Geórgia Santos

Racismo é coisa de branco 

Geórgia Santos
14 de novembro de 2017

Em um vídeo que vazou na semana passada, o jornalista William Waack condenou determinado comportamento como “coisa de preto”, se referindo à toda a comunidade negra com um desprezo que se nota também em seus olhos, na expressão corporal. Ele foi afastado de suas funções pela Rede Globo e o episódio provocou, em um primeiro momento, a esperada e adequada indignação. Mas os defensores não demoraram a aparecer, alegando que era uma frase fora de contexto, que foi um comentário inocente fora do ar, que ele é o melhor jornalista do mundo – como se isso fosse relevante diante de um caso como esse. Ouviu-se, inclusive, que ele estava sendo perseguidos por abjetos da patrulha do politicamente correto. Que era coisa de esquerdopata. Enfim, que não era racismo.

Acontece que a frase não é aleatória e, assim como as defesas, revela muito sobre a forma como nossa sociedade é construída.

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O que William Waack disse não é deslize, é racismo

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É o mais cristalino reflexo de uma estrutura elitista e branca que invisibiliza os negros como ruídos de segunda categoria. O que William Waack disse também não é piada. É o que pensam aqueles que acreditam estar na Casa Grande, acima daqueles que consideram estorvos se não estão a seu serviço.

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E defender o que William Waack disse não é solidariedade, é dissimular o fato de que os brancos são o problema

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A onipresença do racismo

Eu nasci em uma cidade colonizada por italianos no interior do Rio Grande do Sul. Sou branca, assim como 99,9% da população de Paraí. Ouvi que algo era “coisa de preto” ainda quando criança. Não entendi o sentido, mesmo assim, em algum momento, reproduzi a frase em casa. Imediatamente meus pais conversaram comigo sobre o problema do preconceito, lembrando inclusive que tenho dois primos negros. E somente no momento daquela conversa percebi o que aquilo realmente significava. Mas não parou por aí, a cantilena se renova com o passar dos anos, frequentemente resumida a um “nigri, pó”. Uma expressão que simplesmente explica um erro com a palavra “negro” em italiano. E eu continuei testemunhando coisas do tipo em Porto Alegre, na faculdade, no trabalho, fora do Rio Grande do Sul, no exterior.

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Sempre contado como piada, como algo engraçado

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Isso mostra, mesmo que superficialmente, que as palavras de Waack não foram aleatórias. São parte de uma estrutura muito maior que, historicamente, oprime os negros no Brasil. Como disse Juremir Machado da Silva de maneira brilhante no espaço que ocupa no Correio do Povo, “o imaginário de William Waack vazou”. E com ele vazou o imaginário do branco brasileiro. Afinal de contas, o racismo também se encontra no silêncio. Paulo Sotero, interlocutor de William Waack no momento do comentário, foi cúmplice. Riu. Ajudou a perpetuar um estereótipo vil.

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E essa engrenagem cruel não vai parar a menos que cada um de nós reconheça o seu papel nessa estrutura pérfida e assuma que racismo é coisa de branco 

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Com esse episódio, revisitei minha história apenas para concluir, dolorosamente, que eu faço parte dessa estrutura e que já me beneficiei dela inúmeras vezes. Não mais. Já passou da hora de o brasileiro admitir a existência do racismo e a sordidez da origem desse preconceito – assim como já passou da hora de fazer alguma coisa para mudar essa realidade. Afinal, não são os brancos desconfortáveis com o flagra que precisam ser respeitados.

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O Justificando convidou a mestre em Filosofia Djamila Ribeiro para falar sobre o caso de William Waack. A autora do livro “O Que é Lugar de Fala” alerta para a importância de se refletir de maneira crítica sobre o racismo estrutural no Brasil, especialmente os brancos. Ela ressalta que é fundamental compreender que o “racismo é um sistema de opressão que nega direitos à população negra”.

 

Samir Oliveira

Essa vitória é nossa – Bolsonaro é condenado a pagar multa por ofensas à população LGBT

Samir Oliveira
9 de novembro de 2017

O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) foi condenado esta semana a pagar uma multa de R$ 150 mil por dano moral coletivo contra a população LGBT. A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirma a sentença que já havia sido proferida em primeira instância em 2015. A indenização irá para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDDD), criado pelo Ministério da Justiça.

