Igor Natusch

Pequeno conto paulistano de Natal

Igor Natusch
25 de dezembro de 2019

Essa história é antiga – na verdade, está completando dez anos. Escrevi em 2009, quando estava morando em São Paulo. Uma cidade na qual não cheguei a me fixar, mas que foi generosa comigo e pela qual nutro, até hoje, um carinho bastante especial. Sempre que o Natal se aproxima, eu me lembro desse texto: não apenas por ter sido um momento marcante (sério mesmo, lembro os detalhes do acontecido até hoje), mas por ser exemplo de um espírito que eu não descreveria exatamente como natalino, mas que se manifesta claramente quando há uma convergência positiva entre as pessoas. Eu acredito em mágica, como uma espécie de coincidência-que-não-é-coincidência que se manifesta em vários cenários, e acho que momentos de alegria coletiva podem ser mágicos – por mais que o Natal tenha se tornado (e mais ainda depois que as forças por trás de Jair Bolsonaro fizeram o favor de destruir conexões familiares em nome do trono presidencial) um momento tenso e cheio de desconforto para tanta gente.

Não é a primeira vez que republico essa historinha, mas acho que vale a pena fazê-lo uma vez mais. Fica a sugestão: na medida do possível, abra a mente e o coração para o Universo. Eu acredito, muito sinceramente, que ele responde. E que cada um de nós é capaz de, direcionando seus privilégios para o bem, criar aos pouquinhos um mundo menos escroto, menos raivoso e hostil.

Feliz Natal, gurizada.

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São Paulo. Cercanias do Natal. Voltava para meu refúgio, pensando na vida e no que ainda precisava resolver para a viagem de fim de ano até o sul, quando o típico barulho na janela do ônibus despertou minha atenção. Chuva — uma rajada forte, violenta, do tipo que aparece quase de surpresa para jogar São Paulo no caos. Companheira de todos os atrasos e engarrafamentos, alguém poderia dizer. Vinha tão distraído que nem imaginei que pudesse chover, e é claro que não trazia comigo nenhum guarda-chuva nem nada do tipo. Assim que eu saísse daquele ônibus, estaria à mercê do poder inclemente da Natureza — ou, falando sem poesia, ia tomar um belo de um caldo.

Pensei rapidamente nas minhas chances de fuga e concluí que a melhor coisa seria descer uma parada depois do originalmente previsto. Nesse caso, além de me proteger embaixo do teto da parada de ônibus, mais amplo do que o de onde geralmente descia, teria a chance de me esconder no toldo de uma padaria logo à frente, caso a coisa continuasse preta como estava. Não era o plano mais infalível do mundo, mas era o que tínhamos para o momento, de modo que o segui à risca. Fui até a parada, desci rapidamente para não me molhar e ali fiquei, totalmente ilhado, já que a chuva estava pesada e não tinha jeito de que ia aliviar de jeito nenhum.

Situação complicada, essa: próximo do abrigo definitivo, mas sem a menor perspectiva de conseguir chegar até ele naquelas condições. Nessas horas, sempre penso que deveria arranjar um guarda-chuva para mim um dia desses — mas nunca gostei de carregar guarda-chuva, além de ser uma pessoa patologicamente acomodada, então vou levando e pensando com meus botões que desta vez passa, que na próxima oportunidade eu compro um, sim Deus, eu prometo. Sempre em vão. Deus já deve ter se acostumado, a essa altura.

Fiquei sozinho na parada até que duas mulheres chegaram, um pouco apressadas e conversando alto entre si. Pararam debaixo da parada de ônibus, fecharam seus guarda-chuvas e ficaram ali, retomando o fôlego enquanto esperavam o ônibus que as levaria para casa. Imagino, pela semelhança física e pela diferença de idade, que fossem parentes, talvez mãe e filha; uma senhora com o rosto emoldurado pelos primeiros cabelos brancos e uma moça de vinte e poucos anos, ambas de pele negra, roupas simples e o ar de dignidade despreocupada típico das pessoas humildes que nada devem a ninguém. A mais jovem, aliás, era uma moça muito bonita — cheia daquela beleza que, por não encaixar nos padrões que tentam jogar todos os dias para cima de nós, acaba sendo assumida por muitos como beleza menor, ou como se nem beleza fosse.

Era bonito o modo como ela sorria enquanto falava, um sorriso de dentes perfeitos e de uma alegria despretensiosa e sem disfarces. Era bonito o modo como ela prendia o cabelo em um pequeno coque logo acima da nuca, e era bonito o pescoço que surgia pela gola da blusa cor de vinho que aquela moça vestia. Era bonita a cintura que às vezes se revelava entre a mesma blusa cor de vinho e o jeans sem cinto que a moça usava, e era bonita a maneira como ela se inclinava de leve para ver se o ônibus vinha de trás da curva da rua. E eu confesso que fiquei ali, admirando discretamente aquela beleza que talvez nem se soubesse bonita, um pequeno e agradável consolo no meio daquela metrópole encharcada de trânsito, de chuva e de solidão.

Ficaram as duas ali talvez uns cinco minutos, rindo e conversando, até que o ônibus chegou e as levou para algum lugar longe do meu mundo e da minha vista. Fiquei de novo sozinho. Passei com certeza uns dez minutos mais ali, sozinho, as pilhas do mp3 player gastas, ouvindo apenas o som da chuva e o compasso repetitivo dos meus pensamentos. Até que alguma coisa me ocorreu, um impulso repentino que me fez dar uma olhada para trás, para os assentos de ferro cobertos de gotas de chuva. E o que eu vi?

