Igor Natusch

Nada de bate-boca – o negócio é mostrar que Bolsonaro não manja nada

Igor Natusch
1 de agosto de 2018

É difícil acertar o tom de sobriedade quando se fala de Jair Bolsonaro. Por um lado, é fundamental demonstrar, de forma séria e enfática, os riscos que sua candidatura traz à claudicante democracia brasileira, bem como à sociedade como um todo. Porém, não seria sábio ignorar que é justamente dessa oposição que o candidato do PSL tira muito de sua força: o confronto é seu espinafre, é no bate-boca que ele se fortalece, e qualquer contestação a ele serve para reforçar, junto a seu eleitorado cativo, a ideia de todos-contra-ele que é o coração de sua tentativa de chegar à presidência.

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Aos que prezam pelo básico em termos de liberdade e direitos fundamentais, a omissão diante de Bolsonaro pode ser trágica. E ir para o confronto direto não ajuda, já que o tensionamento é justamente o que sua candidatura mais deseja. O que fazer, então?

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Quem assistiu ao Roda Viva com Bolsonaro, programa exibido pela TV Cultura na última segunda-feira, teve a chance de tirar algumas pistas. Não acho que a sabatina tenha tido o poder de mudar posições arraigadas: quem sente ojeriza a Bolsonaro saiu ainda mais nauseado, quem o apoia e enxerga nele a vocalização de seus medos e intolerâncias só enxergou motivos para ampliar sua idolatria. De fato, boa parte do programa foi um desperdício nesse sentido, com inúmeras questões voltadas às coisas horrendas que o candidato defende – terreno onde ele se move com desenvoltura, soltando inúmeras frases de efeito para o delírio de seu público cativo. Não há novidade possível nessa abordagem: o deputado fará a sua cena habitual, ganhará aplausos delirantes de seu fandom e ainda poderá usar a repulsa dos oponentes como mecanismo de confirmação. Não é com essa munição que se estoura o balão bolsonarista – com a ressalva, é claro, de que derrubar o candidato Bolsonaro não é, e nem precisa ser, a meta primeira dos jornalista que eventualmente o entrevistem.

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A trilha que surge, a partir das declarações públicas de Bolsonaro, aponta para outro alvo, em outra direção: a linha do meio

Os indecisos

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Porque é inegável que existe uma legião de brasileiros, tomados pelos mais diferentes tipos de angústia, que não odeiam Bolsonaro por definição, mas também não morrem de amores por ele. Talvez nem mesmo o conheçam. Talvez só tenham ouvido falar e, no momento, nutrem não mais que uma pequena antipatia, ou uma simpatia igualmente imprecisa. Em quem esses eleitores votarão – e mais, de que maneira vão escolher, a partir de quais diretrizes e bandeiras decidirão seu voto?

Foi curioso ver o fenômeno de redes sociais tentando abrir o discurso em alguns momentos. Sua expressão ficava tensa, a voz gaguejava, perdia-se toda a desenvoltura tão bem exercida quando o assunto é soltar frases de baixo nível para agradar o eleitorado cativo. Alguns momentos (como a pífia leitura sobre mortalidade infantil e o constrangedor desconhecimento sobre a situação dos trabalhadores do campo) seriam dignos de uma comédia, não fossem o fato apavorante de virem de um candidato à presidência do Brasil.

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Se a interpretação exige um mínimo de conteúdo, o personagem Bolsonaro começa a sorrir amarelo, como um ator pouco competente que esquece as falas segundos antes de entrar em cena. Esse é seu calcanhar de aquiles, a kryptonita que pode derrubá-lo: a sua absoluta falta de conhecimento sobre qualquer coisa que seja relevante para o futuro do país.

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As pessoas querem respostas fáceis, sim. Mas não tão fáceis que nem como respostas consigam convencer. Tire de Bolsonaro seus espantalhos e a tendência é que não sobre muita coisa.

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Menosprezar o candidato do PSL a essa altura do campeonato seria, por certo, uma tolice absoluta. Mas também não nos ajudará em nada achar que a criatura é imbatível – algo que, definitivamente, não é. Esse mesmo Bolsonaro fracassou em obter o apoio do centrão, tão necessário para dar a ele valiosos cabos eleitorais e significativos segundos de rádio e TV. Esse mesmo Bolsonaro enfrenta grandes dificuldades para fechar um vice, algo inusitado para alguém supostamente tão próximo da vitória – nem mesmo Janaína Paschoal, a cada vez mais caricata responsável pelo pedido de impeachment contra Dilma Rousseff, empolgou-se com a ideia de subir no palanque ao lado do mito.

Sua força nas redes sociais é inegável, e sua capacidade de virar centro de todas as discussões relacionadas a direitos fundamentais é para lá de perigosa. Mas ainda está para ser visto até que ponto isso vira apoio na hora da verdade, o quanto isso é capaz de manter viva uma candidatura que estará praticamente ausente das mídias tradicionais, que vai precisar demais das manchetes para não ficar acorrentada às correntes de Whatsapp.

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É preciso expor Bolsonaro aos que, ainda incertos sobre o voto em 7 de outubro, seguem ao alcance sinistro do grito mais alto, da resposta simples ao problema complexo

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Deixar claro que Bolsonaro é feito de vento, e que seus apoiadores, na grande maioria, apenas repetem memes e frases feitas, sem refletir sobre as implicações do que estão dizendo. E me parece fundamental fazer isso com serenidade e frieza – pois a exaltação ou, por outro lado, o deboche são armas que só servem ao culto bolsonarista, independente de quem as esteja empunhando. Para a maioria das pessoas, ironia soa como arrogância, e arrogância desperta imediata antipatia. É preciso fazer o que os jornalistas na bancada do Roda Viva conseguiram poucas vezes fazer, mas sempre com bom resultado: tirar a discussão da gritaria e do bate-boca, reconduzi-la ao embate de ideias. Porque, de ideias, Bolsonaro é um deserto. E quanto mais deserto ele parecer, menos convincente sua figura conseguirá ser.

Pode ser que não dê certo. Afinal, é uma luta dura, e nós já estamos atrasados. Mas é preciso tentar, com firmeza e de forma incansável. A opção é sentar na pracinha e chorar, ou ficar torcendo pelo acomodar das melancias na carroça política nacional – algo que, como temos visto, até pode acontecer, mas está bem longe de ser uma aposta segura.

