Voos Literários

Pra que essa ansiedade, essa angústia?

Flávia Cunha
19 de dezembro de 2020
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, concede entrevista coletiva após anúncio do Plano Nacional de Operalização de Vacinação contra a Covid-19.

Pra que essa ansiedade, essa angústia?

A recente declaração do ministro da Saúde ocorreu em um delicado momento, no qual o Brasil registra 183 mil mortos – na contagem oficial – devido à pandemia de covid-19. Ao tentar adivinhar quais seriam as eventuais razões para ele ter falado essa frase infeliz, podemos imaginar que Eduardo Pazuello talvez seja um homem muito paciente. Ou, de repente, esteja levando sua vida de uma maneira tão normal que realmente não veja motivos para ansiedade ou angústia. O fato é que muitos aguardam que um cronograma efetivo de vacinação nacional seja (finalmente) apresentado à população e colocado em prática.

Mas há motivos ou não para sentirmos ansiedade e angústia? 

De acordo com o dicionário Aurélio, o significado ligado à psicologia da palavra ansiedade é:  “condição emocional de sofrimento, definida pela expectativa de que algo inesperado e perigoso aconteça, diante da qual o indivíduo se acha indefeso.”

De uma certa forma, Pazuello tem razão. Não há nada inesperado na falta de articulação do governo federal e nas falas cada vez mais caricatas do presidente  Bolsonaro em relação ao suposto risco das vacinas (“Se virar jacaré, é problema seu!”).

O medo é justificável

Mas há, sim, um perigo no fato dessas pessoas estarem no governo federal durante a pior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos. Por isso, a ansiedade. Que, conforme o dicionário Aurélio, também pode ter o significado figurado de “ausência de tranquilidade, medo, receio”.

Como ficaremos tranquilos ao ver as vacinas sendo aplicadas em habitantes de outros países enquanto aqui no Brasil o que vemos é esse festival de insanidades?

Inquietude diante da sensação de ameaça

Já a angústia citada pelo ministro é mais complexa e densa em seus diversos sentidos. Novamente recorrendo ao Aurélio, angústia é a “condição de quem está muito ansioso, inquieto”. O dicionário também cita uma das possibilidades filosóficas do termo. “Sentimento de ameaça que, para Kierkegaard (1813-1855), não se consegue determinar nem medir, sendo próprio da condição humana.”

E o que pode ser mais ameaçador do que a perspectiva de ficarmos à mercê de um governo displicente em plena pandemia?  Voltando à fala do ministro, me parece que, além de ser descontextualizada no aspecto político e administrativo, também demonstra uma falta de noção na sua própria área de atuação. Saúde mental é coisa séria, Pazuello, e não deve ser menosprezada.

Dicas de Leitura

Mas, enquanto a vacinação não vem no Brasil, precisamos de boas leituras, que possam nos ajudar a lidar com a ansiedade. 

Sugestão 1 – Título:  Mentes Ansiosas – O medo e a ansiedade nossos de cada dia

Autora: Ana Beatriz Barbosa Silva.

Breve análise: A obra, da mesma autora de Mentes Perigosas, está na sua segunda edição, que foi atualizada e ampliada. No livro, a psiquiatra aborda o tema com uma linguagem acessível para o público em geral. A especialista também aponta possíveis maneiras de lidar com a ansiedade.

Indicação da bibliotecária Gislene Sapata Rodrigues

Sugestão 2 – Título: Para lidar com a ansiedade

Autora: Anissis Moura Ramos

Breve comentário: Este é um livro bastante atual, já contendo referências à pandemia e como o atual momento pode desencadear crises de ansiedade.  A psicóloga, especialista em psicologia clínica, tem consultório em Porto Alegre/RS.

Trecho da obra: “Segundo o DSM-5 (Manual  de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais) o Transtorno de Ansiedade compreende vários outros sintomas que se caracterizam principalmente pelo medo. Claro que o medo desencadeia algumas alterações comportamentais e até mesmo fisiológicas.

A pessoa acometida por um medo exacerbado, pode desenvolver uma crise de pânico, apresentando sintomas como taquicardia, dificuldade respiratória, sensação de sufocamento parando na emergência de um hospital. Geralmente, quem sofre da Síndrome do Pânico tem acompanhamento psicoterápico e psiquiátrico, portanto, nesse período de pandemia, no caso de uma crise, deve procurar ajuda junto aos profissionais que lhe acompanham, evitando uma emergência de hospital.”

Indicação da jornalista Katia Hoffmann

Sugestão 3 – Título: Livre de Ansiedade 

Autor:  Robert L. Leahy

Breve comentário: A obra contém uma abordagem cognitivo-comportamental a respeito do assunto, além de sugerir maneiras de tentar lidar com a ansiedade. O autor é considerado um dos mais respeitados terapeutas nessa área da psicologia e é professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Aqui tem um artigo completo a respeito do livro. 

