Igor Natusch

Vídeos de Michel Temer são o abraço de um homem tóxico

Igor Natusch
6 de setembro de 2018

Os recentes vídeos de Michel Temer falando de candidatos à presidência surgiram de forma tão inesperada que ficou difícil, em um primeiro momento, entender o que havia por trás deles. O primeiro, destinado a Geraldo Alckmin, poderia trazer algumas leituras nas entrelinhas, já que muito se referia a partidos da base aliada do atual presidente – que podem, quem sabe, estar em polvorosa com a aparente dificuldade do tucano em decolar nas pesquisas. Veio um segundo, agora chamando o PSDB às caras pela parceria de governo que, agora, tenta a todo custo ignorar, e aí a leitura ganhava outros contornos: poderia ser um grito para não ser abandonado na estrada, ou talvez uma ação calculista para confundir os potenciais eleitores do ex-governador de São Paulo.

Mas aí surge um terceiro vídeo, no qual Michel Temer lança críticas pouco lógicas contra o vice-que-deve-virar-cabeça-de-chapa-do-PT Fernando Haddad. “Leia a Constituição. Tome cuidado, Haddad”, diz ele, por razões que talvez só ele entenda, e todas as tentativas de uma leitura estratégica ou calculista para tais manifestações vão pro espaço.

Trata-se, pura e simplesmente, de orgulho ferido. Temer está passando recibo, para usarmos termos mais populares. O presidente do Brasil está, pura e simplesmente, dodói.

Michel Temer é, hoje, um proscrito. Uma figura tóxica, com quem ninguém deseja ser visto, que ninguém gosta muito de ter por perto.  Seu governo já é um zumbi, e não é de agora – em certo sentido, é assim praticamente desde o início, quando áudios comprometedores o associaram a condutas claramente criminosas, situação da qual só se livrou ao abrir a guaiaca de forma escandalosa. Foi vassalo do próprio Congresso, atropelado em pautas que veste como suas, mas das quais herda a impopularidade e nada mais.

E de impopularidade Temer entende: bateu recordes negativos em pesquisas, sendo execrado por quase a totalidade dos brasileiros. É visto, de forma generalizada, como um traidor que conspirou contra Dilma Rousseff e que, uma vez alçado ao posto que a ela pertencia, esmerou-se em salvar a própria pele e implantar medidas que fizeram ainda mais dura a vida de brasileiros e brasileiras.

Ninguém gosta de Michel Temer – e ele sabe disso tão bem quanto todo mundo, se não ainda melhor.

A situação é tão curiosa que Henrique Meirelles, candidato da situação, simplesmente ignora o governo que representa em seus espaços de campanha. Menciona mais o ex-presidente Lula (que acusa o atual governo de golpe, e que está preso) do que Temer, de quem era ministro até dias atrás. É de se pensar que palavras carinhosas terá Michel Temer a dizer sobre seu candidato presidencial, que ostensivamente finge que o atual governo não existe e recusa-se a colocar o rosto do ex-vice em um panfleto sequer.

Temer é um homem vaidoso. E o rancor que o consome quando sente-se desprezado já rendeu outras situações tragicômicas, como no famoso “verba volant, scripta manent” que mandou para Dilma. Solitário em seu castelo, recebendo desprezo de seus parceiros de artimanhas recentes, viu-se consumido pelo orgulho ferido – e passou a cuspir fel nas redes sociais, em falas cuja linguagem escorreita mal consegue disfarçar a revolta figadal que as motiva.

Se Collor, em tempos idos, pediu que não o deixassem só, Michel Temer adota uma variante amarga: não me deixarão sozinho coisíssima nenhuma. Mesmo que queiram.

A correção (para não dizer a decência) de um presidente ficar dando recadinhos, em plena campanha eleitoral, aos que concorrem para substituí-lo é altamente questionável, mas isso pouco importa em um país cuja política já abandonou qualquer ideia de rito ou civilidade. Trata-se do abraço do homem tóxico, disposto a envenenar o futuro político de todos que dele tentam se escapar. 

E a verdade é que, embora pareça ter pouco de estratégia, o magoado rompante de Temer tem, sim, consequências políticas. Mesmo porque, ao menos no que se refere ao PSDB e seus aliados de momento, as críticas podem ser patéticas, mas estão longe de serem injustas. Geraldo Alckmin já tratou de responder, tanto em público quanto nas redes, às acusações do atual presidente – sinal inequívoco de que entende, e muito bem, o quão danosa essa conexão pode ser à sua já claudicante candidatura. Em um cenário onde a chance de Alckmin ir ao segundo turno parece distante, o recado de Temer pode soar de forma peculiar aos ouvidos de partidos como PP, PTB e DEM – que ainda estão gravitando em torno do cadavérico governo Temer, mesmo aliados à chapa do tucano, e certamente estudam movimentos em uma campanha que, em cerca de um mês, já pode estar no segundo round.

Foto: Reprodução /Twitter

Igor Natusch

Reconstruir o Museu Nacional? Ah, vá.

Igor Natusch
3 de setembro de 2018
Um incêndio de proporções ainda incalculáveis atingiu, no começo da noite deste domingo (2), o Museu Nacional do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na zona norte da capital fluminense

“Não vamos medir esforços para reconstruir o Museu Nacional”

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A frase acima – ou palavras do mesmo efeito – foi dita por diferentes figuras da política brasileira diante do horrendo e desesperador incêndio que consumiu, ontem, o mais antigo e um dos mais importantes polos da história e ciência do país. Figuras como o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já vieram com esse papo.

Para acreditar na sinceridade de propósito dessas declarações, é preciso dispor de uma credulidade de deixar a Velhinha de Taubaté chocada diante de alguém tão ingênuo. Ou os nobres políticos estão milagrosa e subitamente dispostos a dar uma guinada sem paralelos na história de nosso país, ou estão apenas falando como políticos brasileiros costumam falar diante da tragédia, o que é muitíssimo mais provável.

