Descobri, recentemente, a existência de uma campanha mundial sobre saúde mental chamada Janeiro Branco. A inspiração para o nome seria o fato de o primeiro mês do ano ser como uma página em branco. Neste sentido, os primeiros 31 dias do novo ciclo seriam um momento para criar metas e refletir a respeito de mudanças. Em anos anteriores, realmente janeiro parecia ser este período de pausa, pois tudo funcionava mais lentamente.
Mas não em 2021.
Em meio à uma pandemia conduzida por um governo irresponsável, o brasileiro consciente não teve descanso em pleno janeiro, não importa se branco ou da cor que for. A realidade nos atropela. Falta de oxigênio em hospitais, denúncia de superfaturamento (ou descaso com a fome da população) no episódio do leite condensado (e chicletes, não esqueçamos). O presidente? Ele prefere dar risada e mandar a imprensa enfiar as latas de leite condensado “naquele lugar”, mostrando, mais uma vez, que nada entende da liturgia do cargo que ocupa.
Negação ou irresponsabilidade?
Há quem prefira, em meio à atual conjuntura, seguir a vida normalmente, em festas clandestinas e praias superlotadas. A alegação é que se a pandemia não for colocada em segundo plano, ficaremos tristes. Mas será mesmo que viver em negação é a saída para o equilíbrio emocional, enquanto ultrapassamos a marca de 220 mil mortes oficiais pela covid 19 em território brasileiro?
O desafio de manter a sanidade mental
Sem dúvida, além da epidemia provocada pelo coronavírus, estamos vivendo uma epidemia de ansiedade e depressão. Já falei sobre esse assunto por aqui mais de uma vez. Retorno agora com a perspectiva do novo ano, que mal começou e já nos apresenta um cenário desolador. É notória a necessidade de ainda manter, a longo prazo, protocolos com os quais já não aguentamos mais lidar, como máscaras, álcool gel e distanciamento, enquanto a vacinação não for aplicada em massa no Brasil.
Diante deste panorama, ainda é necessário manter a saúde mental em ordem para garantir a sobrevivência. Pois no Brasil da desigualdade, quem não ficou desempregado precisa ter resiliência para seguir trabalhando. Afinal, os boletos não param de chegar e as cobranças profissionais, também não.
Diante de tamanhos descalabros impostos pelo Brasil pandêmico bolsonarista, o grande desafio é ficarmos equilibrados em 2021.
Uma sugestão para alcançar este objetivo é não se cobrar tanto. É terA coragem de ser imperfeito, título do livro de Brené Brown. A pesquisadora entrevistou milhares de mulheres e homens para entender o funcionamento de mecanismos como vergonha e vulnerabilidade, pelo ponto de vista profissional, amoroso e familiar.
Não fingir ser perfeito é libertador
Na prática, é melhor ser imperfeito e reconhecer, em uma situação profissional, que não sabe determinada questão do que mentir. Ou, em caso de um erro, é melhor ficar vulnerável e pedir desculpas do que seguir fingindo que está certo, conforme destaca a pesquisadora:
Imagine o estresse e a ansiedade de não saber o que se está fazendo, mas tentar convencer um cliente de que sabe, de não ser capaz de pedir ajuda e de não ter ninguém com quem conversar sobre o seu problema. É assim que perdemos funcionários. É muito difícil continuar motivado nessas circunstâncias. A pessoa começa a poupar esforços, a não se importar mais, e acaba jogando a toalha. Depois da minha palestra, um dos mentores do grupo se aproximou de mim e disse: ‘Trabalhei com vendas durante minha carreira toda e posso lhe garantir que não há nada mais importante do que ter a coragem de dizer ‘Eu não sei’ e ‘Errei’. Ser honesto e transparente é a chave do sucesso em todas as áreas da vida.’”
Aparentemente, na política brasileira, honestidade e transparência não são características usuais. Mas certamente temos no poder um presidente que será lembrado, no futuro, pela má educação e dificuldade em reconhecer erros. A empáfia e falta de noção de fazer um discurso com palavrões está longe de ser uma demonstração de força. Forte mesmo é aquele que reconhece equívocos. Porém, para isso, é preciso haver autocrítica e vontade de evoluir. Coisas que Bolsonaro e seu clã parecem não ter nem um pouco.
Para conhecer mais sobre as pesquisas de Brené Brown:
Para saber mais sobre o Janeiro Branco, que está em sua oitava edição, clique aqui.
Epidemia de ansiedade . Pesquisa indica que 81% dos brasileiros estão mais ansiosos desde o início da pandemia
Geórgia Santos
30 de agosto de 2020
“Mrs Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.” O romance de Virgínia Woolf que leva o nome da protagonista e foi publicado originalmente em 1925 começa assim. Uma rotina parecida com a da nossa Clarissa*, acostumada a comprar as flores – ou a assumir o comando das coisas enquanto lida com a ansiedade.
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Por Flávia Cunha e Geórgia Santos
O dia transcorria tranquilamente, exceto pelo peso de mais uma responsabilidade. Pela primeira vez desde o início da pandemia de coronavírus, ela precisaria participar de uma reunião presencial. A ideia não era confortável por uma série de motivos, mas talvez o principal fosse o medo de se expor ao vírus. Ela temia não apenas ficar doente, mas principalmente infectar alguém da família. Afinal, Clarissa divide a casa com outros três e ajuda a cuidar dos pais idosos e, também por isso, convive bastante com eles e com as irmãs. Ela não saía de casa há meses, mas mesmo assim era obrigada a dividir o espaço, pelo menos, com essas pessoas. Naquele momento, era quase imperceptível, mas ela sentia que uma espécie de aflição estava tomando conta do corpo e da mente de uma forma que ela sentira poucas vezes antes.
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Rosas, pensou, sarcasticamente. Bobagens, minha cara, Pois em verdade quando se tem de beber comer e deitar, tanto nos bons como nos mais dias, a vida não tem nada a ver com rosas.
Mrs Dalloway – Virginia Woolf
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Ela lembrava de duas ocasiões em que algo parecido aconteceu. Mas não deu atenção àquela lembrança, afinal, em ambos os casos ela estava em viagem e esse deveria ser o motivo dos desconfortos passados. Nada a ver com o acontecia agora, ela acreditava. O que acontecia agora parecia, de alguma forma, mais potente, mais intenso. Nem por isso cogitou faltar ao compromisso. Em vez disso, decidiu ligar para a filha e espairecer.
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“Oi, tudo bem?
Tudo e por aí?
Não sei, tenho que ir a uma reunião amanhã, mas não queria.
Então não vai, tem mil justificativas pra não participar de uma reunião a essas alturas. ?
Eu preciso ir, mas acho que fico com medo de me expor.
É normal sentir medo, eu também teria. Mas se tu não tem como faltar, é só se proteger bastante. Usa máscara, leva álcool gel e fica longe das pessoas. O lugar é grande?
Sim, é bastante espaçoso e tem uma mesa grande, nós podemos nos sentar e ficar longe uns dos outros, eu acho.
E é bem ventilado?
Tem uma janela.
Fica perto da janela, então, já ajuda.
Mas tá muito frio, guria.
Aguenta, oras. (risos) Tá, não precisa ficar NA janela, mas fica perto. Vai ter muita gente?
Acho que não, umas cinco ou seis pessoas. ?
Ah, então fica tranquila. Toma esses cuidados e tentem não ficar mil anos conversando. Faz tudo rapidinho.
Pera aí que a campainha tá tocando, já te ligo.”
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A sensação de aflição e de angústia que Clarissa estava sentindo era uma manifestação de ansiedade. Algo bastante comum na população em geral, especialmente durante uma pandemia, em que o medo de se infectar ou de ser responsável pela contaminação de outras pessoas pode ser sufocante. Mas além do medo, há outras dois fatores de estresse: a sobrecarga com questões de casa e da família e o isolamento em si.
Tanto é assim que Clarissa não está sozinha. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil vive uma epidemia também de ansiedade. É o país com a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade no mundo. O levantamento indica que 9,3% dos brasileiros têm algum tipo de transtorno nesse sentido, o que corresponde a mais de 18 milhões de pessoas. E o problema se agravou agora. Pesquisa do Datafolha/C6 Bank realizada em julho deste ano com mais de 1500 entrevistados mostra que 81% dos brasileiros se sentiram mais estressados ou ansiosos com os cuidados com a família e a casa desde o início da pandemia de coronavírus, em março. Além disso, 68% afirmam que as exigências e obrigações dentro do ambiente familiar também aumentaram, especialmente para as mulheres.
A pesquisa ainda mostra que 43% dos entrevistados se sentem solitários e que esse sentimento de isolamento e solidão é mais intenso entre os moradores do interior. O número chega a 46% ante 39% dos residentes nas regiões metropolitanas. Além disso, os integrantes das classes D/E (definições pré-estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)) também relatam sentir mais os efeitos da solidão. O percentual chega a 51% dos entrevistados. Também nesse caso os efeitos parecem ter um peso extra sobre as mulheres, que tendem a sentir mais os efeitos do isolamento social uma vez que os relatos de aumento nas exigências e obrigações na família, o sentimento de isolamento e o uso de medicamentos para a ansiedade são mais frequentemente citados do que entre os homens.
Àquela altura, Clarissa ainda não fazia parte dos 19% de mulheres que responderam precisar de remédio para controlar a ansiedade, mas, como ela ficaria sabendo em seguida, esse dia não demoraria a chegar.
Quem estava à porta de Clarissa era um dos colegas que participariam do encontro no dia seguinte. Ele queria discutir algumas coisas antes da reunião. A simples presença daquela pessoa à porta foi suficiente para despertar um medo que ela jamais havia sentido. Era um pavor paralisante que começava no peito e era irradiado para as extremidades do corpo. Ela não convidou o amigo para entrar, mas conforme se afastava dele, ele se aproximava. E a cada passo, o pânico aumentava. Ela tratou de encerrar a conversa o mais rápido possível e, assim, achou que ficaria mais tranquila, mas não foi o que aconteceu. O medo aumentou e uma sensação de urgência tomou conta.
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Horrível, pensava, adivinhar mover-se nela aquele monstro brutal! ouvir ramos estralejando e sentir aqueles cascos nas profundezas dessa floresta cheia de folhas, a alma; nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura, pois a qualquer momento o animal podia estar movendo-se; ódio que, especialmente depois da sua doença, fazia-lhe sentir um doloroso arrepio na espinha; causava-lhe uma dor física, todo o prazer da beleza, da amizade, do bem-estar, de sentir-se amada, de tornar a casa deliciosamente acolhedora, tudo vacilava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes, como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor próprio! e aquele ódio!
Mrs Dalloway – Virginia Woolf
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Ela começou a limpar o chão que ele havia pisado com água sanitária. Em seguida, usou álcool 70% para higienizar maçaneta, porta, tudo o que via pela frente. Mas nada parecia funcionar, o cérebro simplesmente não entendia os sinais que ela queria enviar. Então, a respiração começou a ficar mais intensa, mais rápida, da mesma forma que as batidas do coração. Ele pulsava de maneira frenética e ela ficou assustada. Isso era novo. Pensamentos horríveis invadiram sua mente e ela achou que poderia morrer ali, naquele momento. Ofegante, resolveu ligar para a filha novamente.
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Oi.
Oi, tá tudo bem? Tu tá ofegante.
Não, eu não sei o que aconteceu. O Pedro* veio aqui e de repente eu fiquei tomada de medo.
Mãe…
Eu acho que nem ouvi o que ele falou e não sei se eu articulei as palavras direito.
Mãe…
Comecei a limpar tudo, limpei onde ele pisou, acho que ajuda, né?
Sim, mas…
E agora eu não sei, eu tô ofegante, meu coração tá batendo rápido.
Mãe, tu tá tendo uma crise de ansiedade.
Será?
Sim, teu coração tá batendo mais forte?
Sim.
Tá ofegante, como se não conseguisse respirar direito?
Sim.
Tá com medo?
Tô, tô tremendo.
Tá achando que vai morrer agora?
Sim.
Tu tá tendo uma crise de ansiedade. Senta em uma cadeira e apoia os pés firmes no chão e respira fundo. Isso vai passar. Tenta respirar de forma bem lenta e calma e focar teus pensamentos na respiração. Inspira em quatro, prende quatro e solta em quatro. faz isso algumas vezes. Depois, faz um chá de camomila. E fica conversando comigo. Pode deixar no viva-voz. Amanhã a gente fala com teu médico.
*O nome foi modificado a pedido da entrevistada
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Ao 61 anos, pela primeira vez na vida, a advogada estava conhecendo uma crise de ansiedade.A manifestação, também chamada de ataque de pânico, ocorre de forma abrupta no momento em que os sintomas de ansiedade alcançam um pico e sobrecarregam o indivíduo. Quando as sensações de medo dominam a mente, elas ativam gatilhos que geram uma espécie de curto-circuito que provoca extrema insegurança e descontrole. O organismo libera, então, noradrenalina e adrenalina, que são substâncias responsáveis, além de outros processos, pelas manifestações físicas que duram alguns minutos em alta intensidade. A noradrenalina é um hormônio e neurotransmissor cuja principal função é preparar o corpo para uma ação específica, tanto que é conhecida como uma substância de luta ou fuga. Já a adrenalina, um hormônio secretado pelas glândulas suprarrenais, é liberada em casos de estresse extremos e age como um mecanismo de defesa para uma ação rápida. Por isso são liberados em momentos de pânico.
Para o psiquiatra Érico Moura, a crise de ansiedade é uma manifestação física como um todo. Assim como aconteceu com a Clarissa, é possível notar sintomas cardiovasculares, autonômicos e psicológicos. “São sintomas muito desconfortáveis. Normalmente a pessoa tem uma sensação de que ela vai morrer agora, que ela não vai suportar, vai cair, desmaiar, ter um infarto, um AVC, então dá um medo de morrer. E com relação às repercussões físicas, a pessoa normalmente tem uma taquicardia, o coração acelera, dá palpitações, aquela sensação de que o coração vai sair pela boca, dá um nó na garganta. Algumas pessoas descrevem como uma bola na garganta, que sobe e desce. E tem as repercussões de suar, tremer, pode dar, às vezes, diarreia, tontura e a pessoa se sente mal ao ponto de precisar deitar porque a pressão baixou. E são sintomas que começam rápido. Ela pode passar o dia ansiosa, mas uma crise de pânico acontece abruptamente. De uma hora pra outra esse gatilho dispara”, disse. Foi o que aconteceu com Clarissa, de uma hora para outra, o gatilho disparou.
Segundo o médico, se o paciente conhece uma crise de ansiedade, se já passou por uma, é relativamente mais fácil lidar com ela, porque já está acostumado com os sintomas e reconhece a manifestação. Mas quem nunca teve uma crise de ansiedade, sofre ainda mais. Para Érico Moura, são as pessoas que mais sofrem. “Elas, de fato, acham que estão tendo um infarto, um AVC, ou, agora, que estão com coronavírus. E aí é mais complicado porque ainda não tem conhecimento de si, não sabe que é portador de um transtorno mental de ansiedade. Por isso, se estiver sozinho, é importante tentar se acalmar e ligar para alguém. Pra um familiar, amigo ou pra um canal de atendimento solidário em saúde mental.”
Clarissa, mesmo sem saber, agiu de forma adequada e ligou para a filha, que, por experiência própria, recomendou um exercício de respiração. “Há medicações que podem ser usadas apenas em crises de ansiedade e são prescritas por médicos. Mas se é a primeira vez que acontece, há medidas comportamentais que podem ser adotadas, como ir para um lugar silencioso, mais escuro, sem estímulos visuais e sonoros e procurar puxar o ar lentamente pelo nariz e soltar lentamente pela boca. Durante uma crise de ansiedade, como o coração acelera, a respiração acelera junto para compensar a resposta cardiovascular. E quando a gente acelera a respiração, a gente acumula gás carbônico e dá uma sensação muito ruim de mal estar que pode causar até desmaio. Então, é importante respirar lentamente. Algumas pessoas usam até um canudinho porque ajuda mecanicamente a puxar o ar mais devagar e soltar mais calmamente”, explicou o psiquiatra.
Sentir ansiedade neste e em outros momentos é absolutamente normal, segundo o psiquiatra Érico Moura. É preciso estar atento, porém, aos efeitos que isso causa na rotina. Ou seja, quando a ansiedade começa a atrapalhar a rotina e impacta a saúde ou causa prejuízos sociais e profissionais, é necessário procurar um médico psiquiatra, porque a pessoa pode estar lidando com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), depressão ou Síndrome do Pânico, cuja incidência, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), é estimada em 1,5% a 3,5% da população. Novamente, acomete mais mulheres do que homens, na proporção de 2 para 1.
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SINAIS
O psiquiatra Érico Moura recomenda prestar atenção aos detalhes, porque toda mudança de funcionamento do organismo, especialmente o padrão de sono e apetite. “Eu gosto de dar atenção especial ao sono, ele funciona como um termômetro do humor. Quando a gente está deprimido, normalmente tem alteração no sono. Ou dorme pouco, ou dorme muito. E quando a gente está ansioso, geralmente dorme pouco ou tem dificuldade para começar a dormir, então tem que estar atento a isso. Se ficar dois ou três dias com o sono alterado, é bom procurar o médico ou o serviço de saúde para saber o que fazer”, orientou.
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Bem, pensava Clarissa pelas três horas da madrugada, lendo o barão Marbot pois não conseguia dormir, isso demonstra que ela tem coração.
Mrs Dalloway – Virginia Woolf
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Passada a crise de ansiedade, Clarissa foi capaz de perceber que há alguns dias havia algo errado. Ela não dormia bem há mais de uma semana e comia pouco. Sem notar, havia emagrecido bastante. Era o sinal de que ela realmente precisava de ajuda médica.
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Mesmo o sabor (Rezia gostava de sorvetes, chocolates, coisas doces) não tinha gosto para ele. Pousava a xícara na mesinha de mármore. Olhava as pessoas lá fora; pareciam felizes, reunindo-se no meio da rua, gritando, rindo, discutindo por nada. Mas não conseguia saborear, não conseguia sentir.
Mrs Dalloway – Virginia Woolf
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Segundo o psiquiatra Érico Moura, esse é o caminho a seguir. Inclusive quando a pessoa perceber que se sente atrapalhada para realizar as atividades de rotina e até mesmo a higiene pessoal. “Tem um canal online que a Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul e outras entidades criaram pra receber essa demanda. É um coletivo de sociedades de psicologia, psiquiatria e psicanálise em que voluntários se disponibilizaram para atender essa demanda durante a pandemia e eu sou um desses profissionais. A gente ouve as queixas e dá o melhor encaminhamento possível”, diz. Para atendimento online, basta preencher este formulário e aguardar o contato. No Rio grande do Sul, ainda é possível contatar o serviço pelo telefone (51) 32243340, das 9h às 18h. O serviço é oferecido pela Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Centro de Estudos de Psiquiatria Integrada, Centro de Estudos de Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência, Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia, ITIPOA e Centro de Estudos Luís Guedes.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) também produziu o Manual Saúde Mental e Covid-19, que traz sugestões de como reduzir o impacto negativo do isolamento social e da quarentena na saúde mental.
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HISTÓRICO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO
Tudo isso foi uma novidade para Clarissa, que sempre se viu como uma pessoa prática e racional. Não estar no controle da situação foi uma novidade e ainda é difícil de aceitar que ela esteja sofrendo com depressão e TAG. Mesmo assim, ela está em tratamento, medicada e engajada em sessões de psicoterapia. E, assim como ela, há muitas pessoas que descobriram esses sentimentos agora, durante a pandemia do novo coronavírus. Mas também há milhões de pessoas que já tinham histórico de ansiedade e depressão e agora precisam lidar com um novo problema global. Além de ser o país mais ansioso do mundo, dados da OMS ainda indicam que o Brasil é o quinto em casos de depressão, que atinge 5,8% da população.
E essas pessoas, apesar de relativamente acostumadas ao problema, precisam de atenção redobrada neste período. O psiquiatra Érico Moura ressalta que a pessoa que já foi diagnosticada deve manter as orientações recebidas pelo médico e manter o uso da medicação, se for o caso. “Se estiver sem uso de medicação, apenas fazendo psicoterapia, pode tentar manter o atendimento online. É muito importante manter as suas rotinas, as atividades diárias.”
Profissionais da área de saúde mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, instituição pública ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizaram uma pesquisa durante a pandemia. O estudo O impacto do distanciamento social nos ritmos biológicos e na saúde mental: um estudo da efetividade de intervenções em ritmos biológicos e sono foi feito à distância, com voluntários selecionados pelas redes sociais. A jornalista do Vós Flávia Cunha foi uma das escolhidas e, seguir, compartilha um pouco da rotina de monitoramento.
Cada participante recebeu um actígrafo, um equipamento para monitorar ciclos de atividade e descanso. O aparelho, semelhante na aparência a um relógio de pulso, devia ser usado ao longo dos cerca de 40 dias de estudo. A outra parte da pesquisa era o preenchimento diário de um questionário online, com questões relacionadas ao sono, energia e concentração. Também havia perguntas sobre a frequência de hábitos, como assistir noticiários, praticar exercícios físicos e fazer atividades de lazer.
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UM DIA RUIM
“Acordei meio zonza depois de uma madrugada de insônia e ansiedade. Os pensamentos negativos foram se acumulando, enquanto as horas se passavam e o sono não vinha. Me imaginei contaminada. Como conseguiria atendimento sem plano de saúde? De que forma daria conta dos projetos que assumi? E aquele livro que estou produzindo, será lançado se eu ficar doente? E o evento online lá em novembro? O que aconteceria? O coração foi apertando, enquanto eu pensava nas contas que ficariam atrasadas se eu não pudesse trabalhar devido ao Covid. Mesmo estando confinada, há tantos meses, corro risco porque meu marido segue trabalhando e convivendo com várias pessoas. Sai de casa de máscara, tranquilo e sem pensar na possibilidade de ser mais um na longa lista de casos da doença. Gostaria de ser assim, de não me preocupar… Porque agora estaria dormindo, como ele. Depois de poucas horas de sono, acordo e preencho o formulário da pesquisa. Nada muito bom para relatar.” – Flávia Cunha
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O medo de se infectar, segundo o médico psiquiatra Érico Moura, é normal. Isso não significa que seja fácil lidar com ele. “Eu acho que tem duas estratégias, uma individual e outra social ou familiar. Do ponto de vista individual, a gente tem que parar pra pensar no que está acontecendo. Existem muitos sentimentos. Neste momento, o medo é um sentimento predominante, seja o medo de ficar doente, de se contaminar, de contaminar as pessoas que a gente ama ou as pessoas que estão ao nosso redor. E o medo de todos, o medo da morte. Ao identificar o que nos dá medo e gera angústia ou apatia, ajuda bastante procurar canais pra resolver isso.” Ele explica que é importante não sufocar esse sentimento. Ou seja, é fundamental procurar resolver com algum profissional ou conversar com as pessoas que estão à nossa volta. “É importante falar sobre as coisas. O tédio, o vazio, a angústia, o que a gente tem que fazer, o que deixou de fazer, o que a gente vai perder em termos de ganhos financeiros, de oportunidades. Porque as pessoas que estão ao nosso redor estão sentindo coisas parecidas, perdendo coisas. Então pensar sobre isso é fundamental.”
O psiquiatra Érico Moura alerta, ainda, que é importante estar bem informado e procurar usar as fontes mais confiáveis do jornalismo. Mas sem exageros. “Existe uma música do Jorge Drexler que diz “Data, data, data, data, data, data, data / Cómo se bebe de una catarata”. Ou seja, com essa quantidade de dados que a gente recebe, como beber dessa cachoeira. Eu acho que é como uma dieta, a gente não pode comer muito, mas também não pode não comer nada. Então eu acho que a qualidade da nossa comida, da nossa informação, é fundamental para que a gente possa fazer uma digestão boa. Se a comida for muito pesada, vai demandar uma digestão mais longa. Então, nesse momento, o ideal é “comer” a informação aos poucos. Ficar se “embebedando” de uma informação tóxica, não ajuda, só aumenta a ansiedade. A gente tem que saber o que está acontecendo no mundo, ao redor da gente, mas o mais importante é a informação confiável.”
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UM DIA BOM
“É possível ser feliz durante uma pandemia? Me questiono, enquanto vibro com uma conquista profissional alcançada no privilégio do home office classe média. Cheia de energia e foco, meus dedos percorrem com agilidade o teclado do notebook, terminando mais um texto antes do dia do prazo final. Me levanto da cadeira sorrindo e vou tomar uma água. Decido me exercitar em casa ao som de uma boa música. Quase uma hora de atividade física, enquanto meus pensamentos percorrem as tarefas que preciso executar durante a semana. Penso nos milhares de mortos pelo coronavírus e meu entusiasmo diminui um pouco. Olho o celular, confiro as mensagens. Dou risada de um meme engraçado, com um pouco de remorso. O preenchimento do formulário acusará minha boa energia nesse dia e não sei se fico feliz ou triste com isso. A alegria na quarentena é um pouco envergonhada.” – Flávia Cunha
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Todo sentimento é válido. No livro Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, existe um abismo entre quem os personagens são, o que cada um sente na intimidade e o que parecem ser. Septimus, por exemplo, carrega um trauma vivido na Primeira Guerra e não consegue falar dessa dor; Lucrezia, esposa de Septimus, não entende o marido e sofre com o fato de que a vida é diferente do que ela esperava; Peter lamenta um amor não correspondido; Richard tem dificuldade de expressar o que pensa. Na vida fora dos livros, decerto, não é diferente. E em um momento como esse, o ajuste é ainda mais difícil e delicado.
Esse é um momento em que a gente precisa se adaptar às mudanças, que são constantes. Cada dia uma nova disposição, cada dia um novo decreto, uma nova tragédia, uma nova esperança. Isso demanda calma e paciência. Mas ninguém precisa suportar isso sozinho. Milhares de pessoas estão enfrentando problemas como ansiedade e depressão e isso é absolutamente normal. Segundo o psiquiatra Érico Moura, o caminho está sendo construído dia a dia, ele não está pronto. “Lidar com a impotência, com a nossa fragilidade, é difícil. É difícil pensar que um vírus pode causar esse caos na sociedade. Então tem, sim, muitas coisas pra gente refletir. Mas podemos também aproveitar para pensar em construir uma sociedade mais democrática, mais igualitária, mais justa, em que as diferenças não sejam tão grandes de oportunidades, tratamento médico, de condições, de uma vida saudável, produtiva e de uma vida social gratificante e rica do contato humano.”
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Assim, num dia de verão, as ondas se juntam, balançam e tombam; e o mundo inteiro parece dizer: “Isso é tudo”, cada vez mais forte, até que o coração, no corpo estendido sob o sol da praia, também diz: “Isso é tudo”. “Não mais temas”, diz o coração. “Não mais temas”, diz o coração, confiando a sua carga a algum mar que suspira coletivamente por todas as dores, e recomeça, ergue-se, tomba. E o corpo sozinho ouve a abelha que passa; a onda se quebra; o cão, lá ao longe, ladrando, ladrando…
Mrs Dalloway – Virginia Woolf
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*A identidade foi preservada a pedido da entrevistada
No início da semana, decidi fazer uma drenagem linfática. Estava inchada e desconfortável. Tinha exagerado no final de semana – muita comida e muita bebida – e tinha exagerado nas semanas anteriores. O resultado era visível no meu corpo. Eu precisava murchar. Chegando ao centro estético, a Lisiane Garroni, massoterapeuta, perguntou o que me incomodava. Eu respondi: tudo.
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Eu respondi que tudo no meu corpo me incomodava. Tudo.
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Corrigi imediatamente, mostrando as áreas de maior retenção de líquido, mas não tinha como esconder que eu falei que tudo me incomodava a respeito do meu corpo com uma velocidade impressionante, sem nem pestanejar. Ela terminou a drenagem e o efeito foi impressionante, eu estava menor, mais à vontade, mais confortável. Eu realmente precisava daquilo. Mas saí de lá pensando se eu realmente detestava tudo a respeito do meu corpo.
Fui pra casa e fiquei pensando nisso. Olhei meu corpo no espelho e analisei cada detalhe. Cada celulite, cada estria, cada pelinho. A papada, os cravos e espinhas, as dobras e os pneuzinhos. Os pés chatos, as mãos gordinhas. O nariz batatinha, o cabelo arrepiado. O braço grande de polenteira, Tudo.
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Ali, parada e analisando todo o meu corpo, lembrei de todas as vezes em que me senti feia ou inadequada e as tantas vezes em que chorei por isso e fiquei chocada
Voltei pra quanto eu tinha 13 anos
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Desde os 13 anos eu sinto a pressão de não ser magra. Desde os 13 anos eu entro e saio de dietas. Desde os 13 anos eu comparo o meu corpo ao de outras meninas e mulheres. Desde os 13 anos eu me torturo psicologicamente para caber em um estereótipo que não é meu e que eu não quero.
Eu tinha 14 anos na foto da esquerda, em que estou com minhas amadas amigas de infância – e de até hoje. Me sentia horrível. Hoje, olho pra essa foto e amo cada detalhe. Na foto da direita, estava em uma viagem que fiz com meus pais. Eu lembro que me sentia enormeeee naquela época.
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Há 17 anos eu me sinto feia e inadequada, mas eu me recuso a seguir vivendo dessa forma
Ali, parada e analisando todo o meu corpo, lembrei de todas as vezes em que me senti feia ou inadequada e as tantas vezes em que chorei por isso e decidi que não mais
Hoje, eu resolvi me amar
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Fiz 30 anos em fevereiro. Chega. Não vou mais me martirizar por algo que sequer é um problema. Estou em processo de reeducação alimentar, comecei a fazer yoga, tento controlar meu peso e, eventualmente, faço procedimentos estéticos. Continuo reclamando da papada, do braço, da celulite e outras coisas. Mas agora eu também me acho bonita e não vou me sentir mal por isso.
Qual minha desculpa? Nenhuma. Eu faço o que quero e não faço o que não quero. Eu estou bem e quero continuar assim. Fazendo as coisas que gosto, comendo as coisas que gosto e, ao mesmo tempo, cuidando da saúde do meu corpo e, principalmente, da minha saúde mental. Hoje, eu resolvi me amar. E é muito bom – finalmente – dizer isso.
Nessa reminiscência, fui catar fotos da criança feliz – e gordinha – que eu era. Saca só as curvas da fofura =)