Camila Dias: ver a religião como um elemento moralizador que auxilia na recuperação do apenado; e entender esse movimento como um aproveitamento utilitário da igreja pelo preso que  teria benefícios em decorrência de uma conversão. 

É preciso repensar alternativas, porém, porque de todo modo, a religião, com seus arbítrios e normas, não deixa de ser uma forma sutil de violência uma vez que se torna a única alternativa a quem não quer pertencer a uma facção.

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Investir em alternativas

O procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul Gilmar Bortolotto afirma que não dá para fazer política pública para quem são se conhece. “Os projetos vem de cima pra baixo, de gente que nunca pisou em uma cadeia mas quer impor coisas novas, mas tá na cara que não vai funcionar, porque é uma ficção. “Vamos fazer um projeto pra os presos trabalharem.” Aonde? Fazendo o que?”, provoca Bortolotto. O caminho é investir em alternativas que, obviamente, funcionem. Mas não é um caminho simples.

Segundo ele, envolve cinco etapas. 1) Construir presídios novos.  “No espaço velho, não implanta mais nada. Por que uma facção deixaria o Estado fazer uma política pública diferente? Vai perder mão-de-obra”, explica Bortolotto. Mas ele também ressalta que esse novo espaço engloba um sistema inteiro, a começar pela segunda etapa, que é 2) Selecionar as pessoas. Isso significa que não adianta construir um novo espaço e mandar presos faccionados para essa prisão. “Escolher os presos e implantar uma política real que abra a porta para quem quer sair do crime e não entrar em facção é fundamental”, diz o procurador.  Isso envolve uma grande 3) Mudança de Cultura, tanto para os detentos quanto para quem trabalha nas casas prisionais. “Não adianta ir para presídio novo e progredir para o semi-aberto em que enterram gente. Espaço novo, cultura nova. Se disserem que vão fazer algo novo em lugar faccionado, estão mentindo, não vai acontecer”, garante Bortolotto. A mudança passa, ainda pela 4) Formação de funcionários, que deve ser diferente. Nesse aspecto, ao menos, já há uma melhora expressiva. A Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) no Rio Grande do Sul, por exemplo, está recrutando servidores com nível superior. “Há 20 anos, tinha gente que vinha atender a gente de calção, chinelo de dedo, sem camisa e com uma arma na mão. E não é culpa do cara que tá ali. Ele é tão abandonado quanto o preso”, conta o procurador. Por fim, é fundamental 5) Investir em política para egressos, criar centros de atenção, um vínculo pra fazer documentos, buscar emprego. Enfim, criar a ponte entre o detento e o Estado. “Tem gente que sai da cadeia e não tem nem como pegar um ônibus. Hoje a facção dá esse apoio. Ou a igreja.” E essa política deve abraçar, ainda, a questão da dependência química.

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APACS

O Brasil, felizmente, tem um exemplo de política penitenciária bem-sucedida, que são as Associações de Proteção e Assistência aos Condenados. A lógica é bastante simples. As próprias comunidades constituem uma associação sem fins lucrativos em que são agregadas as forças da sociedade para recuperar e reintegrar os condenados. Essas pessoas serão as responsáveis, por meio de convênios com o poder público, de administrar o estabelecimento. E funciona basicamente com trabalho voluntário. “A metodologia APAC fundamenta-se no estabelecimento de uma disciplina rígida, caracterizada por respeito, ordem, trabalho e o envolvimento da família do sentenciado. A valorização do ser humano e da sua capacidade de recuperação é também uma importante diferença no método APAC”, é o que diz no site da instituição.

Gilmar Bortolotto conta que a média de recuperação é de 80%. “É impressionante, não tem guarda e o índice de fuga é próximo de zero. É difícil comunicar isso para as pessoas, mas funciona. O cara que vai na malandragem não aguenta, porque vai ter atividade das 6h às 22h. São oficinas, atividades para provocar reflexão sobre o que o crime fez, quem levou junto, como a família está suportando.”

O Método APAC consistem em 12 elementos fundamentais: 1) A participação da comunidade; 2) O recuperando ajudando o recuperando; 3) O trabalho; 4) Assistência Jurídica; 5) Espiritualidade; 6) Assistência à saúde; 7) Valorização Humana; 8) A família; 9) O voluntário e o curso para sua formação; 10) Centro de Reintegração Social (CRS); 11) Mérito; 12) Jornada de Libertação com Cristo. Como se pode ver pelo último item, assim como a atuação das igrejas em penitenciarias, o método APAC também precisa da fé. Minas Gerais é o estado que apresenta os melhores resultados. Há 40 APACs implantadas que abrigam 3 mil presos. No Rio Grande do Sul, há APACs constituídas em Canoas, Porto Alegre, Três Passos, Pelotas e Palmeira das Missões.

É fundamental, porém, compreender que o processo de recuperação ocorre em etapas e é extremamente lento. “Quando as pessoas pensam no que chamam de ressocialização, elas imaginam que tu vai pegar um cara que é um sujeito encrencado e aplicar uma coisa pra ele e ele vai virar uma freira em dois meses. Não vai acontecer isso”, explica Bortolotto. O processo é demorado e prevê o cumprimento de uma série de etapas.

“Um preso que eu conheci e era assaltante, por exemplo. Um dia ele foi lá na promotoria e me disse: Oh, Dr. Gilmar, eu larguei o crime. Eu tô só trabalhando com venda de CD. Entende? Quando o cara passa do assalto para a pirataria, ele está melhorando. São etapas, é preciso compreender isso.”

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24 Para poder pensar no futuro, o apenado precisa fazer uma escolha em um mundo bastante particular em que é praticamente impossível sobreviver sozinho. 25 E é uma escolha ambivalente, assim como foi a do Jesus humano de Saramago. 26 Testado por Deus e o Diabo de forma insistente e parecida. 27 Ele precisará servir a algum Senhor. 28 E se ele não quiser que esse senhor seja um líder de facção, 29 a religião segue como a única oportunidade possível de recuperação. 30 Fim do Evangelho Segundo a Prisão.
Reportagens Especiais

Venezuela . a distopia após duas décadas de Chavismo

Alvaro Andrade
19 de julho de 2019

Texto e fotos: Alvaro Andrade / Venezuela

Em Caracas, no bairro 23 de Enero, os olhos de Hugo Chávez ainda pairam sobre o povo. O grafite em preto e branco com la mirada del comandante está por todos os lados e parece manter a vigilância sobre o reduto de maior apoio ao chavismo na Venezuela. A região, a menos de um quilômetro do Palácio Miraflores, sede do regime, é estratégica, pois ali estão concentrados os colectivos, grupos paramilitares criados para operarem como milícias de segurança nos bairros e que hoje são um braço civil armado do governo. No topo de um morro, à direita da entrada para o mausoléu 4 de Febrero, onde estão os restos mortais do ex-presidente, uma capela religiosa leva seu o nome e sua fotografia está posta em um altar, cercada por velas acesas e outras imagens. “Chávez era do povo, por isso é tão amado”, diz o porteiro do quartel 4F, um simpático caraquenho vestido com a indefectível camisa vermelha do PSUV, o partido socialista que comanda a Venezuela.  

Pelo caminho, parte do legado chavista pode ser notado nos incontáveis prédios de Misión Vivienda, plano de moradia gratuita que, segundo dados oficiais, já alcançou os 2 milhões de imóveis distribuídos gratuitamente ao povo. No entanto, basta afastar-se das regiões centrais de Caracas para  perceber que o bolivarianismo ainda ficou distante de muita gente.Em Petare, maior favela da América Latina, composta por 80 bairros em diferentes morros de Caracas, a insatisfação fervilhava em meados de dezembro. Moradores bloquearam a via expressa que fica logo abaixo e foram reprimidos pela Ordem Interna, um grupo militar destinado especificamente a conter manifestações.

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“Nos falta água, nos falta luz. Não há comida, nem trabalho. Prometeram um pedaço de pernil e nem isso chegou”, reclama um aposentado diante de uma oficina instalada às margens de um dos becos da favela

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Apesar da má reputação de violência e territórios controlados, Petare não se difere muito das favelas brasileiras. Casas sem reboco, vielas, escadarias, falta de saneamento e gatos de luz. Mas na capital venezuelana, a fome mata os sorrisos e todos repetem o mesmo. “Estamos  hartos!”, ou seja, cansados, exaustos, fartos de esperar. “Esse era um governo que se dizia do povo, mas já nos esqueceu faz tempo”, diz o mecânico que se desdobra para consertar um dos tradicionais veículos antigos que, assim como o país consome muito e vive cheio de problemas.

LEI DE TALIÃO

Dois retalhos de calça jeans servem como bandagem para conter a hemorragia nas pontas dos braços onde antes havia mãos; o rosto está empapado de sangue, pois os olhos e a língua também foram arrancados. Leocer Maiz, um jovem de 19 anos, foi entregue assim, com vida e consciente, no hospital da cidade de El Callao, no sul venezuelano. Ele sofreu as consequências por ter praticado uma série de roubos na região controlada pelos pranas, máfias locais que exploram ouro ilegalmente e que jamais perdem a chance de reafirmar sua autoridade.

A  mutilação de Maiz não foi um fato isolado. As máfias operam sem piedade na região conhecida como Arco Minero, a cerca de 250 quilômetros da fronteira com o Brasil. São cinco povoados às margens da rodovia Troncal-10, em uma área que parece esquecida pelo governo venezuelano.

Apesar da presença militar em postos de controle a cada 50 quilômetros, quem realmente manda na região são os garimpeiros. Las Claritas, um povoado sugestivamente conhecido como Sodoma e Gomorra, é o retrato brutal dos contrastes venezuelanos.

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Às margens das crateras e do barro da estrada que se mistura ao lixo e ao esgoto a céu aberto, se espalham vitrines de lojas com fartura digna de áreas comerciais de grandes cidades.

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“Tudo que falta na Venezuela se consegue aqui: remédios, pneus, máquinas. Também tem drogas e prostituição. Onde tem ouro, tem dinheiro, então essas coisas vêm junto”, conta Manoel González, taxista de El Callao já acostumado com a estética decadente da região. “Se não incomodar ninguém aqui, nada vai te acontecer. Mas nem pensa em filmar ou fotografar”, adverte.

O sol escaldante aquece o piso úmido e o resultado é um abafamento sufocante. Além do forte odor de esgoto, do permanente fluxo de motos barulhentas e caminhões a poucos centímetros da calçada, o semblante de quem está por ali não é nada convidativo. Bancas compram e vendem ouro à luz do dia; um grande mercado oferece de bananas a animais recém abatidos, passando por analgésicos, motosserras e muita bebida alcóolica.

Mesmo tão inóspito, o Arco Minero se converteu em uma das últimas esperanças de trabalho dos venezuelanos dentro do próprio país. Alexiis Urquia Rivas, 24 anos, tenta manter-se afastado dos problemas, mas conhece bem os riscos da região. “Aqui ainda é possível trabalhar e conseguir um pouco mais do que no resto do país. Se encontrar ouro, ganho dinheiro. Muita gente está vindo de outros estados com essa ideia, mas muitas vezes se assustam quando encontram a realidade”.

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EXPROPRIAÇÕES VIRARAM MATO

A crise se agravou desde a morte de Chávez, em 2013. O sucessor, Nicolás Maduro, que não chega à sombra do seu carisma, herdou uma crise diplomática permanente, dívida pública em alta e queda brutal no preço do petróleo, o que em parte ajuda a explicar a dimensão das dificuldades venezuelanas, além do agravamento dos bloqueios econômicos e sanções internacionais.

Enquanto Maduro implementa sucessivos planos econômicos, concede reajustes salariais para tentar conter a inflação e usa o bloqueio como justificativa para todos os males, a produção interna é praticamente nula e o país depende essencialmente de importações. A economia pouco diversificada é outro fator que agrava a situação, levando ao desabastecimento. E quando a demanda é maior que a oferta, naturalmente há  inflação.

Poucos meios de produção tomados pela revolução estão organizados e funcionando, especialmente na produção de alimentos. A maioria fica relegada ao abandono, agravando a escassez. Segundo um levantamento do Observatório de Direitos de Propriedade, 1.359 empresas foram expropriadas entre 2005 e 2017, além de mais de 5 milhões de hectares de terras, segundo a Federação Agrícola do país.

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A produção no campo minguou, as empresas alimentícias foram fechadas, o bloqueio externo se agravou e os produtos desapareceram das prateleiras.
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Desde indústrias de lácteos, passando por fábricas de cimento ou insumos agrícolas, a mão do Estado chegou a diversos setores da iniciativa privada, mas não deu sequência ao trabalho. As empresas que não foram estatizadas acabaram abandonando o país, gerando desemprego e pulverizando a classe média.

Em Valencia, multinacionais como GM, Ford, Crysler e Good Year encerraram operações por falta de matéria-prima e deixaram um rastro de mais de 10 mil desempregados na cidade, um polo industrial da região oriental. Hoje, vê-se obras inacabadas, apagões, racionamento de água e rodovias sem manutenção; as gôndolas dos supermercados já não estão tão vazias, mas os preços seguem completamente distantes do poder aquisitivo representado pelo salário mínimo. “Nosso hotel tinha ocupação média de 80%, hoje estamos em 10 a 15%”, lamenta o brasileiro Antonio, radicado há 40 anos na Venezuela. “O comunismo não deu certo. Eu, que sou empresário, já tenho dificuldade. Imagina esse povo todo na rua. As pessoas não tem o que comer, mas isso não era assim”.

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A ESPERANÇA É O MADURO DOS OUTROS

Dificilmente faz frio na Venezuela. Naquela noite de começo de janeiro, nada no céu indicava que iria chover. Jéferson, um menino de 12 anos, percebe que vou dormir na rua após o segurança pedir para me retirar do saguão do terminal de Puerto Ordaz, que será fechado na madrugada. O garoto se aproxima e me convida a dormirmos juntos sob a marquise. Gentilmente estende um dos cobertores e pede para que eu retire os tênis. “Mais tarde vai chover, mas assim você sente a brisa fresca e dorme melhor”. Ato contínuo, ele toma a outra manta e me cobre com delicadeza. “Estás cômodo?” Quase não consigo responder e me ponho a chorar, emocionado com tamanha doçura. Ele senta ao meu lado, me dá um abraço e diz para eu não ter medo. “Aqui estamos seguros”. Logo ele adormece e eu fico acordado a tempo de ver a chuva chegar. É minha última noite na Venezuela.

Antes de dormir Jéferson me contou que fugiu de casa há 5 meses, onde morava com a avó após os pais ‘viajarem’ para outro país, que ele não sabe qual. Não vai a escola. Sua vida e sua casa são o aeroporto de Puerto Ordaz, no centro-sul. Sobrevive da boa vontade dos funcionários e dos passageiros que não conseguem fugir de tanta simpatia. “Bom dia, tudo bem? Que faça boa viagem!”, exclama ele ao amanhecer, distribuindo sorrisos com a cara ainda amassada. O dia começa, os aviões pousam e decolam e ele logo se dispersa em meio ao rebuliço do aeroporto.

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Sigo conversando com os trabalhadores locais e, sabendo que sou brasileiro, fazem uma pergunta recorrente:
E o Bolsonaro, quando chega?

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De norte a sul, sufocados pela crise, é difícil encontrar quem se oponha a algum tipo de intervenção para ‘libertar’ o país. A recente escalada diplomática já era vista com muita esperança em meados de janeiro, quando a oposição articulava com governos do exterior o isolamento do presidente reeleito, Nicolas Maduro. Assim que ele foi empossado, o presidente da Assembleia Nacional, que teve poderes cassados pela Suprema Corte, autodeclarou-se presidente interino. Juan Guaidó, um deputado outsider oriundo dos protestos de 2014, assumiu o enfrentamento aberto com Maduro e convocou as Forças Armadas a apoiá-lo no golpe, mas ficou apenas com parte do apoio popular e estrangeiro.

O FUTURO

“As coisas pioraram muito desde que tu partiu. Os preços subiram ainda mais e a polícia está mais violenta. Prenderam meu sobrinho simplesmente porque ele tinha mensagens combinando que iria ao protesto do dia 23 de janeiro”, diz Jose Zerpa, um dos amigos feitos na Venezuela ao longo dos 20 dias de reportagem. Assim como ele, outros relatam sua esperança com as manifestações de apoio da comunidade internacional.

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“Eu fui às ruas, não podemos mais conviver com Maduro e esse regime”
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Em seu discurso de posse na contestada e desacreditada reeleição, Maduro prometeu combater a corrupção e corrigir rumos, mas frente a circunstâncias tão dramáticas as palavras já não dispõem de credibilidade para aplacar os críticos, muito menos colocar comida na mesa daqueles que, por falta de opção, excesso de persistência ou um tanto de malandragem dia a dia sobrevivem na terra de Bolívar.

 

Reportagens Especiais

Venezuela . da esperança ao desespero

Alvaro Andrade
17 de julho de 2019

Texto e fotos: Alvaro Andrade / Venezuela

O carro começa a falhar quase no topo da colina enquanto o motorista, Hermanito Manuel, chacoalha o volante buscando as últimas gotas de gasolina do Fiesta 2006 que nos traz desde Santa Elena do Uairén, fronteira da Venezuela com o Brasil. Estamos a caminho de Ciudad Bolívar em uma travessia de 750 quilômetros entre reservas indígenas e áreas de garimpo ilegal. Após vencer o pico da subida, o carro vai no embalo até encostarmos no fim de um fila quilométrica de onde só seria possível prosseguir se conseguíssemos abastecer. São 7h15 do primeiro dia de uma jornada de mais de 2000 km por terra, atravessando a Venezuela de sul a norte por cinco estados para observar o cotidiano da crise que se transformou no novo foco de tensão da geopolítica mundial.  

Nessas primeiras horas da manhã, o clima lembra o de um Mad Max pacífico: centenas de veículos esperam por gasolina há pelo menos quatro horas no acostamento de uma rodovia em área deserta do planalto venezuelano. O posto, operado por uma comunidade indígena, já recebeu combustível, mas o reabastecimento não foi retomado porque o gerador elétrico está, supostamente, com problemas.  Apesar de uma aparente displicência por parte dos donos do estabelecimento, os motoristas riem, fazem piadas, fumam e esperam sem qualquer traço de indignação diante da dificuldade para obter gasolina no país com as maiores reservas de petróleo do planeta.

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“Neste país só temos o direito de esperar”, ironiza um motorista na roda de conversa

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DA BONANÇA AO CAOS

As filas, em qualquer lugar e para qualquer coisa, são o retrato de um povo à espera da revolução prometida, mas que se tornou uma miragem. No período em que esteve no poder, Hugo Chávez aprovou e submeteu a referendo uma série de mudanças profundas nas leis do país, como a possibilidade de reeleição indefinida, a extensão do mandato presidencial para seis anos, o fim do latifúndio, a redução da jornada de trabalho de 8 para 6 horas semanais e abriu caminho para as expropriações de ‘empresas improdutivas’. Surfando na abundância do petróleo, responsável por 95% das exportações e com cotação superior a U$$ 100 o barril, o chavismo teve sua fase de ouro, desfrutou de amplo apoio popular e logrou cumprir parte das suas promessas, especialmente aos mais pobres, com a distribuição de moradias e ampliação do ensino. Mas também perseguiu opositores, aparelhou o Estado e, em nome da defesa da soberania e autodeterminação, descambou para o autoritarismo.

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Os dias atuais em nada lembram os vigorosos sonhos manifestados na posse de Chávez , em 2 de fevereiro de 1999

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Qualquer atividade cotidiana exige paciência e planejamento, pois certamente será necessário esperar. Em Caracas, filas pelo transporte público somam mais de 200 pessoas ao fim do dia; em Ciudad Bolívar, quase 100 se escondem do sol sob uma marquise diante de uma agência bancária que permite saques de 1000 bolívares (U$$ 1,50); em Valencia, há fila para comprar o CLAP, o kit de comida subsidiada vendida pelo governo para tentar aplacar a fome; em Puerto Ordaz, fila para comprar pão na padaria que conseguiu farinha.

Nos últimos  cinco anos o PIB venezuelano teve uma queda de 37%; segundo a FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, 3,7 milhões de venezuelanos estavam desnutridos em 2018; 87% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza, segundo estudo de uma universidade local; o governo sofre com isolamento internacional e, dentro de casa, está imerso em crise política e institucional permanente. Nicolás Maduro, o sucessor,  carrega nos braços pelo menos 125 mortos em repressão de protestos e graves acusações de prisões ilegais, tortura e violação de direitos humanos por entidades como a ONU e a Human Rights Watch

Com uma economia colapsada e inflação estimada pelo FMI em absurdos 1.000.000.000%, a Venezuela ainda é considerada o país mais violento da América Latina, com 81,4 mortes para cada 100 mil habitantes. Escassez, infra-estrutura deficiente, apagões, falta de dinheiro em espécie, corrupção e uma crise política incessante impulsionam a maior diáspora de que se tem notícia no novo continente. Os números oficiais apontam quase três milhões de imigrantes, mas quem vive na Venezuela garante que o número é pelo menos o dobro – ou mais de 10% dos seus 31 milhões de habitantes. Para muitos, chegar ao Brasil significa a chance de recomeçar. 

 

SEQUELAS DE CARACAS

Sentado como pode sobre um colchão, ainda de cueca ao lado de uma garrafa pet cheia de urina, Jesús Ibarra emite com dificuldade as palavras entrecortadas por longas pausas, até que seu pai entende que ele deseja vestir-se para conceder a entrevista. O estudante de engenharia de 21 anos ficou 45 dias entre a vida e a morte após cair desacordado no poluído rio Guaire, em Caracas, vítima de uma bomba de gás lacrimogêneo disparada pela polícia, que partiu seu crânio. Ele e o pai imigraram de Caracas de ônibus até chegarem ao Brasil e, em Roraima, ao abrigo Rondon II, montado pela ONU em parceria com o governo brasileiro para mitigar os efeitos da crise imigratória de 2018.

Já sentado, Jesús lembra pouca coisa sobre os acontecimentos que acabaram por render cinco cirurgias, enormes cicatrizes na cabeça e sequelas na fala e no raciocínio que levará para o resto da vida. “Éramos apenas jovens estudantes cansados daquela situação. Alguns amigos não tiveram a mesma sorte porque o regime começou a atirar para matar”, conta. Os protestos de 2017 deixaram um rastro de mais de 120 mortos no país. Ainda sem perspectiva, aguarda pacientemente sua vez de partir para algum canto do Brasil. “Quero recomeçar minha vida”.

À ESPERA DA LISTA

Faltam poucos dias para a partida dos ônibus que fazem a interiorização dos imigrantes venezuelanos para nove estados brasileiros. No abrigo Rondon II, um dos quatro montados pelas Forças Armadas do Brasil na capital de Roraima, há muita expectativa. Assim que a lista com os nomes dos 771 passageiros é afixada em uma das janelas, logo se instala um misto de euforia e decepção entre os selecionados e aqueles que vão precisar aguardar um pouco mais para seguir viagem. O abrigo é um dos seis montados em diferentes pontos da cidade, totalizando 10 mil imigrantes cadastrados segundo balanço divulgado em dezembro.

“Vou para a Paraíba, não sei onde fica, mas qualquer lugar será melhor do que onde viemos”, diz uma das imigrantes enquanto chora e abraça os familiares ao identificar o nome entre os selecionados.  A partida deste contingente ajuda não apenas a eles próprios, mas também outros compatriotas que ainda aguardam nas ruas de Boa Vista a chance de acessar um dos centros de atenção. Apesar do esforço das autoridades brasileiras, o local é um oásis que não dá conta de suprir toda a demanda. Até passar pela triagem, receber documentação e entrar na fila de espera, famílias inteiras, com crianças e idosos, precisam se sujeitar a dormir debaixo de marquises ou em locais improvisados.

LAS OITCHENTERAS

Em outras áreas de Boa Vista a sobrevivência como imigrante impõe condições de vida ainda mais duras. As ruas de chão batido e terra vermelha dos arredores do terminal Caimbé, na zona oeste da capital, são a passarela para meninas e mulheres que tentam caprichar no sorriso e na simpatia – mesmo de barriga vazia.

As “oitchenteras”, como ficaram conhecidas em função do valor médio dos programas, não escolhem hora para trabalhar. Mesmo sob o abafamento constante da região tropical, montam em saltos altos e tentam manter a maquiagem no rosto na sua busca por clientes, mesmo à luz do dia. “Não vou te dizer meu nome porque minha família não sabe que somos putas”, diz uma das garotas, que sequer tem 18 anos. Ao lado da irmã, é econômica nas palavras.

Perguntada sobre as manchas roxas que leva na altura do pescoço, responde tentando demonstrar coragem. “Marcas da vida. Aqui é muito perigoso, mas é a forma que temos de sobreviver.” Em poucos minutos circulando pela área, é possível contar mais de 20 mulheres espalhadas pelas esquinas, sentadas debaixo de árvores e conversando com motoristas em carros de vidros escuros.

Alvaro Andrade
Mulheres trabalham a luz do dia em Roraima.

O bairro, que já não tem as melhores condições de infraestrutura, sofreu o impacto que acompanhou a prostituição. Com a abertura de casas noturnas e bares, o tráfico de drogas e a violência vieram juntos. “Não vejo a hora de sair daqui. Tínhamos um bairro humilde, mas de respeito. Agora tenho medo de sair de casa”, diz Jussara Rodrigues, aposentada de 72 anos que é uma das tantas moradoras da região que colocou a residência à venda. 

Enquanto isso, na Venezuela, a crise política não dá sinais de arrefecimento. A escalada diplomática atingiu níveis ainda mais elevados quando Nicolás Maduro tomou posse para um novo mandato de seis anos – após eleições contestadas por observadores estrangeiros e a oposição. Tanto que Juan Guaidó, um outsider eleito presidente da Assembleia Nacional, autodeclarou-se presidente interino com apoio explícito dos EUA. Ele foi prontamente reconhecido por países latino-americanos e europeus, mas reacendeu a tensão geopolítica internacional ao opor China e Rússia aos interesses de Washington no petróleo caribenho. Maduro ainda resiste graças ao poder político e econômico que concedeu aos militares, com distribuição de cargos e vistas grossas à corrupção. Com lealdade comprada e bem paga, não há sinais de que a caserna se alie a oposição e aos yanakees, aprofundando a crise para níveis inimagináveis. 

Acesse aqui a segunda reportagem da série. Venezuela . a distopia após duas décadas de chavismo

Reportagens Especiais

“A maior novidade do governo Bolsonaro é o fim do presidencialismo de coalizão”

Geórgia Santos
3 de julho de 2019
Cientista político Augusto de Oliveira entende que o sistema, de agora em diante, será o da paralisia  e do conflito entre os poderes Executivo e Legislativo

 

Nesta semana, Jair Bolsonaro (PSL) chegou aos seis meses na presidência da República. Mas não foi um caminho tranquilo, pelo contrário. Foi bastante acidentado. Os primeiros 180 dias do primeiro militar a ocupar o cargo desde o final da ditadura foram marcados, principalmente, pela instabilidade política. Houve inúmeras trocas no primeiro e segundo escalão de governo – algumas dessas trocas motivadas por discussões entre os ministros e os filhos do presidente -; a publicação de dezenas de decretos, especialmente com relação à posse de armas, que deixaram clara a relação turbulenta com o Congresso; decisões desautorizadas; proximidade com milicianos; filho investigado; além de múltiplas gafes que variam entre afirmar que “racismo no Brasil é coisa rara”; que o nazismo foi um movimento de esquerda; e, mais recentemente, fazer propaganda de bijuterias de nióbio na internet. Apenas para citar algumas.

A instabilidade política do governo e a inabilidade em lidar com o Congresso Nacional tornaram-se ainda mais evidentes quando, no final de junho, Bolsonaro reclamou que estava sendo transformado na Rainha da Inglaterra, que reina mas não governa.

Para o cientista político Augusto de Oliveira, professor da Escola de Humanidades da PUCRS, essa instabilidade política é reflexo de uma mudança na conjuntura.

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“A maior novidade do governo Bolsonaro em relação aos presidentes anteriores é o fim do presidencialismo brasileiro de coalizão
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A expressão “presidencialismo de coalizão” foi usada na década de 80 pelo cientista político Sérgio Abranches para descrever um país presidencialista, como o Brasil, em que a fragmentação do Congresso entre vários partidos obriga o Executivo a uma prática similar à do parlamentarismo. Ou seja, para governar, o presidente precisa ter ampla maioria, algo que se torna problemático a partir do momento em que essa maioria é naturalmente contraditória e difusa ideologicamente. De toda forma, funcionava até o governo passado, mesmo que de maneira torta.

Oficialmente, durante todo o período democrático, a maioria parlamentar sempre foi organizada por meio da oferta de cargos nos ministérios, segundo escalão e autarquias, e também por meio de emendas parlamentares e de uma espécie de empréstimo da popularidade do presidente aos deputados e senadores. O governo Bolsonaro, por outro lado, não governo por meio do presidencialismo brasileiro de coalizão. Segundo o professor Augusto de Oliveira, nem seria possível com a atual conjuntura política.

“Hoje o presidente Bolsonaro precisaria de 12 partidos na sua base de apoio para poder aprovar uma emenda à Constituição. Mas enquanto a presidenta Dilma Rousseff foi eleita, em 2014, com uma bancada de 304 deputados, Bolsonar foi eleito com uma bancada que não chegava a 60 deputados. A estrutura politica do país em 2018 já estava muito diferente do que seria possível para o funcionamento nos moldes do presidencialismo brasileiro de coalizão. E também tem outros fatores, como o fim  do financiamento privado de campanha e emendas impositivas para o Orçamento da União, que também dilapidaram os recursos do presidencialismo de coalizão.”

A solução que Bolsonaro esboçou no início do governo era a de governar não com os partidos, mas com as bancadas – ou as frentes parlamentares – como as chamadas Bancada do Boi, Bancada da Bala e Bancada da Bíblia. Mas ficou evidente que essas bancadas não tem a organização interna que faça com que os parlamentares atuem em pautas que não sejam suas demandas particulares. Ou seja, elas não formam uma base permanente de apoio ao presidente.

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Mas então o que substitui o presidencialismo de coalizão a curto e médio prazo?

“É uma hipótese, mas na minha opinião, o que substitui é nada. Nosso sistema de governo agora será o sistema da crise, o sistema da incerteza, o sistema da paralisia e do conflito entre o poder Executivo  e o poder Legislativo. Com menor capacidade de resolução dos problemas e organização de uma pauta concreta, específica”, explicou o Augusto de Oliveira.

Do ponto de vista político, isso significa que, pelo menos por enquanto, subiu o custo para Bolsonaro exercer o mandato e executar suas propostas em relação ao parlamento, segundo o professor. “Essa é uma situação que o presidente Bolsonaro não tem como superar de maneira autônoma e nem é uma situação que a gente vá ver ser resolvida nos próximos anos.” 

Clique aqui para ouvir o podcast sobre os seis meses do governo Bolsonaro e a entrevista com o cientista político Augusto de Oliveira.

Foto: Marcos Corrêa/Presidência da República 

Reportagens Especiais

“Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias [da Vazajato] saindo desse arquivo”

Geórgia Santos
17 de junho de 2019

Igor Natusch e Geórgia Santos

A frase é do editor adjunto do The Intercept Brasil, Alexandre de Santi. Ele se refere ao arquivo que deu origem ao que agora conhecemos por Vazajato, uma série de reportagens que abalou profundamente a imagem da Lava Jato e, principalmente, dos protagonistas da operação. As matérias publicadas em nove de junho mostram, entre outras coisas, a colaboração não permitida entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF), entre eles Deltan Dallagnol,  e o então juiz Sérgio Moro.

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O escândalo do Vazajato mostrou que a operação de combate à corrupção também estava corrompida

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As reportagens foram produzidas a partir de um arquivo que continha conversas privadas, gravações em áudio, vídeo, fotos, documentos judiciais e outros ítens envolvendo os procuradores e o hoje ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro. Segundo os editores, o único papel do veículo na obtenção do material foi recebê-lo. Mas a explicação não impediu que inúmeras pessoas questionassem a legalidade da publicação, considerada uma invasão de privacidade. Nas redes sociais, não foram poucos os perfis que ignoraram o fato de que os procuradores da Lava Jato e Moro tenham realizado parte do trabalho em segredo e de forma antiética. Essa tem sido, inclusive, a tônica da defesa dos envolvidos: foco na forma, e não no conteúdo.

Em entrevista ao Vós, o jornalista Alexandre de Santi esclareceu esse e outros pontos a respeito da apuração dos fatos, tratamento do material e próximas publicações. Ele assinou uma das três matérias publicadas inicialmente e entende que a vastidão do material pode exigir um trabalho de anos.

Vós – Como está sendo o processo de apuração em cima desse montante de informações  que vocês receberam? Estabeleceram uma força-tarefa na equipe, dividiram tarefas? Quanta gente está envolvida no processo?

Alexandre de Santi – Não dá pra chamar de força-tarefa porque a nossa equipe é pequena, então não tem um monte de gente trabalhando nisso. O que a gente fez foi destacar algumas pessoas para trabalhar mais de perto nisso. Mas não estamos conseguindo gastar muita energia nisso porque houve umas baixas em função de doenças, algumas pessoas de férias e coisas assim. Então, agora, tem umas três ou quatro pessoas trabalhando full time nessa operação editorial.  Mas toda a equipe está trabalhando de alguma forma no bastidor, seja em redes sociais ou ajudando nesse período mais intenso com assessoria de imprensa, para organizar entrevistas, esse tipo de coisa. Então por enquanto é isso. Fora o Glenn [Greenwald], que é uma operação à parte, digamos assim, já que não está dentro da nossa hierarquia direta.

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Vós – E que critérios vocês estão seguindo para selecionar o que é importante no material?

Alexandre de Santi – Com relação aos critérios, a gente procura coisas que tenham interesse público, obviamente, que tenha a ver com eventos republicanos, digamos assim. Coisas referentes a assuntos estritamente pessoais ou de procedimentos internos do pessoal da Lava Jato, a gente não publica. Eventualmente, podemos dar uma olhada “mais de lupa”  para ver se tem coisas interessantes, mas não é prioridade agora. A prioridade é encontrar coisas que tenham a ver com os casos que mudaram a política do país, encontrar coisas que tenham interesse público forte e que ajudem a revelar como funcionou o processo de decisão dessa operação e deixar isso pro público julgar. Julgar se essa operação, que tem tanta fama, operou dentro da normalidade e se os méritos estão dentro de um espírito republicano. E é essa a nossa missão. 

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Vós – E quanto às questões legais? Tanto na parte da obtenção dos dados quanto, por exemplo, na decisão de publicar originalmente sem contraponto.

Alexandre de Santi – Desde que isso começou, semanas atrás, até agora, eu me envolvi mais tempo em questões jurídicas do que em questões jornalísticas. Tanto com reunião com advogados quanto discussões internas, mesmo sem presença de advogados, para tentar avaliar tanto os nossos riscos quanto as repercussões jurídicas intrínsecas ao material. É um tema muito importante, muito delicado.

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Os atores da Lava Jato, depois que a gente publicou, disseram que foi um hacker, a gente não sabe se é um hacker ou não.

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A nossa preocupação primeira era entender até que ponto a gente podia publicar isso. Tanto por se tratar de conversas privadas quanto por terem sido, talvez – é uma hipótese, a gente não sabe -, “roubadas”, digamos assim. A gente não sabe de onde elas vieram exatamente, então a gente não tem nem como avaliar mais profundamente. Os atores da Lava Jato, depois que a gente publicou, disseram que foi um hacker, a gente não sabe se é um hacker ou não. Em nenhum momento isso se confirmou.Mas a gente tinha essa preocupação no nível da hipótese. “E se for uma informação que foi roubada de algum lugar, isso importa pra nós?” “Juridicamente, como é que fica se for esse o caso?” Então trabalhamos com essa e com outras hipóteses para entender qual era o nosso risco. Primeiro nossos advogados disseram que, independente da origem, esse não era um problema nosso, que nós tínhamos direito de publicar, que jornalismo é isso. Desde que a gente não estimulasse a fonte a cometer um crime, e a gente não fez isso em nenhum momento. Depois que isso ficou bem claro, não tivemos preocupações em receber os arquivos.

Encerrada essa questão, do custo jurídico de entender a origem do material, teve a discussão sobre como a gente faria para falar com os envolvidos antes da publicação, porque esse é o nosso padrão jornalístico. Obviamente é a melhor prática possível, falar com todos os envolvidos antes, mas a gente começou a discutir com os advogados se nós estaríamos correndo algum risco de sofrer censura prévia. Porque dava tempo de eles se organizarem. São personagens com muitas conexões no mundo jurídico, então tememos que essas conexões fariam com que uma causa de censura prévia tivesse muita simpatia dentro do judiciário, apesar de não ser a regra. Apesar de no Brasil, em tese, não existir censura prévia, a gente viu um caso recente, que foi o caso d´O Globo, que teve uma matéria que tratava do caso da Marielle censurada previamente pela Justiça. Então tinha um precedente recente. E a gente está na mesma cidade que o Globo, ou seja, podia haver um entendimento jurídico local que poderia favorecer a tese que de o material merecia censura prévia. Então a gente avaliou que o interesse público era maior e  decidiu, pela primeira vez, não falar com as fontes. 

A gente podia ouvir os envolvidos, também, para entender se o conteúdo era verdadeiro, mas a gente já tinha feito essa avaliação interna de várias formas possíveis. Checando fatos, datas e os arquivos. Fizemos também uma análise técnica no material pra saber se tinha sinais de adulteração. Enfim, fizemos todo o trabalho possível antes pra saber se era falso.

No momento que a gente concluiu que era um conteúdo verdadeiro, a gente concluiu que já era a versão deles. É a versão dos bastidores, mas é a voz deles. Mesmo sabendo que é uma decisão difícil, inédita, não usual e que a gente não pretende seguir para sempre, sentimos que, nesse caso, o público merecia saber e não podia correr o risco da censura prévia. Então fizemos essa aposta editorialmente arriscada. Mas a versão deles foi ouvida pelo público, por outros canais, e agora cabe ao público julgar isso. 

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Vós – Muita gente acaba, por conveniência política ou torcida mesmo, criando uma enorme expectativa em torno de futuras matérias, esperando algum tipo de resultado delas. Isso abre caminho pra que o trabalho jornalístico do The Intercept Brasil acabe visto como uma espécie de evento ou espetáculo, que vocês sejam vistos como antagonistas de Sérgio Moro.

Alexandre de Santi – A gente não é antagonista do Sérgio Moro. Eu acho que, nessa situação, o antagonista do Sérgio Moro é o próprio Sérgio Moro, o próprio Deltan Dallagnol, dentro de uma ótica de que há ali deslizes muito graves. Isso não é criação do Intercept, o deslize é criação deles. A gente simplesmente teve acesso a esses deslizes, e o nosso papel é só esse, informar. Colocar os pingos nos is. Não só jogar a informação crua para as pessoas tentarem entender.

Vós – Como vocês estão lidando com isso? Qual é a tua visão, a visão de vocês, sobre o papel do veículo e sobre essas publicações? Para que elas servem, enfim?

Alexandre de Santi – A gente acha que esse material serve pra elucidar o público sobre como transcorreu essa operação muito influente, tanto jurídica quanto politicamente, e em que termos éticos, em que bases jurídicas. Isso transformou o Brasil. É bem forte o argumento de que sem Lava Jato a gente teria outro espectro politico na presidência, no comando politico do país. As matérias servem para mostrar para o público se houve deslizes éticos nesse processo. Nós acreditamos que o papel do jornalismo é ser o fiscal do poder, então estamos fiscalizando se houve alguma transgressão.

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Nós não estamos buscando erros para desmontar a Lava Jato, isso não existe, isso é não entender o papel do jornalismo.

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Nós não estamos buscando erros para desmontar a Lava Jato, isso não existe, isso é não entender o papel do jornalismo. Nós estamos fazendo isso porque o público tem direito de julgar e conhecer  e poder entender se sua própria expectativa, ou raiva, ou amor pela Lava jato é justificado. Se transcorreu do jeito certo, como tinha que correr, como manda a lei. O nosso papel é esse, o jornalismo serve para isso, para expor coisas que, às vezes, as pessoas não querem que sejam expostas.

O TIB é um veículo que procura ter impacto no que faz, então quando tem que dizer que alguma coisa precisa ser mudada ou que a aquela pessoa cometeu o que é, objetivamente, um deslize, a gente avisa o leitor. A gente não fica em cima do muro para dizer “aqui estão os fatos e o leitor que se vire para entender se são legais ou não”. A gente tenta já cumprir esse caminho, já mostrar se tem alguma situação “esquisita”. Eu sei que isso causa grande expectativa, principalmente na esquerda, que acha que pode “se vingar” agora da Lava jato, que sem ela não haveria governo Jair Bolsonaro. Mas essa expectativa não é criada pela gente. É a gente no sentido de que a gente publicou algo que gerou essa expectativa, mas a gente não esperava criar expectativa em ninguém, só estávamos fazendo nosso trabalho do jeito mais responsável possível. E foi isso que a gente fez.

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Vós – Um veículo de jornalismo diário estaria sob uma enorme pressão para publicar tudo o mais rápido possível, talvez não tivesse o mesmo tempo que vocês tiveram para avaliar, bater informações etc. Mas o The Intercept Brasil é tudo, menos jornalismo diário, e desde o início tem se proposto a atuar fora dessa lógica. 

Alexandre de Santi – A coisa que eu mais gostava de trabalhar no Intercept, até agora, era justamente o fato de a gente operar no ritmo de uma revista. A gente opera num ritmo muito mais lento e pode demorar semanas ou meses pra publicar uma matéria, porque a gente vai trabalhando até ficar o que a gente considera como pronta. Esse é o meu ritmo pessoal, por exemplo, não gosto de fazer hard news, nunca gostei, já fiz bastante mas nunca foi a minha praia de verdade, a minha vocação. Então uma das coisas que eu gostava no TIB era poder trabalhar com esse tempo, que era muito importante para fazer as coisas bem feitas, tanto do ponto de vista de qualidade da informação, de realmente fazer jornalismo investigativo e ir atrás das coisas até o final, quanto em termos de preparar a matéria para que ela tenha impacto. “Empacotar” de um jeito que a gente consiga mostrar para as pessoas que vale a pena dar atenção para aquela história. Então foi sempre muito bom ter esse tempo pra poder pensar ilustração, diagramação, design, pensar em qualidade de texto. Tudo isso e outros gatilhos internos dos textos que a gente acredita que dá mais leitura, compartilhamento e furar as bolhas para ir mais longe. Agora a gente não tem esse tempo mais. Existe uma expectativa grande de produção.

A gente também sentia que o material era sensível a ponto de ser arriscado ficar com ele por muito tempo na mão sem publicar nada. Digamos que, em vez de a gente levar semanas, a gente levasse meses para terminar. E que durante esses meses, vazasse a informação de que a gente estava trabalhando nesse arquivo.  Isso permitira o nascimento de trocentas teorias da conspiração, todas falsas obviamente. Além disso, a gente sentia que [um eventual vazamento] nos expunha a um risco de a Polícia Federal bater no escritório, na nossa casa, atrás desse material para tentar confiscar. Então era importante andar rápido, numa velocidade que a gente não está acostumado. A gente inclusive fez uma coisa que a gente nunca faz, que é publicar três matérias grandes ao mesmo tempo. Então foi bastante pesado esse período em termos de preparação do material.

Nós temos uma política de fazer checagem de informações em todas as matérias grandes, então não tem matéria do Intercept publicada sem um processo de checagem da informação. Evidentemente o repórter faz checagem, os editores fazem, mas depois passa por um processo de fact checking mesmo. E a gente fez isso em todas as matérias. Teve revisão, um monte de gente leu, os advogados leram várias vezes, sabe, então foi um período bem pesado de preparação. E agora, para manter esse nível, é estrategicamente interessante que a gente aproveite a atenção das pessoas para seguir publicando, mas não é muito nosso ritmo, mesmo. A gente não tem uma equipe muito grande para conseguir andar rápido, mas a gente precisa andar rápido para acompanhar o interesse do público.

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Mas provavelmente é um trabalho de anos. De meses certamente, mas talvez até de anos no sentido da vastidão do material. Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias saindo desse arquivo.

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Eu não posso falar sobre estratégia pratica de publicação, mas posso dizer que a gente está sob uma pressão nossa, mesmo, de tentar aproveitar a atenção que as pessoas estão dando a esse assunto. Não vamos deixar isso para depois, vamos aproveitar. Mas provavelmente é um trabalho de anos. De meses certamente, mas talvez até de anos no sentido da vastidão do material. Não acho nada improvável que daqui a dois anos ainda tenha matérias saindo desse arquivo. Pra vocês terem uma ideia, o Intercept americano publicou uma matéria nova sobre o arquivo Snowden na semana passada [as primeiras reportagens foram publicadas em 2013]. São arquivos totalmente diferentes, mas são arquivos muito grandes, com muita coisa lá dentro, que precisa muito tato e muito cuidado e muita responsabilidade e muita checagem de informações e muita compreensão de contexto para entender o que significa determinada conversa, determinado trecho, foto, documento. Então, nesse sentido, é um trabalho muito lento. Agora eu gostaria que a gente tivesse uma redação com recursos de jornalismo diário, com número de editores e de repórteres e toda uma estrutura preparada para conseguir atender a essa demanda agora. mas a gente não tem, então a gente vai seguir produzindo no ritmo que a gente consegue, até porque a gente jamais correria com a publicação para correr riscos jurídicos e até de qualidade do material, então tem que equilibrar essas duas coisas a partir de agora. 

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Vós – O quanto esse ritmo, de certa forma, pode favorecer vocês na hora de lidar com um furo de reportagem dessa dimensão?

Alexandre de Santi – Eu acho que a gente criou uma cultura interna, e pelo menos desde que eu cheguei como editor adjunto, acho que foi minha grande missão, de trabalhar arte, fazer bons textos, checar, fazer revisão, passar pelos advogados, de cavar mais, de entender melhor, tentar fazer a melhor manchete. Um trabalho completo. E parte do impacto que as três primeiras matérias fizeram é devido a isso. A gente fez o nosso dever de casa para que as matérias fossem apresentadas como algo que merecia atenção da sociedade. Então esse sentido, nos favoreceu ter essa cultura de um jornalismo mais lento e mais pensado. A gente chegou agora, na hora H, com o que para muitos era um bomba na mão, e a gente soube preparar essa bomba para ela explodir direitinho. Isso é muito em função do trabalho feito no último ano para que a gente não desperdice matérias assim.

Não adianta fazer uma boa matéria, ter um furo de reportagem ou alguma coisa exclusiva e publicar na hora errada, com a chamada de redes errada, com design que não é atrativo, que não responde bem a leitura no celular, por exemplo – porque 80% das pessoas estão lendo no celular. Então a gente vem trabalhando bastante para cuidar dessas coisas.  Para que as matérias tenham chamadas que funcionem bem nas redes sociais, tenham apuração que sustente os títulos que estão nas redes sociais, para que não sejam títulos apelativos a troco de nada, e que elas tenham artes, design, ilustração bem pensados pra que chame atenção. Então isso tudo foi usado na hora de preparar as primeiras matérias.  Não diria ao máximo porque ainda teve um componente de pressa, pelos motivos que eu falei antes, mas tinha uma intenção, pelo menos, de a gente usar todo nosso arsenal disponível. Então sim, de certa forma nos beneficiou, mas agora eu gostaria de ter um navio de guerra um pouquinho maior na minha mão. 

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Foto: The Intercept Brasil