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Essa vitória é nossa! É do movimento LGBT e de todos aqueles que lutam por um mundo mais justo e sem ódio

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A ação foi movida pelos grupos Diversidade, Arco Íris e CaboFree após declarações homofóbicas do deputado em 2011, durante entrevista ao programa CQC. Bolsonaro disse que jamais teria um filho gay porque seus filhos tiveram uma “boa educação” e acusou as paradas do orgulho LGBT de promoverem os “maus costumes”, contra Deus e a preservação da família.

Naquela época, Bolsonaro se gabava de nunca haver sido condenado. Agora já conta com a terceira condenação só este ano. A primeira foi uma multa de R$ 10 mil por ter dito que não estupraria a deputada Maria do Rosário (PT-RS) porque ela não mereceria. E a segunda foi uma indenização de R$ 50 mil por comentários racistas contra a população quilombola.

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Bolsonaro pode não estar morrendo pela boca – tendo em vista que sua retórica odiosa infelizmente encontra apelo em setores expressivos da sociedade -, mas está pagando muito caro por ela

As três multas impostas pela Justiça já somam R$ 210 mil

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Na sentença que o condenou em primeira instância pelas declarações ao CQC, a juíza considerou que a liberdade de expressão não está acima da garantia de direitos a populações oprimidas. Ou seja: que liberdade de expressão não é o mesmo que liberdade de opressão. E a imunidade parlamentar do deputado não se aplica a este caso, em que ele estava emitindo uma opinião pessoal.

É significativo que Bolsonaro esteja sendo condenado justamente por estimular o ódio contra três grupos extremamente vulneráveis da sociedade: mulheres, negros e negras e a população LGBT. Por mais moroso que possa ser o processo judicial, as sentenças demonstram que esse tipo de discurso violento não encontra lugar na nossa Constituição.

Vivemos uma conjuntura muito dura, com o crescimento de setores semi-fascistas que preferem inventar pedófilos em museus do que derrubar um governo corrupto que compra apoio descarado no Congresso para se manter no poder. O movimento LGBT vem jogando um papel central neste enfrentamento, ocupando as ruas na linha de frente contra o conservadorismo. Afinal são as nossas vidas que estão diretamente em risco com este tipo de discurso de ódio.

As condenações do Bolsonaro são um bem-vindo sopro de alívio em meio a tantos retrocessos. É melhor ele Jair abrindo o bolso!

Samir Oliveira

Vídeo flagra agressão policial a travestis em Porto Alegre

Samir Oliveira
19 de outubro de 2017

Infelizmente, este é mais um texto sobre agressão a travestis por policiais. Na semana passada, escrevi a respeito da perseguição que a população T sofre em um bairro nobre de São Paulo. Desta vez o crime ocorreu em Porto Alegre, na Rua Ramiro Barcelos, em plena luz do dia.

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Um vídeo chocante mostra um policial militar agredindo uma travesti negra durante o que parece ser uma abordagem

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Em seguida uma brigadiana se aproxima, mas não faz questão de interromper o abuso ou chamar a atenção de seu colega. O material foi denunciado ao gabinete do vereador Roberto Robaina (PSOL) – que, junto com Luciana Genro, se reuniu com o governador José Ivo Sartori (PMDB) e o secretário de segurança Cezar Schirmer para apresentar oficialmente o caso e cobrar providências.

Vídeo flagra o momento em que travesti é agredida por policial militar na rua Ramiro Barcelos, em Porto Alegre.

Este caso, felizmente, chegou às mãos de autoridades políticas comprometidas com a luta LGBT. Isso, aliado com a ampla cobertura da imprensa, pode fazer com que alguma atitude seja tomada pelo Estado em relação à conduta dos servidores envolvidos. Mesmo assim, é preciso estar muito vigilante, pois o percurso que este tipo de denúncia toma nos escaninhos da burocracia policial quase sempre resulta em arquivamento. Ou em pizza, para utilizar um jargão da política.

Como repórter, já acompanhei diversos casos de abuso de autoridade por parte da polícia. Talvez o principal deles tenha sido o de dois jovens africanos que foram humilhados por uma brigadiana dentro de um ônibus. Tive uma longa conversa com eles, que retratei nesta reportagem. Percorri a cadeia de comando policial atrás de explicações, de respostas e de informações sobre o andamento das investigações. No fim, a servidora foi inocentada, mesmo tendo – sem nenhuma justificativa que não fosse o racismo – apontado uma arma carregada para dois jovens inocentes dentro de um ônibus em movimento, numa conduta que expôs todos os passageiros ao risco de levarem um tiro.