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Igor Natusch

Sim, intervenção militar é absurdo – mas é preciso propor alguma coisa

Igor Natusch
28 de maio de 2018
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) determinou aos caminhoneiros que estão parados no acostamento da BR-040, em frente à Refinaria Duque de Caxias (Reduc), que retirem os caminhões.

Para quem preza a liberdade e o progresso social, as manifestações crescentes por intervenção militar são aterradoras. Não apenas ecoam horrores que o Brasil nunca resolveu de fato, mas também demonstram a fragilidade de nossa tentativa democrática e o risco de recuo em tudo que se conquistou, e a duras penas, nas últimas poucas décadas. A qualquer defensor de ideias progressistas e transformadoras cabe o repúdio enfático e intransigente a essa sandice, por menos provável que eventualmente seja, condenando e, se necessário, indo às ruas contra esse fantasma tóxico e grotesco que quer nos roubar a perspectiva de andar para a frente. Intervenção militar é o diabo, em suma. Imagino que estamos todos de acordo quanto a tudo isso.

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A questão é: o que estamos propondo como alternativa a essa tolice de intervenção militar?

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Não muita coisa, sou forçado a dizer. Diante da paralisação dos caminhoneiros – onde esse grito foi intenso, tanto na sinceridade de vários trabalhadores quanto no oportunismo de quem quer sequestrar o movimento para si – a esquerda mostrou incapaz de posicionar-se e agir. Passou o tempo todo tentando cravar uma leitura a respeito: chamou o movimento de locaute e, quando o acordo dos patrões com o governo foi ignorado pelos grevistas, passou a ver em tudo uma conspiração difusa em prol do cancelamento das eleições. Uma leitura, perdoem a franqueza, feita tal uma colcha de retalhos, juntando tecidos de diferentes origens e qualidades e, com eles, construindo uma mortalha de apreensão. Isso nas redes sociais, é claro – porque a esquerda organizada, os partidos políticos e sindicatos nem mesmo nesse patamar chegaram: ficaram boquiabertos, atônitos diante de um movimento de trabalhadores que não conhecem e sob o qual não têm qualquer influência.

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Uma leitura do momento é muito difícil, e é preciso reconhecer isso se temos qualquer pretensão de avançar. Ninguém sabe direito o que está acontecendo, simples assim. Mas, antes de morrer de medo da volta da ditadura, é importante tentar entender na boca de quem o bordão surge e, acima de tudo, o que essas pessoas querem dizer quando o repetem.

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Há desencanto. Há a revolta de quem conseguia viver bem antes, não consegue mais agora e não entende bem por que isso está acontecendo. Há um sentimento enorme de que os políticos, os sindicatos, as organizações e instituições fracassaram, todas, em manter o país nos eixos. Há a certeza de que estão sendo roubados, mesmo sem que saibam bem por quem e por quais meios. De que falta dinheiro para eles, que muito trabalham, e sobra para outros, que parecem fazer pouco ou nenhum esforço honesto para ter tanta coisa a seu favor. E agora, que tanta coisa aconteceu em tão pouco tempo, há a descoberta de um poder de pressão, que consegue atingir muita gente, mas que não se sabe bem como direcionar.

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Diante de problemas complexos, a tendência natural daqueles que não os compreendem a fundo é buscar respostas simples. No momento, só um grupo está oferecendo uma suposta resposta. Simples, definitiva, com a figura heroica que costuma seduzir um país tão chegado em salvadores. Intervenção militar.

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Não se trata, no caso, de ir aos que pedem a volta dos heróis fardados e convencê-los todos, na base da retórica, do disparate que estão pedindo. Mas, sim, de entender as angústias de grupos expressivos e dizer algo a respeito delas, ao invés de perder tempo precioso idealizando as próprias. Uma reforma tributária com taxação de heranças e grandes fortunas, para citar um único exemplo, pode perfeitamente ser colocada na pauta nacional neste momento, em que a tributação de combustíveis está nas discussões de tanta gente. Ou mesmo algo mais radical e transformador, que se proponha a rearranjar o jogo político-econômico e dar a ele outros contornos. Não como forma de convencer os pró-intervenção do que quer que seja, mas de evitar que os que despertam agora para o problema tenham apenas esse slogan tosco para se agarrar.

E mais: que fim levou o espírito transformador da ala progressista? Onde está o brilho nos olhos, a postura que enxerga oportunidades revolucionárias nos momentos de grande incerteza? Se só nos resta mesmo essa leitura amarga e auto-confirmatória, essa falta de disposição em disputar mentes, esse temor paralisante diante do que não está sob controle, então não resta quase nada. Esse fantasma doentio de intervenção militar terá, sim, chance de triunfar – pelo simples motivo de que não estaremos lá para ao menos tentar deter seu avanço. A mudança não surge onde falta o encanto, e não foi plantando amargura que se conquistou o pouco que temos e que estamos tão temerosos de perder.

Foto:  Vladimir Platonow / Agência Brasil 

Igor Natusch

No fundo, Michel Temer sabe que não melhorou

Igor Natusch
24 de maio de 2018
O presidente Michel Temer participa do evento Governo Digital: Rumo a um Brasil Eficiente, no Palácio do Planalto.

O governo de Michel Temer tem utilizado, desde o início, um discurso bem menos de convencimento e muito mais de construção de realidade. Nas falas e nos materiais de divulgação, os últimos dois anos foram uma sequência gloriosa de sucessos, onde tudo melhora a olhos vistos e os olhos que não enxergam, bem, estão com má vontade e não querem enxergar. Trata-se de uma variação da profecia auto-realizável: o elogio auto-confirmatório, que se legitima até mesmo a partir da rejeição dos demais. Uma auto-estima daquelas, vamos combinar.

O problema, por óbvio, é que os acontecimentos nem sempre se moldam tão bem assim ao discurso.

A crise envolvendo a escalada quase diária do preço dos combustíveis (e que resultou numa greve-locaute que já coloca alguma das principais cidades brasileiras em animação suspensa) é, com todas as suas particularidades, mais um sintoma dessa divergência entre argumento e prática. Qualquer um que, ontem, usasse as ferramentas de pesquisa do Twitter poderia ver a hashtag #avançamos – incentivada pelo governo federal como forma de espalhar sua mensagem de quase euforia – lado a lado com notícias cada vez mais alarmantes de rodovias bloqueadas, transportes entrando em colapso por falta de combustível, postos de gasolina elevando preços a valores próximos dos R$ 10. Uma incongruência que chegava a ser tragicômica, com ênfase no trágico.

Em termos de prática política, Michel Temer faz um governo velho, muito velho. Submeteu o país à própria salvação política, em uma farra de emendas parlamentares totalmente contrária ao discurso pretensamente austero de colocar das contas públicas nos eixos. Promoveu, a toque de caixa, uma reforma trabalhista totalmente submissa aos interesses dos grandes detentores de capital, acelerando e multiplicando uma fragmentação/precarização das forças de trabalho que não tem (e nem parece disposto a ter) nenhum plano para minimizar. Assinou, por impulso e desespero político, uma intervenção na segurança do Rio de Janeiro que só trouxe incerteza e mais insegurança, com direito ao revoltante assassinato de uma vereadora no meio da rua. Apega-se a indicadores econômicos imprecisos para enxergar o copo sempre meio cheio, quase transbordando na verdade, e exaltar a chama da recuperação onde se pode ver, no máximo, uma fumacinha. E fala dessas coisas ao país como se fosse fácil iludir as massas ignorantes, sem dinheiro no bolso, trabalhando em condições cada vez piores, com angústia e medo do futuro. Ou como se a opinião delas simplesmente não tivesse qualquer importância.

Queria reeleger-se, Michel Temer. Tão embevecido estava com as próprias histórias gloriosas, e tão temeroso se encontra das consequências de ficar sem cargo eletivo, que achou que poderia reeleger-se. E externou esse desejo, conseguindo gerar apenas um dos mais inusitados casos de vergonha alheia do recente cenário político brasileira.

No fundo, Michel Temer sabe que quase nada melhorou coisíssima nenhuma, mas foi na repetição de ilusões e discursos vazios que sua gestão construiu seu quebradiço castelo, e a ela pretende apegar-se até o fim. Pela manhã, seu fiel escudeiro Carlos Marun criticava a imprensa por assumir que Temer desistiria de ser candidato; à tarde, o próprio ex-vice anunciava que estava abrindo caminho para Henrique Meirelles, que deve ser o nome do MDB na eleição que, ao que parece, se avizinha. Um auto-engano, diga-se, ao qual a própria legenda não se constrange em recorrer: depois de conseguir, com surpreendente sucesso, fingir que não tinha nada a ver com o governo petista ao qual se aliou durante anos a fio e no qual ocupou inúmeros ministérios, agora corrige a má imagem tirando uma letrinha da sigla, como o cidadão que tinge o cabelo e acha que voltou a ser jovem por passe de mágica.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Igor Natusch

Sem Lula, Ciro Gomes é o alvo – e a artilharia só começou

Igor Natusch
12 de abril de 2018

Se havia dúvida sobre quem se destacaria no campo da centro-esquerda após a saída de Lula da lista de pré-candidatos, as ações de MBL e seus apêndices no começo desta semana deixaram pouca ou nenhuma margem para dúvida. Ciro Gomes (PDT) e sua equipe podem ir se preparando, pois é com ele que os setores mais à direita – incluindo, é claro, o submundo das redes sociais – devem se entreter nos próximos meses.

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O cálculo é simples. Se o seu candidato não vai poder contar com nenhum dos votos que seriam organicamente de Lula (e quanto mais à direita, mais improvável essa herança se torna), o ideal é que esses eleitores sejam pulverizados ao máximo, diminuindo o impacto geral de suas escolhas e aumentando as suas chances de chegar ao segundo turno com os votos que já estão ao alcance.

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Ciro Gomes é o candidato que mais obviamente herda votos de Lula, em especial se o barbudo não fizer uma indicação explícita para alguma outra candidatura. Crítico severo dos rumos de Michel Temer, inúmeras vezes se posicionou a favor de Lula na disputa jurídica que acabou levando-o para a prisão. É visto, de forma difusa, como candidato viável contra o bloco solidamente direitista, e conta com suporte partidário e financeiro bem maior do que Manuela D’Ávila e Guilherme Boulos, que estiveram mais visivelmente ao lado do ex-presidente nos últimos dias.

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Ciro Gomes adotou uma postura menos explícita em seu apoio a Lula: buscou ser ouvido, mas não ser visto. O que pode ganhar a antipatia de defensores mais entusiasmados do petista, mas evita a geração de imagens que podem prejudicar o pré-candidato do PDT junto ao eleitor mais moderado, que eventualmente deteste Lula, mas também não esteja lá muito inclinado para o lado mais conservador (ou mesmo reacionário) da balança.

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Por tudo isso, Ciro vira alvo, na tentativa de abatê-lo antes que possa decolar. Não foi outra coisa a presença, no começo da semana, do youtuber Mamãe Falei no Fórum da Liberdade: a missão era provocar Ciro, tirá-lo do prumo, colher elementos visuais e midiáticos que possam convencer pessoas a não votar nele. Não deu muito certo (o ridicularizado  nas redes, no fim das contas, foi o próprio aliado do MBL), mas seguirá sendo um objetivo – e considerando o bem conhecido pavio curto do pré-candidato, é temerário dizer que não possa dar certo em uma ocasião futura.

Nesse sentido, a equipe de Ciro Gomes precisa estar atenta. Aliás, me surpreende que os assessores dos pré-candidatos ainda sejam pegos de surpresa pelas ações de provocadores como Mamãe Falei. Todo mundo sabe quem são, o que buscam e de que modo tentam obter o capital político desejado. Cada um dos que trabalham ao lado dos presidenciáveis deveria, por pura questão estratégica, estar preparado para reconhecer essas pessoas e evitar que entrem em contato direto com pré-candidatos. E figuras como Ciro Gomes, por mais experientes e habilidosas que sejam, precisam estar preparadas para agir quando um desses aparecer em sua frente, com respostas afiadas ou, quem sabe, resposta nenhuma. Não é possível que, a essa altura do campeonato de brutalidade que virou a política brasileira, alguém ainda seja traído pela ingenuidade.

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SÓ PARA NÃO PASSAR EM BRANCO:

Diante da mobilização de vereadores e deputados em diferentes esferas, incorporando “Lula”, “Moro” e “Lava-Jato” a seus nomes, não sei se fico tocado pela singeleza da estratégia ou preocupado pela falta de profundidade na hora de expor posições e divergências políticas. É o fenômeno dos nomes com Guarani-Kaiowá (eles mesmos questionáveis talvez, mas certamente mais incisivos enquanto posicionamento) degradado ao nível de bate-boca juvenil e escancarado nos telões de casas legislativas Brasil afora. Mas enfim, não é de hoje que a política brasileira virou um puxadinho do Facebook.

Foto: Murilo Silva/CAPOL

Igor Natusch

Faltava a caserna se assanhar. Agora, não falta mais nada

Igor Natusch
4 de abril de 2018
Brasília - O comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Boas, durante audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, do Senado (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Entre os muitos legados negativos do governo de Michel Temer, a recondução dos militares para o centro do debate político certamente estará entre os mais danosos. À intervenção no Rio de Janeiro, sem estratégia ou linha de ação, seguiram-se ridículas relativizações do caráter ditatorial do regime militar brasileiro, ainda mais servis e deploráveis vindas de quem fez carreira como constitucionalista. A fala insensata e afrontosa do general Villas Boas, que nem vou citar aqui porque já ganhou bem mais citações do que merece, já recebeu a primeira resposta do governo: um afago do ministro Carlos Marun, elogiando o “democrata” que apenas “demonstrou preocupação”.  O Planalto já garantiu que vai ficar quietinho.

Enquanto se revezam, os homens do governo, em bajular o general e jogar panos quentes sobre sua verborreia, atiçam-se os reacionários saudosos da ditadura, enquanto as casernas ficam mais e mais inclinadas a achar que a solução da crise política passa por eles, que políticos não são e nem devem ser.

O que cometeu o general Villas Boas é algo intolerável em qualquer democracia. O Anexo I do Regime Disciplinar do Exército, que trata das transgressões, explicita, entre os artigos 56 e 59, as vedações para manifestação política por parte de militares da ativa – incluindo, no item 59, “discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado”. Atuar pela estabilidade dos Três Poderes também é uma de suas obrigações. Se o leitor ou leitora acha que a fala cheia de insinuações do general não provocou discussão política nem prejudicou a estabilidade do Judiciário, bem, aí eu não posso fazer mais nada.

A diatribe do general deveria ser imediatamente repudiada por todos os setores democráticos. Nada disso: o Judiciário em geral finge que não ouviu, o TRF-4 chega a dar like no tweet onde a transgressão foi cometida. A Presidência da República, é claro, nada dirá, pois Michel Temer faz um dos governos mais minúsculos já vistos por essa nação, completamente submetido à inglória tarefa de salvar o próprio couro. Com sorte, vai para a história apenas como frouxo e vendilhão, e não como traidor que rifou o Brasil e a democracia para escapar de acusações das quais parece incapaz de se defender.

O Jornal Nacional, ao invés de questionar a conveniência de uma declaração dessas em momento de enorme tensão, encerra sua edição lendo a fala de Villas Boas na íntegra – apenas isso, lendo e dando boa noite, sem nenhum comentário adicional. Folha de S. Paulo e Estadão, para mencionar apenas dois, prestam-se alegremente ao papel de megafone para militares da reserva que bravateiam o retorno do arbítrio. Publicam com destaque anúncios pagos chamando para protestos de verde e amarelo, onde bonecos representando ministros do STF são queimados ao som de Black Sabbath.

Em um cenário desses, tudo tornou-se possível, até mesmo os mais lúbricos delírios dos generais de pijama. Mesmo porque, agora, eles não deliram sozinhos: têm a companhia de generais da ativa que mandam recados públicos ao Judiciário, além do braço forte de muitos jovens soldados com fotos de Jair Bolsonaro na cabeceira, saudosos de um passado glorioso que só existe em suas imaginações.

Os que sentem saudades do pau de arara acham espaço na mídia como se articulistas fossem, como se suas opiniões tivessem espaço na própria democracia que detestam. Para os grupos que vão às ruas nesses últimos dias, nunca houve problema com a corrupção: há, isso sim, um ódio primal e irracional a Lula, ao PT e às imagens difusas de esquerdismo que ambos evocam. Ou seja, nessa saudade doentia de um passado trágico, não nos faltam sequer os fantasmas comunistas de ocasião.

Que a democracia brasileira vive um período de convulsão, isso ninguém com o mínimo de bom senso discute. O núcleo do governo Temer é formado de homens atolados em denúncias de corrupção, enquanto o próprio presidente agarra-se ao foro privilegiado com unhas e dentes, gastando fortunas em emendas parlamentares para convencer um Congresso recheado de gente questionável a votar em seu favor. Ministros do STF dão entrevistas sobre casos que podem julgar como se falassem do futebol do fim de semana, enquanto membros do Ministério Público tratam a si mesmos como protótipos de Messias e fazem jejum para combater a impunidade.

A cadela que pariu o cão bastardo está sempre entrando no cio, e o que não falta no Brasil é ração para alimentar essa ninhada abjeta.

Ainda assim, o conceito de democracia – essa coisa que muitas vezes é miragem, outras tantas utopia, e que boa parte dos que a exigem estão dispostos a rasgar em pedaços na primeira oportunidade – merece ser preservado. É uma boa luta. E não é repetindo como farsa um salvacionismo trágico que só colocou o Brasil na lama que estaremos fazendo algo nessa direção. Ao general, cabe conter sua incontinência verbal e fazer a guarda das instituições em silêncio, ao invés de jogar querosene no fogo que pode consumir tudo que é seu dever proteger.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Igor Natusch

Do relho, já chegamos nos tiros – e a tendência é descer ainda mais

Igor Natusch
28 de março de 2018

Meter tiros em ônibus no meio da estrada não é uma questão de debate político: é um caso de polícia. É coisa de jagunços, de coronéis do interior, de bandidos. Atirar contra um dos ônibus da comitiva de Lula na Região Sul constitui um atentado, e os envolvidos precisam ir, todos, para a cadeia. Nenhuma diferença faz se Lula está condenado em segunda instância: dar tiros em veículo transportando um condenado é crime do mesmo jeito. Já íamos mal com apedrejamentos, bloqueios para evitar que a comitiva entrasse em municípios, ameaças a jornalistas, agressões e tudo mais. Com os balaços, descemos ao nível da imundície e da infâmia. Relativizar isso – ou as graves ameaças contra o ministro Edson Fachin, para citar outro exemplo – é ser tosco e estúpido, é perder completamente a civilidade. É colocar-se, intelectualmente falando, abaixo dos animais de fazenda.

 

Mas esse crime, embora crime seja antes de tudo, tem um elemento político indiscutível. Demonstra, de forma escancarada, como nosso ambiente democrático degradou-se ao ponto da intolerância xucra e bestial. E deixa claro, em diferentes ângulos, que o fair play político já era no Brasil, com consequências nefastas que recém estamos começando a vivenciar

 

Para que a política institucional funcione, é preciso que certas regras sejam levadas a sério. Nunca será um jogo limpo, e interesses poderosos sempre estarão influenciando todos os movimentos: isso é notório, e não é a esse aspecto que me refiro. Mas é preciso, no mínimo, acreditar que o jogo vai ser limpo. Alguns freios comuns precisam existir, senão não existe jogo, nem tabuleiro, nem nada.

 

Esse acordo de cavalheiros não existe mais. Já vinha deteriorando desde bem antes do impeachment de Dilma Rousseff, mas desde que ele se tornou realidade – e não pelo impedimento em si, mas pelo modo como foi conduzido – o processo acelerou de forma desoladora

Quando o lado que perde a eleição não reconhece que deve ser oposição, um equilíbrio fundamental se desfaz. Basta lembrar dos pedidos de recontagem de votos, feitos pela candidatura de Aécio Neves logo após o segundo turno da eleição (e sem nenhum fiapo de suspeita concreta, vale lembrar) para perceber que o resultado da urna nunca foi aceito e que nasce ali, e em nenhum outro ponto, a ideia de tirar Dilma da presidência. Ou alguém dirá que a denúncia veio antes da vontade de encontrá-la, alguém terá esquecido como se tateou, de acusação em acusação, até encontrar uma que tivesse o mínimo de solidez? Some-se essa recusa em aceitar a derrota a um temor coletivo da classe política acossada pela Lava-Jato e surge um cenário onde cavalheiros atraiçoam uns aos outros e o tabuleiro é chutado para longe, sem cerimônia.

Aponto essas coisas não para lamentar a saída da ex-presidente em si, mas para frisar a gravidade do abalo que o processo atabalhoado de sua derrubada acabou gerando. Do ponto de vista estritamente institucional, foi um desastre.

 

Em um cenário que já era de acirramento, o impeachment liberou o dedo no olho, a cusparada na cara. Uma situação explosiva, ainda mais grave na medida em que o ódio foi transformado, de forma doentia e irresponsável, em arma política.

 

Quando a senadora Ana Amélia Lemos, de modo chocante e irresponsável, parabenizou atos de pura violência contra a caravana de Lula (que depois, frisemos, ela tratou de minimizar como “força de expressão”), ela reproduziu, em termos próprios, essa sensação de que o dedo no olho está liberado. Quando, anteriormente, a senadora Gleisi Hoffmann disse que haveria “muitas mortes” caso prendessem Lula, também amplificava esse sentimento. Se o golpe de relho for nas paletas dos opositores políticos, tudo bem; se prenderem um dos meus, não se surpreendam se tiver sangue. Isso para não mencionar o governador paulista e presidenciável Geraldo Alckmin, que achou por bem dizer que o PT e Lula “colhem o que plantaram” quando levam tiros na estrada. Uma fala desastrosa, pois nenhum posicionamento civilizado sobre uma tentativa de homicídio pode começar por qualquer outro ponto que não seja a condenação imediata, enfática e sem ressalvas de semelhante absurdo.

São falas e ações que, vindas do ambiente político, são profundamente preocupantes, simplesmente porque legitimam o ódio e a deslealdade contra o opositor político. Quando todas as instituições fraquejam e os líderes políticos não se constrangem com a infâmia, o que se pode esperar de quem pouco ou nada entende de política, pouca ou nenhuma base intelectual tem para interpretar e enfrentar semelhante caos? Quando até os nossos maiores representantes dizem que o jogo institucional não vale nada, como se pode esperar que os mais xucros entre nós respeitem suas regras? Resta a nós um mergulho nessa piscina de pesadelo, onde uma vereadora é metralhada e hordas se dedicam a caluniar seu cadáver, onde metem tiros em um ônibus que carrega ex-presidente e se diz que é bem feito, onde a família de um ministro do STF é ameaçada de morte e há quem dê risada.

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Do relho, já chegamos no tiro – e agora,

quão mais baixo podemos afundar?

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Há muitos, muitos outros aspectos que se poderia analisar no gravíssimo momento que vivemos. Por enquanto, fico nesse. Quem poderia dizer para baixarmos a bola está encorajando o carrinho desleal. Não há perspectiva positiva, menos ainda com a decisão sobre a prisão de Lula batendo à porta. A violência virou argumento, tanto nas redes sociais quanto nos palanques, e nos resta esperar que os incitadores da pancadaria respondam, em algum momento, por sua irresponsabilidade.

Foto:  MST Brasil / Divulgação

Igor Natusch

Um STF amigo do rei não é capaz de proteger a democracia

Igor Natusch
14 de março de 2018

Ninguém precisa simpatizar com o ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para concordar com ele sobre o patético encontro da presidente do STF, Cármen Lúcia, com o presidente da República, Michel Temer. Segundo ele, o papo informal entre ambos, ocorrido no último final de semana, causa “perplexidade“. Está certo: é de deixar qualquer um perplexo, mesmo.

Claro que os nomes máximos do Executivo e do Judiciário podem (muitas vezes devem) se encontrar para discutir questões de interesse nacional. Mesmo que o presidente tenha contra si acusações graves e enfrente uma inédita quebra de sigilo bancário durante o mandato, ele ainda é o presidente e tem obrigações que exigem uma interlocução com o Supremo.

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O que não dá para engolir é que isso seja feito sem a liturgia que um encontro entre poderes exige – e que se mostra ainda mais indispensável em uma situação de incerteza profunda sobre os rumos da nação.

 

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Quem não gostaria de sentar na sala de estar da ministra Cármen Lúcia e discutir questões de seu interesse em um ambiente informal, talvez desfrutando de café recém-passado e bolinhos de chuva? Terão os advogados do ex-presidente Lula, que tanto pleiteiam uma definição sobre o cumprimento de penas em segunda instância, a perspectiva de uma acolhida tão calorosa? A Sepúlveda Pertence, integrante da defesa de Lula e igualmente interessado nos desdobramentos na alta corte, Cármen Lúcia dedicou a formalidade de um encontro de gabinete, ao final de uma manhã de meio de semana, sem salamaleques ou intimidades exageradas.

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Está totalmente correta, é claro. Errada esteve antes, ao aparecer sorridente ao lado de Michel Temer dentro da própria casa.

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Aliás, a insistência de Cármen Lúcia em não pautar a resolução sobre o imbróglio em torno do cumprimento de penas de segunda instância merece um parênteses. Finge firmeza, a ministra, ao dizer que não se dobra a pressões, que evita um comportamento casuístico. Não é igualmente casuístico deixar de discutir uma questão absolutamente central para a segurança jurídica do País, apenas para não causar a impressão de estar favorecendo uma figura pública? Não será preocupante (para não dizer catastrófico) deixar uma incerteza dessas pendendo sobre todos, manter um cenário onde ninguém sabe direito se o condenado em segunda instância ainda pode recorrer em liberdade ou não, apenas porque se quer bancar o jogo do sério com os defensores do pré-candidato?

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Não é firmeza: é teimosia, e talvez possa ser coisa pior. Coloca o Brasil em uma panela de pressão, de forma perigosa e potencialmente insustentável.

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Quando a presidente do STF recebe o mandatário da Nação em sua casa, fora do horário de expediente, para um dedo de prosa a portas fechadas, está passando um recado horroroso para os brasileiros. E está reforçando a leitura coletiva de que o Supremo é um clube de amigos, severo apenas com os que estão do lado de fora, caloroso e sorridente com os integrantes de seu círculo de poder. Ou alguém é ingênuo ao ponto de achar que a troca de ideias entre Cármen e Temer tratou somente da intervenção no Rio e da situação dos presídios, sem entrar no tema do inquérito sobre as propinas da Odebrecht, que envolve diretamente o presidente?

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Se os temas eram formais e republicanos, o que impedia a discussão durante o expediente? Ou será que a agenda da presidente do Supremo é cheia de coisas mais importantes do que conversar com o líder do Executivo, ou vice-versa?

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Uma alta corte que, de guardiã da Constituição, transformou-se em editora e reescritora da mesma, ao ponto de abrir margem para coisas juridicamente complicadíssimas, como achar que trânsito em julgado pode acontecer antes de todas as esferas recursais estarem esgotadas. Um STF que, ao invés de ser uma constância em tempos difíceis, transformou-se em ator da crise, em uma força que intensifica conflitos e amplia a sensação geral de incerteza e desalento. Uma casa que julga para um diferente do que julga para outro, ao ponto de submeter a própria Cármen Lúcia a um dos momentos mais vexatórios de sua carreira jurídica, que vai à imprensa antecipar juízos e opinar sobre questões em aberto sem constrangimento, que reveza a agilidade de um puma com a lerdeza de um caramujo dependendo de quem está na berlinda.

Quem poderá, diante de semelhante lista de problemas, dizer que o STF é confiável, que sobre os seus não paira dúvida, que é possível contar com ele para ser a rocha sólida em tempos de caótica fluidez? E que democracia poderá sobreviver quando não se confia naquela que deveria ser a voz serena, que se faz ouvir apenas quando tudo o mais fraqueja, que protege a lei maior como bem mais precioso? O que nos resta quando o STF não se constrange em aparecer como amigo do rei, colocando a estabilidade e a própria Justiça em risco?

Foi nesse cenário, e em nenhum outro, que Cármen Lúcia acenou sorridente ao lado de Michel Temer no fim de semana. Pelo jeito, até os ateus terão que pedir que Deus proteja o Brasil, porque essa tarefa o STF não dá pinta de que vá cumprir.

Foto: TV Globo/Reprodução

Igor Natusch

No julgamento de Lula, temos um vencedor: o próprio Lula

Igor Natusch
24 de janeiro de 2018

Escrevo na noite anterior ao julgamento em segunda instância do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, realizado no TRF-4, em Porto Alegre. Não sei, portanto, qual foi a decisão dos três desembargadores – embora, neste momento, pouca ou nenhuma dúvida haja de que Lula será condenado. É o cenário, e muito dificilmente cenários urdidos durante tanto tempo se desfazem assim, em questão de poucas horas.

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Mesmo assim há algo que, penso eu, pode ser dito com bastante segurança, sem muito medo de errar: em sua estratégia, Lula venceu

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Mesmo que seja efetivamente declarado culpado. Mesmo que fique de fato inelegível, não podendo concorrer (e muito possivelmente vencer) em outubro deste ano. Mesmo que acabe atrás das grades, símbolo final de um discurso que atribui ao governo petista nível nunca antes vistos de corrupção e crime organizado. Ou, quem sabe, seja justamente a partir desses elementos que a vitória do discurso de Lula, já garantida, se tornará ainda mais definitiva

Desde o impeachment de Dilma Rousseff, e até antes disso, tudo tem se tratado de um confronto entre narrativas. A que retrata a ex-presidente Dilma como uma injustiçada, pessoa íntegra condenada por criminosos sem ter cometido crime algum, teve considerável sucesso – mas nem se compara ao enredo em torno de Lula, herói dos pobres brasileiros, caçado pelos poderosos e corruptos de sempre e que agora armam para neutralizá-lo, enquanto se atropelam para destruir o legado que o bom homem deixou. Defendê-lo, injustiçado que é, torna-se algo além de sua própria figura, embora sem nunca apagá-la: agora, trata-se de defender a própria democracia brasileira, assaltada por gananciosos e perversos em um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo.

Foi uma construção insistente, desgastante até em certos momentos, erguida a partir de uma disposição inabalável e do poder inegável de uma oratória singular. Pouco importa nosso grau de adesão a essa narrativa: o fato é que ela foi bem-sucedida. Colou. E muito.

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Não são poucos os que verão justiça, total ou parcial, na condenação pelo TRF-4. Mas é quase inescapável a sensação coletiva de que Lula não teve um julgamento justo, de que no mínimo gente muito pior conspirou contra ele e continua aí, livre e sem medo de punição

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Uma pessoa que se crê presa injustamente, mesmo atrás das grades, não se vê manchada pelo veredito. Ao contrário: no olhar de fora, são os algozes que ficam marcados pela injustiça cometida

Todos sabem disso, inclusive – e talvez especialmente – seus oponentes políticos. Se temos visto diferentes adversários de Lula – de Michel Temer a João Dória, passando por Fernando Henrique Cardoso – dizendo que seria melhor Lula passar pelo dito julgamento das urnas, sem perder seus direitos políticos, certamente não é por caridade, muito menos por convicção. Na verdade, esse cálculo não faz muito esforço para esconder seu principal subtexto: ninguém quer pagar a conta de ser associado a um eventual impedimento do ex-presidente.

Tendo iniciado de fato sua campanha há mais de seis meses, liderando com folga em todos as pesquisas, o barbudo conseguiu transformar em problema não só a sua candidatura, mas também (e talvez mais ainda) as consequências de acabar com dela. Sem ele, ninguém sabe exatamente para onde esses votos possam ir – mas certamente não irão para quem é visto pelos seus eleitores como responsável por essa interdição. A bravata de que Lula pode ser derrotado no voto, mais que aposta, torna-se forma de negar que haja motivos para impedi-lo de candidatar-se.

O que temos, então, é uma ala contrária prestes a obter uma grande vitória, mas que se recusa a erguer a taça de seu triunfo. Enquanto o suposto derrotado discursa para mais de 50 mil pessoas às vésperas de sua suposta ruína, os guerreiros de verde e amarelo que inundaram as ruas contra Dilma agora contam-se nos dedos da mão. Alguém acha mesmo que, uma vez declarado culpado, Lula cairá imediatamente em vergonha pública, que cuspirão nele nas ruas, que todos o verão como corrupto e malfeitor?

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É claro que não.

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Se escapar da sentença, vira milagreiro e avança de forma quase irresistível para o triunfo nas urnas. Se for condenado, vira mártir, sem perder quase nada da imagem pública que agora ostenta. Mesmo perdendo, não sai derrotado. E a prisão do ex-presidente, que o lado oposto tentava vender como golpe final no maior esquema de corrupção que o País já viu, não ostenta mais boa parte de seu apelo inicial – esvaziando, nesse processo, a própria narrativa que a sustenta

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Essa vitória é poderosíssima, e frisá-la nunca será demais. Lula, uma vez mais, reafirma-se como gênio das massas e uma das figuras mais importantes da história política do Brasil – desta vez, em um cenário hostil como poucas vezes alguém terá enfrentado, seja aqui ou em qualquer outro lugar. Não é preciso gostar dele (ou desejá-lo presidente no ano que vem) para reconhecê-lo.

Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

Igor Natusch

Bolsonaro entrou na mira – e é melhor Jair se acostumando

Igor Natusch
10 de janeiro de 2018
Brasília - O deputado Jair Bolsonaro durante o adiamento da votação de processo contra Jean Wyllys (Wilson Dias/Agência Brasil)

Não tem sido uma semana boa para Jair Bolsonaro e seus defensores nas redes sociais. Já começou delicada, com reportagem sobre a rapidez inusitada com que a família do deputado federal somou imóveis a seu patrimônio, alguns em pechinchas sinceramente difíceis de acreditar. Continuou com a lista de perguntas não respondidas pelo parlamentar, além do recebimento mensal de auxílio-moradia quando é notório que Bolsonaro tem imóvel em Brasília para morar. Tentando neutralizar a maré negativa, tentou o presidenciável mencionar o dinheiro que devolveu à Câmara Federal – só para, logo em seguida, ver nas manchetes os mais de R$ 770 mil que ele diz ter entregue, mas que nunca efetivamente repassou. Agora, a Folha de S. Paulo manda um editorial que, digamos, longe está de ser conciliador em direção ao provável candidato presidencial.

Os protestos contra as “fake news” foram muitos, além de uma verdadeira corrente-para-frente de passadores de pano. Mas, parafraseando os próprios apoiadores de Bolsonaro, eu diria: é melhor Jair se acostumando. Porque não é nada difícil prever que a carga sobre ele está só começando, e tende a ficar ainda mais cerrada daqui para frente

 

Entre tantas outras coisas, política é questão de timing – e isso vale tanto para o momento de tomar posição no cenário quanto, eventualmente, para atacar. Desde o fim do ano passado já é claro que setor significativo do poder financeiro e da mídia não quer Bolsonaro, desenhando o pré-candidato como um dos extremos a combater (o outro sendo Lula). Manobra que, por óbvio, abre a trilha para um terceiro nome, supostamente mais conciliador que ambos e capaz de unir as duas pontas e pacificar o país. É algo que tende a ganhar contornos mais visíveis daqui para frente – especialmente porque ninguém que faça diferença parece, no momento, disposto a divergir dessa estratégia e endossar Bolsonaro em sua empreitada presidencial.

Temos um paradoxo, aqui. Bolsonaro é o segundo nas intenções de voto, segundo as mais recentes pesquisas; mesmo assim, nenhuma grande figura política se aproxima ou busca articulação. O único até agora foi Onyx Lorenzoni, cujo destaque é apenas regional e que há tempos briga (sem sucesso) por supremacia dentro da própria sigla, o DEM. Praticamente ninguém que leva sua carreira política a sério no Brasil quer tocar a candidatura Bolsonaro, por um singelo motivo: porque sente que, ao menos no atual momento, ele é uma figura tóxica.

Quando falo em “tóxica”, não estou me referindo exatamente às ideias reacionárias e doentias, ao discurso odioso, ou mesmo à escancarada incompetência parlamentar do pré-candidato. Muito mais importante que isso é a falta absoluta de estofo no que de fato interessa. Bolsonaro é um ignorante total em economia – se duvida, basta assistir esse vídeo de uma entrevista com Mariana Godoy, onde a incapacidade dele fica impossível de contornar.

Suas tentativas de vender a si mesmo como alguém sintonizado com as necessidades dos investidores, aqui e lá fora, foram grandes fracassos. E não vai ser o raquítico fundo partidário do PSL, partido vampirizado da vez, que vai colocar na rua uma campanha eleitoral efetivamente capaz de vencer.

 

Aí está, em resumo, o ponto decisivo que faz a candidatura de Bolsonaro esfriar: ele não é, nunca foi e possivelmente não conseguirá ser o candidato do poder financeiro. E isso é mais que suficiente para inviabilizar todo o resto

 

Bolsonaro só tem a seu favor o potencial viral, o encanto do outsider. Não entende nada de um dos temas centrais do cenário brasileiro atual, e é intelectual e politicamente incapaz de articular com quem entende. Não deve ser menosprezado de forma alguma, mas tampouco deve ser alçado a um status de quase imbatível que ele, claramente, não foi capaz (ainda, pelo menos) de atingir. A pose que adota é a de um fenômeno irresistível, mas o fato é que Bolsonaro está bem menos forte do que gosta de dar a entender.

 

Não há como cravar coisa alguma no cenário atual, mas a tendência, hoje, é que candidatura chegue ao período eleitoral bem mais anêmica (política e financeiramente) do que precisaria, em um partido nanico e com setores significativos atuando concretamente para não oferecer a ela qualquer chance de sucesso

 

Pesquisas são importantes, mas não são apenas elas que decidem para onde a grana vai. São retrato de um momento, de possibilidades ainda não concretizadas; indicam, sim, mas não garantem nada. E se o homem que se destaca nelas é incapaz de garantir qualquer coisa a quem alavanca campanhas no Brasil, não é de se duvidar inclusive que sua corrida pelo Planalto acabe ficando só na promessa, trocada por um alvo mais fácil de atingir, como uma reeleição na Câmara ou um novo cargo no Senado. Afinal, sua pífia atuação parlamentar tem sido, há décadas, seu ganha-pão, e perder a Presidência não deve render muitas palestras e consultorias a alguém como Bolsonaro, se é que vocês me entendem.

Se o jogo é, como deduzo, delimitar dois radicais para surfar entre eles, Bolsonaro pode preparar o lombo. Lula já está emparedado; em poucas semanas, a tendência é de que se confirme sua condenação em segunda instância. Saindo o barbudo do combate, o radical a ser abatido passa a ser Bolsonaro. E suspeito que só a imagem de mito de redes sociais, sem qualquer suporte real e palpável por trás, pode ser insuficiente para segurar a onda.

Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

Igor Natusch

O julgamento de Lula não vai acabar bem – e é isso que muita gente quer

Igor Natusch
4 de janeiro de 2018

O clima em torno do julgamento em segunda instância de Lula, que acontece no fim de janeiro em Porto Alegre, é tenso meio que de nascença. Que teremos enormes protestos e ruidosos antagonismos, isso até as formigas que andam no meio-fio em frente ao TRF-4 sabem. Mas é fácil constatar que nossas autoridades não trabalham no sentido de passar tranquilidade e mediar eventuais conflitos, mas sim de tensionar ainda mais a situação, criando algo próximo de uma preparação para a guerra civil.

De início, a Justiça decidiu proibir acampamentos do MST no entorno do TRF-4, em especial no Parque da Harmonia, que fica nas proximidades. Uma medida duplamente insólita, pois impede o que não é crime (ou cometiam crime os que estavam no Acampamento Sérgio Moro, no Parcão?) e proíbe algo que, convenhamos, os trabalhadores sem terra nunca pediram autorização para fazer. Essa semana tivemos a truculenta abordagem policial ao repórter fotográfico Guilherme Santos, do Sul21, que foi interrompido de arma em punho porque “alguém” achou “suspeito” que ele estivesse fotografando a fachada do TRF-4. E agora temos Nelson Marchezan Júnior, prefeito de Porto Alegre, pedindo a Força Nacional na capital gaúcha para os dias de julgamento – algo que, pelo jeito, não consultou ninguém para fazer, nem mesmo o gabinete de crise estabelecido no governo estadual para tratar do tema. E que já foi desconsiderado pelo secretário estadual de Segurança Pública.

Há um elemento específico no inesperado pedido de Marchezan, que se revela em suas próprias palavras, quando diz que assim procede devido às “manifestações de líderes políticos, que convocam uma invasão de Porto Alegre“. Lembrando que, quando das marchas em favor do impeachment de Dilma Rousseff, o próprio Marchezan participou abertamente, inclusive subindo ao carro de som para falar à massa. Como vem fazendo com frequência em seu governo, Marchezan fala a um público particular, que odeia e teme tudo que entende como petralha e/ou esquerdista, e faz uso de seu apoio imediato como um elemento de legitimação. Mas é possível ir além.

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Não é apenas Marchezan que deseja a cidade hostil a manifestações neste momento, não é só ele que age para impedir completamente o que seria um grande grito coletivo dos que se reúnem em torno de Lula

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São reações a algo mais concreto do que o medo de conflitos: há, como subtexto dessas iniciativas todas, uma vontade de deslegitimar a manifestação de um dos lados e, ao mesmo tempo, abrir a brecha para descer o sarrafo, caso ela ocorra. Incluindo aí a imprensa, que tem como dever profissional fazer a cobertura de tudo que acontecer dentro e fora do tribunal.

O clima para julgar Lula não tinha como ser agradável, é claro. Mas vivemos uma certeza de conflito, uma garantia de repressão brutal a qualquer manifestação favorável ao réu, que está longe de ser inevitável. Assim será porque a preocupação não é democrática, mas sim com a supremacia de uma teoria e a prevalência de uma ideia.

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O gesto desastrado de Marchezan (mais um de uma longa lista, vamos combinar) é mais um sintoma de como a prefeitura de Porto Alegre está mergulhada em uma disputa ideológica que a ela deveria dizer pouco respeito, mas martelar demais em cima disso me parece, para usar o termo técnico, chutar cachorro morto

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Ele acaba sendo, seja por oportunismo ou falta de traquejo político, mais um sintoma de algo maior e, sinceramente, bem mais grave

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A beligerância e a intolerância são estratégias. Protestos pacíficos, como sabemos, só se agradam aos poderes estabelecidos e/ou as conveniências de momento. Assim era no próprio governo de Dilma Rousseff, que editou a esdrúxula lei antiterrorismo e reprimiu com gosto as manifestações durante a Copa do Mundo, para citar só um exemplo. No momento, os partidários de Dilma estão do lado que se prefere que fique quieto, mas o que deve ser protegido aqui não é a posição que defende Lula como um injustiçado, mas sim os alicerces mais básicos da livre manifestação. Não se justifica jogar tudo para o alto em nome de um alegado clima de guerra insuflado pelos mesmos setores que tratarão depois de, supostamente, debelá-lo. A democracia, amigas e amigos, vai muito mal no Brasil, e fica cada vez mais claro quem, no fundo, nunca deu a ela tanto valor assim.

Foto: Guilherme Santos/Sul21. A realização de imagens como esta foi a “atitude suspeita” que levou à abordagem, de arma em punho, por integrantes da Brigada Militar, no começo desta semana