Não foi nem uma, nem duas vezes que eu perguntei a mim e a outros qual seria o limite de Jair Bolsonaro. Quão longe ele iria nas mentiras e ofensas? Mas também sempre fiquei intrigada com o que ele precisaria dizer para que não fosse defendido? O que ele precisaria dizer para que fosse chamado pelo que ele realmente é: preconceituoso, autoritário, despreparado e cruel.
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Antes da campanha eleitoral e durante as eleições, foram muitas as oportunidades. Agora, enquanto presidente da República, absurdos são normalizados todos os dias
Na última semana, porém, Bolsonaro parece ter ido longe demais. Ele atacou o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, dizendo que se ele quiser saber de que forma o pai dele desapareceu no período militar, ele contaria.
“Conto pra ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar nas conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco e veio desaparecer no Rio de Janeiro”, disse Bolsonaro durante coletiva de imprensa.
Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira era integrante do grupo Ação Popular (AP) e foi preso pelo governo em 1974 e nunca mais foi visto. No livro “Memórias de uma guerra suja”, lançado em 2012, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra diz que o corpo de Fernando foi incinerado no forno de uma usina de açúcar na cidade de Campos, no Rio de Janeiro. Além da versão do ex-delegado, o atestado de óbito de Fernando, incluído no sistema da Comissão de Mortos e desaparecidos, diz que ele foi morto pelo Estado brasileiro.
Bolsonaro, porém, depois da polêmica, disse que o pai do presidente da OAB foi morto pelos companheiros, a quem ele classificou como terrorista. O presidente foi além e ainda questionou a legitimidade da Comissão da Verdade, que apurou os crimes cometidos pelo Estado durante a Ditadura Militar.
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Bem, o limite de Bolsonaro ainda é desconhecido. Mas esse incidente com o presidente da OAB mostrou que talvez esse seja o limite para muitos dos apoiadores. A reação mais surpreendente foi a do governador de São Paulo, João Dória (PSDB)
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É inaceitável que um presidente da República se manifeste dessa forma como se manifestou em relação ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. Foi uma declaração infeliz do presidente Jair Bolsonaro — disse. Na sequência, Doria ainda negou ter alinhamento político com o governo de Bolsonaro.
Bom, a fotografia mostra a mentira do alinhamento. E obviamente, o distanciamento de Dória tem na mira a próxima eleição presidencial. Mas ele não foi o único. As manifestações de repúdio ocorreram em profusão, inclusive de figuras notadamente vinculadas à direita, como Rodrigo Constantino, e outros apoiadores. Talvez esse seja o limite de alguns apoiadores, diminuir a dor de alguém que perdeu o pai pelas mãos do Estado. Veremos.
De todo modo, me surpreende que as pessoas tenham ficado surpresas com o quão longe ele foi. Afinal, ele não elogiou Ustra, a quem ele chamou de “o terror de Dilma Rousseff”? Não disse que o erro do regime foi torturar e não matar? Não “brincou” que queria “fuzilar a petralhada”? Bolsonaro sempre foi isso. Autoritário, preconceituoso, cruel, torpe.
(Washington, DC - EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PR
Na última semana, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que pretendia indicar o terceiro filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. O comunicado informal foi feito no dia 11, um dia depois de Eduardo completar 35 anos, idade mínima necessária para assumir o cargo de embaixador. Em tempos de sociedade da informação, a reação negativa foi praticamente instantânea na internet. Da oposição, é claro, mas também os aliados se mostraram contrários à decisão de Bolsonaro. O “guru” Olavo de Carvalho disse que se tratava de um retrocesso.
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Até os apoiadores do Twitter roeram a corda
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Foto: Reprodução /Twitter
É NEPOTISMO?
O primeiro “problema” é, obviamente, o fato de o presidente indicar o próprio filho para a função de embaixador no que se pode chamar de país mais importante do mundo. Não há precedentes em outras democracias. O único estadista a indicar o filho para a Embaixada dos EUA foi um rei saudita. Bolsonaro garante que não há nepotismo, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem decisões difusas sobre a legalidade do tema. Em agosto de 2008, foi aprovada uma súmula que proíbe a nomeação de cônjuge ou parente até terceiro grau para cargos em comissãos, de confiança ou função gratificada. Isso vale para todos os poderes em níveis municipal, estadual e federal. A questão é que não está claro se a regra vale para cargos de natureza política, como ministros de Estado e embaixadores.
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ELE PODE SER INDICADO?
Uma segunda crítica com relação à decisão de Bolsonaro provém do fato de que ele Eduardo não é um diplomata, logo, não poderia ocupar o cargo. Mas não é bem assim. É verdade que a legislação brasileira estabelece que os chefes das chamadas missões diplomáticas permanentes devem ser escolhidos entre os ministros de primeira ou segunda classe do Itamaraty. Mas há uma exceção. Brasileiros natos que não pertençam aos quadros do Ministério das Relações Exteriores e que sejam maiores de 35 anos de idade podem ser indicados para embaixadas. A prerrogativa de escolha é do presidente. Desde que sejam cidadãos “de reconhecido mérito e com relevantes serviços prestados ao país.” E é aí que a porca torce o rabo.
Jair, na mesma ocasião em que anunciou a possibilidade de indicá-lo, garantiu que Eduardo é a melhor pessoa para ocupar o posto de embaixador nos Estados. “Ele é amigo dos filhos do Trump, fala inglês e espanhol, e tem uma vivência muito grande no mundo. Poderia ser uma pessoa adequada e daria conta do recado perfeitamente”, disse o presidente.
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Poderia, mas não é
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Eduardo discorda e, na mesma hora, disse estar honrado com a escolha. Não apenas isso, garantiu estar preparado para o desafio. “É difícil falar de si próprio, né? Mas não sou um filho de deputado que está do nada vindo a ser alçado a essa condição, tem muito trabalho sendo feito, sou presidente da Comissão de Relações Exteriores, tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos, no frio do Maine, estado que faz divisa com o Canadá, no frio do Colorado, em uma montanha lá. Aprimorei o meu inglês, vi como é o trato receptivo do norte-americano para com os brasileiros”, disse o parlamentar.
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EDUARDO É QUALIFICADO?
Dificilmente fritar hambúrguer no frio do Maine faça alguma diferença para quem quer ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Além do mais, alguns veículos brasileiros informaram que a lanchonete onde ele diz ter trabalhado não serve hambúrguer. Já falar inglês é importante. Mas também, há vídeos do terceiro filho de Bolsonaro que circulam pela internet e mostram o deputado falando um inglês sofrível, o que indica que ele consegue se comunicar em inglês, mas que não é fluente.
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Diante das críticas aos seus atributos, ele resolveu responder divulgando no Twitter o que ele chamou de “breve currículo”
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Foto: Reprodução /Twitter
Ai, não foi uma boa resposta. Especialmente errando a sigla da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, no caso. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro não recuou. Uma semana depois de iniciada a polêmica, ele finalmente decidiu por indicar o filho Eduardo Bolsonaro como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. E se mostrou surpreso com a “pressão” que a família vem sofrendo.
“Por que essa pressão em cima de um filho meu? Ele é competente ou não é competente? Dentro do quadro de indicações políticas, que vários países fazem isso, e é legal fazer no Brasil também, tá certo”, disse.
Não, ele não é competente, caro presidente. E o currículo que ele tanto exibe é, binariamente, uma prova bastante contundente da falta de preparo de Eduardo – e da irresponsabilidade da indicação.
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Apesar disso, a escolha de Bolsonaro faz sentido
Explico
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Bolsonaro já mostrou ser bastante desconfiado de maneira geral, o que faz com que se cerque, cada vez mais, de sua família. Esse é um traço que o presidente do Brasil tem em comum, justamente, com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Afinal de contas, o conselheiro sênior de Trump é, nada mais, nada menos, que seu genro, Jared Kushner. O currículo dele é, com certeza, mais impressionante que o de Eduardo Bolsonaro, mas sua experiência como investidor e magnata do ramo imobiliário nunca o credenciaram para que ele ocupasse a posição que ocupa. Além de Jared, Ivanka Trump, a filha do presidente americano, é figurinha carimbada na administração e em eventos internacionais. Quem não lembra das caretas com que ela nos brindou durante as reuniões do G20?
Fotos: Getty Images
Ivanka acompanhou o pai durante todo o tempo. Ela inclusive sentou ao lado dos chefes de Estado como se fosse algo absolutamente normal, como se pode ver em uma das imagens acima. Da mesma forma que Eduardo fez durante a primeira viagem oficial de Jair Bolsonaro aos Estados.
(Washington, DC – EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PRbaix(Washington, DC – EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PR
Não acho que seja uma boa escolha, não acho que Eduardo Bolsonaro tenha o mínimo de preparo intelectual e experiência necessários para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Mas, dentro da lógica de Trump, que montou um “negócio de família”, faz sentido. “In family we trust”, parafraseando um ministro aí.
(Santa Maria - RS, 15/06/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores da população de Santa Maria.
Foto: Alan Santos/PR
Durante evento na cidade de Santa Maria (RS), no último sábado (15), o presidente Jair Bolsonaro (PSL) voltou a defender que os brasileiros tenham acesso a armas de fogo. Mas desta vez, a justificativa foi além da autodefesa e do papinho de que “se os bandidos estão armados, os cidadãos de bem também precisa estar”. Ele disse que é preciso armar a população para evitar golpes políticos.
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“Nossa vida tem valor, mas tem algo muito mais valoroso do que a nossa vida, que é a nossa liberdade. Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”, disse Jair Bolsonaro
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Primeiro que eu tenho dificuldades para entender o conceito de liberdade sem vida, mas vamos deixar isso de lado. O que importa aqui é que Bolsonaro descreveu o que se conhece por formação de milícias armadas com objetivos políticos. E ele o fez de forma bastante direta.
É curioso que ele tenha proposto isso enquanto ele é o presidente. Ele quer armar a população para que os cidadãos não permitam que ele se perpetue no poder? Provavelmente, não é o caso. É mais provável que ele queira armar a população para que ninguém permita que ele seja removido do poder.
Infelizmente, a história recente da política latino-americana não permite que essa sugestão seja entendida como mais uma ideia de Bolsonaro a não ser levada a sério ou, pelo contrário, seja encarada como a visão de quem defende a democracia e a liberdade acima de tudo. Isso porque, pasmem, foi exatamente o que Hugo Chavez fez na Venezuela.
Colectivos
Os colectivos são organizações comunitárias criadas para dar suporte ao governo da Venezuela e à revolução Bolivariana. Oficialmente, apresentam-se como grupos dedicados à promoção da democracia, à promoção de grupos políticos e atividades culturais. Alguns deles de fato auxiliam com a manutenção de centros de cuidado infantil, programas para as crianças em horário alterando ao da escola, reabilitação de dependentes químicos e ainda atividades esportivas. Mas inúmeras organizações descrevem os colectivos como gangues armadas.
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Os colectivos podem ser considerados, então, grupos paramilitares que operam como milícias e, hoje, são um braço armado do governo
O jornalista Guillermo D. Olmo, Correspondente da BBC News Mundo na Venezuela, fez uma reportagem com integrantes dos colectivos. E todos deixam claro que, se necessário, usarão armas para impedir qualquer tentativa de derrubar o governo de Nicolás Maduro. Qualquer tentativa de golpe.
Não sei se as “tentações” a que Bolsonaro se refere são as suas ou as de seus opositores – embora eu arrisque um palpite. De todo modo, é interessante que o homem que se elegeu como a salvação a quem temia que o Brasil virasse a Venezuela seja tão simpático aos métodos do vizinho.
Ao fim e ao cabo, espero mesmo que não passe de uma conjectura minha e que seja somente mais uma ideia de Bolsonaro a não ser levada a sério. Porque duvido que seja apenas a visão de quem defende a democracia e a liberdade acima de tudo. Acima de tudo está outra coisa.
Para saber mais sobre a situação da Venezuela, ouça nosso podcast aqui.
Foto: Santa Maria – RS, 15/06/2019 / Alan Santos/PR
No último final de semana, o Brasil foi surpreendido com o #Vazajato. O The Intercept Brasil publicou uma série de reportagens que desnudam a Operação Lava Jato e mostram uma colaboração não permitida entre procuradores do Ministério Público Federal (MPF) e o então juiz Sérgio Moro. A operação baseada na Mãos Limpas se mostrou suja, imunda. Mas de repente, o escândalo que mostra que a operação contra a corrupção também corrompeu o sistema virou um debate sobre práticas jornalísticas. Tá bom, vamos embarcar nessa então.
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Nunca fui fã de câmeras escondidas. Em debates com amigos jornalistas, porém, alguns colegas argumentaram que certas coisas jamais seriam descobertas de outra forma. Quantos políticos corruptos já foram desmascarados assim, afinal de contas. Eu discordei de alguns exemplos, concordei com outros e cheguei à conclusão de que é um recurso necessário, mesmo que de exceção. Ou seja, não pode ser a regra, mas precisa existir para os casos extremos, na minha opinião.
Mas a questão é que as câmeras escondidas nunca incomodaram o público, de maneira geral. Pelo contrário, as pessoas parecem gostar de ver um figurão caindo porque alguém gravou algo à espreita. Aquela imagem de qualidade não muito boa com um deputado contando maços de dinheiro dá aquela sensação inigualável de flagrante a quem assiste. Provoca uma reação natural e emocional de justiça. É visceral. Tira da garganta aquele “Toma!”
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Qual não foi minha surpresa, então, ao ver tantas pessoas – jornalistas ou não – questionando a retidão ética do The Intercept Brasil ao publicar conversas privadas que escancaram as relações da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro
Segundo os editores, as reportagens foram produzidas a partir de arquivos, enviados por uma fonte anônima, que continham mensagens privadas, gravações em áudio, vídeo, fotos, documentos judiciais e outros ítens envolvendo procuradores da Lava Jato e o hoje ministro da Justiça. Os jornalistas garantem que o único papel do veículo na obtenção do material foi recebê-lo e que eles foram contatados semanas antes da notícia de invasão do celular de Sérgio Moro – o próprio ministro garantiu que não houve “captação” de conteúdo.”
Mesmo assim, inúmeras pessoas se incomodaram com a publicação que consideraram uma invasão de privacidade. Nas redes sociais, não foram poucos os perfis que ignoraram o fato de que os procuradores da Lava Jato e Moro tenham realizado parte do trabalho em segredo – e de forma antiética -, atitude que impediu, inclusive, que o público pudesse avaliar a validade das acusações de que as figuras de acusador e julgador estavam misturadas. Lembrando que, no Brasil, a coordenação entre juízes e promotores não é permitida.
Na mesma linha, Sérgio Moro se defendeu questionando a legalidade do processo. Na sequência da publicação das reportagens, publicou nota em que não nega o teor das conversas, mas sugeriu os meios ilegais pelos quais os arquivos foram obtidos. “Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo”, disse.
Sobre a indicação de fonte, o sigilo é algo garantido aos jornalistas pela Constituição Brasileira. Sobre ser uma “invasão criminosa” nos celulares, também não há evidências de que seja o caso. Inclusive, o aplicativo de mensagens Telegram divulgou nota em que se afirma não haver indícios de hacker. “É mais provável que tenha sido malware [um tipo de vírus] ou alguém que não esteja usando uma senha de verificação em duas etapas”, diz a nota. Sem contar a possibilidade de vazamento interno. Sobre entrar em contato antes da publicação, foi uma escolha que o TIB se permitiu para garantir que nenhum dispositivo legal pudesse censurar a divulgação das reportagens, como aconteceu com a revista Crusoé no início em abril deste ano. Mas a defesa de Moro colou.
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Os limites éticos do jornalismo
As primeiras críticas vieram de pessoas preocupadas com o que consideram ser um comportamento “imoral” por parte do The Intercept. Esse grupo entende que os jornalistas não deveriam utilizar dados obtidos de forma supostamente ilegal – mesmo que não tenha ficado claro. Mas chamou atenção que vários jornalistas que já utilizaram câmeras escondidas tenham endossado essa preocupação.
Se essa divulgação tivesse sido, de fato, equivocada, por que seria mais grave que o uso rotineiro de uma câmera escondida? Por que seria pior fazer imagens de alguém sem que essa pessoa saiba que está sendo gravada? Por que seria pior que gravar o áudio de uma conversa sem autorização? Eu acho que não seria.
Não consigo compreender no que essa divulgação é diferente, por exemplo, do caso Watergate, em que diversas fontes anônimas revelaram segredos da administração de Richard Nixon que provavam, entre outras coisas, abuso de poder. Entre 1972 e 1974, alguém questionou, além dos aliados de Nixon, a ética do The Washington Post por publicar reportagens a partir da indicação de fontes anônimas? Durante todo o processo que culminou com a renúncia do presidente dos Estados Unidos e ao indiciamento de dezenas de agentes públicos, os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein trabalhavam majoritariamente com fontes anônimas. A identidade da mais famosa dessas fontes, o Garganta Profunda, só foi revelada 33 anos depois, em 2005.
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No jornalismo investigativo, as fontes sigilosas, conhecidas como whistleblowers, são amplamente utilizadas para revelar ilegalidades e crimes e o caso Watergate é prova da eficiência do método
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Eu acho que debater o limite ético do jornalismo nunca é demais. Mesmo. Mas talvez estejamos fazendo esse debate no nível micro enquanto deveria ser feito no macro. Ou seja, devemos discutir os limites da investigação jornalística – se há – no que se pode chamar de sociedade da informação, em que o fluxo de dados não é unidirecional e atinge uma intensidade, velocidade e volume inéditos.
De todo modo, o limite ético da divulgação das conversas privadas de Dallagnol e Moro levou a uma segunda questão: a comparação entre o #Vazajato e o vazamento da conversas de Lula e Dilma há três anos.
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O grampo de Dilma
Em março de 2016, o então juiz Sérgio Moro retirou o sigilo de interceptações telefônicas do ex-presidente Lula. As conversas gravadas pela Polícia Federal incluíam um diálogo do petista com a então presidente Dilma Rousseff – que tinha foro privilegiado. Um dos diálogos todos conhecemos, é a conversa que Dilma manda “o “Bessias” junto com o papel” e Lula despede-se com o hoje infame “Tchau, querida”. À época, depois do estrago feito, Moro pediu desculpas pelo equívoco.
Estranhamente, o episódio está sendo usado como comparativo por todos os lados. Alguns veem ironia no fato de Moro questionar a legalidade de vazamentos uma vez que ele mesmo já lançou mão desse artifício. Outros, acham interessante que as pessoas que criticavam o então juiz agora se regozijem com o vazamento do TIB. O tuíte do humorista Antônio Tabet resume o sentimento:
Mas voltemos ao jornalismo. O que Tabet e outros críticos esquecem é que um jornalista e um juiz não tem a mesma função. Um juiz tem o dever de proteger um áudio que não tenha conexão com o processo. Um jornalista tem o dever de divulgar uma informação que seja relevante ao interesse público.
De novo, nunca é demais discutir a ética dos procedimentos e rotinas jornalísticas, mas não é o que se tem feito ao longo desse caso. Questionar a apuração do The Intercept Brasil tem servido somente para diminuir a gravidade de um problema que é de interesse público, que precisa ser de conhecimento do público porque traz à tona um sistema corrompido. As reportagens não mostram que Lula é inocente ou culpado, mas mostram que ele sempre esteve condenado, desde o início. Mostram que eram verdadeiros os alertas de que a Operação estava sendo instrumentalizada para servir a uma força política.
E esse tipo de reportagem precisa ser exaltado, não perseguido. Porque é por esse tipo de história que a liberdade de imprensa é fundamental em uma democracia e é por esse tipo de matéria que ela precisa ser preservada, para que as pessoas possam saber o que as autoridades dizem e fazem quando ninguém está olhando.
Para se ter uma ideia, um “influencer” que não merece menção porque eu não sou escadinha disse que o The Intercept Brasil tem que ser fechado, os “responsáveis” presos e Glen Greenwald tem que ter seu visto brasileiro cassado. O conteúdo foi retuitado por deputados federais do PSL e outros partidos da aliança que sustenta o governo federal. Sem contar as hashtags pedindo para que Greenwald – que já ganhou o Prêmio Pulitzer, considerado o mais importante do jornalismo – seja deportado e as histórias falsas que afirmam que ele e o marido são acusados de espionagem no Reino Unido e, por isso, ele teria encomendado que os hackers invadissem os celulares dos procuradores. Chega de passar pano.
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Ofereço um tuíte do próprio procurador Deltan Dallagnol, de 20 de março de 2016. “Para Dotti [jurista René Dotti que, na ocasião, estava defendendo Sérgio Moro] no conflito entre direito à informação sobre crime grave e direito à privacidade, ganha interesse público.”
Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram.
O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos.
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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico
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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia. Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.
Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura.
O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas.
OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.
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2. “A educação era melhor”
Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).
Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.
Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.
É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.
O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.
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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”
João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.
O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.
Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango.
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6. “A população queria a ditadura”
Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava.
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7. “O Brasil cresceu”
É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre.
Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.
Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.
Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.
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8. “Só morreram vagabundos”
Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenasdurante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.
Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.
OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.
Recomendaram-me perguntar ao meu avô sobre o período que se iniciou em 1964. Não foi diretamente. Eu li em um daqueles cards mequetrefes que se proliferam em redes sociais como larvas do mosquito da dengue em água parada. Em um deles, de tom esverdeado e bem sem graça, lia-se o seguinte:
“Não acredite no seu avô gente boa, honesto e trabalhador de 80 anos, que viu tudo acontecer antes, durante e depois de 64, e até hoje diz que foi ótimo!Acredite no seu professor maconheiro de história, de 35 anos formado na USP, que mora com a mãe e diz que foi horrível demais!”
Depois da provocação colegial, foi a vez de um dos filhos do excelentíssimo senhor presidente da República desafiar os cidadãos brasileiros. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) não apenas celebrou o 31 de março de 1964, data do golpe, como agradeceu aos militares.
“Num dia como o de hoje o Brasil foi liberto. Obrigado militares 64! Duvida? Pergunte aos seus pais ou avós que viveram aquela época como foi?”
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Eu perguntei
Essa bobagem de mandar perguntar para o avô é apenas uma nova versão de negação da História, de negação da ciência. Ignora-se a factualidade, as evidências, os registros. Tudo vira subjetivo e, de repente, relega-se o fato à opinião. Mesmo assim, eu perguntei.
Meu avô, o seu Orozimbo, é um homem de 85 anos e muito simples, apesar de bastante vaidoso. A vida aconteceu e a educação formal foi pouca. O que não o impede de ser muito inteligente e, principalmente, consciente. O vô é um cara curioso, ele não gosta de não saber das coisas. Então ele pergunta, pergunta muito. Sobre a internet; sobre política; sobre novas formas de fazer jornalismo, para entender meu ofício; sobre minha tese de doutorado; sobre outros países; novas experiências. Mas ele também tem muito a contar.
Nunca viajou de avião, mas conta com orgulho de quando andou de helicóptero na época em que serviu ao Exército Brasileiro, no início dos anos 1950. Ele tem várias fotos daquele período em que ele parecia ser mais alto e, definitivamente, mais magro. Dos tempos em que era caminhoneiro e motorista de ônibus, sobram contos sobre todos os cantos desse país. Ele conhece o Brasil muito melhor do que qualquer outra pessoa da família que tenha milhas e milhas acumuladas em companhias aéreas. Com relação à política, nunca se encolheu, e a escolha pelo MDB desde muito cedo deixa isso bastante claro. Ainda assim, eu perguntei.
Mas não perguntei agora, sob o comando do projeto de capitãozinho. Havíamos conversado sobre isso há muitos anos e tocamos no assunto de novo no período da eleição. Eu disse a ele que o candidato que liderava as pesquisas dizia que a Ditadura tinha sido boa.
“E tem gente que acha bonito, vô. Tem gente dizendo que a Ditadura tinha que voltar.” [Ele fez uma careta estranha, meio que duvidando.]
“É verdade, pergunta pra mãe. Esse cara diz que a época da Ditadura era melhor e as pessoas acham que é verdade.” [Ele olhou pra minha mãe, que estava preparando a salada de batata com maionese para o churrasco de domingo. Ela assentiu e disse, “é verdade, pai.”]
“Olha, a minha vida era boa, eu não tinha nenhum problema, mas também não tenho agora se tu for olhar. Mas não era assim pra todo mundo. Pergunta pro [nome da pessoa] como era, das vezes em que ele apanhou ou que não deixavam ele fazer reunião. E isso que eu tô falando de cidade pequena. Imagina em cidade grande. Não se podia falar contra. Nada, nada, nada. Quem falava, pagava. Só que as pessoas fingem que era tudo normal. Elas esquecem que tem coisas que a gente não mistura. Exército é Exército, política é política. E lugar do Exército não é no governo. Tudo tem seu lugar. Eu não tinha problema, mas não é porque não aconteceu nada comigo que tava tudo certo. As coisas não são assim, é errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.”
Como eu disse, meu avô é um homem simples e isso se expressa na forma como ele falou daquele período. Mas nada poderia ser mais cristalino. Não se podia falar nada contra. Lugar do Exército não é no governo. É errado. Tanta gente que apanhou e morreu só porque era contra. Não pode.
Na última segunda-feira (25), o general Otávio do Rêgo Barros, porta-voz da presidência da República, informou que Jair Bolsonaro havia determinado “comemorações devidas” no dia 31 de março, data em que se iniciou o golpe em 1964. Dois dias depois, mudou o tom e disse que a ideia era “rememorar”, não comemorar. Bolsonaro mudou o tom, mas as comemorações entusiasmadas dos filhos dão o tom da celebração. Além disso, vídeo apócrifo que nega o golpe de 64 foi distribuído em canal de comunicação do Planalto. A Secretaria de Imprensa diz que o governo não produziu o material e nem sabe quem o fez, mas distribuiu mesmo assim.
A iniciativa não tem precedentes na América Latina. Na Argentina, o dia 24 de março é feriado, mas dedicado a lembrar e celebrar as vítimas da Ditadura civil-militar (1976-1983). O Dia da Lembrança pela Verdade e a Justiça reúne, todos os anos, manifestações contra um dos regimes mais sangrentos do período. No Chile, o dia 11 de setembro marca o golpe do General Augusto Pinochet e o bombardeio do Palácio de La Moneda, que deu início à Ditadura (1973-1990) e culminou com a morte do então presidente, Salvador Allende. Não é feriado, mas as escolas tem jornada reduzida e há homenagens. Mas não à Pinochet. Há entrega de flores em homenagem a Allende. No Paraguai, ninguém ousa celebrar o início da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989) no dia 4 de maio. Recentemente, o ditador paraguaio, conhecido pela crueldade e, inclusive, acusações de pedofilia, foi elogiado por Bolsonaro, que o chamou de “homem de visão, um estadista”. No Uruguai, o dia 27 de junho é reservado para a memória das vítimas da Ditadura (1973-1985) do país. No Brasil, vivemos presos a um delírio coletivo provocado por amnésia recente. Só pode. Porque segundo meu avô gente boa, honesto e de 80 anos, a ditadura não era boa.
Há poucos dias, li algo curioso sobre a vida do Rei Ludwig II da Baviera, que reinou entre 1864 e 1886. No texto A Oktoberfest Escondida (tradução livre), o autor garante que o chamado “Rei de Contos de Fada” detestava a célebre festa bávara. Ao que tudo indica, Ludwig II era um misantropo que não gostava de grandes aglomerações, tinha pavor de cerveja e não gostava da Oktoberfest. O texto carece de fontes, embora a personalidade reclusa do monarca seja facilmente confirmada pela literatura e História. De qualquer forma, fiquei intrigada com esse regente que não gostava de cerveja e desprezava a festa mais famosa de seu reino.
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Imediatamente, pensei que seria o mesmo que um presidente do Brasil detestar o carnaval
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Não propriamente impensável, afinal, cada um sabe de seu cada um, como diz meu pai. Mas seria curioso, especialmente depois de testemunharmos tantos presidentes aproveitando a folia à sua maneira. Quem não lembra de Itamar Franco curtindo um camarote ao lado de Lilian Ramos? Fernando Henrique Cardoso não foi à Sapucaí durante seu mandato, mas assistiu aos desfiles em 2013 e até deu entrevista enquanto molhava o bico. Luiz Inácio prestigiou o carnaval do Rio de Janeiro quando ainda era presidente. Tem até foto de Lula tascando um beijo na careca do Neguinho da Beija-Flor. Dilma, quando ainda era ministra, vestiu um chapéu colorido e assistiu ao Galo da Madrugada em Pernambuco.
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De fato, seria curioso um presidente do Brasil detestar o carnaval
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Mas minha curiosidade seria satisfeita em breve, afinal, a realidade brasileira não decepciona, jamais. No dia do carnaval, o presidente Jair Bolsonaro fez o impensável. Publicou, no Twitter, um vídeo em que um homem urina sobre a cabeça de outro homem, na rua, durante a festa de um bloco de carnaval. Com a seguinte legenda:
“Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões.”
O vídeo foi publicado sem restrição, para que todos pudessem ver e, como disse o presidente, comentar. Como se a situação não pudesse ficar pior, perguntou, também no Twitter, o que era “golden shower”, em alusão ao ato praticado pelos protagonistas das imagens divulgadas pelo chefe de Estado. Essa foi a forma que Bolsonaro encontrou para responder às críticas que recebeu em blocos de carnaval Brasil afora, em que até o seu boneco de Olinda levou cerveja na cara.
Ludwig II podia não gostar da Oktoberfest. Aliás, o tal texto dá conta de que, em 22 anos de reinado, só foi à festa em seis ocasiões e, mesmo assim, relutante. Praticamente arrastado. Mas foi. Não só foi como não teve a intenção de desmoralizá-la, pelo que consta. Não apenas tolerava como compreendia a importância das festividades para o fortalecimento da cultura de seu povo. Ludwig II podia não gostar da Oktoberfest, mas a respeitava. Algo que Bolsonaro parece desconhecer.
Preferia ter ficado na curiosidade. Preferia não saber como é ter um presidente no Brasil que não aprecie a importância do carnaval. Como diria Dorival Caymmi, bom sujeito, não é. Ruim da cabeça ou doente do pé.
As pessoas mudam de opinião. É do jogo. Aliás, é saudável. Não há nada mais triste que um ser humano não disposto a aprender e evoluir. Convicção, por outro lado, é outra história. É uma opinião obstinada, uma crença embasada, ainda que não científicamente, em evidências ou motivos particulares. E o juiz Sérgio Moro tinha uma série dessas convicções a respeito da política brasileira e as expressava com a legitimidade de quem combatia a corrupção de forma vigorosa. Como nunca antes na história desse país, diziam alguns.
Como uma das figuras mais importante da Operação Lava Jato, Moro sempre foi firme em suas convicções. O então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba foi quem condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá.
Moro sempre foi firme em suas convicções. Inclusive quando alguém tentava minimizar ocorrências como o Caixa 2, o então juiz era taxativo quanto à gravidade dos danos provocados por políticos em campanhas eleitorais. Durante palestra na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Moro disse que Caixa 2 é pior que a corrupção tradicional. Ou seja, que que a corrupção para financiamento de campanha era mais grave que o desvio de recursos para o enriquecimento ilícito.
– Temos que falar a verdade, a Caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Me causa espécie quando alguns sugerem fazer uma distinção entre a corrupção para fins de enriquecimento ilícito e a corrupção para fins de financiamento ilícito de campanha eleitoral. Para mim a corrupção para financiamento de campanha é pior que para o enriquecimento ilícito. Se eu peguei essa propina e coloquei em uma conta na suíça, isso é um crime, mas esse dinheiro está lá, não está mais fazendo mal a ninguém naquele momento. Agora, se eu utilizo para ganhar uma eleição, para trapacear uma eleição, isso para mim é terrível. Eu não estou me referindo a nenhuma campanha eleitoral específica, estou falando em geral.
A fala de Moro foi aplaudida em Harvard e a cruzada contra a corrupção transformou o juiz em uma espécie de herói nacional e o Super Moro estampava camisetas em manifestações populares coloridas de verde e amarelo. Como consequência, mesmo tendo afirmado em mais de uma ocasião que jamais entraria para a política, aceitou largar a toga para se tornar ministro no governo de Jair Bolsonaro. A contradição não incomodou aos fãs do paladino da Justiça. E assim que aceitou o convite, Moro deixou claro que o “Pacote anticorrupção” seria a base de sua gestão.
Obviamente o pacote não seria aprovado pelos deputados, entre os quais a prática do Caixa 2 é, sabidamente, muito comum. Mas ao desmantelar o pacote anticorrupção, Moro flexibilizou ainda mais suas convicções e atenuou a gravidade da prática ao dizer que “Caixa 2 não é corrupção”.
“Não, caixa dois não é corrupção. Existe o crime de corrupção e existe o crime de caixa dois. Os dois crimes são graves. Aí é uma questão técnica”, disse Moro.
Em 2016, Caixa 2 era trapaça.
Em 2017, Caixa 2 era pior que o desvio de recursos para enriquecimento ilícito e crime contra a democracia.
Em 2018, diminuiu a gravidade do Caixa 2 praticado – e assumido – pelo então deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), hoje ministro. “Quanto a esse episódio do passado, ele mesmo admitiu seus erros e pediu desculpas e tomou as providências para repará-lo”, explicou Moro.
Em 2019, após reiterar que era trapaça, Moro disse que Caixa 2 não era tão grave quanto o enriquecimento ilícito.
Aparentemente, a involução da ética de Moro acontece de acordo com as funções e cargos que ocupa. As convicções do juiz com relação à corrupção não se sustentam diante das opiniões do ministro.
Toda morte repentina causa choque e traz aquela sensação egoísta de que não houve tempo para a despedida. A surpresa é inevitável e desconcertante. Parece que a qualquer momento alguém vai dizer que não é verdade, que foi um engano e tudo permanece bem, igual. Quando é alguém conhecido do grande público, a perplexidade se amplifica e o luto se alastra. Já não precisa ser íntimo para chorar e doer. É assim sempre e foi assim com a morte do jornalista Ricardo Boechat, que faleceu após a queda de um helicóptero em São Paulo. O piloto, Ronaldo Quattrucci, também morreu no acidente.
A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos chocou o país. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos encheu de dor o coração da esposa, dos seis filhos, de amigos e colegas que destacam, incansavelmente, sua generosidade e profissionalismo. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos deixou um vazio no jornalismo brasileiro.
Não vou entrar no mérito sobre Boechat ser ou não o melhor jornalista do país. Ele é um ídolo e referência para milhares de profissionais. Assim como há pessoas que o respeitavam, mas que não tinham tanta afinidade com seu estilo. Assim como há pessoas que não gostavam do trabalho dele. Faz parte. É do jogo. Dito isso, é inegável que Boechat era uma voz corajosa e lúcida em um momento delicado.
Não concordei com tudo o que Boechat já disse. Pelo contrário. Frequentemente me incomodava com a forma com que abordava determinados temas. Mas mesmo me incomodando, era importante que um âncora de televisão e rádio de uma grande emissora tivesse a liberdade para sair do script do TP. A sua obsessão pela informação precisa e constante indignação eram mais do que necessárias em tempos de pós-verdade. Mais do que isso, eram uma raridade no jornalismo diário da mídia tradicional. E a prova de sua importância está registrada em diversos momentos marcantes de sua carreira.
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“…pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia”
Em 2015, colocou o dedo na ferida quando disse que era no âmbito de igrejas neopentecostais que acontecia a incitação à intolerância religiosa. Mais que em outras esferas da vida em sociedade. A declaração provocou a fúria do pastor Silas Malafaia, que publicou no Twitter: “Avisa o jornalista Boechat que está falando asneira, dizendo que os pastores incitam os fiéis a praticarem intolerância; um verdadeiro idiota”. O pastor ainda convocou o jornalista para um debate. Em seu programa diário na rádio BandNews, Boechat disse, após mandar o religioso “procurar uma rola”, que Malafaia era “um idiota, um paspalhão, um pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia.”
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“Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber”
Em 2016, após o então deputado Jair Bolsonaro homenagear Brilhante Ustra durante sessão de votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, Boechat não deixou barato. “Registre-se a infinita capacidade do deputado Jair Bolsonaro de atrair para si os holofotes falando barbaridades sucessivamente. […] Torturadores não têm ideologia. Torturadores não têm lado. Não são contra ou pró-impeachment. Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber. São covardes, são assassinos e não mereceriam, em momento algum, serem citados como exemplo. Muito menos numa casa Legislativa que carrega o apelido de casa do povo”.
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“A culpa está no campo da Vale e da fiscalização”
No último programa que comandou, o jornalista Ricardo Boechat chamou a atenção para a impunidade que permeia os grandes desastres no Brasil, como foi o caso de Brumadinho. “A culpa não pode ter recaído sobre o Vaticano, nem na república da Bessarábia. A culpa está no campo da Vale, no campo da legislação”, disse.
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A falta que Boechat já faz é escancarada a partir do momento em que há quem comemore sua morte. Seja porque foi “um artífice do golpe”; “porque criticava Bolsonaro”; ou porque “mexeu com Deus e os pastores”. Uma sociedade em que as pessoas celebram a dor precisa, justamente, de alguém como ele. De alguém que não se intimida diante da ignorância, que não se acanha perante o obscurantismo.
Em O Fim da História, Gilberto Gil disse que não acredita que o tempo venha comprovar ou negar que a História possa se acabar. Na poesia, tanto pode findar quanto pode ficar. “Basta ver que um povo derruba um czar e derruba de novo quem pôs no lugar.”
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Mas e se o tempo vier a comprovar que a História se pode negar?
Ao longo de duas décadas, entre 1964 e 1985, houve suspensão de direitos políticos; não havia eleições para presidente; o Congresso foi fechado; houve restrições à liberdade de imprensa e manifestação; perseguição à oposição; censura à classe artística; exílio forçado; e uma série de outras atrocidades. Os relatos de tortura colhidos pela Comissão da Verdade são assustadores. Choques elétricos, afogamentos, pau-de-arara, cadeira do dragão, estupros, tortura com animais fazem parte de um triste rol de performances desempenhadas pelos militares brasileiros por mais de 20 anos. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
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Pessoas foram torturadas. Pessoas desapareceram. Pessoas foram assassinadas
Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura”
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O presidente eleito ignora os livros de História para eleger as memórias de um torturador como obra de cabeceira. A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça (2006) foi escrito por Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército Brasileiro, ex-chefe do DOI-CODI, um dos órgãos mais atuantes na repressão política durante a ditadura militar no Brasil. Para historiadores, sociólogos e cientistas políticos, não se pode considerar que o livro ofereça precisão histórica. Dr. Tibiriçá, como era conhecido, foi o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante o regime, em 2008. Mas, segundo Bolsonaro, “o período militar não foi uma ditadura.”
O problema em negar a História é que ela é cíclica. Quando se nega a história, ela volta a acontecer. Quando normalizamos autoritarismo e tortura, volta a História e reescreve o capítulo cujo título era pra ser “Nunca Mais”. “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, “Nunca Mais”, “Nunca É Demais”, e assim por diante. Tanto faz.