BSV Especial Coronavírus #33 Até quando João Alberto vai morrer?
Geórgia Santos
25 de novembro de 2020
No dia 19 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas foi espancado até a morte por duas pessoas que deveriam garantir a segurança do supermercado Carrefour, em Porto Alegre.
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Beto foi assassinado na porta do mercado
Beto foi assassinado às vésperas do Dia da Consciência Negra
Diante disso, do descaso das autoridades, do descaso da sociedade diante dessa estrutura perversa que continua a promover a opressão do povo negro, nós perguntamos: até quando o João Alberto vai morrer?
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Porque João Alberto morreu também por nossa culpa. Do Mourão, do Bolsonaro, tua e minha. Porque tuíte ou quadrado de luto no instagram não combatem racismo. Precisa mais que isso.
Ao Vós, cabe tratar do tema à exaustão. Por isso hoje nós convidamos o jornalista e professor universitário Maikio Guimarães, que, ao longo do episódio, traz os principais argumentos do discurso racista – e como combatê-lo. E com o jornalista Marcelo Nepomuceno, pra conversarmos sobre a política perversa que perpetua a lógica racista no país.
Participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.
Cena do documentário ‘O Caso do Homem Errado’, sobre a morte de Júlio César em 1987 – Divulgação
Racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento. Na base de grande parte dos problemas enfrentados pelos negros no Brasil, está o racismo estrutural, que integra a organização econômica e política da sociedade. Como destaca Silvio Almeida, as pessoas e as instituições possuem condutas racistas porque a sociedade é racista.
Nos últimos 132 anos, a narrativa racista foi permanentemente atualizada no Brasil. Pensando nisto, a partir deste ponto, serão apresentados alguns argumentos racistas em destaque hoje. Tente lembrar quantas vezes você já deparou com estas ideias.
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Argumento racista número 1 . O Brasil é uma democracia racial
A partir da década de 1930, as elites passaram a defender que existia uma convivência pacífica entre as raças em terras brasileiras. A miscigenação, neste cenário, passou a ser apontada como um item básico da identidade nacional. De fato, nunca existiu convivência pacífica entre raças no Brasil.O que perdura é um sistema de opressão que nega direitos aos negros. O conceito de democracia racial tem sido refutado por pessoas negras (dentro e fora do ambiente acadêmico) desde sempre. A ideia, no entanto, não foi definitivamente sepultada. Cada vez que um caso de racismo gera comoção, alguma autoridade branca resgata a mofada tese da democracia racial.
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Argumento racista número 2 . O Brasil não é um país racista
A pessoa que afirma não existir racismo no Brasil tem como propósito silenciar qualquer manifestação negra em defesa de direitos. Em um cenário onde todas as estatísticas comprovam categoricamente as desvantagens dos negros nas mais diversas áreas, não faz sentido a defesa de um argumento distante da verdade.
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Argumento racista número 3 . Querem dividir a sociedade com esta história de racismo
É uma manifestação perfeita para um esquete de humor. Quem faz tal afirmação costuma defender a fantasiosa ideia de uma democracia racial. Acredita que os negros vão liquidar a unidade social ao falarem sobre racismo. Não quero estragar o prazer de ninguém, mas informo que a sociedade brasileira nunca esteve unida. O leitor ou leitora não precisa acreditar em mim. Pesquise nos 520 anos de História do Brasil. Procure resquícios da encantada unidade da sociedade brasileira. Não vai achar nada. Quando se observa o histórico da convivência entre brancos e negros, fica evidente a existência de uma relação prejudicial aos negros. Defender que as pessoas querem “dividir a sociedade” ao tratar de racismo não passa de um argumento rasteiro de quem deseja ignorar a realidade e manter privilégios.
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Argumento racista número 4 . Racismo reverso
Do fim da escravidão aos dias de hoje, tem sido possível observar uma indiferença em relação às precárias condições de vida da população negra. Esta letargia se transforma em oposição ativa quando a demanda negra por mudança se torna forte. Basta observarmos a História do Brasil nos últimos 20 anos. Quando ganhou força o debate sobre a adoção do sistema de cotas nas universidades federais, velhos argumentos foram reciclados. Alegaram que não existia racismo no país. Defenderam que tal medida iria dividir a sociedade brasileira. Teve quem afirmou que pessoas brancas teriam suas vagas roubadas pelos negros. Todas estas alegações tinham como base a preocupação de um grupo focado em não perder privilégios. As universidades federais foram criadas para formar os filhos da elite brasileira. Estas instituições se mantiveram assim até o início do século 21. Quando os negros reivindicaram uma fatia do bolo, o grupo que detinha praticamente o monopólio do acesso ao ensino superior se sentiu ultrajado.
Argumentos semelhantes foram resgatados quando a rede de lojas Magazine Luiza informou que iria contratar trainees negros. Diversas pessoas utilizaram as redes sociais para manifestar repúdio. Em diversos comentários, “cidadãos de bem” apresentaram os brancos como vítimas de racismo reverso. Em uma situação pontual, uma pessoa branca pode ouvir uma manifestação preconceituosa. No entanto, brancos não são sistematicamente discriminados por causa da cor da pele. E outra. Os negros estão sub-representados na política, na direção de empresas e em quaisquer meios de dominação. Não seria sequer viável criar uma estruturar para subjugar os brancos.
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Argumento racista número 5 . O politicamente correto é uma chatice
Vale refletir o que faz uma pessoa reclamar do politicamente correto. Por muito tempo, a sociedade brasileira viu com naturalidade a circulação de manifestações de desprezo por minorias raciais na forma de humor. O chamado racismo recreativo. Ao longo do século 20, as pessoas negras foram rotuladas como burras, feias, bêbadas, fracassadas e sexualmente inadequadas.
Hoje, existe uma reação rápida a qualquer manifestação que procure desmerecer os negros. A internet potencializa mobilizações e manifestações de repúdio. A resposta negra frustra quem gosta de fazer piadas preconceituosas. Quem estava acostumado a rir dos negros é que considera o politicamente correto uma chatice.
“Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos. O preconceito e o desprezo ainda são iguais. Nós somos negros, também temos nossos ideais. Racistas otários, nos deixem em paz.” Este é um trecho da música “Racistas otários”, dos Racionais MC’s. Uma canção de muito sucesso na década de 1990. Como quase nada muda no Brasil, a mensagem segue atual.
*Maikio Guimarães, jornalista e professor universitário
Senti a sexta-feira do Dia da Consciência Negra como uma porrada na cara, por ser uma branca privilegiada, ainda que consciente do racismo estrutural existente no Brasil. De madrugada, recebi por whatsapp o vídeo de um homem negro sendo cruelmente espancado e a notícia de sua morte. Aos poucos, as redes sociais e os noticiários foram ficando repletos das revoltantes informações. Ficamos todos sabendo que João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi surrado até a morte por seguranças do supermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre. O brutal assassinato de Beto gerou uma onda de protestos em diversas cidades brasileiras e teve repercussão internacional na imprensa.
SENTI VERGONHA POR SER BRANCA
Enquanto me solidarizava às manifestações de repúdio a esse cruel assassinato de um homem negro, o lado tóxico das redes sociais me trouxe vergonha por ser branca. Em um dia em que permaneci trabalhando meio anestesiada em frente ao computador, observei relativizações do racismo envolvendo o caso, tentativas de culpar a vítima e defesa do Carrefour após protestos mais “violentos”. O patrimônio de uma empresa ser atingido durante protestos é pior do que um assassinato motivado por racismo? Para boa parte dos brasileiros, em especial brancos e de classe média, sim. Essas declarações míopes na Internet demonstram o quanto ainda temos a avançar enquanto sociedade.
MAS O QUE PODEMOS FAZER PARA COMBATER O RACISMO?
Em primeiro lugar, é preciso enxergá-lo:
“O RACISMO ESTÁ EM TODO O LUGAR
[…] Ele está na estrutura da sociedade. Para pessoas brancas, ele pode não estar tão claro. Mas para pessoas negras, ele é visível todos os dias. E,por conta dele, somos invisibilizados.”
O trecho acima é do livro Uma atitude por dia: Por um mundo com menos racismo, de Gabriela Oliveira. A escritora, designer e empreendedora concedeu uma entrevista para as redes sociais da minha produtora nesta sexta-feira. Gabriela começou a live com as seguintes reflexões:
“O assassinato de João Alberto Silveira Freitas se soma, infelizmente, a muitos outros. Corpos negros, independente da idade, são alvos da violência gratuita motivada pelo racismo no Brasil.”
“As empresas não pegam para si a responsabilidade sobre casos de violência como esse ocorrido no Carrefour. Tanto que a empresa só emitiu uma nota de repúdio. Isso não é suficiente.”
Durante a entrevista, Gabriela trouxe muitas sugestões práticas de como cada um, dentro de sua realidade, pode contribuir para combater o racismo. Precisamos, em primeiro lugar, fazer com que as pessoas parem de negar sua existência. Evidentemente, isso é difícil em um país onde o presidente da República e seu vice fazem o desserviço criminoso de declarar que o Brasil não é um país racista. Aos brancos, como eu, cabe apoiar e engajar-se nessa luta, para mostrar que vidas negras importam.
Como Gabriela ensina, neste trecho de seu livro:
“Pessoas brancas precisam entender seu papel no combate ao racismo. Entender seu lugar de fala, agir a partir dele e se aliar de forma ativa e consistente. […] A luta antirracista é uma prática ativa. Um mundo com menos racismo é possível.”
Confiram a entrevista completa de Gabriela Oliveira no canal da F Cunha Produtora: