Will and Grace está de volta – e ainda é relevante
Geórgia Santos
29 de junho de 2018
O retorno de Will and Grace depois de onze anos fora das telas foi uma grata surpresa. Por outro lado, também foi uma surpresa estranha. Porque é absolutamente estranho perceber que 20 anos depois da estreia, eles continuam relevantes. No primeiro episódio, o quarteto fantástico está jogando Celebridade na sala do apartamento de Will com um texto que não nos permite esquecer que estamos em 2018.
A série continua a mesma. Will (Eric McCormack) e Grace (Debra Messing) aparecem morando juntos temporariamente. Os dois solteiros e batendo cabeça. Grace diz que ficará apenas algumas semanas, até baixar a poeira.
Jack: Dos seus genitais?
Grace: Do meu divórcio!
Felizmente, os criadores Max Mutchnick and David Kohan ignoram o (horrível) final da oitava e até então última temporada, em que os amigos são vistos criando seus filhos separadamente e ficam 20 anos sem se falar até que as crias resolvem se casar. Não, né. Eles atribuem a cena a um pesadelo de Karen (Megan Mullally), induzido por pílulas e álcool, enquanto ela está catatônica no sofá.
Jack (Sean Hayes) mora do outro lado do corredor, ainda ácido, ainda incorrigível e hilário. Quanto a Karen, essa está definitivamente vivendo o sonho. Afinal de contas, o presidente dos Estados Unidos é justamente o tipo de homem que ela admira e espera que ocupe o poder.
A série definitivamente continua a mesma, mas se antes era elogiada por ajudar a educar os americanos com relação às uniões homoafetivas e a luta por direitos da população LGBT, hoje essa educação se estende a uma crítica social e política. Will and Grace confirma as suspeitas de analistas de que o tragicômico governo Trump, mais trágico do que cômico, seria um prato cheio para cientistas políticos e humoristas.
Tanto é assim que o primeiro episódio é recheado de referências ao atual momento político dos EUA. Há quem considere forçado, mas eu acho hilário e necessário. E usar a amizade de Karen com o presidente é a maneira perfeita de tornar tudo mais natural. Em todos os episódios há situações que nos fazem refletir sobre o momento polarizado a que estamos todos submetidos, seja nos Estados Unidos ou no Brasil. Mas há um momento em especifico que eu acho primoroso e emblemático.
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O bolo para o SEU presidente
Karen: Passando;
Homem: Ei, escolhe um número;
Karen: Hm, ok, um!
Confeiteira: Oi, sou a Amy, como posso tornar seu dia mais doce?
Karen: Eu preciso de um bolo;
Amy: Você está com sorte, eu faço bolos, por enquanto, se eles não aumentarem o aluguel, essa vizinhança inteira…
Karen: Querida, querida, pessoas como eu não se preocupam com os problemas da classe trabalhadora branca, aquilo foi só pra ganhar a eleição. Falando nisso, eu preciso de um bolo grande para o aniversário de uma pessoa muito importante;
Amy: Hm, importante?
Karen: Aham. Eu quero de chocolate, com cobertura branca e um monte de estrelas, letras em vermelho e eu preciso que diga M – A – G – A. Make America Great Again ?Faça a America Grande Novamente, em tradução livre, é o slogan de campanha de Donald Trump?! Você fará um bolo para o seu presidente!
Amy: Oh!
Karen: Ele vai a minha casa para uma coisinha, nós vamos servir White Russians ?Russos Brancos, o nome de uma bebida?, mas voce não precisa saber da lista de convidados.
Amy: Isso parece legal, mas não; Desculpe, odeio decepcionar pessoas e eu sou péssima em me defender, por isso Jocelyn diz que eu não deveria trabalhar no balcão, mas ela está morta agora e eu não vou fazer um bolo para aquela pessoa;
Karen: Deixa eu ver se entendi, Smiley Cyrus. Você não quer fazer um bolo porque não gosta do que ele representa?
O episódio faz uma clara referência ao que aconteceu no Colorado, quando um confeiteiro recusou fazer o bolo de casamento para um casal gay alegando que feria suas crenças religiosas – no caso, cristãs. Além disso, a série, de maneira inteligente, faz com que a gente reflita sobre empatia e a necessidade de se ter um debate transparente sobre o que as coisas significam. Quando Grace fica sabendo do que aconteceu com Karen por meio de seu assistente, Tony (Anthony Ramos), se sente ultrajada. Justamente porque imagina ser um caso de preconceito contra casais homossexuais. Quando fica sabendo que o bolo é para Donald Trump, o ultraje desaparece, alegando que são coisas completamente diferentes.
Tony: Como vai requerer sua liberdade de expressão se não vai defender a dos outros?
Grace: E se alguém quisesse fazer um bolo que diz: “Eu Odeio Porto-Riquenhos”?
Tony: se diz “MAGA”, a parte do “Eu Odeio Porto-Riquenhos” está implícita;
Grace engole o orgulho e decide ajudar Karen. Ela deixa claro para a confeiteira que considera que as crenças da amiga são horríveis, mas mesmo pessoas com crenças horríveis tem direitos. Consequentemente, Karen consegue o bolo, mas a confeiteira faz questão de dar um recado e incluir umas letrinhas no pedido.
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“I” MAGA “Y”
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“Eu sou um gay” em bom português. Portanto, o episódio The Beefcake & the Cake Beef inteiro é um espetáculo e um ótimo exemplar do motivo pelo qual amamos Will and Grace e do porquê a série continua relevante. E engraçada. E provocadora. E merecedora dos seus 16 Emmy. No final, vemos um bonitão que flerta com Grace enquanto pede para a confeiteira ajustar a suástica do bolo, que está um pouco torta.
O 28 de junho nos leva à Nova York de 1969, quando frequentadores do Stonewall Inn reagiram à constante interferência da polícia no estabelecimento – motivada, obviamente, por intolerância. Para aquela noite estava programada mais uma batida policial no famoso bar gay de NY. Mas não foi o que aconteceu. Gays, lésbicas e travestis que estavam no local se rebelaram contra a ação e mudaram para sempre a história do movimento LGBT. O que era para ser (mais) uma noite de opressão deu início a uma série de protestos pelo fim da discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero. No ano seguinte, a resistência seria marcada pela primeira marcha do Orgulho nos Estados Unidos, movimento que inspirou tantos outros pelo mundo.
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Quase 50 anos depois, o 28 de junho é conhecido como dia de luta contra o preconceito. Conhecido como dia de Pride, de Orgulho de ser quem se é. Assim mesmo, em caixa alta.
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Até o movimento iniciado em Stonewall, a mobilização dos grupos gays nos EUA era focada na aceitação dos homossexuais. Então, a revolta de 1969 foi um divisor de águas na luta por direitos da população LGBT+. A partir daquele momento, ser gay passa a ser uma forma de desafiar também as estruturas sociais heteronormativas. Consequentemente, há um aumento importante no coro do movimento e uma série de conquistas fundamentais.
Mas ainda há um caminho longo pela frente, especialmente para o Brasil. Todos os anos o Grupo Gay da Bahia (GGB) monitora o assassinato de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil. Os dados são assustadores: 2017 registrou um aumento de 30% nos homicídios de LGBTs em relação a 2016. Foram 445 mortes no ano passado e 343 no ano retrasado. O Brasil ainda ostenta o título de país mais violento do mundo para pessoas trans, por exemplo. Levantamento da ONG Transgender Europe indica que houve 868 mortes entre 2008 e 2016. O segundo colocado, o México, registrou 257 no mesmo período.
O Vós tem muito orgulho de fazer parte do grupo de defende e apoia o movimento pelos direitos LGBT+. A nossa forma de contribuir é trazendo à tona assuntos cruciais da comunidade para que a sociedade tenha elementos para refletir. E fazemos isso por meio desta coluna. Por isso, escolhemos alguns textos fundamentais que já foram publicados por aqui. Orgulhe-se!
Raja Gemini é o nome artístico de Sutan Amrull. É a personagem criada por esta fabulosa drag queen que venceu a terceira edição do reality show RuPaul’s Drag Race, uma das maiores atrações de entretenimento LGBT atualmente.
A terceira temporada da série foi ao ar em 2011 e muita gente que hoje acompanha o programa pode nem tê-la visto. Em novembro de 2014, Raja esteve em Porto Alegre pela primeira vez, participando da segunda edição da festa XTRAVAGANZA DRAG PARTY. Se não me falha a memória, foi a primeira visita de uma vencedora de RuPaul’s Drag Race à cidade. Naquela ocasião, tive a oportunidade de conversar com Raja durante mais de uma hora.
A entrevista viria a ser publicada no site Nada Errado, de Minas Gerais. O site acabou saindo fora do ar e a entrevista infelizmente se perdeu, junto com as maravilhosas fotos feitas pelos queridos Felipe Matzembacher e Marcio Reolon. Hoje em dia o Nada Errado sobrevive no Medium, mas o registro do vibrante papo que tive com a Raja não está lá.
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Por isso faço este resgate e deixo aqui a íntegra da entrevista.
Raja e a cultura drag ainda têm muito a nos ensinar!
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Quando você começou a se montar?
Raja: Eu comecei a me montar aos três anos de idade. Eu vestia as roupas e jóias da minha mãe. Foi nessa idade que eu comecei a experimentar. Mas eu comecei a levar isso mais a sério na adolescência, a sair nos clubes em drag a partir dos 16 anos. Eu cresci num lar religioso, então isso fazia parte da minha rebelião, sair com meus amigos, ir para as festas. Essa era a minha primeira intenção. Foi quando eu fiz 18 anos que decidi que drag era algo que eu realmente queria fazer. A maior parte do início da minha vida adulta foi bastante queer, focada em gênero, em drag, em me transformar em uma linda mulher. Mas agora não é mais apenas sobre isso. Não é uma rebelião, é mais sobre a forma como eu me relaciono e me identifico comigo mesmo.
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Era uma batalha, era muito complicado para mim me expressar na minha família.
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Como foi a sua relação com os pais?
Raja: Era muito difícil para eles entenderem. Eu nunca realmente saí do armário para eles. Eu comecei a me montar muito cedo, então eles sempre souberam. Meu pai foi muçulmano durante 50 anos, depois ele se converteu ao cristianismo – o que é proibido – e se tornou um pastor. Então sempre teve esse aspecto religioso presente na minha família. Era uma batalha, era muito complicado para mim me expressar na minha família. Eu sempre tive muitos medos até ir para a faculdade, que foi quando comecei a me sentir mais à vontade, já vivendo fora da casa dos meus pais. Mas com o tempo foi ficando mais fácil para mim me expressar junto à minha família.
Quando tu começou a trabalhar como maquiador profissional?
Raja: Eu comecei a fazer drag e a trabalhar como maqueador no mesmo período. Eu queria ser maqueador porque eu também queria saber me maquear bem. Eu tinha uns 20 anos quando eu comecei as duas carreiras de uma forma mais profissional.
Como surgiu a decisão de tentar participar de drag race?
Raja: Foi uma decisão difícil para mim, porque eu já tinha uma carreira estabelecida. Eu sabia que o seriado estava se tornando popular, mas eu não sabia se isso iria realmente ser algo arriscado para minha carreira como maquiador. Eu pensava que as pessoas poderiam zombar de mim por estar participando de um reality show, como se eu não estivesse me levando a sério. Eu pensei muito sobre isso e cheguei à conclusão de que eu estava muito confiante também com meu trabalho como drag queen, então simplesmente me candidatei.
Foi a tua primeira tentativa?
Raja: Sim.
Que sorte!
Raja: Eu acho que as vezes as coisas apenas acontecem. Acho que quando fui escolhido para o seriado, isso demonstrou que a televisão estava pronta para algo diferente. Eu fiquei muito temeroso, porque eu era diferente. Eu achava que não fosse durar muito tempo, que eu não fosse ganhar. Eu achava que não iria durar nem meia temporada.
Quando tu entrou no seriado, tua carreira como maquiador era mais sólida do que a tua carreira como drag?
Raja: Eu era freenlancer, então às vezes eu tinha muito trabalho e às vezes não tinha nada. Se eu não conseguia me sustentar como maquiador, eu sempre tinha a opção de trabalhar como drag queen e vice-versa. Eu acho que tudo aconteceu quando tinha que acontecer, porque quando fui selecionado para drag race eu já estava pensando que eu tinha que me dedicar com muita seriedade a uma coisa ou outra. Eu já estava com 37 anos, eu tinha que levar isso a sério e crescer profissionalmente. Eu pensava que talvez pudesse me dedicar somente à maquiagem, mas foi aí que Drag Race aconteceu.
O que essa experiencia significou na tua vida?
Raja: Meus pais puderam ver o que eu fazia. Isso significou tudo para mim. Um ano depois de eu ganhar, meu pai faleceu. Antes disso ele pôde me ver como eu era. Eu lembro de sentir tanto medo de me expressar na frente dele. Eu sempre pensei: como vou explicar para ele que me visto com essas roupas engraçadas e faço shows nas boates? Ele nunca iria entender. E quando eu participei de Drag Race, meu pai pôde me ver fazendo algo que eu realmente gosto de fazer, que eu tenho orgulho de fazer. Para mim, fazer drag e participar daquela competição era minha própria versão de ser atlético, de ser forte.
Depois de tudo, ele acabou te apoiando?
Raja: Ele amou. Ele muito feliz e muito orgulhoso de mim. Isso foi o mais importante de tudo, juntamente com as amizades que eu fiz lá. Sou muito próximo da Manilla. Essa série mudou minha vida de muitas formas. Olhe onde eu estou agora: no Brasil! Antes de participar da série, fazer drag era apenas um fenômeno local para mim, eu trabalhava em Los Angeles, em Hollywood, agora tenho viajado muito.
No último episódio, Ru disse que você é uma pessoa bem introvertida. Você ainda se considera assim?
Raja: Eu acredito em Astrologia, eu acho que tem uma parte de mim que é, sim, bastante tímida. Nem sempre eu sei como me expressar em determinadas situações. Eu gosto de passar algum tempo sozinho, é assim que a minha mente funciona, eu acho que isso é algo poderoso. Então eu posso, sim, ser um introvertido, mas eu também posso ficar num palco, em frente a centenas de pessoas, e me jogar em direção a elas.
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No processo de estar em Drag Race, de poder competir e interagir com as outras participantes, me deixou muito mais seguro, porque comecei a perceber a força que eu tinha.
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E também no último episódio, quando Ru pediu para você listar suas qualidades e defeitos, você disse que pela primeira vez estava se enxergando como uma pessoa bela.
Raja: Eu acho que por um bom tempo eu usei drag como uma armadura para esconder qualquer insegurança que eu pudesse ter. No processo de estar em Drag Race, de poder competir e interagir com as outras participantes, me deixou muito mais seguro, porque comecei a perceber a força que eu tinha. Eu também finalmente percebi que, a essa altura, fazer drag já não era algo separado da minha vida. Já não havia mais um Sutan e uma Raja: eram os dois num só. Estar no programa me ajudou a perceber isso.
E fale um pouco sobre o estilo da Raja. Ela mudou muito com o tempo? Ainda brinca com as questões de gênero?
Raja: Até onde me lembro, nunca haviam considerado que eu adotava um estilo mais genderfuck até eu ter ingressado no programa. Na maior parte do tempo, eu sempre fui considerada linda e feminina, nunca haviam dito que eu fazia um estilo genderfuck. Eu acho que algo foi despertado em mim, nesse sentido, enquanto eu estava no programa. Mas, em geral, meu estilo não é tanto sobre gênero quanto é sobre criar uma ideia. Eu adoro ideias que são multiculturais, porque eu viajo muito e gosto de coletar influências de diferentes partes do mundo. Eu faço drag não porque quero me tornar uma mulher, mas porque quero expressar esse lado feminido. Eu faço drag porque eu amo as roupas, mais do que eu gosto da transformação. Só porque é um vestido, não significa que um homem não possa usá-lo. Se você fica ótimo em um vestido, você deveria usar esse vestido.
Você viveu na Indonésia dos 3 aos 10 anos. Como esse período influenciou na sua vida e na sua arte?
Raja: Influenciou tudo. Eu passei minha infância como um garotinho em Báli, totalmente envolvido naquela cultura, naquela espiritualidade, naquelas praias maravilhosas. Isso foi muito marcante para mim. Quando eu voltei para os Estados Unidos, já no início dos anos 1980, a primeira coisa que eu vi na televisão foi Boy George. Nós sequer tínhamos televisão na Indonésia. Quando voltei para os Estados Unidos, comecei a absorver todas essas referências, assitir aos clássicos de Hollywood, como uma esponja. Acho que crescer nesses lugares tão diferentes significou muito na minha vida, eu dou mais valor às coisas, porque cresci numa área muito pobre, então meu olhar sobre as coisas é bem diferente da maioria dos americanos.
Depois de ganhar, você disse que queria falar com as crianças, inspirar os meninos, dizer a eles que é tudo bem ser uma pessoa que não se enquadra.
Raja: Eu tenho feito tantas coisas desde então, eu vou dar palestras em universidades, em organizações LGBTs. Eu acho que meu diálogo com as novas gerações não é exatamente uma conversa direta, mas ocorre pela forma como eu vivo a minha vida. Eu nunca conversei com meus ídolos e meus heróis, eles nunca conversaram diretamente comigo. Mas eu assistia eles. Eu via Madonna, eu via RuPaul, eu via todos eles fazendo o que eles faziam e vivendo suas vidas de forma autêntica. E hoje nós temos as redes sociais, as pessoas vêm de todos os lugares entrar em contato pelo Instagram, pelo Twitter e pelo Facebook. Isso é maravilhoso.
Muitas pessoas mais jovens costumam te escrever e-mails, te contar sobre suas vidas?
Raja: Milhares de e-mails. Eu não consigo ler todos e acho que não tenho que ler todos. Muitas mensagens são parecidas. Eu estava no aeroporto aqui e dois garotos estavam me esperando. Duas adoráveis rainhas. É dessa forma que eu sei que estou fazendo a diferença, que, de alguma forma, sou um modelo para os mais jovens.
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Eu não conseguia entender porque as pessoas não gostavam de mim, eu nunca tive uma má intenção. Foi algo que me machucou muito, ver algumas pessoas sendo tão cruéis.
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Você também disse que, com a vitória, passou a ter muitos haters. Isso ainda continua ocorrendo?
Raja: Eu era muito novo em relação às redes sociais. Eu mal tinha uma conta no Twitter. Eu não conseguia entender porque as pessoas não gostavam de mim, eu nunca tive uma má intenção. Foi algo que me machucou muito, ver algumas pessoas sendo tão cruéis. Mas eu percebi que isso faz parte da nossa cultura. Eu tenho uma ótima amiga, a Dita Von Teese, nós nos conhecemos há quase 20 anos, e eu perguntei a ela como ela lida com isso? Ela disse: “Raja, se você ignorar eles, eles não existem”. Foi uma grande lição para mim. Se eu não os vejo, eles não podem me machucar. Então já fazem três anos desde a vitória e eu até que tenho gostado dos meus haters, porque quando eu leio o que eles escrevem ou ouço o que eles dizem, eu percebo que são besteiras, que eles têm muito medo daquilo que desconhecem e eu entendo isso. Eu acho que com o tempo eles vão acabar entendendo também.
Vocês são muito más umas com as outras no programa, isso é verdade ou é edição pelo show?
Raja: Eu acho que é uma competição e os produtores sabem como escolher diferentes pessoas para que haja esses tensionamentos. Eu não acho que a série faria tanto sucesso se todo mundo simplesmente se abraçasse, se amasse e dissesse como são lindos. Eu ficaria entediado vendo isso. Quando eu assisto um programa de televisão, eu quero ver tensão, drama. E Drag Race tem isso. Ainda que nós nos montemos, nós ainda somos basicamente garotos. Esse é o nosso esporte, é o nosso futebol. E muitos de nós nos tornamos verdadeiros amigos, trabalhamos em muitos lugares juntos. E são tantas drag queens, existe muita sororidade, somos uma comunidade e, inclusive, uma indústria.
Como uma vencedora, você tem sido convidada a participar de eventos para arrecadar fundos a causas sociais e do movimento LGBT?
Raja: Eu apoio muitas causas, mas eu acho que deveria participar mais, dedicar mais tempo a isso. É algo que eu quero fazer mais, até pela posição que eu ocupo. Não é algo que eu acho que faça o bastante, tanto quanto deveria.
Raja também está investindo na música, já lançou três singles. O que podemos esperar daqui por diante?
Raja: Eu nunca me considerei um músico ou um popstar. Eu estou aprendendo muito, eu sempre amei a música e agora consigo me expressar nesse sentido. Minhas influências são multiculturais, estou tendo muitas ideias. Eu tenho um apreço muito grande pela cultura oriental, pela mitologia, pela espiritualidade e pela iconografia, gosto de brincar com esses elementos. Eu não sei exatamente onde isso vai parar, mas vou continuar me expressando de várias formas e a música certamente será uma delas. Eu sei que não sou Adore DeLano, que tem um talento incrível, e não sou Courtney Act. Elas têm seus pontos fortes, ver tanta rainhas poderosas me fez perceber também onde está a minha força, que está no fato de eu conseguir me expressar visualmente.
Como foi seu tour pelo Brasil?
Raja: Maravilhoso. Eu nunca pensei que fosse voltar ao Brasil. Eu vim para cá há muitos anos, quando estava trabalhando em America’s Next Top Model, antes de Drag Race. Fiquei em São Paulo, mas estava trabalhando muito e acabei não fazendo muito turismo. E agora visitei três cidades diferentes: Recife, São Paulo e Porto Alegre – que é como São Paulo, só que mais tranquila e aconchegante. E o churrasco! Meu Deus! A primeira coisa que eu fiz quando cheguei foi comer um churrasco.
Que referências do Brasil você mais lembra?
Raja: Em palavras, eu sei dizer “ativo”, “passivo” e “versátil”, que eu prefiro chamar de Versache. Na minha primeira visita ao Brasil, eu me perguntava: como será que é esse país? Eu imaginava um país com muita natureza preservada e eu achava que todo mundo era sexy no Brasil, até mesmo avós e avôs, como se todo mundo natural e culturalmente tivesse muito sex appeal.
Ficou surpreso com a força da cultura Drag aqui?
Raja: Estou chocado. Os comentários e as mensagens de brasileiros vieram desde muito cedo para mim. Eu nem sabia como vocês nos assistiam, se Drag Race passava na televisão. Isso é maravilhoso. É incrível estar aqui, estou chocado, ver as pessoas tão entusiasmadas com meu trabalho me fez recarregar as energias.
Ouvi dizer que você gostou muito da Capirinha.
Raja: Eu já tinha tomado caipirinhas antes. Eu acho que é uma bebida bastante adequada para mim, é uma experiência muito forte, que mistura o sabor cítrico do limão com o doce do açúcar. Eu amo caipirinhas.
E o que você diria para quem está começando a se montar?
Raja: Encontrem-se. Sejam criativos. Não copiem ninguém. Tenham suas inspirações, seus modelos, mas não copiem. Porque drag começou como uma revolução, e é algo que deve ser sempre tratado desta forma um pouco revolucionária, política e espiritual. Outro conselho importante é: divirtam-se, sempre! Se eu não me divertisse, não estaria fazendo nada do que faço, de forma alguma.
O candidato anti-LGBT perdeu na Costa Rica, mas suas ideias cresceram
Samir Oliveira
5 de abril de 2018
Foto: Fabricio Alvarado | Arquivo Pessoal
A Costa Rica acaba de sair do segundo turno de suas eleições presidenciais com um resultado que, por um lado, representa um alívio a todos os defensores dos direitos humanos, mas por outro acende um sinal vermelho de alerta permanente.
O candidato reacionário e anti-LGBT Fabricio Alvarado foi derrotado, mas suas ideias ganharam peso.
No pleito do dia 1 de abril o cantor evangélico e apresentador de TV Fabricio Alvarado ficou com 39,2% dos votos, sendo derrotado pelo jornalista e escritor Carlos Alvarado, que obteve 60,8% de apoio popular. A virada surpreendeu o país, invertendo o resultado do primeiro turno e contrariando a previsão das pesquisas de opinião, que demonstravam um cenário extremamente polarizado.
A Costa Rica é reconhecida como a democracia mais sólida da América Central. Talvez seja mais conhecida ainda por ser um dos poucos países do mundo sem Forças Armadas. Mas estas eleições trouxeram à tona outra faceta do país: o conservadorismo brutal de sua sociedade em temas como sexualidade e direitos humanos.
Estas duas questões transformaram-se no eixo do debate eleitoral. Apenas um mês antes do primeiro turno, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinou que a Costa Rica legalizasse o casamento civil igualitário. A decisão posicionou o assunto no centro de todas as campanhas. Enquanto o governista Carlos Alvarado, de centro-esquerda, celebrou a sentença, o oposicionista de direita afirmou que um eventual governo seu não respeitaria o julgamento e ainda retiraria o país deste importante organismo multilateral.
Fabricio Alvarado mobilizou os piores sentimentos do país com sua candidatura. Sob o pretexto de defender uma suposta “família natural”, foi totalmente contrário a qualquer concessão de direitos à população LGBT. Garantiu que sua primeira medida no governo seria a revogação de um decreto que protege servidores federais e usuários dos serviços públicos contra a discriminação.
Os pronunciamentos do presidenciável da direita beiraram as raias do crime ao defender a chamada “cura gay”, uma invenção reacionária do fanatismo neopentecostal.
“Estou de acordo em que as pessoas que queiram sair da homossexualidade devam ter um espaço onde sejam atendidas e restauradas”, declarou. Isso mesmo, o termo exato que ele utilizou foi este: restauração.
Fabricio Alvarado é uma espécie de Marco Feliciano costarriquenho. Ele chegou a dizer que a homossexualidade é uma invenção do Diabo. E o pior é que muita gente foi seduzida por sua retórica preconceituosa. “Quando o inimigo (o Diabo) consegue confundir sexualmente uma pessoa e desviar sua identidade sexual, o que está fazendo é destruir sua identidade em Deus”, declarou.
Felizmente o jogo virou no segundo turno e Carlos Alvarado viu sua votação aumentar de 21,7% para 60,8%. O candidato do governista Partido Ação Cidadã (PAC) representa a continuidade de um projeto de centro-esquerda desgastado e envolvido em denúncias de corrupção. Não faço aqui uma defesa de sua plataforma, que não empolga e definitivamente não representa qualquer novidade. Mas é preciso dizer que sua vitória foi uma vitória contra a homofobia e o preconceito. A derrota de Fabricio Alvarado simbolizou um levante da Costa Rica contra o crescimento da intolerância, tanto é que o índice de eleitores que compareceram às urnas aumentou do primeiro para o segundo turno.
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Mas o alerta que faço no título não é em vão
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Apesar de ter sido derrotado, Fabricio Alvarado garantiu uma sólida base social no país. Entrou na eleição como o único deputado de um partido pequeno, o Partido da Restauração Nacional (PRN), e saiu do pleito como o líder da segunda maior bancada no Congresso, com 14 parlamentares -à frente inclusive da bancada governista, que elegeu 10 deputados.
A vitória da homofobia e do preconceito no primeiro turno acendeu o sinal de alerta e a sociedade costarriquenha soube reagir à altura. Mas o crescimento estrondoso do PRN demonstra que o fundamentalismo religioso está a poucos passos do poder. E eles não vão desistir, por isso nós devemos seguir resistindo.
LGBTs no centro das decisões políticas – por que não?
Samir Oliveira
29 de março de 2018
Em maior ou menor escala, o mundo inteiro assiste a uma crise brutal da democracia representativa. No Brasil não é diferente. O sistema, a política, tem muito pouco de democráticos. Pergunte aos LGBTs. Ou alguém realmente acha que chamar o povo para apertar um botão a cada dois anos é democracia?
As instituições estão distanciadas do povo, que não é chamado a decidir sobre a aplicação de políticas públicas. Mais do que isso: seus dirigentes estão encastelados em privilégios e temem a participação cidadã.
Há algumas maneiras mais ou menos eficientes de furar os bloqueios impostos por nossa racionada democracia. Uma delas é a criação de conselhos – órgãos vinculados à administração pública e compostos por integrantes da sociedade civil, sem caráter remunerativo. Assim temos conselhos municipais, estaduais e federais dedicados a diversas áreas. Os exemplos mais estruturados são saúde, educação e cultura.
Estas entidades atuam de forma a assessorar o poder público, mas também têm a missão de fiscalizar as ações, denunciar irregularidades, cobrar medidas efetivas e acompanhar execuções orçamentárias. O trabalho dos conselhos promove um controle social indispensável sobre os governos. Limita um pouco a sensação de “cheque em branco” que muitos imaginam receber do povo após uma eleição.
Com o avanço das lutas por direitos civis no país, novos conselhos foram se fazendo necessários nas diversas esferas de poder – como de mulheres, idosos e negros e negras. Mas ainda há um avanço que precisa ser concretizado: a criação de conselhos de políticas para a população LGBT. São raros os municípios que possuem algum tipo de estrutura pública voltada para esta comunidade. Porto Alegre, que poderia utilizar o prestígio político de ser a Capital para tornar-se uma referência ao restante do Estado, não possui um conselho LGBT.
Essa lacuna não existe por acaso. O preconceito dos governantes acaba afastando qualquer possibilidade de criação destes conselhos, ainda que os argumentos utilizados para isso sejam outros.
Mesmo quando, após muita pressão, a comunidade LGBT conquista a aprovação de um conselho municipal, acaba tendo que se mobilizar para impedir que o órgão torne-se uma correia de transmissão do governo e tenha seu caráter fiscalizatório e independente esvaziado.
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Resistindo às manobras
É o que ocorre neste momento em Pelotas, em que a prefeitura e entidades que apoiam o governo do PSDB na cidade tentam controlar a criação do Conselho Municipal LGBT. Um grupo de ativistas tem reagido a estas manobras e elaborou uma proposta de regimento interno para o órgão. Garantindo um funcionamento democrático, a eleição de seus integrantes e a paridade entre representações da administração pública e da sociedade civil. Um abaixo assinado para a implementação deste estatuto pode ser conferido aqui.
O caminho para a conquista de uma democracia real no Brasil é longo e árduo. A casta política não vai abrir mão de seus privilégios facilmente. Quem sempre decidiu tudo sozinho não está acostumado a compartilhar poder e a ouvir a população. Os mecanismos de participação popular através de conselhos não são perfeitos, nem são a única solução. É preciso combater seus vícios, como a eternização de velhas lideranças distanciadas de suas bases e a burocratização de suas estruturas, que sofrem tentativas permanentes de cooptação por parte dos governos.
O movimento que ocorre em Pelotas dialoga com esta necessidade de refundar fórmulas viciadas de participação limitada do povo nas decisões políticas. Esta mobilização não poderia vir de outro setor que não a população LGBT, historicamente colocada à margem do poder. Que Pelotas dê o exemplo que Porto Alegre se furtou de ser e coloque a comunidade LGBT no centro das decisões sobre as políticas públicas que lhe dizem respeito!
A foto (Harvey MIlk Foundation) de capa mostra Harvey Milk, o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, em 1978, como supervisor da cidade de São Francisco. Um símbolo da luta LGBT por representatividade em cargos oficiais.
Faz um bom tempo que li este texto pela primeira vez, publicado em julho de 2015 no site Salon. Desde então, procuro revisitá-lo com alguma frequência e sempre encontro nas palavras da autora, a escritora muçulmana Lamya H, sentidos que a leitura anterior não revelava.
Por entender que esta discussão praticamente não existe no Brasil, e por combater frontalmente os estereótipos e preconceitos que cercam a comunidade muçulmana e os povos árabes em geral, resolvi fazer uma tradução livre e imperfeita das palavras de Lamya. Publico seu texto aqui em minha coluna no Vós na esperança de que suas reflexões também deixem outras mentes inquietas e, quem sabe, contribuam para mudanças em paradigmas já tão cristalizados.
Eu estou empolgada com este encontro. Eu realmente estou. Já faz um tempo desde minha última decepção amorosa, e minha melhor amiga tomou para si a tarefa de decidir que chegou a hora de eu seguir em frente. Ela insistiu para que eu baixasse o Tinder e me animou enquanto fazíamos juntas meu perfil. Fui encorajada a deslizar para a direita algumas vezes e falar com mulheres com quem eu dava um match. Levou algum tempo, mas eu finalmente estou entrando neste clima. E agora eu estou empolgada com este encontro.
Ela conseguiu se elevar até o topo das minhas crushes do Tinder. Sua originalidade – um componente essencial de todas as minhas paixões – é empolgante. Ela é inteligente, engraçada e ainda por cima linda.
Vamos nos encontrar para tomar um sorvete. Ela está um pouco atrasada. Começo a olhar para todos os rostos que estão passando ao redor, tentando encontrar alguma semelhança com as fotos que ela postou no Tinder. Queria vê-la antes de ser vista. “Procure pelo hijab”, eu havia dito a ela – um pouco ansiosa por revelar o que há embaixo dos chapéus nas minhas próprias fotos do Tinder. “É difícil não me notar.” Sua resposta indiferente, nem fetichista, nem surpresa, me tranquilizou. Estou empolgada com este encontro.
Mas… Nós nos vimos no mesmo instante, trocamos olhares tímidos e cumprimentos rápidos antes de pedir os sorvetes. Nos sentamos e a segunda pergunta que ela me fez foi:
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“Então, Lamya, me diga como você pode ser lésbica e muçulmana ao mesmo tempo?”
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Sempre tem um mas.
Isso acontece com tanta frequência que já tenho até uma estratégia. Primeiro, reviro levemente os olhos. Depois vem a resposta pronta. Digo que diversidade sexual e de gênero e islamismo não são coisas mutualmente excludentes. Que o Islã não é um monólito. Que o meu Islã é amplo e meu Deus, acolhedor. Que a comunidade LGBT também não é um monólito, que há diferentes formas de ser LGBT e diferentes narrativas que não se encaixam nos modelos ocidentais de “sair do armário” e reproduzir modelos familiares heteronormativos. Que as pessoas precisam parar de fetichizar aqueles de nós que vivemos nestas intersecções aparentemente impossíveis. Que a minha orientação sexual e minha religiosidade muçulmana não precisam ser reconciliadas, pois elas estão profundamente conectadas e fazem parte de quem eu sou.
Depois que eu termino esse discurso educativo, estou exausta e meu interesse na pessoa evapora. As tentativas de seguir tendo um encontro legal parecem vazias e, depois que um certo período de tempo já passou, eu uso o trabalho como desculpa e vou embora.
Já é tarde quando meu amigo me chama. Do nada, e um pouco depois do horário apropriado para uma ligação. O telefone toca uma vez apenas e depois ele desliga. Já sei que esse tipo de chamada é uma senha para que eu atenda imediatamente quando ele ligar de novo, antes que ele mude de ideia. Ele respira fundo depois do “alô” e esta é minha deixa para assumir o rumo da conversa. Eu me aconchego no sofá com o telefone, me acomodo na sala à meia-luz, falo um pouco sobre amenidades e coisas do dia a dia até que ele se sinta pronto para conversar.
Vem aos poucos. Ele me conta que seu pai está doente. Que acabou de falar com sua mãe ao telefone. Que têm havido comentários maldosos sobre seu ex-namorado e níveis pesados de culpabilização. “Você tem rezado?”, sua mãe lhe pergunta. “Você tem lido o Alcorão? Se você lesse, saberia a diferença entre certo e errado.” Ele parece cansado e irritado, mas especialmente cansado. Cansado de alegarem uma relação entre ele ser gay e os problemas de sua família. Cansado de silêncios e de não poder responder de volta. Cansado de deixar algumas coisas passarem batido em nome da compaixão. Será que os pais dele sabem que ele está sofrendo? Será que sabem que estão magoando ele, que estão afastando ele do conforto que encontrou na religião? Suas palavras transformam-se em lágrimas e eu me pego chorando junto.
Mas… Enquanto as lágrimas dão lugar ao silêncio que se acomoda entre nós, ele me faz uma pergunta tranquila:
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“Como você consegue, Lamya? Como você consegue ser lésbica e muçulmana ao mesmo tempo?”
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Eu não posso mentir para o meu amigo. Ele sempre esteve presente nos momentos difíceis. Eu sempre estive presente em seus momentos difíceis. Ele sabe o que significa lidar com o fato de ser gay e ser muçulmano. Eu me recuso a respondê-lo com respostas prontas. Não posso usar respostas prontas para ele porque sequer as tenho para mim mesma.
A própria ideia de que tenho que ter uma resposta é parte do problema. Como se nós fôssemos seres estáticos que precisam ter tudo solucionado. Como se só fosse permitido viver e amar após solucionar todos os impasses. Como se não houvesse espaço para o amadurecimento, para questionamentos críticos ou para aprendizados. Essas são as respostas que eu nunca quero ter.
Mas eis algumas coisas que eu sei, algumas possibilidades que encontrei e que tornam possível ser ao mesmo tempo LGBT e muçulmana.
Minha orientação sexual e minha fé muçulmana estão profundamente costuradas no tecido de quem eu sou. É impossível que eu tenha que escolher entre uma coisa ou outra. É impossível que eu veja ambas como mutuamente excludentes. Eu não preciso que um Imã me diga que posso encontrar conforto e alegria em ambas. Não preciso de explicações nos versos do Alcorão e nas Hadith, que frequentemente são citadas em outro sentido. Eu examinei todas as explicações e hermenêuticas do Alcorão numa tentativa de torná-lo mais acolhedor aos LGBTs. Algumas delas me convenceram, outras definitivamente não. Em alguns momentos parecia que eu estava brincando com as palavras, esticando seus significados. Este processo acabou me ensinando que um texto é um texto. Textos vêm com contextos e interpretações, é possível me apegar ao que dialoga comigo e deixar o resto para lá. Confiar sobretudo na minha fé e na minha prática, na justiça e na compaixão.
É desta forma que procuro estender essa compaixão aos outros, particularmente à minha comunidade muçulmana. Eu não tenho que renunciar a ela e não posso culpar toda uma comunidade por casos de homofobia em um mundo que é homofóbico. Não posso fazer isso enquanto o homonacionalismo e a política LGBT tradicional vêm sendo utilizados para marginalizar minha comunidade e pintá-la como atrasada, justificando ocupações. Não preciso me defender por seguir frequentando a minha mesquita. Não preciso justificar a plenitude espiritual e a sensação de conexão que eu sinto neste espaço imperfeito, nesta comunidade imperfeita – que luta, sim, contra a homofobia, assim como contra o racismo e a misoginia. Uma comunidade que enfrenta simultaneamente a vigilância e a perseguição. Que sofre com guerras feitas em nosso nome – guerras que dizem nos salvar de nós mesmos –, com nossas pátrias sendo bombardeadas por drones. Essa é a comunidade imperfeita com a qual eu luto junto, mas ao mesmo tempo contra.
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Eu não preciso performar minha sexualidade lésbica de uma forma que seja compreensível para pessoas heterossexuais – através do casamento ou reivindicando imposições biológicas –, ou para outras pessoas LGBTs
Eu não sou obrigada a tirar meu hijab ou a sair do armário se eu não quiser. Nem para os meus pais, nem para conhecidos casuais e nem mesmo para os meus amigos
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O que eu preciso, e o que percebi que não posso viver sem, é a minha comunidade. Mais especificamente, a comunidade LGBT muçulmana: uma família que nós escolhemos, composta por pessoas que comem juntas, protestam juntas, onde eu posso ser lésbica e muçulmana sem ter que ficar me defendendo, me explicando e me justificando. Uma comunidade com pessoas que comem juntas após o jejum diário no Ramadã, que leem o Alcorão juntas e que se divertem juntas em passeios na praia. Pessoas que me colocam para cima após uma decepção amorosa. Pessoas com quem eu posso contar quando preciso de apoio, porque elas também contaram comigo quando precisaram. Pessoas que definem o que é compartilhar o amor.
Não me entendam mal, ainda assim tem dias em que viver parece impossível. Em que o futuro parece impossível. Dias em que palavras casuais, mas cáusticas, machucam profundamente. Dias em que choro escondida na escada. Dias em que é mais fácil apenas dizer as coisas certas, ao invés de realmente acreditar nelas. Dias que parecem insustentáveis e exaustivos. Dias em que parece mais fácil sonhar com soluções simples, cortar os laços comunitários e ser assimilada – desistir e fingir.
Mas também há dias em que se agitam com possibilidades revolucionárias: estruturas familiares alternativas e sonhos sobre comunidades muçulmanas LGBTs. São estes dias que fazem tudo valer a pena. São estes dias que tornam possível ser LGBT e muçulmana ao mesmo tempo. Dias em que deixamos os “mas” de lado e apenas somos.
Eu conto ao meu amigo sobre estes dias e, ao invés de exaustão, sinto apenas alívio.
*Lamya H é uma escritora lésbica e muçulmana vivendo em Nova York.
Essa vitória é nossa – Bolsonaro é condenado a pagar multa por ofensas à população LGBT
Samir Oliveira
9 de novembro de 2017
O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) foi condenado esta semana a pagar uma multa de R$ 150 mil por dano moral coletivo contra a população LGBT. A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirma a sentença que já havia sido proferida em primeira instância em 2015. A indenização irá para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDDD), criado pelo Ministério da Justiça.
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Essa vitória é nossa! É do movimento LGBT e de todos aqueles que lutam por um mundo mais justo e sem ódio
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A ação foi movida pelos grupos Diversidade, Arco Íris e CaboFree após declarações homofóbicas do deputado em 2011, durante entrevista ao programa CQC. Bolsonaro disse que jamais teria um filho gay porque seus filhos tiveram uma “boa educação” e acusou as paradas do orgulho LGBT de promoverem os “maus costumes”, contra Deus e a preservação da família.
Naquela época, Bolsonaro se gabava de nunca haver sido condenado. Agora já conta com a terceira condenação só este ano. A primeira foi uma multa de R$ 10 mil por ter dito que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque ela não mereceria. E a segunda foi uma indenização de R$ 50 mil por comentários racistas contra a população quilombola.
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Bolsonaro pode não estar morrendo pela boca – tendo em vista que sua retórica odiosa infelizmente encontra apelo em setores expressivos da sociedade -, mas está pagando muito caro por ela
As três multas impostas pela Justiça já somam R$ 210 mil
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Na sentença que o condenou em primeira instância pelas declarações ao CQC, a juíza considerou que a liberdade de expressão não está acima da garantia de direitos a populações oprimidas. Ou seja: que liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de opressão. E a imunidade parlamentar do deputado não se aplica a este caso, em que ele estava emitindo uma opinião pessoal.
É significativo que Bolsonaro esteja sendo condenado justamente por estimular o ódio contra três grupos extremamente vulneráveis da sociedade: mulheres, negros e negras e a população LGBT. Por mais moroso que possa ser o processo judicial, as sentenças demonstram que esse tipo de discurso violento não encontra lugar na nossa Constituição.
Vivemos uma conjuntura muito dura, com o crescimento de setores semi-fascistas que preferem inventar pedófilos em museus do que derrubar um governo corrupto que compra apoio descarado no Congresso para se manter no poder. O movimento LGBT vem jogando um papel central neste enfrentamento, ocupando as ruas na linha de frente contra o conservadorismo. Afinal são as nossas vidas que estão diretamente em risco com este tipo de discurso de ódio.
As condenações do Bolsonaro são um bem-vindo sopro de alívio em meio a tantos retrocessos. É melhor ele Jair abrindo o bolso!
Parada Livre de Porto Alegre: um berro contra os retrocessos
Samir Oliveira
2 de novembro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo
No dia 26 de novembro Porto Alegre realiza a XXI edição da Parada Livre. Um evento de massas, que reúne pelo menos 35 mil pessoas todos os anos na Redenção em uma verdadeira festa política de luta por direitos e celebração da diversidade.
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O tema deste ano não poderia ser mais adequado:
“Berro contra os retrocessos”
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É com esta combatividade que os LGBTs irão às ruas neste dia. O momento político do país exige uma resposta frontal ao conservadorismo e uma reação afrontosa às tentativas medievais de censurar expressões de sexualidade e identidade.
A Parada Livre representa essa resistência construída democraticamente por uma série de coletivos e organizações. É verdade que é preciso que ela seja cada vez mais política, no sentido de incidir sobre a estrutura política que nega nossos direitos, abafa nossa liberdade e espanca nossos corpos. Esse processo está permanentemente em curso, com as linguagens e estéticas próprias que a população LGBT domina para fazer política. Afinal, a própria existência da Parada é um ato político. É extremamente político que dezenas de milhares de corpos LGBTs saiam às ruas juntos para expressar seus afetos e exercer a plena liberdade de ser quem são.
A Parada Livre deste ano será mais uma etapa de um novo ciclo de lutas que a população LGBT vem travando no Brasil nos últimos meses. Os ataques de setores proto-fascistas da sociedade exigem uma resposta forte e impulsionam uma articulação entre todo o movimento.
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Ataques constantes
A representação maior deste novo ciclo foi a reação ao fechamento da exposição QueerMuseu em Porto Alegre. O episódio fortaleceu grupos de extrema-direita que destilam ódio contra qualquer manifestação de diversidade. Iniciou-se uma cruzada medieval contra a arte e as expressões de sexualidade e gênero no Brasil. O recuo vergonhoso do Santander diante destes grupos violentos catalisou esse sentimento antidiversidade.
A reação do movimento LGBT foi imediata e forte. Mais de duas mil pessoas se reuniram em frente ao Santander em plena quarta-feira para defender a liberdade artística. A vanguarda do movimento se uniu à categoria artística num duro enfrentamento aos grupos de ódio – especialmente ao MBL e seus satélites, que compareceram presencialmente no protesto e provocaram os ativistas.
A decisão da Justiça, em primeira instância, de autorizar a chamada “cura gay” representa um retrocesso de pelo menos 30 anos no que diz respeito ao consenso médico-psiquiátrico, científico e psicológico de que homossexualidade não é uma doença. Também esse episódio gerou uma onda de lutas muito forte. Em Porto Alegre, milhares foram às ruas para lutar contra este absurdo.
A população LGBT carrega consigo a responsabilidade de estar no enfrentamento diário à intolerância e ao fascismo, pois são seus corpos e suas expressões de afeto, identidade e sexualidade que estão sendo atacadas.
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O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo. Só neste ano foram 169 transexuais assassinados e assassinadas. A população de travestis e transexuais é a mais vulnerável nesse contexto de extermínio
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Fortalecer a Parada Livre é fortalecer essa resistência tão necessária nos dias de hoje. É lutar por vidas humanas que estão em risco por causa do preconceito e da intolerância. Por isso é tão criminoso que a prefeitura de Porto Alegre tenha suspendido o apoio que sempre deu ao evento. O movimento não se intimidou diante da postura autoritária de Nelson Marchezan Júnior e batalha duramente por financiamento, contando com a parceria de casas noturnas e bares LGBTs e com a criatividade militante na venda de bottons, camisetas e canecas – que podem ser compradas através da loja virtual http://www.lojaafirme.com.br.
A Parada Livre deste ano não será menor. Pelo contrário, expressará com muita força o verdadeiro berro contra os retrocessos que a população LGBT dará na Redenção em 26 de novembro. Será fabuloso!
Vídeo flagra agressão policial a travestis em Porto Alegre
Samir Oliveira
19 de outubro de 2017
Infelizmente, este é mais um texto sobre agressão a travestis por policiais. Na semana passada, escrevi a respeito da perseguição que a população T sofre em um bairro nobre de São Paulo. Desta vez o crime ocorreu em Porto Alegre, na Rua Ramiro Barcelos, em plena luz do dia.
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Um vídeo chocante mostra um policial militar agredindo uma travesti negra durante o que parece ser uma abordagem
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Em seguida uma brigadiana se aproxima, mas não faz questão de interromper o abuso ou chamar a atenção de seu colega. O material foi denunciado ao gabinete do vereador Roberto Robaina (PSOL) – que, junto com Luciana Genro, se reuniu com o governador José Ivo Sartori (PMDB) e o secretário de segurança Cezar Schirmer para apresentar oficialmente o caso e cobrar providências.
Vídeo flagra o momento em que travesti é agredida por policial militar na rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre.
Este caso, felizmente, chegou às mãos de autoridades políticas comprometidas com a luta LGBT. Isso, aliado com a ampla cobertura da imprensa, pode fazer com que alguma atitude seja tomada pelo Estado em relação à conduta dos servidores envolvidos. Mesmo assim, é preciso estar muito vigilante, pois o percurso que este tipo de denúncia toma nos escaninhos da burocracia policial quase sempre resulta em arquivamento. Ou em pizza, para utilizar um jargão da política.
Como repórter, já acompanhei diversos casos de abuso de autoridade por parte da polícia. Talvez o principal deles tenha sido o de dois jovens africanos que foram humilhados por uma brigadiana dentro de um ônibus. Tive uma longa conversa com eles, que retratei nesta reportagem. Percorri a cadeia de comando policial atrás de explicações, de respostas e de informações sobre o andamento das investigações. No fim, a servidora foi inocentada, mesmo tendo – sem nenhuma justificativa que não fosse o racismo – apontado uma arma carregada para dois jovens inocentes dentro de um ônibus em movimento, numa conduta que expôs todos os passageiros ao risco de levarem um tiro.
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A diferença é que agora existe um vídeo comprovando a denúncia
E existem agentes públicos dispostos a pressionar até mesmo o comandante em chefe da Brigada Militar – a saber, o governador – para que alguma providência seja tomada
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Sempre que uma denúncia dessas vem à tona, surgem apressados defensores da polícia para dizer que se trata de um “caso isolado”. O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, especialmente a população de travestis e transexuais. Nosso modelo policial é uma herança nefasta da ditadura militar que permaneceu intocada desde a redemocratização. Este tipo de conduta é praticamente uma tradição consagrada na polícia. Está longe de ser um “caso isolado”.
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Investigações independentes
Mudar esta realidade é uma luta que mesmo os policiais que entendem a importância do respeito aos direitos humanos precisam travar dentro da corporação. O sistema é estruturado para proteger este tipo de conduta criminosa. A rígida estrutura militar prevê punições severas para qualquer tipo de desrespeito à hierarquia policial, mas pouco ou nada faz em relação a condutas abusivas da tropa contra a população que deveria proteger.
É absurdo que a própria Brigada Militar seja responsável por avaliar as denúncias que chegam contra os integrantes da corporação. O mesmo vale para a Polícia Civil. Corregedorias vinculadas à própria instituição são o caminho mais seguro para o “deixa disso” do corporativismo.
Neste sentido, é importante a defesa que o ex-deputado Marcos Rolim faz da criação de uma corregedoria independente no Estado. Um órgão sem ligação direta com as polícias que atue para investigar denúncias de abuso e descontrole dos agentes. Não é algo que depende do governo federal. Trata-se de uma mudança institucional que cabe aos governadores e deputados estaduais aprovarem.
Enquanto isso não ocorre, seguimos lutando com as armas que temos e aproveitando todas as fissuras que existem dentro do sistema para criar brechas em favor de uma nova cultura democrática dentro dos rincões mais autoritários do Estado. Se os policiais entenderem que não podem esbofetear travestis – ou qualquer cidadão – durante uma simples abordagem, já teremos conquistado uma importante vitória. Mais uma, no marco de muitas que ainda precisam ser consolidadas.
A intolerância crescente dá fôlego ao sonho eleitoral da extrema-direita
Igor Natusch
20 de setembro de 2017
FATO 1
Depois de ter sua encenação proibida em Jundiaí (SP) por meio de uma insólita antecipação de tutela para não macular o “sentimento do cidadão comum” (seja lá o que for isso, juridicamente falando), houve quem quisesse que a peça “O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu”, que coloca uma mulher trans no papel principal, fosse proibida também em Porto Alegre. Felizmente, o juiz Jose Antonio Coitinho não embarcou nessa canoa furadíssima e, em uma decisão no geral bastante sábia, rechaçou completamente, no último dia 19, um pedido de suspensão da peça – que recorria, é claro, ao batidíssimo e nada jurídico argumento de “afronta aos costumes religiosos”.
A peça, desde já um sucesso, teve que ser transferida da acanhada Pinacoteca Rubem Berta para o Teatro Bruno Kiefer, bem mais amplo e capaz de acomodar a todos que desejam assisti-la. Os ingressos estão esgotados para as duas sessões. Pena, pois realmente gostaria de assisti-la.
FATO 2
O juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, achou justo atender pedido de um grupo de psicólogos (alguns deles claramente identificados com grupo religiosos e políticos antipáticos à população LGBT) e decidiu que o Conselho Federal de Psicologia não pode “proibir” profissionais de “promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual”, caso pacientes “voluntariamente venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade”. Um bonito jogo de palavras que, por ignorância ou má intenção, esconde o óbvio: uma resolução de mais de 18 anos, que impede psicólogos de tratar homossexualidade como doença, foi invalidada na base do canetaço. Ainda cabe recurso à liminar, e nos resta esperar que instâncias superiores revoguem essa sandice.
FATO 3
Pesquisa CNT-MDA mostra Jair Bolsonaro com 10,9% de intenções de voto na pesquisa espontânea para a Presidência da República, situação em que o entrevistador apenas pergunta em quem a pessoa deseja votar. Como sabemos, esse é o voto teoricamente mais consolidado, o menos vulnerável ao noticiário e aos acontecimentos em geral, o menos aberto a qualquer tipo de argumentação. Em fevereiro, ele tinha 6,5% nessa modalidade. O mesmo pré-candidato que declarou que os organizadores da mostra Queermuseu “deveriam ser fuzilados” – logo depois dourou a pílula e disse que era “força de expressão”, mas ainda assim deixou bem claro o seu grau de tolerância com manifestações artísticas de temática LGBT.
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De posse desses dados, aparentemente disparatados, que trilhas nos surgem?
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Acho que todos falam, basicamente, de um encorajamento de posturas francamente intolerantes. Não que jamais tenhamos tido pessoas indo à Justiça para impedir a visibilidade de outras, ou mesmo que não tenham inclusive vencido em alguns casos. Mas agora temos uma onda, um processo onde uma ousadia autoritária encoraja a outra, onde um movimento intolerante não devidamente combatido serve de estímulo a outra intolerância, ainda mais estridente e desavergonhada. Estivéssemos razoavelmente saudáveis, enquanto sociedade, e ninguém cogitaria seriamente que uma exposição inteira fosse fechada aos gritos de que há “pedofilia” em algumas ilustrações, tampouco veríamos turbas comemorando a proibição de uma peça teatral.
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São movimentos que ganham força na medida em que a intolerância se espalha, quando cada vez mais parece que a solução não deve ser dialogada, mas sim imposta, se possível com a eliminação física do problema. Quando nada parece seguro, as respostas fáceis e verticais parecem cada vez mais tentadoras – e quando elas se mostram possíveis, fica muito difícil controlar o vagalhão
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Por outro lado, todos sabemos que o pré-candidato mencionado acima é uma espécie de meme ambulante, uma figura que conjuga de forma cada vez mais visível tanto a imagem de outsider, supostamente sem “rabo preso” como os políticos mais tradicionais, quanto de pessoa que não tem medo de dizer o que pensa, que não dá folga a vagabundos, que vai botar ordem na casa da forma mais simples e radical possível – todos argumentos intangíveis e sem grande base racional, mas que caem como uma luva em um momento tão cheio de incertezas, medos e cisões.
Segundo a mesma pesquisa da CNT-MDA, Bolsonaro perde para Lula em um eventual segundo turno, mas venceria tanto Dória quanto Alckmin – um sinal claro de que a polarização política, ainda que siga muito importante para impulsionar o virtual candidato da extrema direita, não é tão decisiva assim para o seu voo solo.
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Há mais coisas envolvidas em Bolsonaro do que pode parecer – e elas são do conjunto da sociedade e de sua fragmentação, bem mais do que originadas no medo irracional do barbudo comunista que pode voltar à presidência
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Esse é o cenário que torna possível que, estatisticamente, mais de um décimo dos brasileiros esteja disposto a votar em Bolsonaro, independente de qualquer coisa. E que dá à sua candidatura uma relevância crescente e que, racionalmente, não pode ser ignorada. Daí a dizer que a vitória da extrema-direita em 2018 é um fato consumado ou mesmo a hipótese mais provável vai uma longa distância, cujas circunstâncias pretendo desdobrar em um post futuro. Por enquanto, fica o alerta: são as rachaduras em nossa convicção democrática que estão alimentando a intolerância, e é essa intolerância triunfante que dá fôlego à candidatura bolsonarista. É um cenário de sonhos reacionários possíveis, tanto no Judiciário quanto no dia a dia, e certamente também na frente da urna. Mudar o cenário só é possível a partir dessa compreensão.