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Ninguém vai reconstruir o Museu Nacional coisa nenhuma

E por vários motivos

Primeiro, porque é impossível. Há, com certeza, gente muitíssimo mais qualificada que eu para listar a quantidade incalculável de itens históricos e pesquisas – inúmeras delas em andamento – arruinadas pelo fogo. E mesmo elas terão dificuldade enorme em dar a real dimensão, absolutamente sufocante e desoladora, de tudo que se perdeu na Quinta da Boa Vista. Não são coisas que se possa reconstruir. Não são objetos empoeirados que alguém possa ter em uma gaveta de casa e doar para o poder público, ou que se possa adquirir em um brique ou brechó. Não existe máquina do tempo para nos ajudar.

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O Museu Nacional, pelo menos em sua maior parte, acabou, e uma grande fatia do que fomos, somos e poderíamos ser está perdida para sempre. Falar em reconstrução é até ofensivo, em semelhante panorama.

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Em segundo lugar, porque os esforços que agora dizem que não medirão já vêm sendo medidos, há décadas, quando se trata de investir na história, na cultura e na ciência do Brasil. Uma reforma – incompleta, mas urgente – do agora extinto Museu Nacional estava orçada em algo como R$ 22 milhões; a manutenção do espaço, com serviços básicos de limpeza e conservação estrutural, não ia muito além dos R$ 520 mil anuais. Mesmo redundante (já que dinheiro para conhecimento, no Brasil, nunca vem), importante frisar que esses valores, meros trocados para o gigantesco orçamento da União, vinham sendo negados ou contingenciados por diferentes governos – em 2018, o museu tinha recebido apenas R$ 54 mil até aqui. O simples fato de a UFRJ, gestora do espaço, estar há décadas às voltas com a falta de repasses federais já nos explica muito do problema que o Museu vivia e que resultou em seu aniquilamento.

Vivemos em um país que limita os já miseráveis gastos com educação por 20 anos, e eu vivo em um estado onde o governo é incansável no esforço de extinguir fundações públicas voltadas à pesquisa, produção e catalogação de conhecimento. O prefeito da cidade atingida pelo desastre demonstra nem saber direito para quê o museu servia, no fim das contas.

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Não existe lobby a favor da ciência no Congresso, não existe bancada das universidades ou gente brigando para incluir pesquisa e conservação no orçamento. Achar que isso tudo mudará de forma mágica é uma pureza de coração da qual, infelizmente, não compartilho.

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Por fim, nenhum político deve ajudar a reconstruir o Museu Nacional porque ninguém se importa, de verdade, com o assunto. Estamos em meio a uma disputa presidencial, e apenas duas candidaturas – Marina Silva (Rede) e a de Lula (PT), que deve ser assumida por Fernando Haddad – trazem propostas para uma política específica voltada a museus. Diante da tragédia, não são poucos os ignorantes que gritam tolices como pedir o fim da Lei Rouanet (responsável por grande fatia dos caraminguás que caem na conta dos museus para reformas e conservação), ou associam a tragédia com as convicções políticas da vez, de forma irresponsável e doentia. O descaso com a ciência e a produção do conhecimento não é exclusividade dos políticos, embora seja uma vergonha que cai fortemente sobre eles: é nossa, também.

Aqui achamos que universitário é vagabundo, que professor não pode fazer greve mesmo ganhando uma merreca, que incentivo à cultura e à ciência é dar dinheiro para gente que só quer mamar nas tetas do governo. Aqui a gente quer tutelar o que se ensina dentro da sala de aula, com um movimento esdrúxulo (Escola Sem Partido) que tem como líder um ator e sub-celebridade que jamais teve qualquer papel em discussões sérias sobre educação. Aqui a gente acha que ciências humanas não são ciência de verdade.

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Não surpreende, no fundo, que o museu mais emblemático do Brasil tenha virado cinzas: é apenas um retrato cruelmente acurado do que boa parte de nós, todos os dias, pede e exige para tudo que se refere a conhecimento nesse país.

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Sei que não sou, nem de perto, o primeiro a sugerir isso. Mas acho que não seria má ideia não reconstruir o Museu Nacional do Rio de Janeiro coisíssima nenhuma. Talvez fosse pedagógico deixar as ruínas do museu lá, ao sabor das intempéries, cobertas de fuligem até que o tempo se encarregasse de derrubá-las de vez. Seria um bom lembrete do nosso descaso por tudo que ele representava, por toda a riqueza que ele trazia dentro de si e permitimos que queimasse numa fogueira de desinteresse, oportunismo e burrice. Não seria uma resposta racional ao horror que testemunhamos, mas nada é racional nesse pesadelo de ignorância e descalabro em que mergulhou o nosso país.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Igor Natusch

Nada de bate-boca – o negócio é mostrar que Bolsonaro não manja nada

Igor Natusch
1 de agosto de 2018

É difícil acertar o tom de sobriedade quando se fala de Jair Bolsonaro. Por um lado, é fundamental demonstrar, de forma séria e enfática, os riscos que sua candidatura traz à claudicante democracia brasileira, bem como à sociedade como um todo. Porém, não seria sábio ignorar que é justamente dessa oposição que o candidato do PSL tira muito de sua força: o confronto é seu espinafre, é no bate-boca que ele se fortalece, e qualquer contestação a ele serve para reforçar, junto a seu eleitorado cativo, a ideia de todos-contra-ele que é o coração de sua tentativa de chegar à presidência.

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Aos que prezam pelo básico em termos de liberdade e direitos fundamentais, a omissão diante de Bolsonaro pode ser trágica. E ir para o confronto direto não ajuda, já que o tensionamento é justamente o que sua candidatura mais deseja. O que fazer, então?

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Quem assistiu ao Roda Viva com Bolsonaro, programa exibido pela TV Cultura na última segunda-feira, teve a chance de tirar algumas pistas. Não acho que a sabatina tenha tido o poder de mudar posições arraigadas: quem sente ojeriza a Bolsonaro saiu ainda mais nauseado, quem o apoia e enxerga nele a vocalização de seus medos e intolerâncias só enxergou motivos para ampliar sua idolatria. De fato, boa parte do programa foi um desperdício nesse sentido, com inúmeras questões voltadas às coisas horrendas que o candidato defende – terreno onde ele se move com desenvoltura, soltando inúmeras frases de efeito para o delírio de seu público cativo. Não há novidade possível nessa abordagem: o deputado fará a sua cena habitual, ganhará aplausos delirantes de seu fandom e ainda poderá usar a repulsa dos oponentes como mecanismo de confirmação. Não é com essa munição que se estoura o balão bolsonarista – com a ressalva, é claro, de que derrubar o candidato Bolsonaro não é, e nem precisa ser, a meta primeira dos jornalista que eventualmente o entrevistem.

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A trilha que surge, a partir das declarações públicas de Bolsonaro, aponta para outro alvo, em outra direção: a linha do meio

Os indecisos

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Porque é inegável que existe uma legião de brasileiros, tomados pelos mais diferentes tipos de angústia, que não odeiam Bolsonaro por definição, mas também não morrem de amores por ele. Talvez nem mesmo o conheçam. Talvez só tenham ouvido falar e, no momento, nutrem não mais que uma pequena antipatia, ou uma simpatia igualmente imprecisa. Em quem esses eleitores votarão – e mais, de que maneira vão escolher, a partir de quais diretrizes e bandeiras decidirão seu voto?

Foi curioso ver o fenômeno de redes sociais tentando abrir o discurso em alguns momentos. Sua expressão ficava tensa, a voz gaguejava, perdia-se toda a desenvoltura tão bem exercida quando o assunto é soltar frases de baixo nível para agradar o eleitorado cativo. Alguns momentos (como a pífia leitura sobre mortalidade infantil e o constrangedor desconhecimento sobre a situação dos trabalhadores do campo) seriam dignos de uma comédia, não fossem o fato apavorante de virem de um candidato à presidência do Brasil.

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Se a interpretação exige um mínimo de conteúdo, o personagem Bolsonaro começa a sorrir amarelo, como um ator pouco competente que esquece as falas segundos antes de entrar em cena. Esse é seu calcanhar de aquiles, a kryptonita que pode derrubá-lo: a sua absoluta falta de conhecimento sobre qualquer coisa que seja relevante para o futuro do país.

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As pessoas querem respostas fáceis, sim. Mas não tão fáceis que nem como respostas consigam convencer. Tire de Bolsonaro seus espantalhos e a tendência é que não sobre muita coisa.

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Menosprezar o candidato do PSL a essa altura do campeonato seria, por certo, uma tolice absoluta. Mas também não nos ajudará em nada achar que a criatura é imbatível – algo que, definitivamente, não é. Esse mesmo Bolsonaro fracassou em obter o apoio do centrão, tão necessário para dar a ele valiosos cabos eleitorais e significativos segundos de rádio e TV. Esse mesmo Bolsonaro enfrenta grandes dificuldades para fechar um vice, algo inusitado para alguém supostamente tão próximo da vitória – nem mesmo Janaína Paschoal, a cada vez mais caricata responsável pelo pedido de impeachment contra Dilma Rousseff, empolgou-se com a ideia de subir no palanque ao lado do mito.

Sua força nas redes sociais é inegável, e sua capacidade de virar centro de todas as discussões relacionadas a direitos fundamentais é para lá de perigosa. Mas ainda está para ser visto até que ponto isso vira apoio na hora da verdade, o quanto isso é capaz de manter viva uma candidatura que estará praticamente ausente das mídias tradicionais, que vai precisar demais das manchetes para não ficar acorrentada às correntes de Whatsapp.

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É preciso expor Bolsonaro aos que, ainda incertos sobre o voto em 7 de outubro, seguem ao alcance sinistro do grito mais alto, da resposta simples ao problema complexo

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Deixar claro que Bolsonaro é feito de vento, e que seus apoiadores, na grande maioria, apenas repetem memes e frases feitas, sem refletir sobre as implicações do que estão dizendo. E me parece fundamental fazer isso com serenidade e frieza – pois a exaltação ou, por outro lado, o deboche são armas que só servem ao culto bolsonarista, independente de quem as esteja empunhando. Para a maioria das pessoas, ironia soa como arrogância, e arrogância desperta imediata antipatia. É preciso fazer o que os jornalistas na bancada do Roda Viva conseguiram poucas vezes fazer, mas sempre com bom resultado: tirar a discussão da gritaria e do bate-boca, reconduzi-la ao embate de ideias. Porque, de ideias, Bolsonaro é um deserto. E quanto mais deserto ele parecer, menos convincente sua figura conseguirá ser.

Pode ser que não dê certo. Afinal, é uma luta dura, e nós já estamos atrasados. Mas é preciso tentar, com firmeza e de forma incansável. A opção é sentar na pracinha e chorar, ou ficar torcendo pelo acomodar das melancias na carroça política nacional – algo que, como temos visto, até pode acontecer, mas está bem longe de ser uma aposta segura.

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Igor Natusch

Lula segue preso, mas habeas corpus o fez mais pré-candidato do que nunca

Igor Natusch
9 de julho de 2018

É possível analisar a lambança em torno da não-soltura do ex-presidente Lula, pedida pelo desembargador Rogério Favreto e protelada de todas as formas até ser inviabilizada, por diferentes ângulos. Na esfera do Direito, para citar apenas o mais óbvio, tivemos um fiasco épico para o Judiciário, que se vê com as entranhas expostas e mais esculachado publicamente do que nunca. Mas me parece mais interessante o aspecto político, porque é de política que estamos falando – de uma guerra política, melhor dizendo, centralizada em um pré-candidato fortíssimo mesmo atrás das grades.

Que as circunstâncias em torno do habeas corpus são, no mínimo, peculiares é algo muito difícil de ignorar. Assim como não há como deixar para lá o passado político de Favreto – ex-filiado ao Partido dos Trabalhadores, integrante de governos petistas, único voto a favor do processo contra Sergio Moro pelo levantamento do sigilo na famosa conversa entre Lula e Dilma. Ingênuo também seria pensar que isso não foi levado em conta na hora de ingressar com o pedido de soltura, no timing quase exato para que fosse Favreto, e nenhum outro, a apreciá-lo. Até na pouco sólida alegação de um suposto fato novo – a dificuldade do pré-candidato Lula de conceder entrevistas a veículos de imprensa – se escancara o aspecto absolutamente político em torno do pedido. Se Favreto decidiu pela própria consciência ou em tabelinha com os impetrantes, no fundo, pouco importa: a manobra é política, seja o desembargador jogador ativo ou mero instrumento na obtenção do gol.

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E que golaço, convenhamos. Menos de dois dias depois do Brasil ser eliminado da Copa do Mundo, toda a atenção midiática do Brasil estava à disposição. Corações e mentes, paixões e ódios irracionais dirigidos imediatamente à carceragem de Curitiba. Soltarão Lula? Eis o que todos se perguntavam.

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E aí o outro time entrou em campo

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Sergio Moro, super-herói da moralidade, surgiu mais rápido que o trovão para, em pleno gozo de férias, trazer uma inovação daquelas: um despacho absolutamente maluco, que ninguém saberá dizer a que tipo de figura jurídica se refere, questionando a autoridade de Favreto e admitindo, de forma tão insólita quanto imprudente, que se aconselharia com o relator no TRF-4, João Gebran Neto, sobre o que fazer.

Temos um juiz de primeira instância, em momento no qual não tem jurisdição nem na própria vara (está de férias, por Deus), dizendo que um desembargador em plantão não tem competência para expedir habeas corpus – aquela que é, convenhamos, a mais óbvia de suas competências. Admitindo que, por fora de todos os procedimentos legais, consultou integrantes da mesma instância para decidir como derrubar um habeas corpus que o incomodava e no qual sequer era coator (afinal, refere-se à juíza da execução de pena de Lula). E sendo em seguida confirmado pelo próprio Gebran, que – sempre alerta e à disposição da Justiça, mesmo nas tardes de folga! – chama para si a decisão de soltura tomada por outro desembargador, alegando que ele é relator do caso. Algo deveras questionável, já que, se há fato novo, a decisão de urgência cabe ao desembargador de plantão. E um habeas corpus do tipo, certo ou errado que seja, só pode ser anulado por decisão do colegiado, ou de instância superior. Ou ao menos assim era, nos tempos em que o ordenamento jurídico valia alguma coisa.

Por fim, a pá de cal. Thompson Flores, presidente do TRF-4, ergue-se em plena folga para, com a autoridade dos grandes árbitros, revogar a decisão de Favreto e coloca ordem na bagunça. Qual o mecanismo que dá a um desembargador, pelo simples fato de ser presidente, poder para revogar a decisão de um colega em pleno exercício do plantão, ninguém sabe direito qual seja. Nunca, na história do Judiciário brasileiro, se ouviu falar que a presidência de um tribunal seja uma instância recursal no próprio tribunal. Mas é o presidente, ora pois: que bom que alguém colocou as coisas em seus devidos lugares!

Não importa muito, a essa altura. O golaço narrativo – de placa, no ângulo – o time dos pró-Lula já pode comemorar.

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Temos, antes de tudo, um recorde: um habeas concedido em período de plantão, não cumprido por aqueles legalmente obrigados a tal e revogado, com velocidade de Usain Bolt e grande criatividade jurídica, durante o mesmo período de plantão. Temos também a narrativa, que já existe há tempos, mas a petição acolhida por Favreto tinha como interesse reforçar: Lula é um preso político, e sua prisão é objetivo, não consequência. E, por fim, o texto nas entrelinhas, ou o canto da sereia, se preferirem: se a candidatura de Lula causa tanto horror, aí sim é que ela não pode ser deixada para trás.

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Um recado para os colegas de trincheira, sem dúvida. E uma leitura que Moro, Gebran e Thompson Flores não tiveram pudores de fortalecer.

Com sua pressa quase maníaca em garantir que o ex-presidente não ficasse solto um segundo sequer, os três escancararam não apenas a vaidade, a visão justiceira do Direito e a falta de respeito pelos procedimentos que, há tempos, consomem o Judiciário brasileiro. Deixaram claro que, quando o assunto é manter Lula fora de cena e o PT longe do poder, nenhum prazo é muito curto, nenhuma ausência é distante demais. Quem ainda achar que são isentos cumpridores da lei, depois da pataquada de domingo, pode retirar sua carteirinha de sócio master do Clube Velhinha de Taubaté no guichê mais próximo.

Numa batalha tão profunda entre narrativas, deixar o adversário nu é uma moeda política valiosa. As chances de Lula concorrer seguem escassas, mas agora ele é – inclusive, e especialmente, no campo simbólico – mais pré-candidato do que nunca.

Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

Igor Natusch

Sim, precisamos falar sobre Bolsonaro. Mas sem perda de tempo

Igor Natusch
20 de junho de 2018
O deputado Jair Bolsonaro durante sessão do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados que instaurou nesta terça-feira (16) processo por quebra de decoro contra o deputado Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

A oposição a Jair Bolsonaro nas redes sociais costuma dividir-se em dois posicionamentos fundamentais. De um lado, estão os que denunciam com indignação crescente as manifestações absurdas e o flagrante desconhecimento de fatos básicos, descrevendo o candidato do PSL com os termos mais enfáticos (quando não agressivos) que estejam à mão. No outro flanco, estão grupos que criticam essa postura, acreditando que cada comentário a respeito de Bolsonaro, mesmo negativo, acaba projetando ainda mais sua figura – o que explicaria não apenas sua popularidade, mas a quantidade crescente de pessoas dispostas a entregar seu voto a ele, já suficientes para elevá-lo ao patamar de figura de frente na eleição presidencial que se avizinha.

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Pessoalmente, concordo bem mais com a primeira leitura do que com a segunda. Mas também penso que é preciso pensar um pouco mais na estratégia, para não desperdiçar munição e acabar acertando no alvo errado.

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Os eleitores de Bolsonaro não são todos iguais. Se fossem, seu teto eleitoral já teria sido alcançado há tempos – o que, convenhamos, é bem diferente do que diferentes pesquisas de intenção de voto têm nos apontado. Se o candidato cresce nos levantamentos, é porque pessoas que antes não levavam seu nome em conta agora o conhecem e enxergam nele uma opção.

Verdade que, com muitos defensores da aterradora candidatura de Bolsonaro, não adianta discutir. São eleitores não apenas cativos, mas obstinados: diante de um cenário político que se esfarela e de um mundo onde enxergam apenas absurdos e riscos pessoais, enxergam na figura do outsider a implosão necessária de um sistema que desprezam, em nome do resgate de um passado melhor que só existe em suas imaginações. Para outros, especialmente ativos nas redes sociais, Bolsonaro é a trollagem perfeita, a desculpa para uma risada debochada e destrutiva. Não interessam os resultados da molecagem: ela vai incomodar os oponentes, e isso basta. São diferentes tipos de desajuste, mas que encontram na figura do candidato não só uma personificação de sua inadequação mas, também, uma chance de ter a última palavra. Esses estão, por assim dizer, fora do alcance: votarão Bolsonaro, e já era.

Mas nem todo mundo é tão sólido em sua opção. Muita gente está chegando agora: pessoas que sentem um profundo desconforto diante de uma política que não compreendem, de ameaças contra as quais se sentem indefesas, de decisões que sempre parecem prejudicá-las e sobre as quais não têm qualquer influência. Sentem que tudo vai mal, e que precisa acontecer alguma coisa, senão tudo ficará pior. Já buscaram super-heróis em diferentes cantos da política e, de uma forma ou de outra, se decepcionaram com eles. Agora, enxergam em Bolsonaro alguém que é, ao menos em aparência, inimigo de todos eles. Em um Brasil onde tudo é desencanto, e na falta aparente de opção melhor, Bolsonaro se fortalece, em uma espécie de manifestação coletiva de desagrado.

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É esse movimento de sedução, essa inclinação coletiva para o abismo, que pode – e deve – ser enfrentada. Com uma postura que fale a esses desencantos, mas que seja capaz de acolhê-los onde possível, sem simplesmente ridicularizá-los e fechar a porta. E que demonstre, da forma mais clara possível, o engodo que Bolsonaro deixa explícito a cada frase, cada posicionamento.

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Bolsonaro não resiste a um debate de ideias. E sabe disso. Todos em torno dele sabem.

É por isso que foge de situações onde será questionado e confrontado: porque seus arremedos de ideia são tão paupérrimos que qualquer argumentação coerente o deixaria nu em questão de minutos, pronto para ser esquecido como a fraude grosseira que de fato é. Quer falar sozinho, porque falando sozinho poderá sempre dizer que deu a última palavra. E é precisamente isso que não pode ter, que não podemos permitir que tenha em hipótese alguma.

A tentação de resumir o espectro político oposto em um ou dois aspectos simples e refutáveis é grande, mas nem sempre traz resultados positivos – isso quando não cria problemas ainda maiores. A verdade é que, hoje, ninguém sabe bem qual é o teto de Jair Bolsonaro. Cabe aos que se opõem a ele (e ao caldo grosseiro e trágico de fascismos, rancores, intolerâncias e incompetências que ele traz consigo) impedir que esse teto cresça.

Deixá-lo falando sozinho, se um dia foi opção, já deixou de ser há tempos: agora, é preciso forçá-lo a falar conosco. E derrotá-lo, o que só é possível (não garantido, mas possível) nesse corpo-a-corpo.

Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

Igor Natusch

Sim, intervenção militar é absurdo – mas é preciso propor alguma coisa

Igor Natusch
28 de maio de 2018
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) determinou aos caminhoneiros que estão parados no acostamento da BR-040, em frente à Refinaria Duque de Caxias (Reduc), que retirem os caminhões.

Para quem preza a liberdade e o progresso social, as manifestações crescentes por intervenção militar são aterradoras. Não apenas ecoam horrores que o Brasil nunca resolveu de fato, mas também demonstram a fragilidade de nossa tentativa democrática e o risco de recuo em tudo que se conquistou, e a duras penas, nas últimas poucas décadas. A qualquer defensor de ideias progressistas e transformadoras cabe o repúdio enfático e intransigente a essa sandice, por menos provável que eventualmente seja, condenando e, se necessário, indo às ruas contra esse fantasma tóxico e grotesco que quer nos roubar a perspectiva de andar para a frente. Intervenção militar é o diabo, em suma. Imagino que estamos todos de acordo quanto a tudo isso.

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A questão é: o que estamos propondo como alternativa a essa tolice de intervenção militar?

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Não muita coisa, sou forçado a dizer. Diante da paralisação dos caminhoneiros – onde esse grito foi intenso, tanto na sinceridade de vários trabalhadores quanto no oportunismo de quem quer sequestrar o movimento para si – a esquerda mostrou incapaz de posicionar-se e agir. Passou o tempo todo tentando cravar uma leitura a respeito: chamou o movimento de locaute e, quando o acordo dos patrões com o governo foi ignorado pelos grevistas, passou a ver em tudo uma conspiração difusa em prol do cancelamento das eleições. Uma leitura, perdoem a franqueza, feita tal uma colcha de retalhos, juntando tecidos de diferentes origens e qualidades e, com eles, construindo uma mortalha de apreensão. Isso nas redes sociais, é claro – porque a esquerda organizada, os partidos políticos e sindicatos nem mesmo nesse patamar chegaram: ficaram boquiabertos, atônitos diante de um movimento de trabalhadores que não conhecem e sob o qual não têm qualquer influência.

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Uma leitura do momento é muito difícil, e é preciso reconhecer isso se temos qualquer pretensão de avançar. Ninguém sabe direito o que está acontecendo, simples assim. Mas, antes de morrer de medo da volta da ditadura, é importante tentar entender na boca de quem o bordão surge e, acima de tudo, o que essas pessoas querem dizer quando o repetem.

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Há desencanto. Há a revolta de quem conseguia viver bem antes, não consegue mais agora e não entende bem por que isso está acontecendo. Há um sentimento enorme de que os políticos, os sindicatos, as organizações e instituições fracassaram, todas, em manter o país nos eixos. Há a certeza de que estão sendo roubados, mesmo sem que saibam bem por quem e por quais meios. De que falta dinheiro para eles, que muito trabalham, e sobra para outros, que parecem fazer pouco ou nenhum esforço honesto para ter tanta coisa a seu favor. E agora, que tanta coisa aconteceu em tão pouco tempo, há a descoberta de um poder de pressão, que consegue atingir muita gente, mas que não se sabe bem como direcionar.

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Diante de problemas complexos, a tendência natural daqueles que não os compreendem a fundo é buscar respostas simples. No momento, só um grupo está oferecendo uma suposta resposta. Simples, definitiva, com a figura heroica que costuma seduzir um país tão chegado em salvadores. Intervenção militar.

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Não se trata, no caso, de ir aos que pedem a volta dos heróis fardados e convencê-los todos, na base da retórica, do disparate que estão pedindo. Mas, sim, de entender as angústias de grupos expressivos e dizer algo a respeito delas, ao invés de perder tempo precioso idealizando as próprias. Uma reforma tributária com taxação de heranças e grandes fortunas, para citar um único exemplo, pode perfeitamente ser colocada na pauta nacional neste momento, em que a tributação de combustíveis está nas discussões de tanta gente. Ou mesmo algo mais radical e transformador, que se proponha a rearranjar o jogo político-econômico e dar a ele outros contornos. Não como forma de convencer os pró-intervenção do que quer que seja, mas de evitar que os que despertam agora para o problema tenham apenas esse slogan tosco para se agarrar.

E mais: que fim levou o espírito transformador da ala progressista? Onde está o brilho nos olhos, a postura que enxerga oportunidades revolucionárias nos momentos de grande incerteza? Se só nos resta mesmo essa leitura amarga e auto-confirmatória, essa falta de disposição em disputar mentes, esse temor paralisante diante do que não está sob controle, então não resta quase nada. Esse fantasma doentio de intervenção militar terá, sim, chance de triunfar – pelo simples motivo de que não estaremos lá para ao menos tentar deter seu avanço. A mudança não surge onde falta o encanto, e não foi plantando amargura que se conquistou o pouco que temos e que estamos tão temerosos de perder.

Foto:  Vladimir Platonow / Agência Brasil 

Igor Natusch

No fundo, Michel Temer sabe que não melhorou

Igor Natusch
24 de maio de 2018
O presidente Michel Temer participa do evento Governo Digital: Rumo a um Brasil Eficiente, no Palácio do Planalto.

O governo de Michel Temer tem utilizado, desde o início, um discurso bem menos de convencimento e muito mais de construção de realidade. Nas falas e nos materiais de divulgação, os últimos dois anos foram uma sequência gloriosa de sucessos, onde tudo melhora a olhos vistos e os olhos que não enxergam, bem, estão com má vontade e não querem enxergar. Trata-se de uma variação da profecia auto-realizável: o elogio auto-confirmatório, que se legitima até mesmo a partir da rejeição dos demais. Uma auto-estima daquelas, vamos combinar.

O problema, por óbvio, é que os acontecimentos nem sempre se moldam tão bem assim ao discurso.

A crise envolvendo a escalada quase diária do preço dos combustíveis (e que resultou numa greve-locaute que já coloca alguma das principais cidades brasileiras em animação suspensa) é, com todas as suas particularidades, mais um sintoma dessa divergência entre argumento e prática. Qualquer um que, ontem, usasse as ferramentas de pesquisa do Twitter poderia ver a hashtag #avançamos – incentivada pelo governo federal como forma de espalhar sua mensagem de quase euforia – lado a lado com notícias cada vez mais alarmantes de rodovias bloqueadas, transportes entrando em colapso por falta de combustível, postos de gasolina elevando preços a valores próximos dos R$ 10. Uma incongruência que chegava a ser tragicômica, com ênfase no trágico.

Em termos de prática política, Michel Temer faz um governo velho, muito velho. Submeteu o país à própria salvação política, em uma farra de emendas parlamentares totalmente contrária ao discurso pretensamente austero de colocar das contas públicas nos eixos. Promoveu, a toque de caixa, uma reforma trabalhista totalmente submissa aos interesses dos grandes detentores de capital, acelerando e multiplicando uma fragmentação/precarização das forças de trabalho que não tem (e nem parece disposto a ter) nenhum plano para minimizar. Assinou, por impulso e desespero político, uma intervenção na segurança do Rio de Janeiro que só trouxe incerteza e mais insegurança, com direito ao revoltante assassinato de uma vereadora no meio da rua. Apega-se a indicadores econômicos imprecisos para enxergar o copo sempre meio cheio, quase transbordando na verdade, e exaltar a chama da recuperação onde se pode ver, no máximo, uma fumacinha. E fala dessas coisas ao país como se fosse fácil iludir as massas ignorantes, sem dinheiro no bolso, trabalhando em condições cada vez piores, com angústia e medo do futuro. Ou como se a opinião delas simplesmente não tivesse qualquer importância.

Queria reeleger-se, Michel Temer. Tão embevecido estava com as próprias histórias gloriosas, e tão temeroso se encontra das consequências de ficar sem cargo eletivo, que achou que poderia reeleger-se. E externou esse desejo, conseguindo gerar apenas um dos mais inusitados casos de vergonha alheia do recente cenário político brasileira.

No fundo, Michel Temer sabe que quase nada melhorou coisíssima nenhuma, mas foi na repetição de ilusões e discursos vazios que sua gestão construiu seu quebradiço castelo, e a ela pretende apegar-se até o fim. Pela manhã, seu fiel escudeiro Carlos Marun criticava a imprensa por assumir que Temer desistiria de ser candidato; à tarde, o próprio ex-vice anunciava que estava abrindo caminho para Henrique Meirelles, que deve ser o nome do MDB na eleição que, ao que parece, se avizinha. Um auto-engano, diga-se, ao qual a própria legenda não se constrange em recorrer: depois de conseguir, com surpreendente sucesso, fingir que não tinha nada a ver com o governo petista ao qual se aliou durante anos a fio e no qual ocupou inúmeros ministérios, agora corrige a má imagem tirando uma letrinha da sigla, como o cidadão que tinge o cabelo e acha que voltou a ser jovem por passe de mágica.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Igor Natusch

Ana Amélia Lemos, os terroristas islâmicos e o voto dos xucros

Igor Natusch
18 de abril de 2018

Se alguém tinha dúvida de que Ana Amélia Lemos resolveu abraçar o discurso raivoso à direita como celeiro de votos, acredito que já deu para perceber que vai ser isso aí, mesmo. Depois de elogiar os que “levantaram o relho” contra a caravana de Lula (agredindo opositores e ameaçando jornalistas no processo), agora a senadora gaúcha achou por bem encorajar uma boataria grosseira e bobalhona, que enxergou na entrevista de Gleisi Hoffmann à rede Al-Jazeera, do Qatar, uma tentativa de convocar terroristas islâmicos para libertar o ex-presidente Lula.

Sim, é isso mesmo que você leu. Uma senadora da República atribuiu à entrevista concedida por outra senadora da República (a uma emissora mundialmente reconhecida, diga-se) o poder de violar a Lei de Segurança Nacional ao convocar “atos de hostilidade”, além de esperar que “essa convocação não seja um pedido para o exército islâmico atuar no Brasil”. Foi exatamente isso que aconteceu. Sei que é difícil acreditar, mas é verdade.

A coisa é tão insólita que chega a dar desânimo de sequer começar a contestar tamanha tolice. A própria Gleisi Hoffmann, ao defender-se da estultice, deixou claro um fato que, independente da simpatia que se nutra ou não pela petista, é notório: ela concedeu entrevistas semelhantes a emissoras de Portugal, França, Espanha e Reino Unido, entre outros países. Por que, então, é a entrevista para a rede árabe que Ana Amélia vê como “grave”? O que há nessa manifestação que não tenha ocorrido nas outras, capaz de despertar a indignação patriótica da senadora do RS?

Estamos todos autorizados a pensar que o que perturba Ana Amélia Lemos é o território onde a emissora está sediada e, em especial, o povo para o qual ela majoritariamente fala. É razoável imaginar, diante de tanto destempero e precipitação, que a integrante do PP tem mais medo de árabes do que de europeus ou seus descendentes, simplesmente porque, bem, são árabes. A menos, é claro, que a senadora deixe de lado o discurso apelativo e, com a compostura que sua posição de congressista exige, aponte de forma clara e serena onde, no fim das contas, sua colega de Casa colocou em risco a segurança nacional.

Se não é capaz de fazê-lo, então que volte ao microfones e ao Twitter, desta vez para pedir desculpas pela bobagem que falou.

O jogo que Ana Amélia Lemos joga é tentador, em especial porque é simples. Ao destilar intolerância e emprestar voz aos fantasmas mais distorcidos criados pelo ódio político, agrada a parcela mais embrutecida dos militantes de seu partido e do espectro direitista gaúcho como um todo. Além, é claro, de garantir manchetes (e comentários em colunas políticas, pois não) no momento em que a eleição se aproxima e todo holofote vale ouro. Em um cenário extremado, escolha seu extremo favorito e garanta alguns eleitores tão xucros quanto fiéis.

Tentador sim, e possivelmente eficiente. Mas arriscado também. Afinal de contas, o córner reacionário está cada vez mais lotado, e a tendência será sempre favorável a quem chegar primeiro. Verdade que a repulsa primal ao PT já elegeu muita gente no Rio Grande do Sul – ajudou, por exemplo, a eleger Lasier Martins, outro que anda flertando com o atraso e resolveu brincar de censor da arte degenerada recentemente. Mas sempre pode chegar o momento em que o eleitor se cansa do tiroteio e aposta em alguém que se venda como conciliador – algo, aliás, que a história política recente do RS também demonstra bem.

Foto: Pedro França / Agência Senado

Igor Natusch

Sem Lula, Ciro Gomes é o alvo – e a artilharia só começou

Igor Natusch
12 de abril de 2018

Se havia dúvida sobre quem se destacaria no campo da centro-esquerda após a saída de Lula da lista de pré-candidatos, as ações de MBL e seus apêndices no começo desta semana deixaram pouca ou nenhuma margem para dúvida. Ciro Gomes (PDT) e sua equipe podem ir se preparando, pois é com ele que os setores mais à direita – incluindo, é claro, o submundo das redes sociais – devem se entreter nos próximos meses.

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O cálculo é simples. Se o seu candidato não vai poder contar com nenhum dos votos que seriam organicamente de Lula (e quanto mais à direita, mais improvável essa herança se torna), o ideal é que esses eleitores sejam pulverizados ao máximo, diminuindo o impacto geral de suas escolhas e aumentando as suas chances de chegar ao segundo turno com os votos que já estão ao alcance.

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Ciro Gomes é o candidato que mais obviamente herda votos de Lula, em especial se o barbudo não fizer uma indicação explícita para alguma outra candidatura. Crítico severo dos rumos de Michel Temer, inúmeras vezes se posicionou a favor de Lula na disputa jurídica que acabou levando-o para a prisão. É visto, de forma difusa, como candidato viável contra o bloco solidamente direitista, e conta com suporte partidário e financeiro bem maior do que Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos, que estiveram mais visivelmente ao lado do ex-presidente nos últimos dias.

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Ciro Gomes adotou uma postura menos explícita em seu apoio a Lula: buscou ser ouvido, mas não ser visto. O que pode ganhar a antipatia de defensores mais entusiasmados do petista, mas evita a geração de imagens que podem prejudicar o pré-candidato do PDT junto ao eleitor mais moderado, que eventualmente deteste Lula, mas também não esteja lá muito inclinado para o lado mais conservador (ou mesmo reacionário) da balança.

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Por tudo isso, Ciro vira alvo, na tentativa de abatê-lo antes que possa decolar. Não foi outra coisa a presença, no começo da semana, do youtuber Mamãe Falei no Fórum da Liberdade: a missão era provocar Ciro, tirá-lo do prumo, colher elementos visuais e midiáticos que possam convencer pessoas a não votar nele. Não deu muito certo (o ridicularizado  nas redes, no fim das contas, foi o próprio aliado do MBL), mas seguirá sendo um objetivo – e considerando o bem conhecido pavio curto do pré-candidato, é temerário dizer que não possa dar certo em uma ocasião futura.

Nesse sentido, a equipe de Ciro Gomes precisa estar atenta. Aliás, me surpreende que os assessores dos pré-candidatos ainda sejam pegos de surpresa pelas ações de provocadores como Mamãe Falei. Todo mundo sabe quem são, o que buscam e de que modo tentam obter o capital político desejado. Cada um dos que trabalham ao lado dos presidenciáveis deveria, por pura questão estratégica, estar preparado para reconhecer essas pessoas e evitar que entrem em contato direto com pré-candidatos. E figuras como Ciro Gomes, por mais experientes e habilidosas que sejam, precisam estar preparadas para agir quando um desses aparecer em sua frente, com respostas afiadas ou, quem sabe, resposta nenhuma. Não é possível que, a essa altura do campeonato de brutalidade que virou a política brasileira, alguém ainda seja traído pela ingenuidade.

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SÓ PARA NÃO PASSAR EM BRANCO:

Diante da mobilização de vereadores e deputados em diferentes esferas, incorporando “Lula”, “Moro” e “Lava-Jato” a seus nomes, não sei se fico tocado pela singeleza da estratégia ou preocupado pela falta de profundidade na hora de expor posições e divergências políticas. É o fenômeno dos nomes com Guarani-Kaiowá (eles mesmos questionáveis talvez, mas certamente mais incisivos enquanto posicionamento) degradado ao nível de bate-boca juvenil e escancarado nos telões de casas legislativas Brasil afora. Mas enfim, não é de hoje que a política brasileira virou um puxadinho do Facebook.

Foto: Murilo Silva/CAPOL

Igor Natusch

Faltava a caserna se assanhar. Agora, não falta mais nada

Igor Natusch
4 de abril de 2018
Brasília - O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas, durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Entre os muitos legados negativos do governo de Michel Temer, a recondução dos militares para o centro do debate político certamente estará entre os mais danosos. À intervenção no Rio de Janeiro, sem estratégia ou linha de ação, seguiram-se ridículas relativizações do caráter ditatorial do regime militar brasileiro, ainda mais servis e deploráveis vindas de quem fez carreira como constitucionalista. A fala insensata e afrontosa do general Villas Boas, que nem vou citar aqui porque já ganhou bem mais citações do que merece, já recebeu a primeira resposta do governo: um afago do ministro Carlos Marun, elogiando o “democrata” que apenas “demonstrou preocupação”.  O Planalto já garantiu que vai ficar quietinho.

Enquanto se revezam, os homens do governo, em bajular o general e jogar panos quentes sobre sua verborreia, atiçam-se os reacionários saudosos da ditadura, enquanto as casernas ficam mais e mais inclinadas a achar que a solução da crise política passa por eles, que políticos não são e nem devem ser.

O que cometeu o general Villas Boas é algo intolerável em qualquer democracia. O Anexo I do Regime Disciplinar do Exército, que trata das transgressões, explicita, entre os artigos 56 e 59, as vedações para manifestação política por parte de militares da ativa – incluindo, no item 59, “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”. Atuar pela estabilidade dos Três Poderes também é uma de suas obrigações. Se o leitor ou leitora acha que a fala cheia de insinuações do general não provocou discussão política nem prejudicou a estabilidade do Judiciário, bem, aí eu não posso fazer mais nada.

A diatribe do general deveria ser imediatamente repudiada por todos os setores democráticos. Nada disso: o Judiciário em geral finge que não ouviu, o TRF-4 chega a dar like no tweet onde a transgressão foi cometida. A Presidência da República, é claro, nada dirá, pois Michel Temer faz um dos governos mais minúsculos já vistos por essa nação, completamente submetido à inglória tarefa de salvar o próprio couro. Com sorte, vai para a história apenas como frouxo e vendilhão, e não como traidor que rifou o Brasil e a democracia para escapar de acusações das quais parece incapaz de se defender.

O Jornal Nacional, ao invés de questionar a conveniência de uma declaração dessas em momento de enorme tensão, encerra sua edição lendo a fala de Villas Boas na íntegra – apenas isso, lendo e dando boa noite, sem nenhum comentário adicional. Folha de S. Paulo e Estadão, para mencionar apenas dois, prestam-se alegremente ao papel de megafone para militares da reserva que bravateiam o retorno do arbítrio. Publicam com destaque anúncios pagos chamando para protestos de verde e amarelo, onde bonecos representando ministros do STF são queimados ao som de Black Sabbath.

Em um cenário desses, tudo tornou-se possível, até mesmo os mais lúbricos delírios dos generais de pijama. Mesmo porque, agora, eles não deliram sozinhos: têm a companhia de generais da ativa que mandam recados públicos ao Judiciário, além do braço forte de muitos jovens soldados com fotos de Jair Bolsonaro na cabeceira, saudosos de um passado glorioso que só existe em suas imaginações.

Os que sentem saudades do pau de arara acham espaço na mídia como se articulistas fossem, como se suas opiniões tivessem espaço na própria democracia que detestam. Para os grupos que vão às ruas nesses últimos dias, nunca houve problema com a corrupção: há, isso sim, um ódio primal e irracional a Lula, ao PT e às imagens difusas de esquerdismo que ambos evocam. Ou seja, nessa saudade doentia de um passado trágico, não nos faltam sequer os fantasmas comunistas de ocasião.

Que a democracia brasileira vive um período de convulsão, isso ninguém com o mínimo de bom senso discute. O núcleo do governo Temer é formado de homens atolados em denúncias de corrupção, enquanto o próprio presidente agarra-se ao foro privilegiado com unhas e dentes, gastando fortunas em emendas parlamentares para convencer um Congresso recheado de gente questionável a votar em seu favor. Ministros do STF dão entrevistas sobre casos que podem julgar como se falassem do futebol do fim de semana, enquanto membros do Ministério Público tratam a si mesmos como protótipos de Messias e fazem jejum para combater a impunidade.

A cadela que pariu o cão bastardo está sempre entrando no cio, e o que não falta no Brasil é ração para alimentar essa ninhada abjeta.

Ainda assim, o conceito de democracia – essa coisa que muitas vezes é miragem, outras tantas utopia, e que boa parte dos que a exigem estão dispostos a rasgar em pedaços na primeira oportunidade – merece ser preservado. É uma boa luta. E não é repetindo como farsa um salvacionismo trágico que só colocou o Brasil na lama que estaremos fazendo algo nessa direção. Ao general, cabe conter sua incontinência verbal e fazer a guarda das instituições em silêncio, ao invés de jogar querosene no fogo que pode consumir tudo que é seu dever proteger.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil