Nós US

Manifestações pelo senso comum

Sacha
26 de abril de 2017
(you can read this article in English here)

Não é normal que cientistas e entusiastas da ciência saiam às ruas em defesa de suas práticas. Mas cá estamos.

No sábado passado, milhões de pessoas saíram às ruas pelo mundo inteiro em defesa da ciência. Isto é, a ciência geral. A prática de fazer pesquisas empíricas para chegar a conclusões baseadas em resultados duplicáveis. A base de todo o nosso conhecimento do mundo moderno. Foi tanta gente só nos Estados Unidos que, outra vez, superou os participantes da posse do presidente.

A história do anti-intelectualismo nos Estados Unidos não é nada nova

Para entender tudo isso, é preciso reconhecer o fundamento do apelo dos cientistas: a ciência sofre um ataque existencial aos seus recursos e medidas com a chegada de um executivo notoriamente anti-intelectual. A casta política que envolve o presidente também adota esta posição. Seja por interesses corporativos ou religiosos, há uma corrente notável de anti-intelectualismo nos Estados Unidos. O país figura entre os que menos acreditam na evolução e na mudança do clima no Ocidente, entre outros assuntos básicos de ciência. Há setores céticos a ponto de promoverem movimentos contra a medicina moderna que lhes deu a possibilidade de viver vidas mais longas e com melhor qualidade. E assim continua.

A história do anti-intelectualismo nos Estados Unidos, porém, não é nada nova. Existe desde a fundação das colônias em solo norte-americano, antes de serem sequer estados, nem entre eles unidos. No caso dos Estados Unidos, a Grã-Bretanha não conseguiu exportar o seu modelo de classes sociais, sendo a vasta maioria dos chegados provenientes de classes inferiores no velho mundo. Desde então, a educação acadêmica sofre de uma percepção que varia entre inutilidade, elitismo, improdutividade ou mais além. É um constante por partes maiores ou menores da sociedade até ainda hoje.

É por este ceticismo da ciência que tanta gente marchou nas ruas. Não porque existe em si, mas porque acaba de tomar conta dos mais altos poderes do país. O tônico da fé na auto-suficiência e a ideia de que apenas esforços ambíguos são a chave de sucesso não é só o elixir do homem comum. Agora, um dos grandes partidos já tomou uma dose alta. Os cientistas viram-se obrigados a protestar pelo senso comum que entende o benefício do seu trabalho. Falta ver se o resultado é duplicável.

Image: Thomas Jaggi
Nós US

3 coisas que o escândalo da United nos ensina sobre a nossa cultura

Sacha
12 de abril de 2017
(you can read this article in English here)

É inevitável ter que enfrentar o que aconteceu com aquele passageiro naquele voo da United Airlines quando falamos de Estados Unidos. O episódio mostra algo sobre onde temos chegado enquanto cultura que, certamente, incomoda.

1. Não conseguimos controlar a nossa indignação

É praticamente possível cronometrar a sequência de acontecimentos cada vez que uma notícia destas aparece, tal é a situação do novo mundo de redes sociais. O caso da United não foi diferente. O nosso mundo tem câmeras disponíveis em qualquer dispositivo portátil e regras novas que permitem o uso delas mesmo no ar. Logo, as imagens do homem sendo arrastado do avião não demoraram em aparecer. E nem tampouco a indignação coletiva.

O que ocorreu é horrível e a reação da empresa só deixou as coisas piores, indiscutivelmente. Mas a sequência trágica já se tornou previsível—cada ataque à humanidade, à dignidade, segue a mesma linha. Virou fórmula para sensacionalizar, sem tratar do Sensacionalista. Indignamo-nos por causa de manchetes e vídeos curtos e perdemos o contexto e um entendimento mais completo do que acontece nestas situações. Não é difícil perceber porque isto não ajuda a melhorar o mal que é a causa delas.

2. As empresas já aprenderam a comercializar essa indignação—mas não são isoladas dela, nem a United

Depois dos acontecimentos em Chicago, a United perdeu em torno de U$ 900 milhões. É uma soma impressionante, mas não é uma reação única. Justo antes, a Pepsi lançou uma propaganda comercializando imagens de luta popular e foi escoriada nas redes sociais por isso. As empresas já veem a nossa indignação como fonte de lucro e aplicam-na em campanhas com vários graus de êxito. Só que, às vezes, o grande lucro desejado pode ser mesmo ao contrário. O poder da indignação não é controlado pelas empresas, por mais que tentem.

3. Temos um problema de brutalidade policial

No fundo, o problema real não foi culpa da United, mas da unidade policial que tratou de remover o passageiro que se recusou a sair do avião. Assim que a companhia aérea se viu obrigada a chamar a polícia para tratar de uma situação de beligerância aparente, passou a responsabilidade pelo acontecido aos policiais. E na tradição da polícia de Chicago, não foi com calma e gentileza, como se vê nos múltiplos vídeos. Eis o problema.

Desde a morte em 2014 do jovem negro Michael Brown pelas mãos de um policial depois exonerado, a brutalidade policial e a injustiça têm surgido como tema na política americana. Os casos já são inúmeros e a cada semana temos mais algum, mais um exemplo deste desserviço à população. E nestes cinco anos, pouco ou nada se tem feito para encarar a agressão policial, a militarização de polícia civil ou as injustiças, claramente documentadas, cometidas pela polícia. Temos um problema de brutalidade policial que se agrava com os avanços na tecnologia e incrementos nos orçamentos. Sem confrontar este problema, haverá mais polémicas ao estilo United.

Imagem: Juha Martikainen
Nós US

Não, Trump não foi Brexit

Sacha
22 de fevereiro de 2017

(you can read this article in English here)

Há todo um mundo de comparações entre o Brexit e Trump. São considerados fenômenos-irmãos, uma onda que se está a espalhar pelo Ocidente. Só que, apesar das aparências, não são tão parecidos assim.

Semelhanças

É verdade, sim, que o populismo ocidental segue uma tendência conservadora. É também verdade que a xenofobia está em alta, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Nessa mesma linha, é um fato que a demografia do ocidente está a mudar para lados cada vez menos brancos e cristãos. Também parece verdade, de momento, que o Partido Conservador do Reino Unido e o Partido Republicano dos Estados Unidos não têm planos tão bem definidos quanto faziam parecer para os próximos passos depois dos êxitos eleitorais. Em ambos os casos, a grande imprensa ajudou a construir e participou de um espetáculo mediático, abusando de falsas premissas e fatos fabricados para levar a cabo um resultado mais dramático e lucrativo. Até aqui, só semelhanças entre os dois casos.

Onde os caminhos se separam

O ponto de divergência entre o Brexit e Trump reside, em parte, na diferença fundamental dos respectivos cenários políticos. A convocatória de um plebiscito para determinar a permanência na União Europeia por parte de um governo britânico com uma maioria ampla no Parlamento não corresponde, de fato, com a ocorrência regular de eleições para o líder de outro país. David Cameron convocou o plebiscito na busca de consolidação política em casa e legitimação em Bruxelas, onde a sua posição de barganha se viu bastante reduzida por erros políticos na escala europeia.

O grande erro de Clinton foi de subestimar a importância do mapa eleitoral

O grande erro de Cameron foi subestimar a apatia e fricção com a União Europeia que têm os ingleses mais velhos. Esses mesmos que mais tendem a votar e que viveram todo o trajeto do encaixe difícil do Reino Unido na União Europeia. Comparamos isso com o fato de Donald Trump perder em torno de 3 milhões de votos contra Hillary Clinton no voto popular, deixando dúvidas sobre a legitimidade do seu mandato—senão em boa parte do sistema eleitoral que o permitiu ganhar apesar da discrepância. O grande erro de Clinton foi de subestimar a importância do mapa eleitoral.

A fricção entre o Reino Unido e a União Europeia sempre foi bem conhecida e levou a UE a ceder vários estatutos privilegiados para a nação com respeito à contribuição orçamental, à pertinência na zona da moeda única e mais. Já Trump representa a culminação de anos de retórico extremo normalizado por fações do Partido Republicano e a imprensa conservadora dos Estados Unidos, principalmente no seu jogo de obstinação contra tudo que tinha a ver com o presidente Barack Obama.

O motivo principal de votar pela saída do Reino Unido da União Europeia era uma nostalgia por tempos de maior relevância na escala mundial, acertado por uma margem ampla. O motivo principal de votar em Trump era uma crença na sua vangloriosa retórica xenófoba, racista, misógina e nacionalista como solução fácil para problemas locais que nada têm a ver—um elixir acertado por margens estreitíssimas nos lugares certos.

As coincidências entre eles são muitas, mas melhor evitarmos tratá-las como se fossem exatamente o mesmo fenômeno.

Imagem: Michal Zacharzewski
Nós US

Inauguramos a decadência

Sacha
8 de fevereiro de 2017

(you can read this article in English here)

Já dissemos adeus a 2016 e chegamos à inauguração do nosso desestimado circus peanut como Presidente dos Estados Unidos da América. Se houvesse piada original a escrever desta que parece cena de filme, escreveria, mas não há. Já sabemos quem ele é e o que representa o novo “líder do mundo livre” (se bem que esta frase carrega polêmica em si). Vamos além, então.

O cenário deste início de 2017 é o triunfo de respostas singelas e nacionalistas às mudanças que a globalização traz. Não importa mais o que dizem os especialistas acerca das consequências em escala mundial deste fenômeno. Isso porque os experts são o bode expiatório mais fácil a quem atribuir o fracasso das economias, que já não são capazes de recolocarem e reinventarem as classes trabalhadoras perante forças sem fronteiras. Partimos desta base para chegar a Trump e ao Brexit. Através deste fenômeno, a ordem pré-existente do Ocidente ficou profundamente alterada.

A palavra mais acertada para este fenômeno seria decadência.

Não somente no sentido de declínio, mas também no enfrentamento da falha do sistema. Como é que vamos dizer ao trabalhador de fábrica—seja de Lincolnshire, seja do Michigan—que o seu trabalho de toda a vida não só nunca mais volta como foi substituído por completo por ganhos em produtividade graças a máquinas e tecnologias novas? Simples. Apela-se à vanglória, ignorando os fatos e a complicação da vida real, porque é o que quer ouvir. A decadência reside na reação às promessas vazias, à fumaça que comprou.

Mas, afinal, porque decadência, então? Chamo assim pela decaída do tal conhecido serviço público, que é o princípio de qualquer posição política. O discurso que tem surgido, tanto na personagem do Trump como no populismo crescente na Europa, é, no fundo, um apelo a uma imagem singela do funcionamento governamental. Governar não é uma tarefa simples. Apelar a uma fantasia de um governo sim que é simples. Governança não é capaz de satisfazer todo um povo de uma vez. Já o populismo tem como alvo dizer as palavras que satisfazem a ampla maioria de um tal povo. É decadente porque defrauda os princípios de política e de governança reais.

Muito se fala de “nós” no discurso populista, nos apelos à vanglória da pátria ou da nação, na nostalgia por tempos jamais existentes. O “nós” é mais conveniente quando a atração à divisão do povo é mais forte. Nós somos pessoas do bem, contra aqueles que não têm moral. Nós somos trabalhadores honestos, contra aqueles que já têm tudo e não sabem o que é um dia próprio de trabalho. Nós temos bom senso, compreendemos o mundo ao nosso redor, contra aqueles que passam o dia todo em laboratórios a fazer pesquisas. Nós somos cultos, contra aqueles brutos do outro lado. Há todo um universo de exemplos genéricos deste “nós” que simultaneamente representa toda a gente e ninguém. Este “nós” é simplório por defeito. O nós real é complexo, engloba até as partes da sociedade que menos estimamos, tem defeitos e precisa sempre de correções no seu sistema de ser.

Inauguramos a decadência.

Inauguramos Nós.

Nós US

Ainda sobre aquele muro…

Sacha
12 de setembro de 2016

Com todos os despropósitos que vimos este humilde 2016, chegamos a setembro com mais outra para o monte de lixo acumulado, na forma de uma visita ao México de um senhor candidato à presidência dos Estados Unidos da América, Donald Trump. Já estamos quase acostumados à discrepância entre a seriedade e formalidade do cargo e o irascível circus peanut* antropomorfizado que é o Trump. Desta vez foi ao México fazer diálogo com o presidente desse país, Enrique Peña Nieto, depois de largos meses passados a chamar imigrantes mexicanos de tudo menos estimáveis e valorosos para os Estados Unidos. O objetivo? Fortalecer relações e promover a unidade entre os países, ao estilo de uma visita oficial de estado. Meras horas depois, numa conferência de imprensa habitual do candidato, voltou a dizer as mesmas asneiras de sempre sobre os imigrantes naturais do país visitado. Parece ironia, mas não.

Há especulação (e parece-me a explicação mais provável, a mais) de que esta viagem foi uma tentativa por parte da equipe Trump moderá-lo por influência imediata, ou seja, somente, através de discurso direto com quem tem a chave de ouro do fluxo migratório norte-americano, consegue convencê-lo alterar o discurso radical. Visto o improviso com que o Trump tem proclamado sobre basicamente todos os temas políticos do dia além da polémica migração de muçulmanos e mexicanos, a estratégia até parece boa: o político pretendido formula uma posição na hora que, sem querer pedir desculpas ou parecer fraco no seu posicionamento, fica desdobrado depois. O problema é justamente que este é o issue mais pressionado pelo próprio Trump e por mais influenciável que seja, forma base do seu pensamento político. O fracasso é evidente. O circo mediático e correspondente falta de política a sério continua igual.

*lit. “amendoim de circo”, confeito parecido com o marshmallow criado nos Estados Unidos, amado por crianças e detestado pelos próprios pais e outros adultos com bom senso desde meados do século 20, com textura e gosto artificiais, geralmente de cor-de-laranja pálida.