Guia de Viagem

Globalização – Medo, Preconceito e Visão

Ana Martins
1 de março de 2017

Globalização ou não? É esta a escolha dos eleitorados europeus em 2017. Paira ainda no ar a poeira do terramoto político de 2016 no Ocidente. Ao longo deste ano, vamos ver onde a poeira irá assentar. Por cá, aguardam-se ansiosamente os resultados da onda de eleições que começa já em março nos Países Baixos, passando por França em maio e pela Alemanha em setembro – três países onde a extrema-direita tem hipóteses de chegar ao poder. Depois da reviravolta do Brexit e das eleições americanas, teme-se o pior na Europa. Mas pode ser que do caos instalado por aquela nuvem de poeira possa ainda emergir um projeto europeu com novo alento.

“Inflamam-se os sentimentos recalcados pela moral prevalente; promete-se um regresso às origens idealizadas, a um passado que nunca existiu; culpam-se as elites e os imigrantes por um presente terrível que também não existe”

Bem antes do aberrante fenómeno Trump atingir os EUA, a retórica populista e os movimentos nacionalistas que alimenta já vinham ganhando tração na Europa. Inflamam-se os sentimentos recalcados pela moral prevalente; promete-se um regresso às origens idealizadas, a um passado que nunca existiu; culpam-se as elites e os imigrantes por um presente terrível que também não existe. A única coisa que existe, aliás, é o medo de que o populismo se faz valer. Esse, sim, é bem real. E é esta a realidade ignorada, ridicularizada e esquecida pela qual os partidos de centro estão agora a pagar.

“Não admitir a pertinência de cenários alternativos não é argumento, é arrogância”

Bem vistas as coisas, também o centro europeu se serviu da retórica do medo ao fazer a apologia do status quo como direção única e óbvia para os membros da UE. Não admitir a pertinência de cenários alternativos não é argumento, é arrogância. É uma oportunidade perdida para realçar as vantagens da direção que é posta em causa pelos partidos de protesto – neste caso os valores da diversidade e do mercado livre bem como uma visão favorável à globalização – que se tornaram “dogma morto”, usando a expressão de John Stuart Mill.

Pluralismo e liberdade de expressão

As ideias do pluralismo e da liberdade de expressão defendem-se, em parte, precisamente para garantir que o que se aceita como verdade o seja por convicção, não por preconceito. Afinal de contas, quem não consegue defender em debate os valores que lhe são incutidos pela sociedade, não sabe porque os defende de todo. Limitar-se a chamar todas as visões contrárias de ultrapassadas, perigosas e “deploráveis” é já uma desistência do que se pensa defender, e é ignorar o grão de verdade que outras posições podem conter.

O medo é real. O terrorismo existe. A diversidade implica perda de homogeneidade. Uma sociedade aberta convida constante transformação e adaptação. Há razões válidas para as pessoas preferirem o que lhes é familiar ao que lhes é desconhecido. Há também boas razões para vivermos em países com economias abertas, que trazem prosperidade, desenvolvimento e variedade e lidam conscientemente com os desafios que estas implicam.

Talvez Trump tenha sido a melhor coisa que aconteceu à perspetiva da globalização. Talvez a sua administração histérica e caótica enfraqueça o apelo do que os seus homólogos defendem na Europa. Talvez os defensores europeus do nacionalismo, encorajados pela sua vitória, caiam na arrogância que fez os seus rivais perderem território. E talvez estes rivais, agora sensíveis aos medos dos europeus, ofereçam uma visão convincente de uma Europa aberta – entre si e ao mundo.

Nós US

No, Trump wasn’t Brexit

Sacha
22 de fevereiro de 2017

(pode ler este artigo em português aqui)

There is a whole sea of comparisons between Brexit and Trump. They’re considered sister phenomenons, a wave spreading throughout the West. Except, despite appearances, they’re not quite as similar as they seem.

Similarities

It’s true that Western populism, in the current state of things, has taken on a conservative tendency. It’s also true that xenophobia is running high just as much in the United States as in Europe. It’s a fact that the demographics of Europe and the US are shifting toward ever less white, Christian pastures. It appears to be the case, for now, that the Conservative Party of the UK and the Republican Party of the US don’t have as well-defined of plans for what should come after their electoral victories as they made it seem. The media helped to construct and participate in a spectacle, abusing false premises and falsified facts to induce a more lucrative, dramatic result. Up to here, everything appears basically the same.

Where the paths split

The splitting point between Brexit and Trump resides, in part, in the fundamental difference in their respective political scenarios. The convocation of a referendum to determine the continuation within the European Union by a British government with a wide majority in Parliament does not, in fact, correspond with the regular occurrence of elections for the leader of another country. Cameron called the referendum looking for political consolidation at home and legitimation in Brussels, where he saw his bargaining position reduced because of strategic political errors in dealing with Europe.

Clinton’s big error was underestimating the importance of the electoral map

Cameron’s big error was to underestimate the apathy and friction to the EU that older Englishmen have. These are the same people who tend to vote in greater numbers and who lived through the complete trajectory of the difficult fit of the UK in the EU. Compare that to the loss of nearly 3 million votes that Trump had against Hillary Clinton, which has left doubts about the legitimacy of his presidential mandate, if not about the electoral system that allowed for him to win despite that discrepancy. Clinton’s big error was underestimating the importance of the electoral map.

The friction between the UK and the EU has always been well known, and led the EU to concede many special statuses for the country with regard to its contribution to the EU budget, belonging to the single currency, and more. Trump represents the culmination of years of extreme rhetoric normalized by factions of the Republican Party and the conservative media in the US, especially in their game of obstinance against everything that had anything to do with president Obama.

The main motive for voting to leave the EU was a nostalgia for times of greater individual relevance on the global stage for the ex-Empire, settled by a wide margin. The main motive for voting for Trump was a belief in his aggrandized rhetoric of xenophobia, racism, misogyny, and nationalism as an easy solution to local problems that have little to do with it—an elixir that worked by the slightest of margins in just the right places.

The similarities between the two cases are many, but it’s best that we avoid treating them as if they were exactly the same phenomenon.

Image: Michal Zacharzewski
Nós US

Não, Trump não foi Brexit

Sacha
22 de fevereiro de 2017

(you can read this article in English here)

Há todo um mundo de comparações entre o Brexit e Trump. São considerados fenômenos-irmãos, uma onda que se está a espalhar pelo Ocidente. Só que, apesar das aparências, não são tão parecidos assim.

Semelhanças

É verdade, sim, que o populismo ocidental segue uma tendência conservadora. É também verdade que a xenofobia está em alta, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Nessa mesma linha, é um fato que a demografia do ocidente está a mudar para lados cada vez menos brancos e cristãos. Também parece verdade, de momento, que o Partido Conservador do Reino Unido e o Partido Republicano dos Estados Unidos não têm planos tão bem definidos quanto faziam parecer para os próximos passos depois dos êxitos eleitorais. Em ambos os casos, a grande imprensa ajudou a construir e participou de um espetáculo mediático, abusando de falsas premissas e fatos fabricados para levar a cabo um resultado mais dramático e lucrativo. Até aqui, só semelhanças entre os dois casos.

Onde os caminhos se separam

O ponto de divergência entre o Brexit e Trump reside, em parte, na diferença fundamental dos respectivos cenários políticos. A convocatória de um plebiscito para determinar a permanência na União Europeia por parte de um governo britânico com uma maioria ampla no Parlamento não corresponde, de fato, com a ocorrência regular de eleições para o líder de outro país. David Cameron convocou o plebiscito na busca de consolidação política em casa e legitimação em Bruxelas, onde a sua posição de barganha se viu bastante reduzida por erros políticos na escala europeia.

O grande erro de Clinton foi de subestimar a importância do mapa eleitoral

O grande erro de Cameron foi subestimar a apatia e fricção com a União Europeia que têm os ingleses mais velhos. Esses mesmos que mais tendem a votar e que viveram todo o trajeto do encaixe difícil do Reino Unido na União Europeia. Comparamos isso com o fato de Donald Trump perder em torno de 3 milhões de votos contra Hillary Clinton no voto popular, deixando dúvidas sobre a legitimidade do seu mandato—senão em boa parte do sistema eleitoral que o permitiu ganhar apesar da discrepância. O grande erro de Clinton foi de subestimar a importância do mapa eleitoral.

A fricção entre o Reino Unido e a União Europeia sempre foi bem conhecida e levou a UE a ceder vários estatutos privilegiados para a nação com respeito à contribuição orçamental, à pertinência na zona da moeda única e mais. Já Trump representa a culminação de anos de retórico extremo normalizado por fações do Partido Republicano e a imprensa conservadora dos Estados Unidos, principalmente no seu jogo de obstinação contra tudo que tinha a ver com o presidente Barack Obama.

O motivo principal de votar pela saída do Reino Unido da União Europeia era uma nostalgia por tempos de maior relevância na escala mundial, acertado por uma margem ampla. O motivo principal de votar em Trump era uma crença na sua vangloriosa retórica xenófoba, racista, misógina e nacionalista como solução fácil para problemas locais que nada têm a ver—um elixir acertado por margens estreitíssimas nos lugares certos.

As coincidências entre eles são muitas, mas melhor evitarmos tratá-las como se fossem exatamente o mesmo fenômeno.

Imagem: Michal Zacharzewski
Nós US

We’ve Debuted the Decadence

Sacha
8 de fevereiro de 2017

(pode ler este artigo em português aqui)

We’ve already said goodbye to 2016 and arrived at the dawn of the inauguration of our unloved circus peanut as President of the United States of America. If there were an original joke to write about this appearing to be a scene out of a movie, I would write one, but there isn’t. We already know who the next “leader of the free world” (for as much controversy as that phrase involves) is and what he stands for.

Setting the scene of the beginning of 2017 is the triumph of the rejection of “technocracy” in favor of simplistic and nationalistic responses to the changes that the progression of globalization has brought to the fore. It no longer matters what experts say with regard to the worldwide consequences of this phenomenon, since they are the easiest scapegoat for all of the problems in our economies and their inability to reallocate and reinvent workers faced against forces that know no national boundaries. This is the point from which we arrived at Trump and Brexit. The pre-existing order of the West has been profoundly altered.

The most accurate word for this phenomenon would be decadence.

Not just in the sense of decline, but also the confrontation with the failures of the system. How are we going to tell the factory worker—whether from Lincolnshire or Michigan—that their life’s work not only is never coming back, but that it was in fact substituted entirely by gains in productivity thanks to new technology and machines? By appealing to vainglory, ignoring the facts and complications of real life, because that’s what they want to hear. Decadence resides in their reaction to the false promises and the snake oil they’ve bought.

But why, then, decadence? Let’s call it that for the decline of public service, which is the point of any political position. The current discourse, arising as much in Trump as in Europe’s simmering populism, is, at heart, an appeal to a simplistic image of government functioning. Governing is not a simple task. Appealing to a fantasy of a government-turned-machine in the service of enriching those of the majority left behind is simple. Governance is not capable of pleasing everyone at once. Populism’s purpose is to say the words that it hopes will please everyone in that majority. It’s decadent because it defrauds the proper principles of politics and governance.

A lot is said about “us” in populist discourse, in appeals to patrimonial vainglory of the nation, in nostalgia for times that never existed. This “us” is most convenient when the attraction to dividing the public is strongest. We are good people, versus those who don’t have morals. We are honest workers, versus those who already have everything and wouldn’t know a proper day’s work if it slapped them in the face. We have common sense, we understand the world around us like it is, versus those who spend all day in a laboratory researching things. We are civilized, versus those buffoons on the other side. There’s a whole universe of generic examples of this “us” that simultaneously represents everyone and no one. This “us” is simplistic by default. The real us is complex, includes even the least estimable parts of our society, has defects, and always needs corrections in its system.

We’ve debuted the decadence.

Now we’re debuting Us.

Nós US

Inauguramos a decadência

Sacha
8 de fevereiro de 2017

(you can read this article in English here)

Já dissemos adeus a 2016 e chegamos à inauguração do nosso desestimado circus peanut como Presidente dos Estados Unidos da América. Se houvesse piada original a escrever desta que parece cena de filme, escreveria, mas não há. Já sabemos quem ele é e o que representa o novo “líder do mundo livre” (se bem que esta frase carrega polêmica em si). Vamos além, então.

O cenário deste início de 2017 é o triunfo de respostas singelas e nacionalistas às mudanças que a globalização traz. Não importa mais o que dizem os especialistas acerca das consequências em escala mundial deste fenômeno. Isso porque os experts são o bode expiatório mais fácil a quem atribuir o fracasso das economias, que já não são capazes de recolocarem e reinventarem as classes trabalhadoras perante forças sem fronteiras. Partimos desta base para chegar a Trump e ao Brexit. Através deste fenômeno, a ordem pré-existente do Ocidente ficou profundamente alterada.

A palavra mais acertada para este fenômeno seria decadência.

Não somente no sentido de declínio, mas também no enfrentamento da falha do sistema. Como é que vamos dizer ao trabalhador de fábrica—seja de Lincolnshire, seja do Michigan—que o seu trabalho de toda a vida não só nunca mais volta como foi substituído por completo por ganhos em produtividade graças a máquinas e tecnologias novas? Simples. Apela-se à vanglória, ignorando os fatos e a complicação da vida real, porque é o que quer ouvir. A decadência reside na reação às promessas vazias, à fumaça que comprou.

Mas, afinal, porque decadência, então? Chamo assim pela decaída do tal conhecido serviço público, que é o princípio de qualquer posição política. O discurso que tem surgido, tanto na personagem do Trump como no populismo crescente na Europa, é, no fundo, um apelo a uma imagem singela do funcionamento governamental. Governar não é uma tarefa simples. Apelar a uma fantasia de um governo sim que é simples. Governança não é capaz de satisfazer todo um povo de uma vez. Já o populismo tem como alvo dizer as palavras que satisfazem a ampla maioria de um tal povo. É decadente porque defrauda os princípios de política e de governança reais.

Muito se fala de “nós” no discurso populista, nos apelos à vanglória da pátria ou da nação, na nostalgia por tempos jamais existentes. O “nós” é mais conveniente quando a atração à divisão do povo é mais forte. Nós somos pessoas do bem, contra aqueles que não têm moral. Nós somos trabalhadores honestos, contra aqueles que já têm tudo e não sabem o que é um dia próprio de trabalho. Nós temos bom senso, compreendemos o mundo ao nosso redor, contra aqueles que passam o dia todo em laboratórios a fazer pesquisas. Nós somos cultos, contra aqueles brutos do outro lado. Há todo um universo de exemplos genéricos deste “nós” que simultaneamente representa toda a gente e ninguém. Este “nós” é simplório por defeito. O nós real é complexo, engloba até as partes da sociedade que menos estimamos, tem defeitos e precisa sempre de correções no seu sistema de ser.

Inauguramos a decadência.

Inauguramos Nós.