Indicação da psicóloga Katia Bressane

Sugestão 4 – Título: A Mente Vencendo o Humor 

Autores: Dennis Greenberger e Christine A. Padesky

Breve Comentário: Outra sugestão de livro com abordagem cognitivo- comportamental,  a obra ensina técnicas para procurar conter pensamentos disfuncionais e controlar a mente. Conforme a sinopse, “A mente vencendo o humor ensina estratégias, métodos e habilidades que se mostraram úteis na abordagem de perturbações do humor como depressão, ansiedade, raiva, pânico, ciúme, culpa e vergonha. “
Indicação da jornalista Lu Thomé
2020: um desafio para a saúde mental
No fim das contas, temos muitas razões para estarmos com “essa ansiedade, essa angústia” citadas pelo ministro da Saúde. O ano de 2020 foi desafiador também para a saúde mental em uma escala global, mas especialmente no Brasil, onde vivemos uma verdadeira epidemia de ansiedade. No Vós, já tratamos sobre o assunto em uma reportagem especial. Clique aqui para ler.
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

 

Reportagens Especiais

Epidemia de ansiedade . Pesquisa indica que 81% dos brasileiros estão mais ansiosos desde o início da pandemia

Geórgia Santos
30 de agosto de 2020

“Mrs Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.” O romance de Virgínia Woolf que leva o nome da protagonista e foi publicado originalmente em 1925 começa assim. Uma rotina parecida com a da nossa Clarissa*, acostumada a comprar as flores – ou a assumir o comando das coisas enquanto lida com a ansiedade.

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Por Flávia Cunha  e Geórgia Santos

O dia transcorria tranquilamente, exceto pelo peso de mais uma responsabilidade. Pela primeira vez desde o início da pandemia de coronavírus, ela precisaria participar de uma reunião presencial. A ideia não era confortável por uma série de motivos, mas talvez o principal fosse o medo de se expor ao vírus. Ela temia não apenas ficar doente, mas principalmente infectar alguém da família. Afinal, Clarissa divide a casa com outros três e ajuda a cuidar dos pais idosos e, também por isso, convive bastante com eles e com as irmãs. Ela não saía de casa há meses, mas mesmo assim era obrigada a dividir o espaço, pelo menos, com essas pessoas. Naquele momento, era quase imperceptível, mas ela sentia que uma espécie de aflição estava tomando conta do corpo e da mente de uma forma que ela sentira poucas vezes antes.

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Rosas, pensou, sarcasticamente. Bobagens, minha cara, Pois em verdade quando se tem de beber comer e deitar, tanto nos bons como nos mais dias, a vida não tem nada a ver com rosas.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Ela lembrava de duas ocasiões em que algo parecido aconteceu. Mas não deu atenção àquela lembrança, afinal, em ambos os casos ela estava em viagem e esse deveria ser o motivo dos desconfortos passados. Nada a ver com o acontecia agora, ela acreditava. O que acontecia agora parecia, de alguma forma, mais potente, mais intenso. Nem por isso cogitou faltar ao compromisso. Em vez disso, decidiu ligar para a filha e espairecer.

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“Oi, tudo bem?
Tudo e por aí?
Não sei, tenho que ir a uma reunião amanhã, mas não queria.
Então não vai, tem mil justificativas pra não participar de uma reunião a essas alturas. ?
Eu preciso ir, mas acho que fico com medo de me expor.
É normal sentir medo, eu também teria. Mas se tu não tem como faltar, é só se proteger bastante. Usa máscara, leva álcool gel e fica longe das pessoas. O lugar é grande?
Sim, é bastante espaçoso e tem uma mesa grande, nós podemos nos sentar e ficar longe uns dos outros, eu acho.
E é bem ventilado?
Tem uma janela.
Fica perto da janela, então, já ajuda.
Mas tá muito frio, guria.
Aguenta, oras. (risos) Tá, não precisa ficar NA janela, mas fica perto. Vai ter muita gente?
Acho que não, umas cinco ou seis pessoas. ?
Ah, então fica tranquila. Toma esses cuidados e tentem não ficar mil anos conversando. Faz tudo rapidinho.
Pera aí que a campainha tá tocando, já te ligo.”
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A sensação de aflição e de angústia que Clarissa estava sentindo era uma manifestação de ansiedade. Algo bastante comum na população em geral, especialmente durante uma pandemia, em que o medo de se infectar ou de ser responsável pela contaminação de outras pessoas pode ser sufocante. Mas além do medo, há outras dois fatores de estresse: a sobrecarga com questões de casa e da família e o isolamento em si.

Tanto é assim que Clarissa não está sozinha. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil vive uma epidemia também de ansiedade. É o país com a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade no mundo. O levantamento indica que 9,3% dos brasileiros têm algum tipo de transtorno nesse sentido, o que corresponde a mais de 18 milhões de pessoas. E o problema se agravou agora. Pesquisa do Datafolha/C6 Bank realizada em julho deste ano com mais de 1500 entrevistados mostra que 81% dos brasileiros se sentiram mais estressados ou ansiosos com os cuidados com a família e a casa desde o início da pandemia de coronavírus, em março. Além disso, 68% afirmam que as exigências e obrigações dentro do ambiente familiar também aumentaram, especialmente para as mulheres.

A pesquisa ainda mostra que 43% dos entrevistados se sentem solitários e que esse sentimento de isolamento e solidão é mais intenso entre os moradores do interior. O número chega a 46% ante 39% dos residentes nas regiões metropolitanas. Além disso, os integrantes das classes D/E (definições pré-estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)) também relatam sentir mais os efeitos da solidão. O percentual chega a 51% dos entrevistados. Também nesse caso os efeitos parecem ter um peso extra sobre as mulheres, que tendem a sentir mais os efeitos do isolamento social uma vez que os relatos de aumento nas exigências e obrigações na família, o sentimento de isolamento e o uso de medicamentos para a ansiedade são mais frequentemente citados do que entre os homens.

Àquela altura, Clarissa ainda não fazia parte dos 19% de mulheres que responderam precisar de remédio para controlar a ansiedade, mas, como ela ficaria sabendo em seguida, esse dia não demoraria a chegar.

Quem estava à porta de Clarissa era um dos colegas que participariam do encontro no dia seguinte. Ele queria discutir algumas coisas antes da reunião. A simples presença daquela pessoa à porta foi suficiente para despertar um medo que ela jamais havia sentido. Era um pavor paralisante que começava no peito e era irradiado para as extremidades do corpo. Ela não convidou o amigo para entrar, mas conforme se afastava dele, ele se aproximava. E a cada passo, o pânico aumentava. Ela tratou de encerrar a conversa o mais rápido possível e, assim, achou que ficaria mais tranquila, mas não foi o que aconteceu. O medo aumentou e uma sensação de urgência tomou conta.

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Horrível, pensava, adivinhar mover-se nela aquele monstro brutal! ouvir ramos estralejando e sentir aqueles cascos nas profundezas dessa floresta cheia de folhas, a alma; nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura, pois a qualquer momento o animal podia estar movendo-se; ódio que, especialmente depois da sua doença, fazia-lhe sentir um doloroso arrepio na espinha; causava-lhe uma dor física, todo o prazer da beleza, da amizade, do bem-estar, de sentir-se amada, de tornar a casa deliciosamente acolhedora, tudo vacilava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes, como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor próprio! e aquele ódio! 

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Ela começou a limpar o chão que ele havia pisado com água sanitária. Em seguida, usou álcool 70% para higienizar maçaneta, porta, tudo o que via pela frente. Mas nada parecia funcionar, o cérebro simplesmente não entendia os sinais que ela queria enviar. Então, a respiração começou a ficar mais intensa, mais rápida, da mesma forma que as batidas do coração. Ele pulsava de maneira frenética e ela ficou assustada. Isso era novo. Pensamentos horríveis invadiram sua mente e ela achou que poderia morrer ali, naquele momento. Ofegante, resolveu ligar para a filha novamente.

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Oi.
Oi, tá tudo bem? Tu tá ofegante.
Não, eu não sei o que aconteceu. O Pedro* veio aqui e de repente eu fiquei tomada de medo.
Mãe…
Eu acho que nem ouvi o que ele falou e não sei se eu articulei as palavras direito.
Mãe…
Comecei a limpar tudo, limpei onde ele pisou, acho que ajuda, né?
Sim, mas…
E agora eu não sei, eu tô ofegante, meu coração tá batendo rápido.
Mãe, tu tá tendo uma crise de ansiedade.
Será?
Sim, teu coração tá batendo mais forte?
Sim.
Tá ofegante, como se não conseguisse respirar direito?
Sim.
Tá com medo?
Tô, tô tremendo.
Tá achando que vai morrer agora?
Sim.
Tu tá tendo uma crise de ansiedade. Senta em uma cadeira e apoia os pés firmes no chão e respira fundo. Isso vai passar. Tenta respirar de forma bem lenta e calma e focar teus pensamentos na respiração. Inspira em quatro, prende quatro e solta em quatro. faz isso algumas vezes. Depois, faz um chá de camomila. E fica conversando comigo. Pode deixar no viva-voz. Amanhã a gente fala com teu médico.

*O nome foi modificado a pedido da entrevistada

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Ao 61 anos, pela primeira vez na vida, a advogada estava conhecendo uma crise de ansiedade. A manifestação, também chamada de ataque de pânico, ocorre de forma abrupta no momento em que os sintomas de ansiedade alcançam um pico e  sobrecarregam o indivíduo. Quando as sensações de medo dominam a mente, elas ativam gatilhos que geram uma espécie de curto-circuito que provoca extrema insegurança e descontrole. O organismo libera, então, noradrenalina e adrenalina, que são substâncias responsáveis, além de outros processos, pelas manifestações físicas que duram alguns minutos em alta intensidade. A noradrenalina é um hormônio e neurotransmissor cuja principal função é preparar o corpo para uma ação específica, tanto que é conhecida como uma substância de luta ou fuga. Já a adrenalina, um hormônio secretado pelas glândulas suprarrenais,  é liberada em casos de estresse extremos e age como um mecanismo de defesa para uma ação rápida. Por isso são liberados em momentos de pânico.

