Geórgia Santos

A conversão do homem feminista

Geórgia Santos
29 de janeiro de 2018

Existe algo que se chama lugar de fala, um conceito que acaba com a mediação condescendente. As pessoas passam a ser representantes legítimas da própria luta, como deve ser. No caso do feminismo, o lugar de fala é da mulher. Em um mundo oprimido e espremido pelo machismo, no entanto, é um alento o encontro com um homem feminista. É um alento escutar um homem defendendo o direito de uma mulher a existir com liberdade e dignidade sem associá-la à histeria. 

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O problema é tratar o homem feminista como herói e não como parceiro

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No mês passado, viralizou o vídeo em que o apresentador e humorista John Oliver confronta Dustin Hoffman. O ator foi acusado de ter assediado sexualmente uma estagiária de 17 anos durante as filmagens de A Morte do Caixeiro Viajante, de 1985, e respondeu dizendo que aquele comportamento não reflete “quem ele realmente é”. Ao que Oliver disse: “É um reflexo de quem você era.”

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HOFFMAN: Você acredita nessas coisas que você leu?

OLIVER: Eu acredito no que ela escreveu, sim.

HOFFMAN: Por que?

OLIVER: Porque ela não tem motivo para mentir.

HOFFMAN: Bom, há um motivo para ela não ter falado sobre isso por 40 anos.

OLIVER: Ohhhh, Dustin!

Nesse momento, Oliver esconde o rosto com as mãos

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O Washington Post publicou o vídeo e, em questão de horas, a internet quebrou. Pipocavam incansáveis as mensagens parabenizando Oliver pela coragem de não ignorar algo tão grave. Muitas pessoas passaram a tratar o humorista como um herói feminista. Mas tão rápido quanto sua elevação de status dentro do movimento foi a queda do mito. Quase que instantaneamente alguém lembrou que o britânico tem uma equipe de redatores predominantemente branca e masculina. Mais do que isso, há o caso de 2010, em que Irin Carmon escreveu uma crítica feminista ao The Daily Showdizendo que as mulheres que trabalhavam no programa consideravam o ambiente hostil. Na época, Oliver diminuiu a crítica reduzindo a reclamação das mulheres a boatos, o famoso “é a minha palavra contra a delas.”

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A situação de Oliver mostra, em um episódio, dois problemas fundamentais de quando tratamos de homens e feminismo na mesma sentença

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De um lado, há o impulso de tratar como heróis os homens que se posicionam ao lado das mulheres; de outro, há a necessidade de isolar homens que deslizaram no passado. Quando falo em deslizes, falo de posicionamentos impregnados pela cultura do macho, não de atos criminosos.

O tratamento do herói é equivocado porque homens feministas são nossos aliados, nossos parceiros. Se a luta é por direitos iguais, tudo o que não queremos é a figura do príncipe encantado ao resgate. Isso não significa que o comportamento não mereça atenção ou cumprimentos. Merece. Mas homens em pedestal já temos o suficiente. Por outro lado, diminuir a importância da atitude de Oliver porque ele foi tosco há sete anos é tiro no pé. Porque partimos do princípio que os homens não são capazes de evoluir e, se o fizerem, nós não vamos aceitar.

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Ora, se a ideia é que a sociedade se torne menos machista, como é possível que isso aconteça sem “homens convertidos”?

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Além do mais, nós precisamos de todas as vozes que pudermos ter. Voltando ao exemplo de John Oliver, se uma mulher tivesse tentado confrontar Dustin Hoffman sobre o mesmo assunto, teria sido chamada de esquerdopata, feminazi, grosseira, difícil, histérica. Seria falta de profissionalismo, seria vitimismo, seria deselegante, seria mimimi. É claro que ele foi moldado dentro de um sistema machista em que homens são privilegiados. Ele compartilha das falhas desse sistema e reproduz padrões desse sistema, como o fez em 2010. Mas esse sistema não vai ser vencido sem que alguns dos homens desse mesmo sistema se revoltem e se deixem transformar.

Dizer o óbvio não deveria ser um ato de coragem, e sim a norma Mas enquanto não acontece, fico feliz de termos alguém como John Oliver ao nosso lado. Nós precisamos de homens que estejam dispostos a romper a zona de conforto dos espaços masculinos, que ajam publicamente para acabar com o assédio e o machismo normalizados em nossa cultura.

Geórgia Santos

Touro Ferdinando pode salvar a humanidade

Geórgia Santos
22 de janeiro de 2018
Fomos assistir ao novo filme do Touro Ferdinando na semana passada. Fomos em família. Cléber, os sobrinhos Tom e Benjamin e eu. O clima era de sangue doce e diversão, com os pequenos pedindo chocolate antes de o filme começar e os tios cedendo, estragando as crianças como deve ser. Eu estava empolgada, sempre gostei daquele bovino com grandes cílios e cara querida, que parava para cheirar as flores e se recusava a seguir a natureza taurina da boa briga.
Ferdinando é um touro gigante que vive na Espanha e, diferente de todos os outros de sua espécie, não tem o desejo de participar de touradas. Prefere viver em paz com a natureza, feliz em meio às flores.
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Não se trata de medo, ele simplesmente não entende o apelo da briga, não compreende a razão pela qual deva bater cabeça com outros touros e toureiros. Sem motivo algum 

 

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A história foi escrita em 1936 pelo autor americano Munro Leaf a pedido do ilustrador Robert Lawson. Em 1938, a Disney adaptou o romance para o curta Ferdinand the Bull, que rendeu o Oscar aos estúdios e doces lembranças a quem assistiu.
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O filme novo é diferente. Ferdinando é maior, mais imponente. Já não pisca com longos cílios. Mas é uma superprodução, obviamente mais elaborada do que o curta de 80 anos atrás pelas facilidades tecnológicas do século 21. Além de ser muito divertido. Eu tive ataques de riso com os ouriços dançando macarena e os cavalos alemães trotando provocadores, efeminados e malvados. Mas quando a sessão terminou, não foi isso que ficou comigo. Eu só conseguia pensar em um diálogo específico que Ferdinando trava com a cabra Lupe. É mais ou menos assim:
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Ferdinando: Eles todos me odeiam

Lupe: É, eles TE odeiam, ME odeiam, SE odeiam. É muito ódio. Esmaga sua alma se você se permite pensar sobre o assunto. 

E não é que esmaga, mesmo

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Desde que saí do cinema, não paro de pensar sobre quão melhor seria o mundo se a gente simplesmente deixasse de odiar. É tanto ódio por nada. Ódio por futebol, ódio por partido político, ódio pela cor da pele, ódio pelo gênero, ódio por quem troca de gênero, ódio pela roupa, ódio pelo lugar em que vive, ódio pelo lugar em que os outros vivem. É muito ódio. Esmaga sua alma se você se permite pensar sobre o assunto.
Dói pensar que a nossa sociedade foi construída sobre um alicerce tão virulento, de intolerância e violência. E a história de Ferdinando é prova disso. Não me refiro ao enredo do romance, mas à história da publicação. No período em que o livro foi lançado, aliados do ditador espanhol Francisco Franco classificaram a obra como pacifista. Veja bem, não era um elogio, era um crime. Tanto que  o livro foi proibido em muito países cujos regimes eram fascistas. Também por isso, a história de Ferdinando foi classificada como propaganda esquerdista.
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É tão irônico quanto trágico. Uma história que promove a paz é motivo para guerra. E olha que estamos falando de um tempo em que não havia redes sociais

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Mas ignoremos a política e tratemos de bom senso. O Touro Ferdinando pode salvar a humanidade. Se a humanidade quiser. O manual já está escrito, basta sentar no meio da arena e cheirar as flores em vez de empunhar a espada e fazer sangrar.
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*O Touro Ferdinando é um filme da Blue Sky Studios dirigido por Carlos Saldanha, o diretor de “Rio”. É inspirado no livro “A História de Ferdinando”, de Munro Leaf e Robert Lawson.
Geórgia Santos

Oprah e a luz no fim do túnel

Geórgia Santos
8 de janeiro de 2018
75th ANNUAL GOLDEN GLOBE AWARDS -- Pictured: Oprah Winfrey, Winner, Cecil B. Demille Award at the 75th Annual Golden Globe Awards held at the Beverly Hilton Hotel on January 7, 2018 -- (Photo by: Paul Drinkwater/NBC)

Ontem, o Globo de Ouro foi mais do que entretenimento. Muito mais. E especialmente ontem. No tradicionalmente glamoroso tapete vermelho, todos usavam preto e ninguém se atrevia a perguntar a procedência da roupa, apenas o motivo. No tradicionalmente fútil tapete vermelho, todos usavam preto como forma de protesto contra os casos de assédio e abuso sexual da indústria cinematográfica. No tradicionalmente colorido tapete vermelho, todos usavam preto para declarar que acabou o tempo (#TIMESUP) em que as mulheres se calavam diante da injustiça.

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E Oprah Winfrey personificou, imaculada, cada gesto dessa luta

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Agraciada com o prêmio Cecil B. DeMille, a apresentadora (e mil coisas mais) e primeira mulher negra a receber a homenagem usou o palco para falar de injustiça, desigualdade e do movimento #MeToo. Ela usou o microfone para amplificar a reivindicação de dignidade em um dos discursos mais impactantes dos últimos tempos. Falou sobre protagonismo negro, empoderamento feminino e liberdade de imprensa.

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Se há homens poderosos que tentam objetificar a mulher em cada gesto e fala, há Oprahs para lembrar que somos humanas e fortes

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Leia o discurso de Oprah Winfrey na íntegra:

 

“Em 1964, eu era uma menina sentada no chão de linóleo da casa da minha mãe, em Milwaukee, assistindo Anne Brancoft apresentar o Oscar de melhor ator, na 36ª edição do prêmio. Ela abriu o envelope e disse cinco palavras que, literalmente, fizeram história: “O vencedor é Sidney Poitier”. O homem mais elegante que eu já havia visto subiu ao palco. Eu lembro que sua gravata era branca e sua pele era negra, e eu jamais havia visto um homem negro ser celebrado daquela forma. Eu tentei explicar, muitas e muitas vezes, o que um momento daqueles representa para uma menina, uma criança que assiste à mãe passar pela porta morta de cansaço de tanto limpar as casas de outras pessoas.

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Mas tudo o que eu posso fazer é citar as palavras de Sidney em Uma Voz nas Sombras (Lilies of the Field), “Amem, amem. Amem, amem.”

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Em 1982, Sidney recebeu, aqui no Globo de Ouro, o prêmio Cecil B. De Mille. E eu não esqueci que neste momento há muitas garotinhas assistindo enquanto eu me torno a primeira mulher negra a receber esse mesmo prêmio. É uma honra. É uma honra e é um privilégio compartilhar essa noite com todas elas e também com os homens e mulheres incríveis que me inspiraram, desafiaram, apoiaram e tornaram minha jornada até este palco possível. Dennis Swanson, que apostou em mim para o talk-show “A.M. Chicago”. Quincy Jones, que me viu no programa e disse a Steven Spielberg, “ela é Sophia em A Cor Púrpura”. Gayle, que tem sido a definição do que é uma amiga, e Stedman, que tem sido minha rocha. Apenas alguns para nomear.

Eu quero agradecer à Imprensa Internacional de Hollywood, porque nós todos sabemos que a imprensa está sob cerco fechado ultimamente. Mas nós também sabemos que é a insaciável dedicação para descobrir a verdade que nos impede de fazer vista grossa para a corrupção e a injustiça. A tiranos e vítimas, e segredos e mentiras. Eu quero dizer que eu valorizo a imprensa mais que nunca ao passo em que tentamos navegar por esses tempos complicados. O que me traz à isso.

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O que eu sei, com certeza, é que falar a nossa verdade é a ferramenta mais poderosa que todos nós temos

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Eu estou especialmente orgulhosa e inspirada por todas as mulheres que se sentiram fortes o suficiente e empoderadas o suficiente para falar e compartilhar suas histórias. Cada um de nós nesta sala é celebrado por causa das histórias que contamos, e neste ano nós nos tornamos a história.

Mas não é apenas a história que afeta a indústria do entretenimento. É uma que transcende qualquer cultura, geografia, raça, religião, política ou ambiente de trabalho. Por isso eu quero, nesta noite, expressar minha gratidão a todas as mulheres que suportaram anos de abuso e assédio porque elas, assim como minha mãe, tem filhos para alimentar e contas para pagar e sonhos para perseguir. Elas são as mulheres cujos nomes nós jamais saberemos. Elas são as trabalhadoras domésticas e agricultoras. Elas estão trabalhando em fábricas e restaurantes e elas estão na academia, na engenharia, medicina e ciência. Elas são parte do mundo da tecnologia e da política e dos negócios. Elas são nossas atletas na Olimpíadas e são nossas militares. E há mais alguém. Recy Taylor, um nome que eu sei e acho que você deveria saber também.

Em 1944, Recy Taylor era uma jovem esposa e mãe. Ela estava voltando para casa após celebração na igreja que frequentava em Abbeville, Alabama, quando foi sequestrada por seis homens brancos armados, estuprada e deixada no acostamento de uma estrada com uma venda nos olhos. Indo para casa, depois da igreja. Eles ameaçaram matá-la caso contasse a alguém, mas a história foi reportada a NAACP (Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor), onde uma jovem trabalhadora que respondia pelo nome de Rosa Parks se tornou a investigadora principal do seu caso e, juntas, elas buscaram justiça.

Os homens que tentaram destruí-la jamais foram processados. Recy Taylor morreu dez dias atrás, a poucos dias do seu aniversário de 98 anos. Ela viveu como todos nós temos vivido, anos demais em uma cultura destruída por homens poderosos e brutais.

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Por tempo demais, mulheres não tem sido ouvidas ou acreditadas quando ousam falar a verdade ao poder desses homens. Mas o tempo deles acabou. O tempo deles acabou

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E eu apenas espero, eu apenas espero que Recy Taylor tenha morrido sabendo que a sua verdade, assim com a verdade de tantas outras mulheres atormentadas naqueles anos, e que ainda são atormentadas, segue marchando.

Estava em algum lugar no coração de Rosa Parks, quase onze anos depois, quando ela tomou a decisão de permanecer sentada naquele ônibus em Montgomery, e está aqui com cada mulher que escolhe dizer “Eu também” (Metoo). E com cada homem, cada homem que escolhe escutar.

Na minha carreira, o que eu sempre tentei fazer de melhor , seja na televisão ou em filmes, é falar algo sobre a maneira como homens e mulheres realmente se comportam. Falar sobre como nós experienciamos a vergonha, como nós amamos e como nos enfurecemos, como nós falhamos, como nos retiramos, perseveramos e como superamos.

Eu entrevistei e retratei pessoas que resistiram a algumas das coisas mais terríveis que a vida pode oferecer, mas a qualidade que todos parecem compartilhar é a habilidade de manter a esperança de uma manhã mais clara, mesmo durante as noites mais sombrias.

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Por isso eu quero que todas as meninas que estão assistindo aqui, agora, saibam que um novo dia está no horizonte!

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E quando esse novo dia finalmente amanhecer, será por causa de muitas mulheres magníficas, muitas das quais estão aqui nesta sala esta noite, e alguns homens fenomenais, que estão lutando muito para garantir que se tornem os líderes que vão nos levar a um tempo em que ninguém mais precise dizer “Eu Também”.”

 

Foto: Divulgação. Paul Drinkwater / NBCPAUL DRINKWATER/NBC

Geórgia Santos

Um ano novo de uva

Geórgia Santos
1 de janeiro de 2018

Quando alguém começa a contagem regressiva e a mãe puxa aquela música cafona do “Adeus ano velho”, eu olho pra baixo e vejo, escorrendo pelo meu corpo, 365 dias de energias pesadas que frequentaram os mesmos lugares que eu e viram as mesmas pessoas e coisas que eu vi. Aos meus pés, uma poça daquele líquido imaginário, ácido e ao mesmo tempo extremamente amargo, corre em direção a um bueiro, espero eu, distante.

Finalmente, à meia noite, olho para cima. E o que acontece a partir daí é quase sobrenatural. Meu sorriso fica distendido, sorvo um ansioso gole de espumante e, em um colapso, não controlo o choro que vem de uma vereda familiar.

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É o universo que, em um rompante de generosidade, não somente permite que eu continue existindo como me oferece a oportunidade de viver mais doce, em um ano mais doce

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E assim, bem assim, os abraços e beijos trocados transformam-se em prova irrefutável de que tudo vai ficar bem. E vale qualquer disparate para a acidez que a falta de otimismo possa anunciar. Escolhe-se cuidadosamente a cor da roupa íntima, da roupa, das fitas, não se come galinha porque o bicho anda para trás, lentilha dá dinheiro, e por aí vai. Há quem pule ondas do mar ou use folhas de louro na carteira para dar sorte. Outros comem três grãos de uva. Ou sete. Essa é a minha preferida. A uva. Como três. Como sete. Bebo espumante. Bebo vinho. Ai, a uva. Docinha.

Acho que é uma daquelas coisas que nos levam à melhor lembrança da melhor idade. Quando eu era criança, o melhor de tudo traduzia-se em uva. Eu só comia uva e sorvete de uva, ou picolé de uva. Bebia suco de uva, Fanta uva – e beberia vinho se não fosse a pouca idade. Preferia as roupas roxas e nas festinhas de aniversário, só queria os balões cor-de-uva. Uvada, torta de uva, vinho doce, chiclete de uva.

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Ai, mas o sorvete

“Sorvete de uva, sorvete de uva, sorvete de uva”

É quase uma oração

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Na minha concepção, o que havia de melhor no mundo só poderia ter vindo de uma parreira. E o melhor melhor do mundo era o produto da parreira congelado e cremoso.

Desejo, então, do fundo da minha infância, um ano novo de uva. Ou de sorvete de uva. Desejo que peguem uma colher e façam uma bolinha. Pode ser no copinho ou casquinha. Vale até pingar na roupa. Só não deixem derreter. Aproveitem o sabor do universo e tenham um 2018 mais doce.

Geórgia Santos

Somos todos uns tiriricas

Geórgia Santos
18 de dezembro de 2017

Tiririca (PR-SP) resolveu se aposentar. Na última quarta-feira, ele usou o primeiro e último discurso na Câmara para anunciar que abandonaria a vida pública. O deputado federal disse estar com vergonha da política brasileira e decepcionado com os colegas. Pediu para que os parlamentares olhem pelo país.

“Eu jamais vou falar mal de vocês em qualquer canto que eu chegar e não vou falar tudo o que eu vi, tudo o que eu vivi aqui, mas eu seria hipócrita se saísse daqui e não falasse realmente que estou decepcionado com a politica brasileira, decepcionado com muitos de vocês. Eu ando de cabeça erguida porque não fiz nada de errado, mas acho que muitos dos senhores não têm essa coragem”, disse.

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E assim, de repente, Tiririca estava sendo ovacionado em redes sociais. Aplaudido por direita e esquerda. Representante da frustração do cidadão brasileiro

Uma palhaçada

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O decepcionado Tiririca votou pelo impeachment de Dilma, foi conivente com o atual governo. O frustrado Tiririca usou verba pública para viajar às cidades em que se apresentaria como humorista. Aliás, comprou passagens para ele e seus assessores. Além disso, não contribuiu com nenhum debate significativo e não alterou em nada a realidade do país. Sequer tentou. E agora é aplaudido porque tem vergonha?

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Ele adere ao sistema, não faz nada para mudar, piora o problema e ainda se faz de vítima

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Pior do que tá não fica? Qualquer semelhança com o espelho não é mera coincidência. A triste verdade é que nós somos todos uns tiriricas.

 

 

 

Foto: Vinícius Loures/Câmara dos Deputados

 

Geórgia Santos

Grêmio x Lanus – NÓS jogamos hoje

Geórgia Santos
29 de novembro de 2017

Eduardo Galeano, em Futebol – Ao sol e à sombra, diz que é raro o torcedor que afirma “Meu time joga hoje”. Ele está certo. A um esporte coletivo, não cabe a possessão ou a singularidade. Incumbe, em vez, o pertencimento da primeira pessoa do plural. NÓS jogamos hoje.

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E NÓS, Grêmio, jogamos hoje

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Enquanto aguardo com certa ansiedade e estômago inquieto este 29 de novembro passar, refaço em minha memória a linha do tempo que me avaliza como jogadora número 12. O que vejo não é o primeiro jogo no Olímpico ou na Arena ou a primeira camisa que ganhei. Tampouco o momento em que me dei conta que era gremista, pois sempre fez parte da minha natureza. Não penso nos choros e soluços, nos gritos e desabafos. Nos desaforos e desafogos. Não lembro de quando ganhei autógrafo do time todo em 95; mesmo dia em que o Dinho me fez chorar com sua cara feia, para diversão do meu pai. Não repasso os adesivos enfeitando os cadernos na adolescência em que os títulos desapareceram.

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O que vejo é o banquinho da vó Julia quebrando

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Eu tinha sete anos em 1995 e vivia em Paraí, minha cidade natal. Entretanto, por algum motivo do qual não lembro, viajamos a Porto Alegre naquele 30 de agosto. Meus pais e eu estávamos hospedados na casa da vó Julia e da tia Marta, que tinha uma televisão grande na sala – sala que ficou pequena graças à nossa ocupação. Tralhas à parte, cada um acomodou-se como foi possível. Ao meu pai coube o banquinho branco, baixinho e de pernas frágeis.

O Grêmio entrou no Estádio Atanasio Girardot, em Medellín, com uma grande vantagem de 3 a 1 conquistada no primeiro jogo. Mas futebol é futebol. É aquele ritual imprevisível e estressante, em que as funções naturais do nosso corpo se descompensam tanto quanto as de quem está entre as quatro linhas. E o Atlético Nacional marcou aos 12 minutos de partida. Gol de Aristizábal. Nunca esqueci desse nome.

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Eu já estava fardada, como os outros jogadores, mas ali naquele momento, era como se Felipão tivesse escalado a mim para resolver o jogo, e não Alexandre

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Passei resto do jogo em pé, secando as mãozinhas suadas naquele uniforme com o patrocínio da Renner. Andando de um lado para o outro, como se o time dependesse da minha energia, da minha vitalidade. Eu fazia parte daquele time, eu era o Grêmio. “Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.” Eu estava sendo abonada pelas palavras que Galeano nem sabia que escreveria.

Pouco antes do final, aquele Alexandre que era eu sofreu um pênalti. Dinho cobrou e marcou. A América era NOSSA. O árbitro apitou o final da partida e eu pulei no colo do meu pai, que permaneceu sentado no banquinho da vó Julia. Mas era Grêmio demais e o banquinho não aguentou. O pai e eu nos espatifamos no chão, em cima de uma mesinha de centro. A casa quase implodiu de alegria com as gargalhadas da mãe. NÓS tínhamos vencido.

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Futebol, meu povo, não é futilidade. É memória, é afeto, é parceria. É diversidade. É comunidade

E NÓS jogamos hoje

 

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Foto: Revista da CONMEBOL

Geórgia Santos

Racismo é coisa de branco 

Geórgia Santos
14 de novembro de 2017

Em um vídeo que vazou na semana passada, o jornalista William Waack condenou determinado comportamento como “coisa de preto”, se referindo à toda a comunidade negra com um desprezo que se nota também em seus olhos, na expressão corporal. Ele foi afastado de suas funções pela Rede Globo e o episódio provocou, em um primeiro momento, a esperada e adequada indignação. Mas os defensores não demoraram a aparecer, alegando que era uma frase fora de contexto, que foi um comentário inocente fora do ar, que ele é o melhor jornalista do mundo – como se isso fosse relevante diante de um caso como esse. Ouviu-se, inclusive, que ele estava sendo perseguidos por abjetos da patrulha do politicamente correto. Que era coisa de esquerdopata. Enfim, que não era racismo.

Acontece que a frase não é aleatória e, assim como as defesas, revela muito sobre a forma como nossa sociedade é construída.

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O que William Waack disse não é deslize, é racismo

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É o mais cristalino reflexo de uma estrutura elitista e branca que invisibiliza os negros como ruídos de segunda categoria. O que William Waack disse também não é piada. É o que pensam aqueles que acreditam estar na Casa Grande, acima daqueles que consideram estorvos se não estão a seu serviço.

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E defender o que William Waack disse não é solidariedade, é dissimular o fato de que os brancos são o problema

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A onipresença do racismo

Eu nasci em uma cidade colonizada por italianos no interior do Rio Grande do Sul. Sou branca, assim como 99,9% da população de Paraí. Ouvi que algo era “coisa de preto” ainda quando criança. Não entendi o sentido, mesmo assim, em algum momento, reproduzi a frase em casa. Imediatamente meus pais conversaram comigo sobre o problema do preconceito, lembrando inclusive que tenho dois primos negros. E somente no momento daquela conversa percebi o que aquilo realmente significava. Mas não parou por aí, a cantilena se renova com o passar dos anos, frequentemente resumida a um “nigri, pó”. Uma expressão que simplesmente explica um erro com a palavra “negro” em italiano. E eu continuei testemunhando coisas do tipo em Porto Alegre, na faculdade, no trabalho, fora do Rio Grande do Sul, no exterior.

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Sempre contado como piada, como algo engraçado

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Isso mostra, mesmo que superficialmente, que as palavras de Waack não foram aleatórias. São parte de uma estrutura muito maior que, historicamente, oprime os negros no Brasil. Como disse Juremir Machado da Silva de maneira brilhante no espaço que ocupa no Correio do Povo, “o imaginário de William Waack vazou”. E com ele vazou o imaginário do branco brasileiro. Afinal de contas, o racismo também se encontra no silêncio. Paulo Sotero, interlocutor de William Waack no momento do comentário, foi cúmplice. Riu. Ajudou a perpetuar um estereótipo vil.

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E essa engrenagem cruel não vai parar a menos que cada um de nós reconheça o seu papel nessa estrutura pérfida e assuma que racismo é coisa de branco 

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Com esse episódio, revisitei minha história apenas para concluir, dolorosamente, que eu faço parte dessa estrutura e que já me beneficiei dela inúmeras vezes. Não mais. Já passou da hora de o brasileiro admitir a existência do racismo e a sordidez da origem desse preconceito – assim como já passou da hora de fazer alguma coisa para mudar essa realidade. Afinal, não são os brancos desconfortáveis com o flagra que precisam ser respeitados.

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O Justificando convidou a mestre em Filosofia Djamila Ribeiro para falar sobre o caso de William Waack. A autora do livro “O Que é Lugar de Fala” alerta para a importância de se refletir de maneira crítica sobre o racismo estrutural no Brasil, especialmente os brancos. Ela ressalta que é fundamental compreender que o “racismo é um sistema de opressão que nega direitos à população negra”.

 

Geórgia Santos

18 homens decidiram por 105 milhões de mulheres

Geórgia Santos
9 de novembro de 2017

Comissão especial da Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta-feira (07), o texto da PEC 181/2015, que proíbe o aborto em qualquer circunstância. O texto impede a interrupção da gravidez inclusive em casos de estupro ou risco de morte para a mãe, duas situações previstas na legislação brasileira. O grupo era formado por 18 homens e apenas uma mulher, que deu o único voto contrário.

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18 homens decidiram sozinhos o que 105 milhões de mulheres devem fazer com seus corpos

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A sessão durou quase quatro horas, mas tinha seu destino traçado como a crônica de uma morte anunciada. A comissão especial era formada por 28 deputados. Destes, 21 homens e três mulheres eram publicamente contrários à legalização do aborto antes mesmo de começarem os trabalhos do grupo. Como se não bastasse, todos os especialistas ouvidos pelos deputados (em somente três audiências públicas) também eram contrários à descriminalização da prática.

Com essa pequena amostra, percebe-se que vivemos em uma democracia em que 513 deputados são eleitos para representar os 203,2 milhões de brasileiros, mas sofremos de dois sérios problemas de legitimidade.

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PROBLEMA 1

Apesar de a maioria da população ser formada por mulheres (51,6%), segundo o IBGE, nós ocupamos apenas 10% das cadeiras da Câmara dos Deputados. Isso significa que nós não temos a devida representação quando se trata de discutir qualquer tema que tenha relação com nossa existência feminina. E mesmo nos espaços em que esse percentual pode ser aumentado, como em comissões especiais, não há nenhum movimento de correção. E esse caso é exemplo de cartilha.

PROBLEMA 2

A religião passa a ditar as regras em um Estado laico. A decisão de proibir o aborto em casos de violência sexual não está baseada em conhecimento científico ou debates de ordem ética e moral, todos bem-vindos. Ela está centrada única e exclusivamente em uma crença religiosa, neste caso, majoritariamente evangélica.

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Vemos a reprodução de centenários e hipócritas padrões coloniais, em que o aborto clandestino serve para esconder deslizes dos senhores mas é um pecado diante do seu Deus

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Cavalo de Tróia

A PEC 181/2011 tem sido chamada de Cavalo de Troia porque, originalmente, o texto de autoria do senador Aécio Neves (PSDB-MG) tratava apenas da ampliação de direitos trabalhistas, como o aumento da licença-maternidade para mulheres com filhos prematuros. Mas em uma manobra digna dos gregos, a bancada religiosa da Câmara assumiu o protagonismo da discussão quando pressionou o presidente da casa, Rodrigo Maia, a instalar uma comissão para discutir a interrupção da gravidez. Isso logo após o Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizar o aborto no primeiro trimestre, algo que irritou profundamente as alas mais conservadoras do Congresso.

Assim, o deputado Tadeu Mudalen (DEM-SP) aproveitou o momento para incluir a expressão “desde a concepção” em dois artigos da Constituição. Ou seja, ele estabelece que o princípio da dignidade da pessoa humana e garantia de inviolabilidade do direito à vida devem ser respeitados “desde a concepção”, no momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozoide. Em entrevista à Rede Globo, o parlamentar não fez questão de dissimular e foi bastante claro quanto à intenção. “Essas duas palavras que colocamos é pra garantir a vida e porque somos contra o aborto”, explicou.

Com a alteração, os artigos 1º e 5º ficam com a seguinte redação:

Portanto, na prática, a interrupção da gravidez fica inviabilizada sob qualquer circunstância.

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Retirada de direitos

O que aconteceu ontem no Congresso não está em dissonância com o atual momento pelo qual o Brasil passa. É um reflexo quase óbvio do momento de intolerância pelo qual passamos. E não estou me referindo ao fato de haver parlamentares contra o aborto ou contra a legalização da prática – que são coisas diferentes, diga-se de passagem. O reflexo da intolerância é a falta de debate sério, a escassez de discussões produtivas, embasadas, intelectualmente honestas. O reflexo da intolerância é tratar o fanatismo como fato científico e base legislativa.

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E o resultado dessa mixórdia de religião, machismo e desonestidade é a retirada de direitos conquistados há mais de 70 anos

O Código Penal brasileiro garante o aborto em caso de violência sexual ou risco à saúde da mãe desde 1940

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Esse tipo de movimento legislativo torna-se, portanto, um retrocesso literal; temporal e simbólico. Em que as mulheres sequer tem o direito à voz para que possam decidir sobre seu futuro e seu próprio corpo justamente em um momento em que os números sobre o aborto no Brasil são alarmantes.

Estima-se que uma em cada cinco mulheres já fez pelo menos um aborto antes dos 40 anos. Os números são da Pesquisa Nacional do Aborto, do Instituto Anis. Com isso, são realizados mais de um milhão de procedimentos ilegais e, em geral, inseguros por ano no Brasil. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma mulher morre a cada dois dias por complicações decorrentes do aborto ilegal.

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Aborto é uma questão de saúde pública

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Não me revolto com o resultado em si, afinal, tenho consciência de que nem todas as mulheres concordam com minhas opiniões e elas também precisam ser representadas. Eu inclusive não me revoltaria com a aprovação dessa PEC se ela tivesse sido discutida à exaustão, se tivesse havido equilíbrio de opiniões na comissão, se especialistas de ambos os lados tivessem sido ouvidos e, principalmente, se as mulheres tivessem decidido. Mas nada disso aconteceu. Então eu me revolto com o que nos foi negado.

E os 18 homens que negaram voz a 105 milhões de mulheres são estes:

Gilberto Nascimento (PSC-SP)
Leonardo Quintão (PMDB-MG)
Givaldo Carimbão (PHS-AL)
Mauro Pereira (PMDB-RS)
Alan Rick (DEM-AC)
Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ)
Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP)
Marcos Soares (DEM-RJ)
Pastor Eurico (PHS-PE)
Antônio Jácome (PODE-RN)
João Campos (PRB-GO)
Paulo Freire (PR-SP)
Jefferson Campos (PSD-SP)
Joaquim Passarinho (PSD-PA)
Eros Biondini (PROS-MG)
Flavinho (PSB-SP)
Evandro Gussi (PV-SP)
Diego Garcia (PHS-PR)

E deputada Érika Kokay (PT-DF), única mulher da votação, votou contra. Agora, a Proposta de Emenda Constitucional segue para o plenário da casa e deve ser apreciada em dois turnos. Ainda há tempo de reverter e ampliar o debate. Infelizmente, ainda seremos apenas 10% das vozes da Câmara. Ainda assim, serão homens a decidir nosso destino.

Geórgia Santos

Em nome do povo brasileiro, não

Geórgia Santos
26 de outubro de 2017

A Câmara dos Deputados rejeitou, na noite passada (25), a segunda denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer (PMDB). Desta vez, o presidente foi acusado de corrupção, organização criminosa e obstrução da justiça. Foram 251 votos a favor do relatório da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que recomendava o arquivamento da denúncia. Outros 233 votaram pelo prosseguimento das investigações, dois se abstiveram e 25 não compareceram.

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Os indícios contra Temer são mais do que robustos, especialmente após gravação em que o atual presidente negocia subornos com o dono da JBS, Joesley Batista

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Mas gravação nenhuma foi suficiente para abalar o poder de Michel Temer, que apesar de ter perdido parte do apoio, segue firme no Palácio do Planalto. Essa força surpreende inclusive a imprensa internacional. O jornal britânico The Guardian publicou, na semana passada, uma reportagem em que questiona os motivos que fazem com que ele permaneça presidente. Afinal, mesmo com sinais de recuperação econômica, o custo social das reformas é bastante alto – sem falar na portaria do trabalho escravo.

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Em nome do povo brasileiro, não

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Às vésperas da votação, o governo federal liberou o dobro de emendas em comparação com os meses anteriores. Como se não bastasse, o deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), um dos homens da tropa de choque de Temer, foi flagrado com uma planilha intitulada “Propostas do Ministério da Agricultura” em que constam os campos “município”, “órgão”, “objeto” e “valor”. O parlamentar analisava a planilha, com uma caneta na mão, ao mesmo tempo em que conferia as presenças no painel de votação. Enquanto há suspeitas de que o repasse esteja associado à votação, Perondi garantiu ao portal GaúchaZH que eram demandas de prefeitos. O modus operandi, porém, não é novidade. Na ocasião da votação da primeira denúncia, o Planalto liberou mais de R$ 1 bilhão.

O que impressiona é a distância entre o a realidade e o discurso dos deputados. Mesmo que 97% da população desaprove o governo Temer, os parlamentares insistem em dizer que votam em nome do povo brasileiro. Abaixo, veja algumas das justificativas dos deputados que votaram a favor do presidente:

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“O presidente precisa responder à justiça, mas não agora”

(Domingos Sávio, PSDB-MG)

“Para que o país volte a ter paz”

(Heráclito Fortes, PSB-PI)

“Deixem o homem trabalhar”

(Wladimir Costa, SD-PA)

“Voto pela retomada econômica”

(João Carlos Bacelar, PR-BA)

“A favor do Brasil que dá certo”

(Alceu Moreira, PMDB-RS)

“Quadrilha organizada é do PT e os puxadinhos dali, voto sim”

(Laerte Bessa, PR-DF)

“Essa denúncia é frágil, inapta, pior do que a primeira. Voto com consciência de que o direito tem que ser preservado”

(Celso Russomano, PRB-SP)

“Perguntei aos meus seguidores quem eles gostariam que investigasse Temer, o Supremo Tribunal Federal ou o juiz Sérgio Moro. Pediram Moro. E pra o juiz Sérgio Moro julgá-lo, só em primeiro de janeiro de 2019”

(Marco Feliciano, PSC-SP)

“Quem quebrou o país foi o PT, e o Temer esta tentando recuperá-lo”

(Renato Molling, PP-RS)

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Mas não, não foi em nome do povo brasileiro, foi em nome de um projeto de governo que se solidifica com o arquivamento da denúncia. Além de estabilizar a relação do Planalto com a base, mesmo que ela precise ser alimentada com frequencia. E enquanto Temer alimenta os aliados, a falta de confiança do povo alimenta a gana por soluções autoritárias – algo que pode trazer graves consequências no próximo ano.

Foto: Beto Barata/PR

Geórgia Santos

Não quero viver dentro dos meus livros de História

Geórgia Santos
16 de outubro de 2017

Cansei de ouvir pessoas que queriam “ter vivido nos tempos da Ditadura.” Não porque apoiassem, mas porque queriam ter tido a chance de lutar contra o regime, de protestar contra a Guerra do Vietnã, de ter ido à Woodstock, de entrar pra uma guerrilha. E não foram poucos os relatos desse tipo. Na faculdade, pipocavam sempre que se tocava no assunto. Muito romântico. Muito ridículo (desculpem-me, mas é).

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Pois talvez os “saudosistas” tenham uma chance

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Sempre tive fascínio pelas aulas de História. Sem saber das palavras de Heródoto, desde pequena acreditava que era importante conhecermos o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Sem saber da existência de Marx, acreditava que o passado poderia ser um instrumento de combate às injustiças e desigualdades. Mas nunca quis viver dentro dos livros de História que carregava.

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Estava perfeitamente confortável com o sentimento de distância do passado de autoritarismo

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Verdade que não conseguia conter as lágrimas ao ler sobre o Holocausto. Derretia por dentro ao ler sobre a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e a batalha para acabar com a segregação racial. Ficava hipnotizada com a história da Ditadura Militar brasileira, apesar de não compreender como parte da população fora a favor do golpe – apenas mais tarde soube que era a maioria, muito mais tarde.

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Mas tudo parecia distante, como se tivesse acontecido há séculos

E cá tínhamos a história para evitar que

repetíssemos os mesmos erros

Eu me sentia segura fora dos meus livros de História

 

Ledo engano. Estamos em 2017 e há um grupo de pessoas que acredita que a TERRA É PLANA. Uma exposição de ARTE FOI FECHADA por atentar contra a MORAL E OS BONS COSTUMES. Candidatos à presidência reforçam preconceitos raciais e EXALTAM A TORTURA. Grupos negam a ciência e DUVIDAM DO AQUECIMENTO GLOBAL. RACISMO é justificado. XENOFOBIA é justificada. Homossexualidade é tratada como DOENÇA. Nacionalistas alemães são eleitos para o parlamento com bandeira ANTI-IMIGRAÇÃONo Brasil, clamam por intervenção militar.

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Qualquer semelhança não é coincidência

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Neste ritmo, talvez estejamos mais perto de um regime de exceção do que nossa vã imaginação pudesse imaginar até pouco tempo. Estamos retrocedendo a uma velocidade tão assustadora que me sinto puxada para dentro de meus livros de História, como em um redemoinho sombrio de erros do passado, e ali deparo com o preconceito, com o ódio, com a intolerância, com a ignorância. Não quero ficar aqui dentro.