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A diferença é que agora existe um vídeo comprovando a denúncia

E existem agentes públicos dispostos a pressionar até mesmo o comandante em chefe da Brigada Militar – a saber, o governador – para que alguma providência seja tomada

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Sempre que uma denúncia dessas vem à tona, surgem apressados defensores da polícia para dizer que se trata de um “caso isolado”. O Brasil é o país que mais mata LGBTs no mundo, especialmente a população de travestis e transexuais. Nosso modelo policial é uma herança nefasta da ditadura militar que permaneceu intocada desde a redemocratização. Este tipo de conduta é praticamente uma tradição consagrada na polícia. Está longe de ser um “caso isolado”.

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Investigações independentes

Mudar esta realidade é uma luta que mesmo os policiais que entendem a importância do respeito aos direitos humanos precisam travar dentro da corporação. O sistema é estruturado para proteger este tipo de conduta criminosa. A rígida estrutura militar prevê punições severas para qualquer tipo de desrespeito à hierarquia policial, mas pouco ou nada faz em relação a condutas abusivas da tropa contra a população que deveria proteger.

É absurdo que a própria Brigada Militar seja responsável por avaliar as denúncias que chegam contra os integrantes da corporação. O mesmo vale para a Polícia Civil. Corregedorias vinculadas à própria instituição são o caminho mais seguro para o “deixa disso” do corporativismo.

Neste sentido, é importante a defesa que o ex-deputado Marcos Rolim faz da criação de uma corregedoria independente no Estado. Um órgão sem ligação direta com as polícias que atue para investigar denúncias de abuso e descontrole dos agentes. Não é algo que depende do governo federal. Trata-se de uma mudança institucional que cabe aos governadores e deputados estaduais aprovarem.

Enquanto isso não ocorre, seguimos lutando com as armas que temos e aproveitando todas as fissuras que existem dentro do sistema para criar brechas em favor de uma nova cultura democrática dentro dos rincões mais autoritários do Estado. Se os policiais entenderem que não podem esbofetear travestis – ou qualquer cidadão – durante uma simples abordagem, já teremos conquistado uma importante vitória. Mais uma, no marco de muitas que ainda precisam ser consolidadas.

Geórgia Santos

Não quero viver dentro dos meus livros de História

Geórgia Santos
16 de outubro de 2017

Cansei de ouvir pessoas que queriam “ter vivido nos tempos da Ditadura.” Não porque apoiassem, mas porque queriam ter tido a chance de lutar contra o regime, de protestar contra a Guerra do Vietnã, de ter ido à Woodstock, de entrar pra uma guerrilha. E não foram poucos os relatos desse tipo. Na faculdade, pipocavam sempre que se tocava no assunto. Muito romântico. Muito ridículo (desculpem-me, mas é).

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Pois talvez os “saudosistas” tenham uma chance

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Sempre tive fascínio pelas aulas de História. Sem saber das palavras de Heródoto, desde pequena acreditava que era importante conhecermos o passado para compreender o presente e idealizar o futuro. Sem saber da existência de Marx, acreditava que o passado poderia ser um instrumento de combate às injustiças e desigualdades. Mas nunca quis viver dentro dos livros de História que carregava.

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Estava perfeitamente confortável com o sentimento de distância do passado de autoritarismo

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Verdade que não conseguia conter as lágrimas ao ler sobre o Holocausto. Derretia por dentro ao ler sobre a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e a batalha para acabar com a segregação racial. Ficava hipnotizada com a história da Ditadura Militar brasileira, apesar de não compreender como parte da população fora a favor do golpe – apenas mais tarde soube que era a maioria, muito mais tarde.

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Mas tudo parecia distante, como se tivesse acontecido há séculos

E cá tínhamos a história para evitar que

repetíssemos os mesmos erros

Eu me sentia segura fora dos meus livros de História

 

Ledo engano. Estamos em 2017 e há um grupo de pessoas que acredita que a TERRA É PLANA. Uma exposição de ARTE FOI FECHADA por atentar contra a MORAL E OS BONS COSTUMES. Candidatos à presidência reforçam preconceitos raciais e EXALTAM A TORTURA. Grupos negam a ciência e DUVIDAM DO AQUECIMENTO GLOBAL. RACISMO é justificado. XENOFOBIA é justificada. Homossexualidade é tratada como DOENÇA. Nacionalistas alemães são eleitos para o parlamento com bandeira ANTI-IMIGRAÇÃONo Brasil, clamam por intervenção militar.

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Qualquer semelhança não é coincidência

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Neste ritmo, talvez estejamos mais perto de um regime de exceção do que nossa vã imaginação pudesse imaginar até pouco tempo. Estamos retrocedendo a uma velocidade tão assustadora que me sinto puxada para dentro de meus livros de História, como em um redemoinho sombrio de erros do passado, e ali deparo com o preconceito, com o ódio, com a intolerância, com a ignorância. Não quero ficar aqui dentro.

 

 

 

Samir Oliveira

Não gay o bastante: o drama de refugiados homossexuais

Samir Oliveira
6 de julho de 2017
Foto: Nathan Rupert/Flickr

A situação dramática de refugiados ganha contornos de catástrofe humanitária em muitos países. A Síria é a expressão mais cristalina deste problema. Acossada por uma disputa infame entre um regime assassino e uma organização terrorista, a população síria vê no exílio a única alternativa. Mas existe uma outra faceta pouco explorada deste problema.

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As pessoas que precisam deixar seus países devido à perseguição motivada por preconceito e discriminação. Não existe um dado preciso e confiável, mas não é difícil imaginar que centenas de milhares de LGBTs encontrem-se nessa situação no mundo inteiro

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É evidente que este não é o único motivo para uma pessoa homossexual ou trans deixar seu país. A comunidade LGBT também sofre as consequências de guerras e catástrofes humanitárias – momento em que estão ainda mais vulneráveis que outros setores da população.

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Exilados mesmo no exílio

Muitos LGBTs acabam buscando asilo na Holanda, um país tido como liberal nos costumes. Foi a primeira nação a legalizar o casamento gay. E recentemente o governo lançou um aplicativo – o Rainbow Refugees NL – que fornece informações a refugiados LGBTs sobre direitos, saúde e segurança. Através da ferramenta é possível verificar os trâmites do procedimento de solicitação de asilo e encontrar associações da sociedade civil que prestam auxílio a refugiados. O aplicativo está disponível em árabe, persa, francês e inglês.

O problema é que muitos refugiados LGBTs acabam enfrentando situações de violência nos próprios abrigos, que dividem com compatriotas e moradores de outros países. Com frequência, têm suas roupas queimadas e as camas vandalizadas com excrementos.

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Reportagens da imprensa e relatório de ONGs apontam que homossexuais são xingados, espancados e até mesmo violentados sexualmente nestes abrigos

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Mesmo diante de tantos abusos, resistem em ir à polícia, com receio de que o envolvimento das autoridades possa atrapalhar a concessão de asilo. Na Alemanha, a Federação Lésbica e Gay informa que ocorreram 106 casos de violência contra homossexuais e transexuais refugiados em Berlim, entre agosto de 2015 e janeiro de 2016. Na Holanda, a prefeitura de Amsterdã precisou viabilizar casas de abrigo exclusiva para refugiados LGBTs. É comum também que cidadãos holandeses se disponham a receber as vítimas em suas casas.

Mas não é apenas contra o preconceito que os refugiados LGBTs precisam lutar na Holanda. É também contra o próprio sistema que, em tese, os acolhe. Para que seja concedido asilo, é preciso que um assistente social do governo seja “convencido” de que o(a) solicitante é mesmo homossexual. Como se refugiados que já tomaram a decisão mais dura de suas existências – abandonar seu próprio país e deixar para trás os vínculos de toda uma vida – fossem forjar uma orientação sexual falsa. Ainda mais sabendo que isso tornaria suas relações mais conturbadas com suas comunidades de origem.

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Suficientemente gay (?)

O caso do iraquiano Sahir, de 29 anos, é emblemático. Mesmo com um namorado, ele não foi considerado “gay o bastante” pelo sistema de acolhimento do governo holandês. Sahir teve que expor sua intimidade de forma completamente invasiva. Precisou relatar às autoridades que dorme junto com seu companheiro e que mantém relações sexuais frequentes com ele. De nada adiantou.

O governo também não aceita fotografias em paradas LGBTs ou depoimento de amigos, colegas ou familiares como “prova” de que o solicitante de asilo seja mesmo homossexual. O impasse absurdo gerado pelo caso de Sahir deslanchou uma onda de solidariedade com a campanha “Not Gay Enough”, que exige mudanças no sistema de acolhimento holandês.

Dentre as mudanças, o movimento quer que o procedimento de concessão de asilo a homossexuais passe pela deliberação de uma comissão formada por profissionais da psicologia e integrantes de ONGs especializadas em prestar auxílio a refugiados. Para que nenhum LGBT seja deportado a um lugar onde não se sente seguro.

Foto: Foto: Nathan Rupert/Flickr

Samir Oliveira

Um campo de concentração para gays na Chechênia: onde fomos parar?

Samir Oliveira
13 de abril de 2017
Foto: Divulgação/Presidência da Rússia

O mundo foi assombrado esta semana por uma informação que nem os piores portais de fake news conseguiriam elaborar: a de que autoridades na Chechênia estariam levando homossexuais para um campo de concentração. Na era da pós-verdade e das notícias falsas, confesso que custei a acreditar. Até que garimpei em diversos sites confiáveis e verifiquei, para meu espanto, que a notícia era verdadeira.

Contudo, a dificuldade de acesso a informações no local, devido ao bloqueio proporcionado pelo poder público na Chechênia, borra ainda mais as fronteiras entre o que é real e o que são especulações.

Por exemplo: até o momento nenhum informe soube precisar onde ficaria este campo de concentração. Mas todos são unânimes em relatar que homossexuais estão sendo perseguidos e assassinados. A maior parte das informações vem de organizações em defesa dos direitos humanos. Tudo começou quando um movimento LGBT da Rússia passou a exigir das autoridades permissão para realização de paradas do orgulho LGBT em diversas cidades do país. A “ousadia” despertou a revolta de comunidades que já são extremamente preconceituosas, deslanchando uma caça às bruxas devastadora para a população LGBT na região – a imensa maioria, aliás, ainda dentro do armário, por motivos óbvios.

?Mas o que a Rússia tem a ver com isso?

Todas as notícias sobre o assunto falham em explicar exatamente o que é a Chechênia. É uma República, mas não é exatamente um país independente. Acontece que na Federação Russa existem vários níveis de autonomia concedidos a seus territórios. Existem 83 divisões territoriais na Rússia: 46 províncias, 21 repúblicas, 9 territórios, 4 regiões autônomas, 2 cidades federais e uma província autônoma.

As repúblicas gozam de uma ampla autonomia em relação ao Kremlin. Têm seus próprios presidentes e parlamentos. Mas isso não justifica a omissão de Vladmir Putin em relação ao que ocorre na República da Chechênia.

Os últimos anos já nos deram provas o suficiente de que a Rússia, como um todo, é uma sociedade bastante conservadora no que diz respeito à população LGBT. Não causa surpresa o fato de o governo central se omitir sobre a perseguição escrachada aos gays em seus territórios.

A República da Chechênia é governada por Ramzan Kadyrov, aliado de Putin e muçulmano sunita, assim como a maioria dos habitantes da região. Não que eu ache que a culpa pelo preconceito seja da religião, muitos países possuem maioria muçulmana, seja ela sunita ou xiita, e não constroem campos de concentração para LGBTs. O Brasil é um país de maioria católica e é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Ou seja, a questão é muito mais profunda e complexa. Infelizmente visões ocidentalistas e mal intencionadas acabam manipulando os fatos para construir um discurso islamofóbico que sirva aos interesses das grandes potências ocidentais.

A própria resposta do governo local da Chechênia às acusações de que estaria perseguindo homossexuais é uma prova cabal de que algo muito obscuro ocorre na região: “Não podemos perseguir quem não existe”.

O autoritarismo de Kadyrov é notório – e não é de hoje. Em 2006, a jornalista russa Anna Politkovskaya foi assassinada em frente ao seu prédio em Moscou semanas após dar uma entrevista a uma rádio qualificando o governante chechênio como “um covarde escondido atrás de um exército”.

Resposta internacional

A comunidade internacional precisa se insurgir contra este absurdo. A construção de campos de concentração para homossexuais nos leva aos períodos mais sombrios da história da humanidade. Há relatos de que as autoridades policiais da Chechênia estariam usando o Facebook para “descobrir” quem é homossexual na região, marcando encontros com homens gays para então prendê-los.

Seria ingenuidade minha pensar que a ONU ou qualquer potência internacional adotariam medidas drásticas contra a Rússia, ela própria uma potência com assento no Conselho de Segurança. Mas é preciso, no mínimo, dar acesso aos grupos em defesa dos direitos humanos para que possam ingressar na Chechênia com plena liberdade para salvar as vidas ameaçadas pela intolerância. Para que possam oferecer aos homossexuais da região uma porta de saída daquele horror.

Foto: Presidente russo, Vladimir Putin, reunido com o presidente da Chechênia, Ramzan Kadyrov.
Crédito da Foto: Presidência da Rússia/Divulgação.

Guia de Viagem

Globalização – Medo, Preconceito e Visão

Ana Martins
1 de março de 2017

Globalização ou não? É esta a escolha dos eleitorados europeus em 2017. Paira ainda no ar a poeira do terramoto político de 2016 no Ocidente. Ao longo deste ano, vamos ver onde a poeira irá assentar. Por cá, aguardam-se ansiosamente os resultados da onda de eleições que começa já em março nos Países Baixos, passando por França em maio e pela Alemanha em setembro – três países onde a extrema-direita tem hipóteses de chegar ao poder. Depois da reviravolta do Brexit e das eleições americanas, teme-se o pior na Europa. Mas pode ser que do caos instalado por aquela nuvem de poeira possa ainda emergir um projeto europeu com novo alento.

“Inflamam-se os sentimentos recalcados pela moral prevalente; promete-se um regresso às origens idealizadas, a um passado que nunca existiu; culpam-se as elites e os imigrantes por um presente terrível que também não existe”

Bem antes do aberrante fenómeno Trump atingir os EUA, a retórica populista e os movimentos nacionalistas que alimenta já vinham ganhando tração na Europa. Inflamam-se os sentimentos recalcados pela moral prevalente; promete-se um regresso às origens idealizadas, a um passado que nunca existiu; culpam-se as elites e os imigrantes por um presente terrível que também não existe. A única coisa que existe, aliás, é o medo de que o populismo se faz valer. Esse, sim, é bem real. E é esta a realidade ignorada, ridicularizada e esquecida pela qual os partidos de centro estão agora a pagar.

“Não admitir a pertinência de cenários alternativos não é argumento, é arrogância”

Bem vistas as coisas, também o centro europeu se serviu da retórica do medo ao fazer a apologia do status quo como direção única e óbvia para os membros da UE. Não admitir a pertinência de cenários alternativos não é argumento, é arrogância. É uma oportunidade perdida para realçar as vantagens da direção que é posta em causa pelos partidos de protesto – neste caso os valores da diversidade e do mercado livre bem como uma visão favorável à globalização – que se tornaram “dogma morto”, usando a expressão de John Stuart Mill.

Pluralismo e liberdade de expressão

As ideias do pluralismo e da liberdade de expressão defendem-se, em parte, precisamente para garantir que o que se aceita como verdade o seja por convicção, não por preconceito. Afinal de contas, quem não consegue defender em debate os valores que lhe são incutidos pela sociedade, não sabe porque os defende de todo. Limitar-se a chamar todas as visões contrárias de ultrapassadas, perigosas e “deploráveis” é já uma desistência do que se pensa defender, e é ignorar o grão de verdade que outras posições podem conter.

O medo é real. O terrorismo existe. A diversidade implica perda de homogeneidade. Uma sociedade aberta convida constante transformação e adaptação. Há razões válidas para as pessoas preferirem o que lhes é familiar ao que lhes é desconhecido. Há também boas razões para vivermos em países com economias abertas, que trazem prosperidade, desenvolvimento e variedade e lidam conscientemente com os desafios que estas implicam.

Talvez Trump tenha sido a melhor coisa que aconteceu à perspetiva da globalização. Talvez a sua administração histérica e caótica enfraqueça o apelo do que os seus homólogos defendem na Europa. Talvez os defensores europeus do nacionalismo, encorajados pela sua vitória, caiam na arrogância que fez os seus rivais perderem território. E talvez estes rivais, agora sensíveis aos medos dos europeus, ofereçam uma visão convincente de uma Europa aberta – entre si e ao mundo.