Um guarda-chuva. Um guarda-chuva enorme, vermelho e chamativo — que logo reconheci como o guarda-chuva da moça bonita que até menos de quinze minutos havia estado ali, naquela parada de ônibus, colocando um pouco de poesia no meu fim de tarde enquanto esperava condução para a casa. Aparentemente, a moça o deixou ali por algum motivo qualquer, talvez para que o excesso de água escorresse, talvez para ajeitar alguma coisa nas suas roupas ou pegar algo na bolsa ou qualquer coisa do tipo. E, na pressa de subir no ônibus, o esqueceu atrás de si, deixando-o deitado entre os assentos pronto para ser útil a algum anônimo da cidade. Mais especificamente, para mim.

Hesitei um pouco, admito. Me pareceu coincidência demais, um guarda-chuva enorme daqueles, esquecido em cima de uma fileira de assentos em um momento em que chovia tanto naquela área da cidade. Em um dos cantos do tecido, estava o logo do Shopping Pátio Paulista, além de uma mensagem alusiva ao 455º aniversário de São Paulo. Estaria quebrado? Peguei-o e testei rapidamente: o tecido de uma das hastes estava solto, mas fora isso funcionava perfeitamente. Ninguém em sã consciência deixaria intencionalmente para trás aquele guarda-chuva só por causa disso. Pensei um pouco, medi os prós e contras da situação, e não deu para disfarçar um sorriso quando finalmente decidi aceitar a gentil oferta do Destino, abrir o guarda-chuva e encarar, agora totalmente protegido da tormenta, o caminho de volta para o lar.

Ainda não me decidi se foi a moça quem, sem saber, me deu um singelo presente de Natal, ou se foi a cidade de São Paulo que, por meio dela, resolveu mandar um sinal de que vai com a minha cara. Na verdade, podem ser as duas coisas ao mesmo tempo, por que não? Seja como for, fiquei sinceramente muito agradecido, e fui embora desejando Feliz Natal para a moça bonita da parada de ônibus, para a cidade de São Paulo e para todos os que amo, amei e ainda virei a amar. Imagino que o espírito natalino esteja em pequenos milagres do tipo, no fim das contas.

Dezembro de 2009

Foto: André Solnick

Igor Natusch

Um fim de tarde qualquer em um bairro brasileiro de classe média

Igor Natusch
18 de dezembro de 2019
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– Eu estava pensando…

– Pelo amor de Deus, amor, não fale isso em voz alta!

– Sim, desculpe – baixou o tom de voz. – Eu estive pensando, sabe.

– Mas como assim? Desde quando você pensa?

– Ah, não faz muito tempo. Umas duas semanas, talvez. Três, no máximo.

– E por que não me disse nada antes?

– Acho que tive um pouco de… Receio – a voz, além de quase cochichada, era cautelosa, escolhendo as palavras. – Nunca se sabe como os outros vão reagir, sabe como é.

– Mas de mim você não precisa ter medo.

– Sim, eu sei. Mas, logo que comecei a pensar, eu fiquei em dúvida. E preferi esperar um pouco. Entende? Vai que é só uma fase. Vai que, no dia seguinte, eu parasse de pensar.

– É, faz sentido. Mas, pelo jeito, você segue pensando.

– Isso. E não está passando, sabe. Pelo contrário. Estou pensando cada vez mais.

– Você precisa tomar cuidado.

– Eu sei, amor. Eu sei. Mas tento ser discreto. Penso só quando estou sozinho. Com o celular desligado.

– Mas desligar o celular é proibido! Não brinque assim – Chegou a gaguejar de preocupação. – Vai que… Eles acreditam.

– Desculpe, amor. Você tem toda a razão. Foi uma brincadeira fora de hora. Me perdoe.

Seu aparelho celular estava no bolso. Logo após falar, ele voltou os olhos para a esposa e disse, apenas movendo os lábios:
“Eu espero descarregar a bateria.”

Ela entendeu e, um pouco alarmada, fez que sim com a cabeça.

– Mas enfim, a verdade é que ando pensando – recomeçou ele. – Ainda não é crime, eu sei, mas as leis mudam tão rápido! Ando um pouco preocupado com isso. Talvez eu precise de tratamento.

– E como é pensar? – perguntou ela, em um impulso. – Eu… Não lembro muito bem como era.

– É esquisito. Você pega as frases e, tipo, junta elas na cabeça. E aí algumas frases não fazem sentido juntas. Mas outras fazem, e quando elas se juntam surgem… Outras coisas. Não sei explicar direito.

– Isso parece bem perigoso.

– Eu diria que é mais cansativo, sabe. Eu começo a pensar e, logo em seguida, fico exausto e preciso parar. Deve ser falta de prática.

– Não, estou falando sério. É perigoso. Como ficam as informações que recebemos todos os dias no celular, se a gente começa a fazer… Isso daí que você faz? Como ficam as nossas certezas? Daqui a pouco vão achar que bandido bom é bandido vivo, ou que o nazismo… – Fez o sinal da cruz. – Não é de esquerda!

– Pare com isso! – Agora era ele quem parecia alarmado. – Não pensei nada disso. Não fique colocando ideologias na minha cabeça! Inclusive, olhe como está bonita a minha suástica – Apontou para o bracelete nazista, bastante vistoso, que ostentava no braço esquerdo.

– Sim, é realmente linda – concordou ela.

– Mas… Esse é o problema de pensar – retomou ele, novamente cauteloso. –  Porque, se o nazismo é de esquerda, e a esquerda é a personificação de todo o mal… Então por que nós, que somos da direita divina, somos encorajados a usar um bracelete nazista? Ele não é um símbolo dos nossos inimigos? De tudo que a gente detesta?

– Credo – quase gritou ela, enquanto espantava ideias com a mão. – Não fale bobagem. O nazismo é de esquerda, as suásticas são uma forma de humilhar os esquerdinhas. Está tudo claro. Não comece a inventar moda!

– Você tem razão – assentiu, respirando fundo.

O silêncio foi longo. Do lado de lá da janela, começava a surgir entre as nuvens um bonito pôr-do-sol.

– Amor?

– Sim?

– No que você estava pensando?

– Deixe para lá – sua voz era pensativa e, ao mesmo tempo, receosa.

– Ah, não faça assim. Você pode confiar em mim.

– Posso?

– Pode.

– Bem, então… Eu estava pensando e, pela lógica… A Terra não pode ser plana.

– AH NÃO, AMOR! PELO AMOR DE DEUS!!!

Foto: Sheila Tostes / Flickr

Cléber Grabauska

Porque eu gosto de Iúra e não de Luan

Cléber Grabauska
15 de dezembro de 2019

Eu me criei numa época em que os times eram montados no esquema 4-3-3. No ataque existiam dois pontas e um centroavante, camisa nove, matador. O meio-campo era muito bem definido. Tinha um médio-volante, camisa cinco, carregador de piano, o homem da marcação. O camisa dez, o maestro, o craque do time. O cara que ditava o ritmo, chamado meia-armador. Nessa função de “pensadores” tínhamos Rivelino, Ademir da Guia, Gérson e Carpegiani. E a camisa oito ficava com o “ponta de lança”, que era um jogador de meio com qualidade de infiltração e talento de artilheiro, como Zico, Pelé e Jair, por exemplo.

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Nem sempre o número indicava a posição. O dez sempre vestiu o diferenciado. E, por isso, Zico e Pelé consagraram a dez e não a oito
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Mas deixando de lado a numerologia e destacando a função, eu sempre admirei e me identifiquei com os jogadores que vestiram a camisa oito. Pois, quase sempre, eles eram aqueles que faziam o trabalho limpo e o trabalho sujo. Ajudavam na marcação e apareciam no ataque para tabelar com o centroavante para achar uma brecha, para furar o bloqueio e entrar na cara do gol.

Me criei admirando camisas oito clássicos como Iúra, Jair, Osvaldo, Cléo e Emerson. Uns mais marcadores, outros mais atacantes. Mas jogadores de fôlego, de entrega e de habilidade. Onde existia um camisa oito, quase sempre existia coração. E também qualidade técnica.

Pois, sem nunca ter vestido a oito, Luan, no 4-3-3 dos anos setenta e oitenta, seria um jogador dessa função. Mas eu não sei se ele vingaria tempos atrás. Digo isso porque vejo muita técnica e muito pouco coração no jogador que está trocando o Grêmio pelo Corinthians.

“Rei da América” em 2017 e principal nome do Grêmio na conquista da Libertadores daquele ano, Luan não conseguiu dar um passo à frente. A sua ausência na lista de Tite para a Copa de 2018 parece ter sido determinante. Nos dois últimos anos , ele não conseguiu evoluir. Estacionou. Quem sabe, até regrediu. Quase foi trocado por Tiago Neves. Acabou ficando em Porto Alegre e perdendo relevância.

A torcida discute a sua saída. Mas poucos ainda acreditam que Luan possa repetir o que fez em 2017. Talvez falte foco. Quem sabe condicionamento físico ou sequência. Mas, acima de tudo, acho que falta a Luan o amor à camisa. Mesmo que ele tenha sido multicampeão pelo Grêmio e que tenha feito mais gols que Renato, Luan nunca fez juras de amor ao Grêmio. Algo bem diferente do que eu vi, por exemplo, em Iúra, que comeu o pão que o diabo amassou, mas teve força e qualidade suficientes para dar a volta por cima e mudar o rumo da história.

Luan pode jogar mais que Iúra, mas os velhos armadores ou pontas de lança tinham muito mais coração que alguns ditos craques de hoje em dia.

Raquel Grabauska

Quando o filho menor cresce

Raquel Grabauska
14 de dezembro de 2019
Hoje foi o primeiro dia de aula do meu filho mais novo. Ele tem cinco anos. Até agora sempre ficou perto de mim.
Vantagens e desvantagens de se ter uma escola de arte …

 

A escolha da escola para o filho mais velho foi árdua. Sou a mãe chata, o terror de qualquer diretora. Eu quero saber de tudo, reclamo dos pais que estacionem em fila dupla, converso sobre as coisas com as quais não concordo e sobre as que eu concordo também.

Já até mudei ele de escola, até que cheguei em um lugar onde ele foi muito bem recebido. Mais que isso, respeitado. Como ser humano. Como criança. Com um ser que pensa e sente. Agora é a vez de o segundo ir. Mesma escola, claro.

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Essa escola trabalha com multi-idade. As turmas se agrupam de 3 em 3 anos. Então, primeiro, segundo e terceiro ano, juntos. Meus filhos serão colegas
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Terão dois dias de vivencia nessa semana. O menor estava temeroso. Como iria para escola se ele não sabe matemática? O maior, aclamando o irmão. “Se acontecer qualquer coisa, eu te protejo, mano. ” O menor desistindo de ir. O maior achando chato e dizendo que não quer mais que estudem juntos.

Um pai e uma mãe com olhos arregalados. E lá foram eles. Chorei. É claro que chorei. Chorei por sentir tanto amor. Por confiar. Eles cresceram. Eu também cresci hoje. Agradeço a este espaço que permite que eu seja uma mãe chata. E que permite aos meus filhos cresceram no seu tempo.

Na foto: Benjamin e Tom, no primeiro dia de aula do menor

Igor Natusch

Greta Thunberg: a pirralha que você respeita (ou deveria)

Igor Natusch
11 de dezembro de 2019

Está sendo uma ótima semana para a jovem ativista sueca Greta Thunberg. Afinal, ela acaba de ser confirmada como personalidade do ano pela revista Time, um dos maiores reconhecimentos que uma pessoa pública pode receber da mídia internacional. É um indicativo claro de que, nesse 2019 de céus carregados e promessas de tempestade, Greta foi capaz de nos apontar um horizonte além das nuvens. Reconhecimento merecido e, mais do que isso, importante para todos nós.

Além dessa honraria, ela recebeu outra deferência marcante – vindo, como era de se esperar, do caleidoscópio de demência em que se transformou o Brasil. Jair Bolsonaro, o Minúsculo, chamou Greta Thunberg de “pirralha”, ao responder sobre o inaceitável assassinato de dois indígenas da etnia Guajajara no último dia 7.

“A Greta já falou que os índios morreram porque estavam defendendo a Amazônia. É impressionante a imprensa dar espaço para uma pirralha dessa aí. Pirralha!” – BOLSONARO, Jair

O porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, ainda tentou uma acrobática relativização, dizendo que a fala não foi “descortês”, já que chamar alguém de pirralha é apenas mencionar sua “pequena estatura”. Não precisava ter se submetido ao ridículo papel, convenhamos. Afinal, a própria Greta Thunberg ostentou, durante cerca de 24h, a palavra “Pirralha” como descrição no perfil oficial do Twitter – sinal de que sentiu-se honrada, e não insultada, pela fala tosca de nosso presidente. E eu concordo com ela: foi, de fato, um elogio daqueles. Quase uma medalha, daquelas que a gente ostenta com orgulho nas ocasiões especiais.

Afinal, quando somos governados pelos velhos escrotos e pelos adultos mau-caráter, ser um pirralho ou pirralha é um predicado fabuloso.

A reação raivosa que homens deploráveis como Jair Bolsonaro sentem diante de Greta Thunberg é um misto de antagonismo e admissão de irrelevância. A sueca tem 16 anos e, como é natural para todas as pessoas de sua idade, se permite sonhar com um mundo diferente – algo que provoca pavor em homens poderosos, enrugados e bolorentos que extraem da ausência coletiva de sonhos a sua força. A esperança e o otimismo são esmagados por esses senhores de terno desalinhado porque é desses sentimentos que podem surgir a indignação, a recusa e a vontade de algo diferente – e é tudo isso que Greta Thunberg simboliza, em uma potência mobilizadora que vai muito além das concordâncias ou discordâncias que se possa ter quanto a ela, seus métodos e posições.

É de pirralhas como Greta Thunberg que o mundo está carente. E que ela nos ajude a encontrar a pirralhice perdida dentro de nós, que nos faz resistir diante desse cinismo ponderado e adulto, que insiste em nos dizer que não existe alternativa ao abismo.

Existe, sim, desde que nos recusemos a aderir a esses senhores lamentáveis e suas sufocantes certezas. E que se incomodem bastante, porque o papel de pirralhos e pirralhas é mesmo irritar os mais velhos – e, se eles estão indignados e passando recibo, é sinal claro de que se está tocando no nervo certo.

Foto: Leonhard Lenz / WikiMedia Commons

Cléber Grabauska

O barulho da queda

Geórgia Santos
10 de dezembro de 2019
BELO HORIZONTE / BRASIL (08.12.2019) Cruzeiro x Palmeiras, trigésima oitava rodada do campeonato Brasileiro 2019, no Mineirão, em Belo Horizonte/MG. Foto: Vinnicius Silva/Cruzeiro IMPORTANTE: Imagem destinada a uso institucional e divulgação, seu uso comercial está vetado incondicionalmente por seu autor e o Cruzeiro Esporte Clube. IMPORTANT: image intended for institutional use and distribution. Commercial use is prohibited unconditionally by its author and Cruzeiro Esporte Clube.

A última rodada do Brasileirão não foi emocionante. A única definição importante era para saber quem acompanharia Avaí, Chapecoense e CSA rumo à Série B: Cruzeiro ou Ceará. E coroando uma temporada de inúmeros erros administrativos e uma vertiginosa queda de rendimento, o Cruzeiro caiu.

Não foi o Ceará que se salvou. Não. Foi o Cruzeiro que caiu. Digo isso porque Argel Fucks, mesmo que tenha dito que “missão dada é missão cumprida”, não consegiu fazer o Ceará caminhar com as próprias pernas. Afinal, o Vozão, desde que resolveu tirar o treinador gaúcho do CSA, só conseguiu dois pontos nas três últimas rodadas. Começou empatando com o Athletico em casa. Perdeu para o Corinthians também no Castelão. E na última rodada empatou com o Botafogo no Engenhão. Tá certo que, com o pontinho conquistado na última rodada, de nada adiantava o Cruzeiro vencer no Mineirão. Mas a verdade é que o Ceará deu muita sopa para o azar.

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O problema é que o Cruzeiro foi muito imcompetente. Não só na reta final. Mas ao longo de todo campeonato. Dentro e fora de campo

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A direção cumpriu todo roteiro que nós, gaúchos, havíamos visto o Inter percorrer em 2016. Acusações, desvio de dinheiro, contratações equivocadas, repetidas trocas de treinador e um grupo demsobilizado. Para ser mais parecido com o que fez o Inter na administração Píffero, só faltou contratar o Ariel ou tentar o empréstimo do Paulão.

Esse festival de equívocos manchou a história de um time glorioso que revelou Tostão, Piazza, Dirceu Lopes, Nelinho, Palhinha, Joãozinho e muitos outros craques que nunca disputaram uma segunda divisão. O Cruzeiro sempre foi time de ponta. E agora vai penar uma temporada na Série B, lambendo as suas feridas como tantos outros grandes já fizeram.

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Mas a imagem que fica dessa queda do Cruzeiro, não verdade não é uma imagem. É um som
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Foi triste e constrangedor acompanhar o jogo de domingo após o primeiro gol do Palmeiras marcado por Zé Rafael. Depois que o Cruzeiro sofreu o primeiro gol, boa parte da torcida esqueceu o jogo e partiu para a briga, depredação e violência. O policiamento precisou entrar em ação para evitar algo pior. E o jogo passou a ter uma sonoplastia de tiros, bombas e explosões. Enquanto um desanimado Cruzeiro tentava correr atrás de um milagre, que não veio, sua torcida estava dividida em duas partes. Uma querendo quebrar o estádio.  E outra, atendendo o pedido do sistema de alto-falantes, buscando os portões de saída para salvar a própria pele.

Triste cena de um campeonato que teve muita coisa boa. Mas que terminou sem graça, nem emoção. Só com o barulho da queda de um gigante.

 

Foto: Vinnicius Silva/Cruzeiro

Raquel Grabauska

Mães empreendedoras

Raquel Grabauska
6 de dezembro de 2019

A maternidade é linda. É sim. Mas o que acontece coma gente… Dar conta do filho,  de tomar banho, escovar os dentes e seguir vivendo. E para muitas de nós, uma das angústias que surge é o trabalho.

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Como conciliar o trabalho e a maternidade?

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Pois tem uma iniciativa rolando em Porto Alegre que é de uma lindeza. Uma feira de mães empreendedoras organizada por um grupo de mães incríveis. Daniela Garcia, Andressa Gabriele da Silva e Tanise Matheus. O Clube de Mães foi criado por uma mãe que já não participa mais com o intuito de reunir mulheres com filhos de idades parecidas (era algo bem pequeno). Com o crescimento, essa mãe sentiu a necessidade de chamar as amigas para ajudar a moderar o grupo. Uma delas foi a Daniela Garcia, que depois chamou outras e assim por diante. Hoje, o grupo tomou outra proporção e já  somos mais de 20mil mães de vários lugares – mas a maior parte é da região Sul.

A feira será no Espaço Cuidado Que Mancha, na Rua Damasco, 162, em Porto Alegre.  serve para nos conhecermos pessoalmente e nos reunirmos, além de fomentar os negócios  entre mães! As feiras/eventos do Clube de Mães são sempre um sucesso e, apesar de amarmos a função, nem sempre damos conta de organizar esses eventos com a frequência que gostaríamos!

Igor Natusch

Uma tarde qualquer nos escritórios de George Soros

Igor Natusch
4 de dezembro de 2019

– Em resumo, fomos desmascarados – diz uma figura séria e sisuda, de óculos fundo de garrafa, posicionado na cabeceira da mesa. Enquanto fala, um serviçal enxuga de modo meticuloso os pingos de suor amarelado que surgem na careca e ameaçam escorrer pela testa da figura que preside a reunião.

– Sem essa. Besteira – retruca um dos presentes, homem já idoso mas ainda dotado de farta cabeleira, óculos de sol suaves que ameaçam escorregar pelo amplo narigão.

Os demais presentes, por sua vez, mantêm um preocupado silêncio. Sabem que um encontro daqueles não seria convocado em nome de besteiras. A figura que preside a reunião segue imperturbável. Com um rápido olhar, ordena ao serviçal que abra um notebook colocado a seu lado, de forma que todos os demais na mesa possam ver o que está na tela.

Como a figura na cabeceira da mesa não tem braços, cabe ao serviçal operar o mouse e fazer os comandos necessários. Surge uma página de notícias brasileira. Nela, está a manchete:

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Dante Mantovani, novo presidente da Funarte, diz que ‘rock leva ao aborto e ao satanismo’

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Nenhum dos presentes entende uma palavra em português, de modo que nenhum deles esboça qualquer reação. Com um clique, o serviçal aciona a tradução automática do Google. A manchete surge reescrita, agora em inglês:

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Dante Mantovani, Funarte’s new president, says ‘rock leads to abortion and satanism’

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A compreensão desperta um denso e preocupado silêncio. Durante vários segundos, só se ouve o som monótono do ar condicionado, ligado em modo ventilação. Os presentes trocam olhares, mexem-se desconfortáveis em suas cadeiras.

– O que é Funarte? – pergunta um senhor de cabelo pintado e rosto fino, com barba rala e bigodinho.

– Não importa, Ritchie – responde o homem ao seu lado, um senhor que talvez parecesse respeitável, não fossem os mullets e as roupas coloridas que usava. Parecia alguém vindo às pressas de alguma praia do Havaí. Instantes depois de interromper o amigo, dirige-se ao cabeça da reunião. – Isso… É no Brasil, Theo? Essa pessoa faz parte do governo do Brasil?

– Adorno, George. Me chame de Dr. Adorno – responde ele, seco.

– OK, desculpe – corrige-se George. – Essa pessoa é do governo brasileiro, Dr. Adorno?

A cabeça mumificada de Theodor W. Adorno olha novamente para o serviçal. Este, obediente, ergue a bandeja onde ela está localizada – única parte que resta do corpo do filósofo – e a deposita um pouco à frente. Aparentemente, a luz da tela o estava incomodando.Neste momento, de forma inesperada, a porta da sala abre-se abruptamente. Um senhor de rosto inconfundível surge, esbaforido.

– Desculpem, rapazes – balbucia, com uma voz que parece feita para cantar músicas sobre como o dinheiro não é importante, pois o dinheiro não é capaz de comprar amor. – Tivemos mau tempo e o pouso demorou.

Há apenas uma cadeira vazia, ao lado do idoso cabeludo e de óculos de sol.

– Oi, John – diz o recém-chegado, sentando-se.

– E aí, Paul – responde John Lennon, com um tom irônico na voz.

Após ter certeza que todos estavam de novo concentrados nele, Adorno recomeça a falar.

– Senhores, desde que o governo de Jair Bolsonaro assumiu no Brasil, a posição de nossa grande revolução cultural  global encontra-se em risco. Enquanto era só aquele Olavo de Carvalho falando sobre eu ter escrito as músicas dos Beatles, estava tudo sob controle: nosso uso massivo da indústria cultural impedia que qualquer ideia contrária ao Grande Plano tivesse credibilidade. – Faz uma pausa, como quem estivesse com um pigarro na garganta, embora sua voz fosse produzida por um sintetizador digital. – Mas a coisa tornou-se perigosa para nós. Bolsonaro destruiu todas as barreiras que criamos, e dissemina informações sensíveis via redes sociais.

– Nosso acordo com Mark não era esse – interrompe Paul McCartney, muito interessado.

– Zuckerberg não é confiável. Nunca foi – resmunga George Harrison, em tom taciturno.

– Seja como for – retoma Adorno, aparentemente irritado com a interupção – nosso segredo está sendo revelado para mais e mais pessoas, através de grupos de WhatsApp. E agora este senhor, Dante Mantovani, está no governo. E ele sabe de tudo.

– Ora, vamos, Theo. Ele não pode saber de tudo – diz John Lennon, incrédulo e desaforado.

O notebook está, agora, ao lado da cabeça morta-viva de Theodor Adorno. Fazendo uso de um espelho, trazido pelo serviçal, ele lê trechos da reportagem:

– “Além dos temas mais técnicos da música erudita, Mantovani discute aspectos da cultura relacionados à filosofia. Em um dos vídeos, ele relaciona Adorno, teórico da Escola de Frankfurt, com os Beatles e reforça teorias da conspiração de que havia infiltrados comunistas na CIA, serviço de inteligência americano. ‘A União Soviética levou agentes infiltrados para os Estados Unidos para realizar experimentos com certos discos, realizados inclusive para crianças'”.

O silêncio volta a cair pesado na sala.

– “O rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto, por sua vez, alimenta uma coisa muito mais pesada, que é o satanismo. O próprio John Lennon disse abertamente, mais de uma vez, que ele fez um pacto com o diabo para ter fama e sucesso”.

– Filho da mãe – resmunga Lennon, agora tão preocupado quanto os demais.

– Caiu a casa, então? – a voz de Ringo Starr surge alta, quase como um grito. – O que a gente pode fazer?

– Teremos que fazer alguma coisa – afirma McCartney, com voz fria. – No que você está pensando, Dr. Adorno? Talvez no… – Um momento de hesitação. – Plano Leslo?

– Você está louco – grita George Harrison. – Eu não vou sair da minha aposentadoria agora!

– Talvez seja necessário, George – tenta atalhar Ringo.

– Não venha com essa, Ritchie. Eu estou aposentado, cumpri todas as metas do Grande Plano, não quero mais nada com isso! De mais a mais, como vamos explicar que eu e John estamos vivos até hoje? Já foi uma barra daquelas transformar o Billy em Paul McCartney depois que precisamos…

Interrompeu-se bruscamente. Os olhares de reprovação eram gerais.

– Eu sou Paul McCartney, George – acentua Paul, com um desagrado quase irreconhecível na voz. – Eu sempre fui, e sempre serei Paul McCartney. Billy Shears é só uma teoria de conspiração. Ele nunca existiu. OK?

– OK, me perdoe, Paul. Mas ainda assim, não tem como acionar o Plano Leslo agora. Free As a Bird foi divertida de gravar, mas vimos os riscos já naquela época. Algumas pessoas suspeitaram do papo de “gravações quase perdidas”. É perigoso. Não dá para fazer uma turnê de reunião. Vamos precisar pensar em outra coisa!

– Pois eu acho que seria uma ótima ideia – diz então Lennon, após uma curta risada. – Combater uma teoria maluca de conspiração transformando uma teoria maluca de conspiração em realidade! “Os Beatles estão de volta! John e George nunca morreram! Turnê mundial com participação especial de Theodor W. Adorno nos backing vocals!”

– Exato – acrescenta Adorno. A expressão de seu rosto morto é singular: se ele ainda tivesse um corpo, talvez se pudesse dizer que esfregava as mãos de satisfação. – Vivemos tempos em que o tecido da realidade está rasgado. Para evitar a ruína do Grande Plano, talvez seja hora de abrir mão da realidade de vez. Revelar que dois Beatles estavam vivos esse tempo todo renderá uma atenção midiática inédita na história. Todas as atenções estarão direcionadas para nós. Será um potencializador fantástico para nossa mensagem. O mundo estará cantando she loves you yeah yeah yeah, e as revelações desse Sr. Mantovani serão definitivamente desmoralizadas.

Enquanto Adorno falava, o ânimo dos presentes mudou. Antes preocupados e irritadiços, todos pareciam mais confiantes, convencidos. Mesmo George Harrison sorria de leve.

– Senhores, é a hora dos Fab Four reconquistarem a música pop – a voz digital do filósofo se erguia, em inusitada empolgação para alguém tão austero. – Uma nova beatlemania! Com os atuais recursos de palco, podemos fazer shows de várias horas sem que isso seja cansativo para o público ou para vocês. Posso inclusive entregar algumas músicas novas, lançar um novo single no Spotify, um documentário para o Netflix. E então, temos um acordo?

Um a um, os quatro músicos uniram as mãos. Ringo tinha uma lágrima de emoção escorrendo lentamente pelo rosto.

– Serviçal, faça uma ligação – disse então Adorno, retomando a sisudez, mesmo que ainda sorrisse. – Temos que agendar uma turnê.

Foto: Montagem sobre fotografia de Dante Mantovani (Reprodução) e Theodor Adorno (Reprodução).

Cléber Grabauska

Os gringos colocaram o futebol brasileiro na psiquiatria

Cléber Grabauska
2 de dezembro de 2019

Engana-se quem acha que a derrota de 7 x 1 para a Alemanha na Copa do Mundo de 2014 tenha iniciado um revolução no futebol brasileiro. Nada disso. Na época, existiam duas explicações. A safra era ruim e vergonhosa e goleada era resultado da desorganização da CBF, envolvida em vários escândalos financeiros.

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Técnico estrangeiro? Intercâmbio? Nem pensar. A gente não precisa, dizia-se

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Numa tentativa de moralizar o futebol brasileiro, José Maria Marin, o sucessor de Ricardo Teixeira, trouxe Dunga. A qualidade não melhorou e os resultados continuaram sendo ridículos. E a Seleção seguiu desmoralizada. Correndo risco de não garantir vaga para a Copa do Mundo de 2018, o estudioso e bem prepardo Tite foi chamado em 2016 por Marco Polo Del Nero para salvar a pátria. A resposta do novo treinador foi espetacular. O time cresceu, novos talentos surgiram e o Brasil terminou as eliminatórias sul-americanas em primeiro lugar e com classificação antecipada. Veio a Copa da Rússia e, mesmo que Tite não tenha derrotado nenhuma equipe europeia na fase de preparação, acreditava-se que teríamos chances de sonhar com o título. Afinal, contávamos com a inteligência de Tite e o talento de Neymar. Chegamos somente até às quartas de final. Um “nó tático” aplicado no primeiro tempo pela Bélgica nos tirou do Mundial e reacendeu a discussão sobre o tipo de futebol que praticamos aqui.

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Nesse período que abrange as Copas de 2014 e 2018 culpamos basicamente a CBF pelos erros da nossa seleção e pelo declínio do nosso futebol

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Precisaram chegar, primeiro, o argentino Jorge Sampaoli, e, depois, o português Jorge Jesus para se perceber que é possível fazer um futebol diferente e de muito mais qualidade em relaçao àquele que estávamos habituados e ver no Campeonato Brasileiro. Sim, diferente porque Sampaoli pegou um Santos sem dinheiro e, com um grupo modesto, inclusive perdendo o garoto Rodrygo, deu um padrão de jogo que coloca o Peixe numa valorosa disputa de segundo lugar com o milionário Palmeiras. E diferente também porque Jorge Jesus pegou um supertime que não decolava com Abel Braga e colocou o Flamengo no topo da América do Sul e do Brasil com as conquistas da Libertadores e Brasleirão.

O sucesso do Flamengo de Jesus fez do Palmeiras a sua mais recente vítima. A derrota de 3 x 1 no último domingo e a diferença de onze pontos na tabela fizeram o presidente palmeirense mudar de planos, demitir o técnico Mano Menezes (há apenas três meses no cargo) e também Alexandre Mattos, que estava há cinco anos como diretor de futebol. Pelo dinheiro que investe e que já investiu desde a chegada do patrocínio da Crefisa, o Palmeiras conquistou muito pouco. No ano passado, quando se disse que, após as eliminações na Copa do Brasil e na Libertadores, o título do Brasileiro era obrigação, os palmeirenses não gostaram muito. Talvez, agora, olhando onde o Flamengo chegou, eles reconsiderem isso.

O surpreendente da coletiva do presidente Maurício Galiotte é que ele disse o futebol vive uma transformação e que o Palmeiras precisa adotar um modelo diferente. Que o futebol vive em transformação isso existe há bastante tempo. Quanto ao projeto novo, me parece que o Palmeiras seguirá os passos de Santos e Flamengo e buscará um técnico de fora para alcançar um patamar que nem Felipão, nem Mano conseguiram. Em outras palavras dá para dizer que o Palmeiras entendeu que não é mais o único rico do futebol brasileiro. O Flamengo, com um aporte financeiro crescente, tem um tendência de crescimento e manutenção daquilo que já alcançou. E para superar o time da Gávea, é preciso encontrar alguém que consiga mudar o estilo de jogo que o Verdão vinha apresentando há basante tempo.

Possivelmente, o novo comandante do Palmeiras seja um técnico de fora. Pode ser até mesmo Jorge Sampaoli que não deve ficar no Santos. O fato é que no mercado local, as opções foram reduzidas. Pouca gente se destaca. Pouca gente apresenta um trabalho inovador. Daria para citar Renato Portaluppi, Thiago Nunes, Rogério Ceni e um renascido Vanderlei Luxemburgo. Nem mesmo os outrora elogiados Fernando Diniz e Roger Machado conseguem manter o rótulo de inovadores.

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O Brasileirão de 2019 precisa ser destacado por ser o momento em que o futebol brasileiro deu o braço a torcer e entendeu que o intercâmbio é salutar

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Novas ideias e conceitos fazem muito bem para os nossos times, nossos treinadores e agora também para nossos dirigentes. Quem ainda discordar disso, precisa ser internado para tratamento. O trabalho de Jorge Jesus e Sampaoli colocou o futebol brasileiro contra a parede. Pôs em questionamento o modelo que os consagrados Felipão, Mano e Abel Braga, por exemplo, utilizavam para aqui. O nível subiu. E a cobrança em cima dos nossos técnicos também. O intercâmbio vai crescer e só poderemos dizer que esse ciclo estará completo quando, ao mesmo tempo em que os nossos clubes busquem técnicos de fora, os europeus e argentinos também se interessem pelos técnicos brasileiros.

 

Igor Natusch

Brilhante Ustra sorri no inferno

Igor Natusch
27 de novembro de 2019

Em 2012, eu tive um sonho com Brilhante Ustra. Um pesadelo, melhor dizendo. Embora minha recordação é de que tenha sido um sonho breve, foi algo tão intenso que eu o recordava nitidamente na manhã seguinte, ao ponto de me sentir capaz de registrá-lo. Publiquei um texto sobre ele no meu antigo blog, que hoje está offline.

Era assim:

“Sonhei que estava em uma coletiva de imprensa na qual falaria o Brilhante Ustra. Pelo jeito, ele ia anunciar que estava livre de processos judiciais, comemorar a impunidade garantida a ele pela Lei da Anistia – ao menos, é essa a pauta que eu recordava ter recebido.

A sala era ampla e estava cheia de entusiastas, muitos militares, alguns poucos repórteres. Um deles, conhecido meu de pautas em Assembleias e Câmaras por aí, comentou comigo, em voz baixa:

– Pelo jeito, esse cara se escapou mesmo…

Respondi, em um cochicho, com um tom de ironia:

– Se escapou nada, nem imagina a matéria que eu vou fazer sobre essa palhaçada toda!

Ustra estava com uma expressão radiante, plena de confiança. Sorria. Recebia tapinhas nas costas. No centro da sala, uma imensa bandeira brasileira, de verde vivo e chamativo. Nos cantos do palco (pelo jeito, a coletiva seria em um palco), estranhos arranjos misturando rosas brancas, lírios e metralhadoras.

Eu, sentado a um canto, sinto nojo daquilo tudo.

Começa a tocar o hino nacional. Todos se erguem, em júbilo absoluto, para saudar a pátria mãe. É como a abertura de uma convenção partidária. Eu permaneço sentado, segurando o bloquinho e a caneta.

– O senhor precisa se levantar. É o hino – diz uma pessoa, cujo rosto eu não enxergo.

– Não vou me levantar – respondo eu, em voz branda, mas já prevendo incomodação.

– Levante e saúde o líder – disse outro, mais ríspido, me tocando no ombro.

Repeli sua mão. Outras pessoas começam a se aproximar. Meu colega jornalista (que estava de pé, mas sempre esteve de pé, então não era por adesão a eles que se erguia) tentava debilmente me defender.

– Não vou levantar. Não vou! – continuava eu, já cercado, levando os primeiros empurrões, enquanto o hino tocava mais alto, cada vez mais alto.

Acordo a instantes do linchamento.”

Hoje entendo que esse sonho foi profético. Para mim, nem é questão de acreditar nessas coisas ou não: basta comparar o que me restou de memória com o que vejo hoje, nos jornais impressos e nos sites de notícias, e a certeza é impossível de contornar.

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Lembro do arranjo de balas de grosso calibre que alguém achou por bem fazer para homenagear a Aliança Pelo Brasil, movimento fascista que finge desejar ser um simples partido político
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Lembro dos alucinados marchando e batendo continência para uma réplica da Estátua da Liberdade, em frente a uma loja da Havan. Lembro do parlamentar que transformou uma bandeira brasileira em terno, e de outro que vociferou frases horrendamente racistas em plenário, às vésperas do Dia da Consciência Negra. Lembro do filho do presidente dizendo que, se os opositores não ficassem quietinhos, podia rolar um novo AI-5 – um desaforo que deveria resultar em cassação de mandato, embora eu tenha a triste certeza de que não chegaremos nem perto disso.

Lembro da ideia simplória e estúpida de que basta espalhar colégios militares pelas principais cidades brasileiras para a educação dar um salto de qualidade. Do presidente propondo, aos sorrisos, que militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem tenham carta branca para matar. Do governador do Rio de Janeiro metralhando favelas com helicópteros, comemorando a morte de um sequestrador com grotescos socos no ar. E lembro não só do então deputado federal (e agora presidente) evocando a memória de um torturador desumano para agredir Dilma Rousseff, como do chanceler distribundo o livro abjeto desse ser repugante como se fosse leitura recomendável, de sua viúva tomando chá com Jair Bolsonaro, dos que ostentam camisetas repugnantes defendendo que Ustra ainda vive.

A verdade é que Ustra, mesmo condenado em segunda instância, escapou-se da justa punição pelos horrores que perpetrou. E que, mesmo morto e enterrado, encontrou uma caricatural e grotesca forma de sobrevida.

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Tenho certeza que, a essa altura, Brilhante Ustra sorri no inferno
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É possível tirar o sorriso de escárnio do rosto morto do facínora? Não tenho dúvida de que sim. Mas acordar desse pesadelo passa por uma etapa fundamental – duas, na verdade: preservar a memória do que foi e não permitir que, mais tarde, se esqueça o que hoje está sendo. Se hoje a ideia burra e mentirosa de que “tudo era melhor na ditadura” ganhou força ao ponto de virar um elemento de debate, é porque o lado mais obscurantista do Brasil teve sucesso em manter e, depois, disseminar essa falsidade. Se hoje pessoas se dizem discípulas de alguém como Ustra, é porque há sucesso crescente na estratégia reacionária de reinventar a história. É contra isso que precisamos nos erguer, é isso que não podemos permitir. É assim que podemos nos libertar da idolatria a torturadores e assassinos, arremessar Ustra e outros de sua laia de volta ao abismo do qual jamais deveriam ter saído.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil.