Igor Natusch

Isolado pelas próprias discórdias, Marchezan coloca em risco o seu governo

Igor Natusch
23 de novembro de 2017

“Se esse tipo de impasse permanecer, em 2018, ele se inviabiliza como chefe do Executivo”

 

A advertência – dura, incisiva, sem nenhum esforço de diplomacia – não é de um esquerdista raivoso em oposição radical contra o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior: vem de Valter Nagelstein, vereador eleito pelo PMDB, partido de centro e que chegou a ensaiar movimentos para, mesmo derrotado nas urnas, entrar na base do atual prefeito na Câmara Municipal.

Não é uma frase leviana, diga-se. Poderia parecer um exagero em outras circunstâncias. Mas o fato é que Marchezan, com seu gênio cada vez mais intratável e seu personagem público gerando cada vez menos simpatia, começa a tornar plausível algo que, com menos de um ano de governo e em um cenário ideologicamente favorável, não era para fazer nenhum sentido.

 

Atuando de forma divisiva em todas as frentes, o prefeito de Porto Alegre vai inviabilizando o próprio governo, tanto no ideário quanto na prática

 

Na última semana, duas declarações desastradas, com alvos diferentes, erodiram ainda mais a relação de Marchezan com setores fundamentais para a viabilidade de seu governo. Embora não seja recente, a fala em congresso do MBL dizendo que “parlamentar é cagão” pegou muito mal junto aos vereadores, ao ponto de aliados assinarem requerimento para que o prefeito esclareça, no plenário da Câmara Municipal, o que quis dizer. E a população em geral (incluindo muitos eleitores de Marchezan) não recebeu bem a postagem em redes sociais, feita em Paris, sobre colocar carregadores de celular nas paradas de ônibus – uma ideia que não é ruim em si mesma, mas quase ofensiva numa realidade de arrastões em pontos de embarque e de terminais, como o Triângulo, em péssimas condições de conservação.

Um dos pontos mais bem sucedidos da campanha que elegeu Marchezan foi a imagem de político jovem, incisivo e, acima de tudo, dinâmico. Enquanto os concorrentes faziam falas estáticas em estúdios, ou gravavam todas as suas intervenções em áreas centrais da cidade, Marchezan aparecia sempre em movimento, dentro dos cenários que mencionava, da Restinga à Cidade Baixa, no Quarto Distrito e na Vila Mário Quintana.

 

Era a imagem de um homem que andava pela cidade, que a conhecia e, portanto, sabia como agir a respeito. E essa imagem vem sendo derrubada pelo próprio Marchezan, que não consegue melhorar a situação de abandono da cidade

 

Com essa sensação de paralisia, e com elogios a tomadas para celular em pontos de ônibus caindo aos pedaços, o prefeito dá sinal contrário ao desejado: o de alguém que não conhece a cidade, não enxerga seus problemas e está distante de solucioná-los.

A fala sobre políticos cagões pode ter arrancado aplausos dos jovens moralistas e superficiais do MBL, mas não poderia vir em pior hora para quem está cada vez mais ausente de aliados institucionais. Partidos aliados, como o PP, não mais se constrangem em votar contra os interesses do prefeito. Ex-líder de governo e pessoa influente dentro da Câmara, Claudio Janta acaba de chamar Marchezan de “bunda-mole” – sinal tanto da degradação de relações entre Executivo e Legislativo, quanto da disposição crescente de enfrentar de forma direta a postura do prefeito.

Já falei anteriormente sobre como essa proximidade de Marchezan com o MBL estava longe de ser o mar de rosas que Marchezan talvez imaginasse, bem como do potencial trágico no rompimento irrefletido com seu principal articulador na Câmara. Troca a imagem de homem preocupado com a cidade por uma persona conflituosa, que não cede em nada, que joga sobre os discordantes todas as responsabilidades – inclusive, e talvez principalmente, as suas próprias.

 

Para governar, um chefe de Executivo brasileiro precisa de acordo com o parlamento e/ou de suporte popular. Com as duas coisas, suas ideias irão longe; sem nenhum desses elementos, está condenado ao imobilismo ou coisa pior. Marchezan nunca chegou a ter ampla segurança nesses aspectos, mas está cada vez mais fragilizado, de um lado e de outro. E insiste em fórmulas que estão claramente erradas, independente de espectro político

 

Com pelo menos quinze baixas em pouco mais de dez meses de governo, em clima de guerra com seu influente ex-líder de bancada e com sua falta de diálogo criticada por aliados e opositores sem distinção, Marchezan planta discórdia onde precisa de tranquilidade, e essa colheita não tem como ser positiva.

Mantém a cidade em animação suspensa, mobiliza o forte sindicalismo municipário contra si, insiste em um série de quase insultos contra seus inimigos políticos e segue às turras com quem poderia defendê-lo quando isso tudo der errado. Em menos de um ano, Marchezan isolou-se. Talvez por vaidade, talvez por leitura equivocada de cenário, não parece nada disposto a mudar a rota. Vai transformando em possível um adágio que, no dia da posse, soaria como delírio: se seguir assim, talvez não termine o mandato mesmo, hein.

Foto: Luciano Lanes / PMPA

Igor Natusch

Violência urbana: um conto sobre icebergs e toalhas

Igor Natusch
15 de novembro de 2017

Não sou bom desenhista, mas vamos lá.

A violência é um iceberg. Gigante, daqueles que a gente nem consegue olhar de tão enorme que é. Um iceberg, todos sabemos, é feito de gelo?—?e sendo gelo, está sempre derretendo um pouquinho, fazendo um pouco de água, por menos que a gente perceba. Sempre houve, portanto, a necessidade primordial e incontornável de enxugá-lo. Às vezes pouco, às vezes muito, mas não adianta: estamos sempre enxugando o gelo do iceberg, desde que o mundo é mundo, desde que seres humanos somos e percebemos que há um iceberg a enxugar.

Feito de gelo que é, o iceberg derrete mais rápido na medida em que há mais calor. O nosso modelo de sociedade, talvez a gente possa compará-lo com o aquecimento global?—?mas aí a parábola fica muito ambientalista, não é bem a ideia nesse caso. Basta dizer que a sociedade, em si mesma, produz calor, seja lá como ela queira se organizar. Basta juntar pessoas para que a temperatura ambiente fique mais alta. E o iceberg, claro, derrete.

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O problema é que a gente inventou um jeito especialmente quente de ficarmos juntos, uma engrenagem social que faz um calor dos diabos, daqueles que a gente fica suando sem parar. Uma calefação, que tal?

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Isso aí, cercamos o nosso mundo (e o iceberg) com uma calefação desgraçada, que está ligada há muito tempo e que ninguém sabe, ou se lembra, ou se importa em saber como desligar. E se a gente acaba ensopando de suor, imagina o quanto que o iceberg não derrete nesse caso?

Antes, quando o iceberg não derretia tão rápido, a gente tinha inventado algumas formas, mais ou menos eficientes, de enxugá-lo. Ele nunca ficava totalmente seco, claro?—?mas a gente dava jeito de evitar que o chão ficasse encharcado, pelo menos. Jogava umas toalhas no chão, colocava uns avisos de piso escorregadio, cercava algumas áreas mais críticas e, bem ou mal, dava para ir levando.

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Só que o calor da nossa calefação maluca fez com que nossas antigas estratégias não deem mais conta de tanto gelo derretendo. Tá tudo úmido, escorregando, fazendo poças d’água, um horror. Daqui a pouco ninguém mais fica seco nessa vida. Aí, o que a gente faz?

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Convocamos enormes tropas de enxugadores de gelo, é claro!

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Milhares e milhares, ou melhor dizendo, milhões de enxugadores munidos de toalhas bem felpudas e altamente absorventes. Mostramos o problema, damos coordenadas, é melhor atacar o iceberg nesse ponto e tal. E lá vão eles, bravos e determinados, enxugar o iceberg que derrete mais e mais. De início, até parece que vai dar certo. Todos sorriem, aliviados, protegidos e relativamente secos.

O problema é que, como sabemos, o gelo nunca vai parar de derreter. E logo as tropas começam a perder a batalha?—?o que aumenta, em consequência, nossa urgência em enxugar o iceberg.

Antes, a gente treinava bem esses nobres soldados enxugadores; agora é água demais, gelo molhado demais, só dá tempo de jogar a toalha na mão dos recrutas e gritar vai lá, ser enxugador de gelo na vida. Alguns são determinados até demais, enxugam gelo com tanta fúria que acabam rasgando as toalhas, machucando pessoas em sua volta. Outros até tentam manter a calma, passar a toalha no iceberg do jeito e no ritmo que foram ensinados no treinamento. Nenhum deles tem muito sucesso. Eles enxugam, jogam longe as toalhas encharcadas e pegam novas toalhas secas sem parar.

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O iceberg, sendo o iceberg que é, segue derretendo. E o que a gente faz? Ficamos na ponta da sala, berrando: enxuguem mais! Mais rápido! Não tenham piedade do iceberg! Ninguém aguenta mais tanta água!

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Não ocorre a ninguém que a calefação, tão bonita e que nos manteve tão quentinhos em alguns meses mais frios, possa ser o problema.

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Desligar a calefação, então, nem se cogita. Alguns talvez até tenham cogitado, para falar a verdade, mas a ideia parece tão complexa e absurda que acabamos mandando esses desgarrados calarem a boca. Quem não enxuga que não atrapalhe, gritamos. Falar é fácil, quero ver segurar a toalha lá na frente!

Nesse cenário de pesadelo, onde o iceberg já começa a cair em pedaços e logo afogará todos nós com seu degelo, apenas um grupo de pessoas está se dando bem: os vendedores de toalhas. Esses aí estão bem felizes, ricos, poderosos e bem considerados pela sociedade tão assustada, tão dependente de toalhas para enxugar o iceberg sem fim. Se você prestar atenção, de vez em quando verá os vendedores de toalhas segurando seus megafones, subindo no ponto mais alto desse mundo de conto de fadas e gritando: o gelo está derretendo, pessoal. Alguém precisa fazer alguma coisa. Enxuguem mais, que tá pouco.

Foto: Wade Morgen

Igor Natusch

Para Marchezan, transporte público é despesa. Ele está errado

Igor Natusch
8 de novembro de 2017
Porto Alegre, RS 06/11/2017 Reunião com líderes dos taxistas Fotos: Cesar Lopes/ PMPA

Segundo o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, a Carris está com os dias contados. O termo foi usado por ele em uma entrevista à Rádio Guaíba e reproduzido pelo Jornal do Comércio. Para ele, ter R$ 60 milhões anuais com a empresa pública de ônibus da cidade é uma “despesa” que não se justifica, e que poderia ser repassada para áreas prioritárias, como saúde e educação. “Se vai ser privatização, extinção, licitação das linhas…”, lista Marchezan, mencionando alternativas que, todas elas, entregariam completamente a exploração e/ou fornecimento do serviço à iniciativa privada.

Evidente que o prefeito tem a prerrogativa de ver a administração da máquina pública como quiser. Se ele acha que o melhor caminho é entregar o máximo possível a empresários ligados ao setor, cabe a ele fazer o debate e defender sua leitura. Eu não concordo com ele, mas isso nem vem (tanto) ao caso.

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O que realmente incomoda, aqui, é tratar o dinheiro colocado na Carris como “despesa”

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Como assim, despesa? Pelo menos desde 2015, o transporte coletivo é reconhecido pela União, em forma de emenda constitucional, como direito social – igualado, inclusive, à saúde e educação que Marchezan menciona como áreas que supostamente têm menos dinheiro a partir da “despesa” com a Carris. Não é como se o município estivesse sangrando dinheiro em algo irrelevante, em peças publicitárias ou algo assim: ele está subsidiando o cumprimento adequado de um direito social. Investir em saúde, educação ou segurança não é queimar dinheiro – e, da mesma forma, colocar grana em transporte coletivo de qualidade também não é, como várias das cidades de melhores índices do mundo podem demonstrar.

Há mais. Qualquer consulta à população será capaz de comprovar que o serviço prestado pela Carris é visto como o mais qualificado em toda Porto Alegre. São os ônibus em melhores condições e os que cumprem com maior rigidez os horários. Além disso, atendem rotas consideradas importantes dentro do (escasso) planejamento de mobilidade urbana da cidade, e que as demais concessionárias hesitam ou recusam-se a atender, por não considerarem capazes de gerar a margem de lucro desejada.

A Carris serve tanto as rotas circulares no Centro estendido, que ajudam a desafogar o trânsito na região, quanto as linhas transversais que atravessam a cidade de ponta a ponta e ajudam multidões a ir e voltar com apenas uma passagem, todos os dias. A “despesa”, no caso, permite manter itinerários que ajudam a manter algum equilíbrio em todo o sistema, com um padrão de qualidade que deveria servir de padrão para as operadoras privadas – o que não é de modo algum o caso, como qualquer um que usa ônibus em Porto Alegre poderá facilmente constatar.

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Marchezan, ao que parece, não consegue conciliar-se com a ideia de que o transporte público é um direito básico do cidadão, não um cano quebrado vazando dinheiro dos cofres públicos

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Assinou texto extinguindo a segunda passagem gratuita – usada, como a lógica nos diz, pelos que moram mais distantes e mais precisam do transporte público, muitas vezes sem dispor de recursos para um deslocamento diário à região central. Para tal, passou por cima até da legalidade, pois o desconto estava previsto na licitação para explorar o serviço, e retirar o benefício seria dar um desconto às empresas, sem reverter em melhoria alguma ao usuário (ao contrário, aliás). Fala em retirar isenções de idosos e aumentar a vida útil dos veículos, além de limitar o acesso à meia passagem estudantil – propostas que buscam não a diminuição da tarifa, mas que ela “aumente menos” no próximo ano.

É um pensamento que enxerga no transporte coletivo despesas, números e cifrões, não pessoas que precisam se deslocar todos os dias para o trabalho, a aula ou mesmo para o lazer

As pessoas precisam ir e voltar. Não seria desejável para a saúde do trânsito, mesmo que isso fosse financeiramente possível, que todas o façam com veículos particulares – logo, é fundamental que tenhamos um serviço de ônibus que funcione, que tenha padrões de qualidade, que atenda o trabalhador que sai da periferia cedo de manhã e também o estudante que termina a aula na faculdade e vai encontrar amigos em um bar. As pessoas precisam disso tanto quanto precisam de professores bem remunerados e de postos de saúde em boas condições, porque (e isso Marchezan não parece entender) as pessoas não podem ausentar-se da cidade. Nem que quisessem.

Não é despesa, prefeito. É investimento na cidade e na população. E está entre os mais importantes investimentos que o senhor, como gestor público, pode fazer. Sugiro que essa determinação de acabar com a Carris seja repensada, pelo bem do povo que o elegeu.

Foto: Cesar Lopes / PMPA

Igor Natusch

Lula e Bolsonaro estão distantes. A quem interessa colocá-los como iguais?

Igor Natusch
1 de novembro de 2017
Brasília - Eduardo Bolsonaro, e o pai, Jair Bolsonaro após o Conselho de Ética da Câmara arquivar duas representações (12/17 e 13/17) contra o deputado por quebra do decoro (Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agencia Brasil)

A mais recente pesquisa Ibope pintou um quadro favorável ao ex-presidente Lula. Líder em todos os cenários, o petista parece não sofrer grande desgaste junto a seu eleitorado cativo e até mesmo ganha gordura nesse momento desnorteante que vive a política brasileira. Na estimulada, tem 35% das intenções de voto, contra 13% do pré-candidato mais próximo, Jair Bolsonaro; na espontânea, de valor ainda mais acentuado nesse momento em que não há campanha eleitoral declarada, o resultado sorri ainda mais para o barbudo, com 26% dos consultados citando seu nome, quase o triplo dos 9% que citam Bolsonaro.

Assim sendo, é um exercício curioso passar os olhos pelas manchetes que alguns dos principais portais de notícias do Brasil deram para esse levantamento. “Ibope aponta segundo turno entre Lula e Bolsonaro em 2018“, diz o Uol, exatamente o que é ressaltado também pela Veja. “Lula e Bolsonaro liderariam eleição presidencial em 2018“, aponta o site da revista Exame, quase nos mesmos termos indicados pelo Terra.

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Cresce no imaginário do eleitorado a ideia de que temos dois extremos. À direita, como sabemos, surge o discurso odioso e tóxico de Bolsonaro; no córner esquerdo, o combatente é Lula. Mesmo que a pesquisa Ibope aponte o ex-presidente muito à frente do deputado, sinal claro de que não há, no momento, um embate cabeça a cabeça entre ambos.

Porque nos falam, então, de um confronto direto que os números não mostram?

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Embora o discurso do pré-candidato petista oscile entre promessas vagas de democratização da mídia e afagos surpreendentes naqueles que tiraram Dilma Rousseff do poder, materializar nele um dos extremos do rompimento político que vivemos é interessante para alguns setores. Para ele próprio, que vende a si mesmo como única chance de evitar a tragédia de um governo de extrema-direita; para Bolsonaro, que também se beneficia desse maniqueísmo nós-contra-eles; mas acima de tudo para quem quer emplacar uma terceira via, um candidato pacificador que não é radical nem por um lado, nem pelo outro. Uma opção de centro, mesmo que ela não seja tão centrista assim.

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Há uma desonestidade flagrante nessa construção de antagonismos

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Amando ou detestando Lula e sua visão de política, ninguém poderá negar que foi presidente de medidas significativas, cujos reflexos durarão ainda por muito tempo. É figura que já demonstrou grande capacidade de articulação, ainda recebe grande respeito internacional e, de qualquer modo, tem o triplo de intenções de voto de seu suposto antagonista. Bolsonaro, por sua vez, é um deputado federal de contribuição no máximo medíocre, com pouquíssimos projetos e que só se destaca pela desenvoltura com que vocifera discursos de ódio. Sua tentativa de se tornar mais palatável em uma viagem aos EUA foi um fracasso, e suas tentativas canhestras de aprofundar o discurso – como nas citações cheias de chutes e equívocos sobre o nióbio, antigo delírio dos ultranacionalistas – seriam cômicas, não indicassem profunda tragédia caso um despreparado desse quilate alcance mesmo a Presidência do Brasil.

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Bolsonaro, além de ser uma figura rasteira, ainda é uma incógnita do ponto de vista eleitoral

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No retrato de momento (que pode mudar, evidentemente, mas que no momento assim se materializa), está bem atrás de um Lula que não dá sinais de desgaste em seu carisma. Sem o petista, o Ibope indica um empate absoluto entre Bolsonaro e Marina Silva – ou seja, a confiar no levantamento, nem em um cenário teoricamente mais favorável o deputado se destaca na multidão. Alçado à condição de atual nome forte na batalha contra tudo de supostamente horrível que a esquerda traz em si, Bolsonaro ganha um protagonismo superior ao indicado por sua intenção atual de voto. E não precisa ser gênio para perceber que o potencial de criar um círculo vicioso a partir daí não é nada desprezível.

Se a aposta de certos setores é cindir o cenário político como quem separa o Mar Vermelho e, no corredor criado, lançar o suposto pacificador da vez (seja Dória, Huck, Alckmin ou qualquer outro), podemos dizer que é uma aposta de risco considerável.

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Talvez a única coisa que aproxime de fato Lula e Bolsonaro seja estarem simbolicamente do lado de fora da política atual, um por ser outsider, outro por ser perseguido por ela

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Para que esse mesmo núcleo político, tão rejeitado, consiga vender um de seus apadrinhados como opção razoável em um cenário de tempestade, vai precisar conjurar essa mesma aula de distanciamento – o que será, ao mesmo tempo, um esforço de mago e de camaleão. Não é inviável, mas não é fácil.

Enquanto isso, para vender a imagem de que Lula é batível tanto como candidato quanto – e talvez principalmente – como entidade, vamos legitimando alguém que traz um discurso venenoso capaz de inviabilizar de vez qualquer tipo de saúde política no país. Pelo jeito, a tempestade não é mesmo para chegar ao fim.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Igor Natusch

A batalha contra a corrupção acabou. E foi o sistema quem venceu

Igor Natusch
18 de outubro de 2017
Brasília - Senador Aécio Neves retoma as atividades parlamentares no Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A decisão do Senado de devolver mandato a Aécio Neves, mesmo com as volumosas e graves denúncias que o atingem, é desoladora para a política brasileira em diferentes níveis. A partir dela, consolida-se de vez uma leitura que já era possível antes, mas que agora torna-se inescapável: o lado corrompido do sistema político saiu do córner, a suposta luta contra a corrupção subiu no telhado e a lei, aquela mesma que o título do filme ufanista e delirante diz que é para todos, segue sendo uma gripe que pega em alguns, mas contra a qual outros estão permanentemente vacinados.

Muito se falou – e com plena justificativa – no esdrúxulo voto final da presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, dando aos parlamentares a prerrogativa de derrubar as medidas cautelares que afastavam Aécio do Congresso. Foi um voto gaguejante, tropeçando na própria falta de convicção, e nem poderia ter sido diferente: ficou claro que nisso votou porque assim precisava votar, e nada mais. O Supremo contradisse sua própria leitura nos casos de Delcídio do Amaral e Eduardo Cunha – e, como bem apontado por Celso Rocha de Barros em sua coluna na Folha, a diferença entre antes e agora é que o PT não é mais governo, a maré virou e a direita fisiológica retomou as rédeas das instituições, controlando-as novamente a seu bel prazer.

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Falta respaldo ao STF para peitar o grupo que hoje detém o poder político: na mídia, nos supostos movimentos contra a corrupção, nas multidões que hoje não se preocupam mais em ir às ruas

Respaldo que sobrava quando o PT tinha o governo em mãos

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Tergiversações possíveis são muitas, mas os fatos estão na mesa, e não irão embora tão facilmente. Cármen Lúcia, que não é tola, percebeu isso, e preferiu ajudar a concretizar a profecia de Romero Jucá a declarar uma guerra que tinha pouca esperança de vencer.

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A corrupção nunca foi o problema; de fato, muitos desejam que continue sendo a solução

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Para esses núcleos, a eleição de Dilma era inaceitável desde o início, e a constatação nada tem a ver com simpatia pelo (muito ruim) governo da presidente deposta: é simples questão de desejar o poder de volta, depois de um empréstimo que havia sido vantajoso para todos, mas passava a ser cada vez mais difícil de sustentar. Ter o poder era importante, para fugir da cadeia e para garantir a benevolência dos detentores do poder econômico. Lançado o governo petista aos leões, e imolados os nomes com os quais a estabilidade seria mais difícil, a briga da nova aliança passou a ser jogar panos quentes na dita moralização do país. Assim foi feito. E o cafuné na cabeça de Aécio é só uma das manifestações mais visíveis desse grande e, até o momento, muito bem-sucedido acordo.

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Ler figuras importantes da Lava-Jato dizendo que a operação está sendo mutilada é um tanto tragicômico: estavam mesmo tão fascinados com as manchetes, tão absorvidos pela aura messiânica em torno de si próprios que foram incapazes de perceber que era justamente essa a ideia o tempo todo?

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Alertas não faltaram. Ainda falta a condenação em segunda instância de Lula, o grande prêmio dessa cruzada pela justiça seletiva e o ato final que amarra várias pontas da trama: impede a única candidatura petista viável, satisfaz de vez as massas que associam todas as mazelas do Brasil ao PT, oferece um apoteótico ponto final a uma operação que fez muito, mas que o novo-velho poder fisiológico não deseja mais que avance um palmo sequer. Lula ser ou não culpado é o que menos importa nessa trama: estaremos todos purificados, reconciliados com a ideia de que a lei é mesmo para todos, prontos para recomeçar exatamente de onde se parou.

A narrativa dos que encontraram no impeachment de Dilma Rousseff uma chance de salvação estará encerrada, provavelmente com sucesso. E aos integrantes da força-tarefa restará o papel com o qual concordaram e do qual, hoje, reclamam sem grande convicção. Ou então adotar de vez novos papéis, como novos atores no espetáculo renovado do toma-lá-dá-cá.

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Enquanto isso, os movimentos que nos queriam livres da corrupção seguirão gritando contra homens nus em museus, os patos gigantes seguirão desinflados, as panelas seguirão descansando nos armários das cozinhas, os editoriais seguirão tentando nos convencer que as coisas estão melhorando aos poucos

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Sem ter motivos para temer a opinião pública, o fisiologismo viceja, como uma erva daninha que se favorece do sol depois da tempestade. Tudo mudou, e tudo segue igual – pelo menos até as eleições do ano que vem. E já estão trabalhando nisso, é claro. É assim que deve ser. Agora vai.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Igor Natusch

As fake news apenas dizem o que você quer ouvir – e lucram bastante com isso

Igor Natusch
11 de outubro de 2017

A completa degradação do debate político no Brasil tem muitas camadas, como uma cebola que apodrece de fora para dentro e não o contrário. Uma delas, com certeza, é o descrédito dos atuais veículos de imprensa.

Semana passada comentei sobre o editorial do Estadão defendendo Michel Temer como talvez uma mãe amorosa não defendesse um filho, e tivemos recentemente casos de crítica que beiram o absurdo, como um protesto chamando a Rede Globo de esquerdista – algo que, convenhamos, só alguém completamente desligado dos últimos 30 ou 40 anos de noticiário pode considerar minimamente crível. Por outro lado, sites de “notícias” que publicam qualquer besteira como se fosse um fato “ignorado” pela mídia hegemônica proliferam como mato, direcionados a leitores de todos os espectros políticos – que, é claro, vão até eles de forma ávida, em busca da “verdade” que o jornalão e a emissora de tevê estão escondendo da população.

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As duas situações se alimentam da mesma tendência (uma das tantas que já existiam meio que desde sempre, mas que as redes sociais aparentemente ajudaram a multiplicar): a de enxergar a notícia como confirmação de ideias já existentes, ao invés de el

emento para a formação de opinião

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O jornal de grande circulação mente e/ou é desprezível apenas quando noticia algo do meu desagrado – afinal, se a notícia é prejudicial ao “outro lado”, lá vou eu compartilhá-la sem nenhum constrangimento. E tanto faz a credibilidade do “veículo” que sigo e/ou reproduzo, desde que a manchete reflita a suposta convicção que já carrego dentro de mim. Ou será possível acreditar que ninguém jamais percebe que está difundindo informações falsas ou, pelo menos, pouquíssimo confiáveis? Percebem sim, e muitas vezes – mas seguem dando likes e RTs, seguem postando em seus perfis, seguem compartilhando com os contatos do Whatsapp. Não importa se é real: o importante é que diga a coisa que desejamos ler ou ouvir.

O que nos leva à curiosíssima notícia, produzida pela Vice, dando conta de que o site JornaLivre (que é, basicamente, um espaço pseudo-jornalístico onde o MBL vende suas ideias e ataca seus desafetos) usa um script que lucra criptomoedas às custas dos leitores, usando o processador de máquinas alheias para tal. Todos os que visitavam o domínio acabavam sendo vampirizados, seja pelo MBL ou por pessoas nas sombras que sequestraram o site para tal fim. É um caso ilustrativo, pois leva às raias da caricatura algo que, para quem parar um pouco para pensar, já seria bem claro: esses sites não mentem e distorcem por prazer ou idealismo, mas para obtenção de poder – político, sim, mas acima de tudo econômico.

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Permita-me repetir: esse pessoal está se lixando para o que você acredita ou não

Eles querem se aproveitar de você para se dar bem

E para ganhar grana. Muita grana

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Como todas as coisas, a ignorância também é um negócio. E alimentar essa ignorância com uma ração diária de pseudo-fatos tornou-se um nicho bastante lucrativo. Para quem usa Google Ads e lucra horrores com acessos, para quem usa acessos para acumular bitcoins – e para quem, desvinculado de escrúpulos, vai usar e muito esse recurso para tentar se dar bem em 2018. O MBL, por exemplo, faz altas articulações com olhos voltados à eleição presidencial do ano que vem – e o JornaLivre, umbilicalmente ligado ao MBL, tem uma função um tanto óbvia nesse panorama.

O mais curioso é que esse pessoal traz, no próprio caráter de seu conteúdo, o antídoto para a perda de leitores. Afinal, as mais de 12 milhões de pessoas difundindo notícias falsas estão bem satisfeitas com o conteúdo que repassam, e vai devolver o rótulo de “fake news” a qualquer veículo que fale outra coisa, seja ele sério ou não. Os que criticam o JornaLivre são desonestos, estão contaminados pelo esquerdismo, e são eles que produz material falso para atacar quem revela a verdade pelo outro lado – é isso que o JornaLivre possivelmente diria diante de uma acusação, e é o que a multidão de pessoas que compartilha seu conteúdo vai aceitar, em questão de segundos, como a explicação mais aceitável.

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Como todas as coisas, a ignorância também é um acordo. E só encontrando um mecanismo que encoraje as pessoas a romper esse acordo em nome de um conhecimento mais pleno será possível a nós – os que acreditam no jornalismo e os que acreditam na política – combater essa tendência cada vez mais assustadora

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Imagem: Reprodução da página inicial do JornaLivre, mostrando a presença do script mineirador de criptomoedas. Publicado originalmente pelo site da Vice. 

Igor Natusch

O estranho caso do editorial que ama mais Temer do que a realidade

Igor Natusch
4 de outubro de 2017
Brasília - Presidente Michel Temer durante pronunciamento sobre a liberação do PIS-Pasep, no Palácio do Planalto (Valter Campanato/Agência Brasil)

Um dos principais memes da semana acabou tendo origem inesperada: o Estado de São Paulo, um dos mais tradicionais jornais do País. Diante de pesquisas que colocam Temer como míseros 5% de aprovação (o mais baixo índice de um presidente desde a redemocratização), um editorial do citado veículo partiu para uma defesa apaixonada de dar inveja ao casal mais inseparável, atribuindo os índices ora a pesquisas que “não encontram correspondência na realidade”, ora à desinformação que “campeia nestes tempos de fake news”. Contraditórias em si mesmas (afinal, a pesquisa identifica ou não a opinião supostamente desinformada das pessoas?), as duas alegações estão na mesma frase do citado editorial – sinal inequívoco de que o objetivo (proteger o presidente) chegou bem antes dos argumentos no texto em questão.

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Hoje em dia, afirmar que Michel Temer é impopular é quase elogiá-lo: ele é, na verdade, execrado pela quase totalidade da população brasileira

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Já tivemos inclusive pesquisa onde, pela margem de erro, sua popularidade poderia ser abaixo de zero entre jovens até 24 anos; a mais recente, do Datafolha, é quase positiva em comparação. Valendo lembrar que, quando Dilma Rousseff bateu nos 7%, o próprio Michel Temer disse a empresários que era “difícil” para qualquer presidente concluir o mandato em semelhantes condições.

De fato, difícil é. O próprio Temer, praticamente escorraçado pela população que governa, ainda tem uma segunda denúncia contra si, que exigirá ainda mais articulação (troca de favores?) no Congresso para não avançar – a primeira, como já sabemos, foi uma farra daquelas. Ainda assim, não é nada impossível, tanto que os prognósticos são, no momento, mais favoráveis à permanência de Temer no trono do que à sua destituição. E a impopularidade, longe de travar suas ações, não impediu que medidas notoriamente impopulares avançassem serelepes pelo Congresso, prontas para dificultar ainda mais a vida de todos nós.

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Não precisa ser o sábio da montanha para entender que a voz das ruas, mesmo que estivesse pulsando de indignação, não seria suficiente para liquidar o governo Temer – da mesma forma que não é necessário um doutorado em ciência política para concluir que não foram as ruas que apertaram o botão que ejetou Dilma da cadeira

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Tanto na época quanto agora, são outros elementos que atuam no sentido de forçar ou inviabilizar uma decisão – e boa parte deles são compreensíveis ao ler o cômico editorial do Estadão, que faz parecer que estamos diante de um estadista revolucionário, não de um governante soterrado em denúncias graves e que precisa abrir a guaiaca para garantir que não será processado.

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Há um sentimento de wishful thinking que perpassa todas as frases do citado editorial. Mais do que demonstrar a suposta injustiça dos índices, o Estadão parece ansioso para legitimar os próprios dados que utiliza, como se fosse preciso tornar os próprios argumentos convincentes antes de elencá-los

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Ou seja, para ser convencido pelo texto, é preciso acreditar que os dados econômicos fornecidos pelo próprio governo são verdades gravadas em pedra, que os escândalos de corrupção são menos graves e não guardam relação direta com os dos governos petistas (ignorando, claro, que Michel Temer foi duas vezes vice de Dilma Rousseff), que a leitura de que o país é contra o presidente, mesmo alicerçada em numerosas pesquisas, é “simplista” e um “óbvio despautério” e por aí vai. Mais que apreço à lógica e à leitura da realidade, é preciso ter fé, acreditar que o governo não fracassa, que a economia toma fôlego para disparar, que o Brasil não mergulha em um abismo de ilegitimidade política poucas vezes vislumbrado em sua história.

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Para um pequeno núcleo (produtores e exportadores de matéria-prima bruta, sistema financeiro, as multinacionais favorecidas com generosas isenções e perdões de dívida) o governo não fracassa. Mas também não dá para dizer que triunfa amplamente, já que parte fundamental da tarefa era trazer alguma estabilidade ao País, e ninguém poderá dizer que isso está acontecendo

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E a ojeriza a Temer é um sinal de que o povo não está na rua, mas que essa ausência não reflete de forma alguma em aprovação ou mesmo indiferença útil. Se não está tudo bem (e parece claro que não está), é preciso gritar aos ventos que está tudo bem, que estamos na trilha certa, e nada disso precisa ser verdade: basta que seja gritado mais alto que o resto, que seja capaz de deixar a verdade inconveniente um pouco menos audível, visível e incômoda.

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Quem acha que o editorial do Estadão está tentando convencer o conjunto da sociedade está, bem provavelmente, errando o foco

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Talvez caibam nos dedos das mãos os leitores que efetivamente interessam ao donos do jornal, claramente engajado que estão em vender a leitura mais interessante ao governo que ora ocupa o trono em Brasília. Não sou eu ou você que precisamos acreditar que as pesquisas, antes tão importantes para derrubar Dilma, agora não valem nada: são os que estão gostando de alguns aspectos do governo, e que precisam continuar gostando, para que os patos não voltem às avenidas e as mesmas pesquisas, por um passe de mágica, voltem a ser importantíssimas.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Igor Natusch

Palocci ataca não o Lula candidato, mas a imagem de homem honesto

Igor Natusch
27 de setembro de 2017

Não sei se a carta de desfiliação de Antonio Palocci, divulgada no começo da semana pela imprensa e que traz duras palavras contra o PT e Lula, tem o poder de, sozinha, colocar na lona o ex-presidente. Acredito que não, inclusive, já que Lula tem demonstrado uma capacidade impressionante de sobrevivência em meio à artilharia pesada contra ele. Mas é um documento não apenas pesado e constrangedor, mas histórico por todas as suas implicações. E que, além do impacto jurídico (que depende da devida investigação para se concretizar), traz um efeito político que é simplesmente impossível de ignorar.

Palocci não é um qualquer. Trata-se de uma das figuras mais importantes de todo o período de governo petista – e reforçar essa quase obviedade é importante, porque ela precisa ficar acima de argumentos relativizadores, que tentam colocar as palavras do ex-ministro de Lula e Dilma como mero espernear desesperado de um homem que deseja fugir de um longo período de prisão. Reduzir um estrategista inteligente como Palocci, figura central em todas as decisões da alta cúpula do partido nas últimas duas décadas, a um mentiroso que quer escapar do cárcere é quase ridículo, é quase tirar os outros para idiotas. O que Palocci diz tem peso simplesmente por ser dito por Palocci, e qualquer análise do que é dito que menospreze esse peso é defeituosa de nascença, para não dizer coisa pior. Isso posto, podemos avançar.

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Muito além das acusações claras de malfeitorias que teriam sido cometidas, Palocci atira contra a imagem de Lula, contra a construção que o coloca como honesto e corajoso herói do povo brasileiro enfrentando malvados que querem destruir tudo que ele construiu

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É uma construção intencional, que vem sendo feita desde antes da consumação do impeachment de Dilma Rousseff, e que no caso dela funcionou bem – convenhamos, não dá para dizer que a maioria do povo brasileiro veja a ex-presidente como uma ladra e criminosa, muito pelo contrário. Para Lula, essa construção é não só estratégica, mas uma chance de sobrevivência diante de acusações cada vez mais difíceis de rebater. O abismo que eliminou o meio-campo na discussão política não apenas é aceitável, mas desejável e incentivado nessa situação.

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Diante da forte possibilidade de ser preso e tornar-se inelegível, Lula precisa ser heroico, não apenas para seguir forte como possível candidato em 2018, mas para que seja crível transformá-lo em mártir, caso não consiga concorrer e acabe condenado em segunda instância. Quem vê a provável candidatura como uma chance de salvar o Brasil está sendo ingênuo ou enganando a si mesmo: não há projeto algum, apenas oportunidade e tábua de salvação. Ou alguém escuta, nos discursos cada vez mais apelativos do barbudo, algo além de retórica e malabarismos, algo que indique um plano coletivo, qualquer coisa além da reafirmação obsessiva de si mesmo e do próprio caráter histórico?

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É essa construção de narrativa o grande alvo da carta de Palocci. Ele não fala apenas à força-tarefa que investiga Lula, dizendo que tem o que oferecer em troca de uma fatia maior de liberdade; ele fala também na direção de Lula e do PT, dizendo que tem lama nas mãos, e está disposto a arremessá-la se julgar necessário.

“Até quando vamos fingir acreditar na autoproclamação do ‘homem mais honesto do país’, enquanto os presentes, os sítios, os apartamentos e até o prédio do Instituto (!!) são atribuídos a Dona Marisa?” Nessa frase, o que está antes da primeira vírgula talvez seja mais importante do que o que vem depois.

Julgar que um homem capaz dessa frase está apenas desesperado é, de novo, um argumento pífio. Estamos diante não de uma metralhadora de acusações aleatórias, mas de um efetivo estrategista político – e que, capaz de refinado raciocínio político que é, ataca seus outrora aliados onde o golpe é mais duro: na imagem de homem honesto e injustiçado em torno de Lula, o mais valioso elemento político de que dispõem no momento. Chega a insinuar um acordo de leniência, proposto por João Vaccari, que envolveria o próprio Partido dos Trabalhadores – e que, é claro, tem valor apenas argumentativo, já que seria impossível sem colocar o grande nome da sigla na berlinda de forma possivelmente definitiva.

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Com sua carta, Palocci frisa que não é um homem honesto, e o faz justamente para acentuar a possível hipocrisia de quem, tendo feito o que se diz que tenha feito, vende a si mesmo como bastião de bravura e honestidade

Não sou honesto, diz Palocci- e, sem ser honesto, estive ao lado daquele que se diz o mais honesto de todos, conheço bem todas as suas fachadas e tenho meios para derrubá-las

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Do ponto de vista estritamente político, discutir se Lula é culpado ou não das coisas que Palocci afirma ou insinua é contribuir para a aura em que ele e a cúpula partidária apostam nesse momento caótico. Debater se Lula é inocente ou culpado é sujeitar-se aos termos de uma cisão que interessa aos atores em disputa, e não necessariamente a quem tenta entender esse cenário. O central, me parece, é discutir se Lula segue capaz de dizer-se inocente – ou, dito de outro modo, até que ponto é visível a diferença entre ele e outros tantos que foram parar na prisão ou que estão com a imagem manchada. Quando o ex-presidente bate no peito e diz que é o homem mais honesto do país, o quão convincente ele é?

Para o líder petista, ser condenado é menos importante do que, condenado ou não, manter seu capital político em pé. E o maior risco que Palocci oferece não é ajudar a prendê-lo, mas ter força para colocar sua imagem pública no chão. É esse embate o que mais interessa, em termos de futuro político do país.

Foto: Bruno Spada/ABr.

Igor Natusch

A intolerância crescente dá fôlego ao sonho eleitoral da extrema-direita

Igor Natusch
20 de setembro de 2017

FATO 1

Depois de ter sua encenação proibida em Jundiaí (SP) por meio de uma insólita antecipação de tutela para não macular o “sentimento do cidadão comum” (seja lá o que for isso, juridicamente falando), houve quem quisesse que a peça “O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, que coloca uma mulher trans no papel principal, fosse proibida também em Porto Alegre. Felizmente, o juiz Jose Antonio Coitinho não embarcou nessa canoa furadíssima e, em uma decisão no geral bastante sábia, rechaçou completamente, no último dia 19, um pedido de suspensão da peça – que recorria, é claro, ao batidíssimo e nada jurídico argumento de “afronta aos costumes religiosos”.

A peça, desde já um sucesso, teve que ser transferida da acanhada Pinacoteca Rubem Berta para o Teatro Bruno Kiefer, bem mais amplo e capaz de acomodar a todos que desejam assisti-la. Os ingressos estão esgotados para as duas sessões. Pena, pois realmente gostaria de assisti-la.

FATO 2

O juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, achou justo atender pedido de um grupo de psicólogos (alguns deles claramente identificados com grupo religiosos e políticos antipáticos à população LGBT) e decidiu que o Conselho Federal de Psicologia não pode “proibir” profissionais de “promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”, caso pacientes “voluntariamente venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade”. Um bonito jogo de palavras que, por ignorância ou má intenção, esconde o óbvio: uma resolução de mais de 18 anos, que impede psicólogos de tratar homossexualidade como doença, foi invalidada na base do canetaço. Ainda cabe recurso à liminar, e nos resta esperar que instâncias superiores revoguem essa sandice.

FATO 3

Pesquisa CNT-MDA mostra Jair Bolsonaro com 10,9% de intenções de voto na pesquisa espontânea para a Presidência da República, situação em que o entrevistador apenas pergunta em quem a pessoa deseja votar. Como sabemos, esse é o voto teoricamente mais consolidado, o menos vulnerável ao noticiário e aos acontecimentos em geral, o menos aberto a qualquer tipo de argumentação. Em fevereiro, ele tinha 6,5% nessa modalidade. O mesmo pré-candidato que declarou que os organizadores da mostra Queermuseu “deveriam ser fuzilados” – logo depois dourou a pílula e disse que era “força de expressão”, mas ainda assim deixou bem claro o seu grau de tolerância com manifestações artísticas de temática LGBT.

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De posse desses dados, aparentemente disparatados, que trilhas nos surgem?

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Acho que todos falam, basicamente, de um encorajamento de posturas francamente intolerantes. Não que jamais tenhamos tido pessoas indo à Justiça para impedir a visibilidade de outras, ou mesmo que não tenham inclusive vencido em alguns casos. Mas agora temos uma onda, um processo onde uma ousadia autoritária encoraja a outra, onde um movimento intolerante não devidamente combatido serve de estímulo a outra intolerância, ainda mais estridente e desavergonhada. Estivéssemos razoavelmente saudáveis, enquanto sociedade, e ninguém cogitaria seriamente que uma exposição inteira fosse fechada aos gritos de que há “pedofilia” em algumas ilustrações, tampouco veríamos turbas comemorando a proibição de uma peça teatral.

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São movimentos que ganham força na medida em que a intolerância se espalha, quando cada vez mais parece que a solução não deve ser dialogada, mas sim imposta, se possível com a eliminação física do problema. Quando nada parece seguro, as respostas fáceis e verticais parecem cada vez mais tentadoras – e quando elas se mostram possíveis, fica muito difícil controlar o vagalhão

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Por outro lado, todos sabemos que o pré-candidato mencionado acima é uma espécie de meme ambulante, uma figura que conjuga de forma cada vez mais visível tanto a imagem de outsider, supostamente sem “rabo preso” como os políticos mais tradicionais, quanto de pessoa que não tem medo de dizer o que pensa, que não dá folga a vagabundos, que vai botar ordem na casa da forma mais simples e radical possível – todos argumentos intangíveis e sem grande base racional, mas que caem como uma luva em um momento tão cheio de incertezas, medos e cisões.

Segundo a mesma pesquisa da CNT-MDA, Bolsonaro perde para Lula em um eventual segundo turno, mas venceria tanto Dória quanto Alckmin – um sinal claro de que a polarização política, ainda que siga muito importante para impulsionar o virtual candidato da extrema direita, não é tão decisiva assim para o seu voo solo.

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Há mais coisas envolvidas em Bolsonaro do que pode parecer – e elas são do conjunto da sociedade e de sua fragmentação, bem mais do que originadas no medo irracional do barbudo comunista que pode voltar à presidência

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Esse é o cenário que torna possível que, estatisticamente, mais de um décimo dos brasileiros esteja disposto a votar em Bolsonaro, independente de qualquer coisa. E que dá à sua candidatura uma relevância crescente e que, racionalmente, não pode ser ignorada. Daí a dizer que a vitória da extrema-direita em 2018 é um fato consumado ou mesmo a hipótese mais provável vai uma longa distância, cujas circunstâncias pretendo desdobrar em um post futuro. Por enquanto, fica o alerta: são as rachaduras em nossa convicção democrática que estão alimentando a intolerância, e é essa intolerância triunfante que dá fôlego à candidatura bolsonarista. É um cenário de sonhos reacionários possíveis, tanto no Judiciário quanto no dia a dia, e certamente também na frente da urna. Mudar o cenário só é possível a partir dessa compreensão.

Foto: Divulgação

Igor Natusch

Pegar carona no MBL não é só alegria – e Marchezan sentiu o recado

Igor Natusch
13 de setembro de 2017
12/09/2017 - PORTO ALEGRE, RS - Ato contra o cancelamento da exposição Quuermuseu, no Santander Cultural. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em meio à gritaria e à sucessão de acontecimentos envolvendo o lamentável encerramento da mostra Queermuseu, no Santander Cultural de Porto Alegre (acontecimento que abordei, numa pegada um tanto diferente, em meu perfil no Medium) uma aparentemente pequena, mas na realidade bem significativa mudança de posição passou quase despercebida. Trata-se do prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior, que postou em redes sociais uma mensagem que parecia endossar, sem qualquer crítica, os argumentos usados no ataque às obras – apenas para, poucas horas depois, deletar tudo sem comentários e sem explicações.

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Claro que nada há de intrinsecamente errado em postar algo e, pouco depois, arrepender-se. Convenhamos, quem nunca? O que interessa, aqui, não é o gesto em si, mas o recuo que ele traz, de todo incomum em um prefeito que se esmera em manter uma imagem de convicto e determinado. E é claro, os motivos que levam a essa reconsideração

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É bastante claro que o MBL, tão destacado nos protestos que levaram ao fim o governo de Dilma Rousseff, tem corrigido a rota de seu discurso nos últimos tempos. A luta contra a corrupção, fundamental em seu surgimento e que alçou seus jovens líderes ao insólito status de referências no tema, deixou de centralizar as ações do grupo – cedendo espaço a uma oposição menos política e mais, digamos, moral aos supostos pecados da esquerda.

Na medida em que enfraquece a suposta disposição de punir todos os corruptos, doa a quem doer – uma vez que não é possível apagar da internet todas as mensagens de apoio do MBL a Geddel Vieira Lima, Aécio Neves, Eduardo Cunha e tantos outros – surge forte o combate à suposta doutrinação ideológica promovida pelos inimigos, em especial contra a juventude indefesa. Depois da cruzada contra a lavagem cerebral nas escolas de São Paulo, surge a luta contra a imoralidade na arte, tudo em uma linguagem superlativa que beira a carolice.

A ideia é clara: aproximar o MBL dos núcleos mais conservadores, ao mesmo tempo que joga com o senso comum e com angústias primais de boa parcela da população. Engaja, com esse apelo ao moralismo chão e sem nuances, diferentes tipos de medo, diferentes preconceitos, diferentes obsessões. Talvez se possa dizer que distancia-se de Aécio e anda na direção de Bolsonaro, ou ao menos daqueles que nele desejam votar ano que vem. É um movimento de alinhamento político e, neste momento, é impossível dizer se vai funcionar ou não. Eu, pessoalmente, não duvidaria.

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A questão: esse movimento é interessante para Marchezan?

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Que o prefeito é no mínimo simpático ao MBL é sabido desde o começo de seu mandato. Traz pessoas próximas ou inseridas no grupo em diferentes esferas do Executivo, recebe alegremente integrantes em seu gabinete e adota, como já referi antes por aqui, uma postura de fidelização midiática que tem muito a ver com o modo que o MBL escolheu para fazer política.

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Até então, essa agenda vinha sem oscilações; neste começo de semana, porém, houve uma mudança. Talvez pela primeira vez em todo o governo, Marchezan recuou. O que causou esse passo atrás?

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Ler qualquer uma das declarações do secretário de cultura de Porto Alegre, Luciano Alabarse, após o fechamento da exposição ajuda a entender esse movimento. Mesmo longe da unanimidade, Alabarse é um homem da cultura, fortemente inserido no meio e que jamais poderia aceitar (como não aceitou) o encerramento de uma mostra de arte em meio a um verdadeiro frenesi de moralismo, como foi o caso. Ao mesmo tempo, é um dos mais enfáticos e leais secretários de Marchezan, ao ponto de escrever um artigo um tanto quanto caricato ao jornal Zero Hora, comparando o prefeito a Caetano Veloso. Some-se isso tudo ao post de Marchezan falando em pedofilia e zoofilia na exposição Queermuseu e teremos, senhoras e senhores, uma conta que não fecha.

Pela primeira vez, Marchezan viu-se diretamente confrontado com as dificuldades políticas envolvidas em sua aproximação com o MBL. Antes apenas sorvendo os bônus dessa parceria, teve que entender, na marra, que essa brincadeira tem seus ônus também – e que nem todos combinam com a imagem de político dinâmico, convicto e moderno que Marchezan anseia para si.

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Nada há de moderno em proibir acesso à arte, ao contrário: trata-se do que de mais velho, rançoso e retrógrado pode existir na política e no pensamento como um todo

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Se a primeira reação, dele ou da equipe que opera suas contas nas redes sociais, foi dentro do fluxo comum entre ele e o MBL, logo ficou claro que era um passo arriscado demais, com custos pesados a curto e médio prazo. Se o MBL corteja a extrema-direita com entusiasmo crescente, talvez ir tão fundo nisso não interesse tanto assim ao prefeito – afinal, governar uma cidade mergulhada numa caça às bruxas no campo artístico, com repercussão nos maiores veículos da mídia internacional, não é exatamente um predicado animador.

A patética sucessão de acontecimentos que encerrou prematuramente uma mostra artística no coração do centro de Porto Alegre pode trazer aprendizado, ainda que à força, a vários núcleos. Inclua-se na conta o Santander, que tentou escapar de um desgaste e mergulhou em outro de potencial talvez ainda maior, e o próprio MBL, que já adota uma postura mais defensiva e deu até declarações a rádios locais se distanciando do fim da mostra – como um pai que ainda quer ser reconhecido como tal, mas se recusa a embalar a criança que gerou. E suspeito que também a política local recebe um recado com o episódio: a de que a viagem de carona no trem festivo do MBL não será sempre um mar de rosas.

Foto: Guilherme Santos/Sul21