Para o psiquiatra Érico Moura, a crise de ansiedade é uma manifestação física como um todo. Assim como aconteceu com a Clarissa, é possível notar sintomas cardiovasculares, autonômicos e psicológicos. “São sintomas muito desconfortáveis. Normalmente a pessoa tem uma sensação de que ela vai morrer agora, que ela não vai suportar, vai cair, desmaiar, ter um infarto, um AVC, então dá um medo de morrer. E com relação às repercussões físicas, a pessoa normalmente tem uma taquicardia, o coração acelera, dá palpitações, aquela sensação de que o coração vai sair pela boca, dá um nó na garganta. Algumas pessoas descrevem como uma bola na garganta, que sobe e desce. E tem as repercussões de suar, tremer, pode dar, às vezes, diarreia, tontura e a pessoa se sente mal ao ponto de precisar deitar porque a pressão baixou. E são sintomas que começam rápido. Ela pode passar o dia ansiosa, mas uma crise de pânico acontece abruptamente. De uma hora pra outra esse gatilho dispara”, disse. Foi o que aconteceu com Clarissa, de uma hora para outra, o gatilho disparou.

Segundo o médico, se o paciente conhece uma crise de ansiedade, se já passou por uma, é relativamente mais fácil lidar com ela, porque já está acostumado com os sintomas e reconhece a manifestação. Mas quem nunca teve uma crise de ansiedade, sofre ainda mais.  Para Érico Moura, são as pessoas que mais sofrem. “Elas, de fato, acham que estão tendo um infarto, um AVC, ou, agora, que estão com coronavírus. E aí é mais complicado porque ainda não tem conhecimento de si, não sabe que é portador de um transtorno mental de ansiedade. Por isso, se estiver sozinho, é importante tentar se acalmar e ligar para alguém. Pra um familiar, amigo ou pra um canal de atendimento solidário em saúde mental.”

Clarissa, mesmo sem saber, agiu de forma adequada e ligou para a filha, que, por experiência própria, recomendou um exercício de respiração. “Há medicações que podem ser usadas apenas em crises de ansiedade e são prescritas por médicos. Mas se é a primeira vez que acontece, há medidas comportamentais que podem ser adotadas, como ir para um lugar silencioso, mais escuro, sem estímulos visuais e sonoros e procurar puxar o ar lentamente pelo nariz e soltar lentamente pela boca. Durante uma crise de ansiedade, como o coração acelera, a respiração acelera junto para compensar a resposta cardiovascular. E quando a gente acelera a respiração, a gente acumula gás carbônico e dá uma sensação muito ruim de mal estar que pode causar até desmaio. Então, é importante respirar lentamente. Algumas pessoas usam até um canudinho porque ajuda mecanicamente a puxar o ar mais devagar e soltar mais calmamente”, explicou o psiquiatra.

Sentir ansiedade neste e em outros momentos é absolutamente normal, segundo o psiquiatra Érico Moura. É preciso estar atento, porém, aos efeitos que isso causa na rotina. Ou seja, quando a ansiedade começa a atrapalhar a rotina e impacta a saúde ou causa prejuízos sociais e profissionais, é necessário procurar um médico psiquiatra, porque a pessoa pode estar lidando com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), depressão ou Síndrome do Pânico, cuja incidência, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), é estimada em 1,5% a 3,5% da população. Novamente, acomete mais mulheres do que homens, na proporção de 2 para 1.

 

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SINAIS

O psiquiatra Érico Moura recomenda prestar atenção aos detalhes, porque toda mudança de funcionamento do organismo, especialmente o padrão de sono e apetite. “Eu gosto de dar atenção especial ao sono, ele funciona como um termômetro do humor. Quando a gente está deprimido, normalmente tem alteração no sono. Ou dorme pouco, ou dorme muito. E quando a gente está ansioso, geralmente dorme pouco ou tem dificuldade para começar a dormir, então tem que estar atento a isso. Se ficar dois ou três dias com o sono alterado, é bom procurar o médico ou o serviço de saúde para saber o que fazer”, orientou.

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Bem, pensava Clarissa pelas três horas da madrugada, lendo o barão Marbot pois não conseguia dormir, isso demonstra que ela tem coração.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Passada a crise de ansiedade, Clarissa foi capaz de perceber que há alguns dias havia algo errado. Ela não dormia bem há mais de uma semana e comia pouco. Sem notar, havia emagrecido bastante. Era o sinal de que ela realmente precisava de ajuda médica.

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Mesmo o sabor (Rezia gostava de sorvetes, chocolates, coisas doces) não tinha gosto para ele. Pousava a xícara na mesinha de mármore. Olhava as pessoas lá fora; pareciam felizes, reunindo-se no meio da rua, gritando, rindo, discutindo por nada. Mas não conseguia saborear, não conseguia sentir.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Segundo o psiquiatra Érico Moura, esse é o caminho a seguir. Inclusive quando a pessoa perceber que se sente atrapalhada para realizar as atividades de rotina  e até mesmo a higiene pessoal. “Tem um canal online que a Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul e outras entidades criaram pra receber essa demanda. É um coletivo de sociedades de psicologia, psiquiatria e psicanálise em que voluntários se disponibilizaram para atender essa demanda durante a pandemia e eu sou um desses profissionais. A gente ouve as queixas e dá o melhor encaminhamento possível”, diz. Para atendimento online, basta preencher este formulário e aguardar o contato. No Rio grande do Sul, ainda é possível contatar o serviço pelo telefone (51)  32243340, das 9h às 18h. O serviço é oferecido pela Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Centro de Estudos de Psiquiatria Integrada, Centro de Estudos de Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência, Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia, ITIPOA e Centro de Estudos Luís Guedes.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) também produziu o Manual Saúde Mental e Covid-19, que traz sugestões de como reduzir o impacto negativo do isolamento social e da quarentena na saúde mental.

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HISTÓRICO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO

Tudo isso foi uma novidade para Clarissa, que sempre se viu como uma pessoa prática e racional. Não estar no controle da situação foi uma novidade e ainda é difícil de aceitar que ela esteja sofrendo com depressão e TAG. Mesmo assim, ela está em tratamento, medicada e engajada em sessões de psicoterapia. E, assim como ela, há muitas pessoas que descobriram esses sentimentos agora, durante a pandemia do novo coronavírus. Mas também há milhões de pessoas que já tinham histórico de ansiedade e depressão e agora precisam lidar com um novo problema global. Além de ser o país mais ansioso do mundo, dados da OMS ainda indicam que o Brasil é o quinto em casos de depressão, que atinge  5,8% da população.

E essas pessoas, apesar de relativamente acostumadas ao problema, precisam de atenção redobrada neste período. O psiquiatra Érico Moura ressalta que a pessoa que já foi diagnosticada deve manter as orientações recebidas pelo médico e manter o uso da medicação, se for o caso. “Se estiver sem uso de medicação, apenas fazendo psicoterapia, pode tentar manter o atendimento online. É muito importante manter as suas rotinas, as atividades diárias.”

Profissionais da área de saúde mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, instituição pública ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizaram uma pesquisa durante a pandemia. O estudo O impacto do distanciamento social nos ritmos biológicos e na saúde mental: um estudo da efetividade de intervenções em ritmos biológicos e sono foi feito à distância, com voluntários selecionados pelas redes sociais. A jornalista do Vós Flávia Cunha foi uma das escolhidas e,  seguir, compartilha um pouco da rotina de monitoramento.

Cada participante recebeu um actígrafo, um equipamento para monitorar ciclos de atividade e descanso. O aparelho, semelhante na aparência a um relógio de pulso, devia ser usado ao longo dos cerca de 40 dias de estudo. A outra parte da pesquisa era o preenchimento diário de um questionário online, com questões relacionadas ao sono, energia e concentração. Também havia perguntas sobre a frequência de hábitos, como assistir noticiários, praticar exercícios físicos e fazer atividades de lazer.

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UM DIA RUIM

“Acordei meio zonza depois de uma madrugada de insônia e ansiedade. Os pensamentos negativos foram se acumulando, enquanto as horas se passavam e o sono não vinha. Me imaginei contaminada. Como conseguiria atendimento sem plano de saúde? De que forma daria conta dos projetos que assumi? E aquele livro que estou produzindo, será lançado se eu ficar doente? E o evento online lá em novembro? O que aconteceria? O coração foi apertando, enquanto eu pensava nas contas que ficariam atrasadas se eu não pudesse trabalhar devido ao Covid. Mesmo estando confinada, há tantos meses, corro risco porque meu marido segue trabalhando e convivendo com várias pessoas. Sai de casa de máscara, tranquilo e sem pensar na possibilidade de ser mais um na longa lista de casos da doença. Gostaria de ser assim, de não me preocupar… Porque agora estaria dormindo, como ele. Depois de poucas horas de sono, acordo e preencho o formulário da pesquisa. Nada muito bom para relatar.”  – Flávia Cunha

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O medo de se infectar, segundo o médico psiquiatra Érico Moura, é normal. Isso não significa que seja fácil lidar com ele. “Eu acho que tem duas estratégias, uma individual e outra social ou familiar. Do ponto de vista individual, a gente tem que parar pra pensar no que está acontecendo. Existem muitos sentimentos. Neste momento, o medo é um sentimento predominante, seja o medo de ficar doente, de se contaminar, de contaminar as pessoas que a gente ama ou as pessoas que estão ao nosso redor. E o medo de todos, o medo da morte. Ao identificar o que nos dá medo e gera angústia ou apatia, ajuda bastante procurar canais pra resolver isso.” Ele explica que é importante não sufocar esse sentimento. Ou seja, é fundamental procurar resolver com algum profissional ou conversar com as pessoas que estão à nossa volta. “É importante falar sobre as coisas. O tédio, o vazio, a angústia, o que a gente tem que fazer, o que deixou de fazer, o que a gente vai perder em termos de ganhos financeiros, de oportunidades. Porque as pessoas que estão ao nosso redor estão sentindo coisas parecidas, perdendo coisas. Então pensar sobre isso é fundamental.”

O psiquiatra Érico Moura alerta, ainda, que é importante estar bem informado e procurar usar as fontes mais confiáveis do jornalismo. Mas sem exageros. “Existe uma música do Jorge Drexler que diz “Data, data, data, data, data, data, data / Cómo se bebe de una catarata”. Ou seja, com essa quantidade de dados que a gente recebe, como beber dessa cachoeira. Eu acho que é como uma dieta, a gente não pode comer muito, mas também não pode não comer nada. Então eu acho que a qualidade da nossa comida, da nossa informação, é fundamental para que a gente possa fazer uma digestão boa. Se a comida for muito pesada, vai demandar uma digestão mais longa. Então, nesse momento, o ideal é “comer” a informação aos poucos. Ficar se “embebedando” de uma informação tóxica, não ajuda, só aumenta a ansiedade. A gente tem que saber o que está acontecendo no mundo, ao redor da gente, mas o mais importante é a informação confiável.”

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UM DIA BOM

“É possível ser feliz durante uma pandemia? Me questiono, enquanto vibro com uma conquista profissional alcançada no privilégio do home office classe média. Cheia de energia e foco, meus dedos percorrem com agilidade o teclado do notebook, terminando mais um texto antes do dia do prazo final. Me levanto da cadeira sorrindo e vou tomar uma água. Decido me exercitar em casa ao som de uma boa música. Quase uma hora de atividade física, enquanto meus pensamentos percorrem as tarefas que preciso executar durante a semana. Penso nos milhares de mortos pelo coronavírus e meu entusiasmo diminui um pouco. Olho o celular, confiro as mensagens. Dou risada de um meme engraçado, com um pouco de remorso. O preenchimento do formulário acusará minha boa energia nesse dia e não sei se fico feliz ou triste com isso. A alegria na quarentena é um pouco envergonhada.”  – Flávia Cunha

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Todo sentimento é válido. No livro Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, existe um abismo entre quem os personagens são, o que cada um sente na intimidade e o que parecem ser. Septimus, por exemplo, carrega um trauma vivido na Primeira Guerra e não consegue falar dessa dor; Lucrezia, esposa de Septimus, não entende o marido e sofre com o fato de que a vida é diferente do que ela esperava; Peter lamenta um amor não correspondido; Richard tem dificuldade de expressar o que pensa. Na vida fora dos livros, decerto, não é diferente. E em um momento como esse, o ajuste é ainda mais difícil e delicado.

Esse é um momento em que a gente precisa se adaptar às mudanças, que são constantes. Cada dia uma nova disposição, cada dia um novo decreto, uma nova tragédia, uma nova esperança. Isso demanda calma e paciência. Mas ninguém precisa suportar isso sozinho. Milhares de pessoas estão enfrentando problemas como ansiedade e depressão e isso é absolutamente normal. Segundo o psiquiatra Érico Moura, o caminho está sendo construído dia a dia, ele não está pronto. “Lidar com a impotência, com a nossa fragilidade, é difícil. É difícil pensar que um vírus pode causar esse caos na sociedade. Então tem, sim, muitas coisas pra gente refletir. Mas podemos também aproveitar para pensar em construir uma sociedade mais democrática, mais igualitária, mais justa, em que as diferenças não sejam tão grandes de oportunidades, tratamento médico, de condições, de uma vida saudável, produtiva e de uma vida social gratificante e rica do contato humano.”

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 Assim, num dia de verão, as ondas se juntam, balançam e tombam; e o mundo inteiro parece dizer: “Isso é tudo”, cada vez mais forte, até que o coração, no corpo estendido sob o sol da praia, também diz: “Isso é tudo”. “Não mais temas”, diz o coração. “Não mais temas”, diz o coração, confiando a sua carga a algum mar que suspira coletivamente por todas as dores, e recomeça, ergue-se, tomba. E o corpo sozinho ouve a abelha que passa; a onda se quebra; o cão, lá ao longe, ladrando, ladrando… 

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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*A identidade foi preservada a pedido da entrevistada

Voos Literários

Ansiedade de ano-novo

Flávia Cunha
27 de dezembro de 2019

Nesse último texto de 2019, resolvi abordar um dos males da nossa pós-modernidade, a ansiedade. Ser ansioso é cada vez mais comum e democrático, atingindo diferentes faixas etárias e classes sociais, sem discriminar ninguém. No período de fim de ano e início de um novo ciclo, os ansiosos lá estão, nervosos com os afazeres a cumprir (depois das brutais compras de Natal vem a ceia de Ano -Novo e, para alguns, férias, o que pressupõe uma grande organização ou mero nervosismo, dependendo de como a ansiedade atinge cada pessoa). E, junto, vem a pressão interna e externa para ter metas concretas para 2020: emagrecer, ter um novo emprego, ser feliz no amor, ser bem-sucedido. 

O ano “em branco”, o porvir, o desconhecido, também podem gerar ansiedade.

E a necessidade de ser feliz nesse período de festas também pode gerar o efeito oposto: melancolia, sentir-se deslocado ou oprimido. Mas como enfrentar tudo isso com o mínimo de serenidade?

No livro Mentes Ansiosas – O medo e a ansiedade nossos de cada dia, a psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva explica, de forma didática e acessível, do que se trata a ansiedade:

“Como tudo em medicina recebe nomes específicos, com direito a sobrenomes, foram denominados transtornos de ansiedade  quando o medo excessivo e,  consequentemente, a sua fiel companheira ansiedade passam a trazer prejuízos expressivos para a vida da pessoa. Os transtornos de ansiedade possuem diversos espectros que variam em grau, intensidade e na forma como se apresentam. Podemos percebê-los em diversas situações, tais como nas lembranças que insistem em nos perseguir após uma  experiência traumática (morte de um parente muito próximo, por exemplo); nas fobias ou no medo intenso de falar em público ou participar de eventos sociais; no temor exacerbado de determinados objetos ou animais […] Também são perceptíveis no terror (pânico) que surge do “nada” e nos dá a sensação de que podemos morrer a qualquer momento; nas preocupações excessivas com os fatos mais corriqueiros e triviais; nos pensamentos obsessivos e comportamentos repetitivos, mais conhecidos como manias, entre outros. […] Em graus variados, quando os transtornos de ansiedade já estão instalados,  inevitavelmente trarão prejuízos significativos para os setores vitais de suas vítimas (vida social, familiar, profissional, acadêmica etc.). Contudo, somente após muito tempo de sofrimento, de peregrinações em vão – entre as mais variadas especialidades médicas e não médicas –, ou quando suas vidas já estão reviradas pelo avesso, é que os pacientes procuram ajuda especializada.”

Já no livro A Terapeuta – Um Romance sobre a Ansiedade, o escritor espanhol Gaspar Hernández  aborda, em um enredo ficcional, a relação de um ator de teatro atormentado por um estresse pós-traumático e sua psicóloga, que o ajuda a manter-se em cena e a tentar lidar com a sensação crescente de ansiedade.  Interessante é perceber que o protagonista no início repele a ideia de fazer terapia, considerando-a como algo desnecessário em sua vida:

“Não tinha sofrido dano algum, não precisava de ajuda psicológica, nunca tinha precisado: suas feridas psíquicas, típicas de um homem normal e corrente, eram exteriorizadas no palco. Além disso, ir a um psicólogo teria significado se analisar, e ele não queria olhar para o próprio umbigo: mais interessantes eram os outros. Nunca antes na história tinha dado tanta importância ao eu: aquilo que gosto, meus amigos, o que penso, o que sinto. No palco precisa se desprender do ego. Se não, estaria  interpretando a si mesmo.”

Uma crise de ansiedade, no entanto, faz o personagem dar-se conta que precisa de ajuda especializada:

“Estava sofrendo um ataque do coração? Estava morrendo? Nunca tinha experimentado nada parecido. A sensação era de irrealidade. A visão do que tinha a seu redor – os pedestres, as barracas de flores, as bancas –, tudo se desvanecia numa  aquarela molhada. Não se lembrava de quantos minutos havia ficado sentado no chão, no meio da multidão. Quando viu que tinha forças para se levantar, foi até uma cabine para ligar para a psicóloga, apesar de ser verdade que, enquanto ligava, estava  pensando que deveria ir ao pronto-socorro, que aquilo não tinha sido nada de psicológico.”

Buscar ajuda de um psicólogo, como fez o personagem do romance A Terapeuta, pode ser um bom caminho para quem identificar-se com eventuais sintomas descritos nesse texto. Na Internet, existem diversos testes para analisar o grau individual de ansiedade mas nenhum quiz substituirá o auxílio especializado. Comece 2020 investindo em autocuidado, algo fundamental nesses tempos tão difíceis que estamos vivendo. 

Imagem: Ansiedade, de Edvard Munch, de 1894

Voos Literários

3 livros sobre a relação entre comida e emoções

Flávia Cunha
25 de junho de 2019

Ansiedade é um dos sintomas mais comuns dessa nossa pós-modernidade. Muito trabalho, pouco dinheiro, reforma da Previdência, Vaza-jato, cobranças de todo o tipo via whatsapp, os amigos todos felizes nas redes sociais e aquela sensação interna de solidão. Como lidar com tudo isso? 

Tem gente que “desconta” na comida.  Vamos como alguns livros mostram a relação entre gastronomia e emoções, de diferentes formas.

COMIDA EM EXCESSO PARA FICAR INVISÍVEL

Quem diria que Shonda Rhimes, a poderosa roteirista e produtora de sucessos como Grey’s Anatomy, Scandal e How to get away with murder, seria acometida de males como insegurança e ansiedade? Em O Ano Em Que Eu Disse Sim, a criadora da Shondaland faz sinceras reflexões e revelações sobre o seu modo de reagir à pressão da indústria do entretenimento, muito longe da fortaleza que sua imagem pública poderia transparecer.

No trecho abaixo, Shonda Rhimes se dá conta de como usa os alimentos como um instrumento para fugir de seus problemas e como é difícil admitir que está insatisfeita com a obesidade:

A feminista dentro de mim não queria ter a discussão consigo mesma. Eu me ressentia da necessidade de conversar sobre peso. Sentia como se estivesse me julgando em relação à aparência. Parecia fútil. Parecia misógino. Parecia… traição, o fato de eu me importar. Meu corpo é  apenas o recipiente no qual carrego meu cérebro por aí. […] Meucorpo é apenas o recipiente no qual carrego meu cérebro por aí. Eu dizia enquanto comia potes de sorvete. Eu dizia enquanto comia pizzas inteiras. […]  A timidez. A introversão. As camadas de gordura. Sou uma escritora bastante nerd que, aparentemente, da noite para o dia, se tornou… bem, famosa. […] E as pessoas começaram a conhecer meu nome e a reconhecer meu rosto. E com isso vem muita atenção. Eu não queria que me olhassem. Não me sentia bem em ser vista. Só queria escrever e andar com os mesmos amigos com quem sempre andei e ser deixada em paz. Como se alcança isso nesta cidade? Seu corpo se torna um recipiente para o cérebro. Era um sistema de segurança muito bom.”

COZINHAR PARA FUGIR DOS PROBLEMAS

Não se esqueça de Paris, de Deborah Mckinlay, aborda a curiosa amizade à distância entre um escritor famoso em um momento de bloqueio criativo e uma solitária fã que sofre de síndrome do pânico. Em comum, o hábito de elaborar pratos sofisticados no dia a dia, como uma forma de refugiar-se da realidade.

Digitou algumas palavras e parou. Depois ficou sentado sem se mover por um instante, lutando contra o bloqueio. Em seguida, agitou os dedos e decidiu que já era tarde, que estava cansado, e releu a carta de Eve sobre as ameixas. Era sua favorita até o momento, além de ser a mais longa. Parecia estranho como a correspondência com Eve, apesar de tão recente, estava se tornando rapidamente uma parte significativa de sua vida. Ao ler as cartas, ele entrava em contato consigo mesmo, com sua melhor parte. Sentia no papel timbrado o aroma agradável e fresco de ervas. Jack queria consolidar a amizade. Aprofundá-la. Então, à uma hora da manhã, escreveu: ‘Cozinhar é o que eu faço de melhor. Quando escrevo, consigo atravessar a linha de chegada com tranquilidade, mas sem nenhum estilo específico. E, com pessoas, tendo a tropeçar no primeiro obstáculo.”

SENTINDO AS EMOÇÕES DE QUEM COZINHA

Em A Peculiar Tristeza Guardada num Bolo de Limão, de Aimee Bender, acompanhamos a trajetória da protagonista Rosie e sua relação com sua família disfuncional. O enredo começa quando a personagem, ainda criança, ganha de presente de aniversário um bolo feito pela mãe. É o momento em se dá conta de sua peculiar habilidade de perceber os sentimentos de quem preparou os alimentos:

Eu podia sentir claramente o sabor do chocolate, mas nos recantos da boca, e, como se estivesse se expandindo e abrindo, parecia que ela também se enchia com o sabor da pequenez, da sensação de encolhimento, de irritação, um sabor de distanciamento que eu de algum modo sabia que estava ligado à minha mãe. Era um sabor confuso do raciocínio dela, em espiral, quase como se eu pudesse sentir o sabor do ranger de seus dentes que dava origem à enxaqueca que a obrigava a tomar tantas aspirinas quantas fossem necessárias, todo um estoque de aspirinas no criado-mudo, como algo que faltasse no que ela dissera: “Vou só me deitar um pouco…”. Não era um gosto ruim, mas havia uma espécie de ausência da perfeição dos sabores, o que fazia com que o bolo parecesse oco, como se o limão e o chocolate estivessem apenas envolvendo o vazio. As mãos habilidosas de minha mãe fizeram o bolo e sua mente soubera como equilibrar os ingredientes, mas ela não estava lá, quero dizer, no bolo.”

RELAÇÃO SAUDÁVEL COM A COMIDA

Volto ao incrível O Ano Em que Eu Disse Sim para concluir esse texto de forma positiva. Shonda Rhimes relata que resolveu exercitar-se e ter uma alimentação mais equilibrada, o que resultou em uma autoconfiança maior para lidar com a fama:

Não há problema em querer ser vista. Não há problema em gostar de ser vista. Sou vista. […] E gosto do que vejo ali. Aquela garota parece feliz. Só foi preciso o tipo certo de ‘sim’. E  salada. Ah, sim. Betsy [a personal trainer] estava certa. Ajuda mesmo se treinar para gostar de saladas. Odeio quando ela está certa.”

  • PS: Esse texto não é uma apologia ao corpo perfeito muito menos à anorexia ou bulimia. Mas um alerta singelo para a busca de uma relação equilibrada entre saborear os alimentos e aceitação corporal. Se sentir que algo não vai bem nesse quesito, procure um especialista. Pode ser um médico ou um psicólogo. O importante é não sofrer em silêncio.

Foto: Engin Akyurt/Pexels.com