Gustavo Chagas

Os caminhos do Chile

Geórgia Santos
28 de novembro de 2019
Há seis semanas, milhares de pessoas ocupam as ruas para protestar contra a situação política, econômica e social do Chile. Como as veias do país ainda carregam o sangue na ditadura de Pinochet, as imagens e os resultados da repressão aos movimentos têm um significado ainda maior e mais traumático. Ao menos 26 pessoas foram mortas e mais de 2,8 mil ficaram feridas em confrontos, quase sempre com os carabineros, a polícia ostensiva. Do total de feridos, impressiona a quantidade de pessoas com lesões graves nos olhos. São mais de 200. O jovem estudante Gustavo Gatica, de 21 anos, ficou cego após ser baleado no rosto e se tornou símbolo da luta que nasceu pelo preço da passagem do metrô.
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“Dei meus olhos para que o Chile desperte”, disse a sua mãe

O Chile parece ter despertado; mas seus políticos, ainda não

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Desde a eclosão da crise, o poder parece atordoado com o nível da reação popular. O presidente Sebastian Piñera ameaçou um discurso mais agressivo, na largada dos protestos, e se viu forçado a recuar. O recuo veio e, mesmo assim, as ruas seguem gritando. A pauta específica do transporte público – um problema que, em si, não era um dos mais urgentes da população chilena – foi ampliada e ficou cada vez mais difusa. O Latinobarómetro de 2018 mostra que a mobilidade era prioridade para 0,3% da população. Segurança liderava com 38,2%, sendo seguida de desemprego (8,8%), saúde (6%) e educação (5,8%). Por trás desses números, uma insatisfação generalizada e, até então, anestesiada.
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Afinal, o que querem os chilenos?
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O governo já prometeu rever as achatadas pensões dos aposentados, o valor do salário mínimo e os benefícios de saúde. Já se aventou a proposta de uma nova Constituição. O último gesto foi a redução pela metade dos salários dos políticos. Será o suficiente? Parece que não.

Enquanto tateia, Piñera volta a endurecer o discurso. Carabineros e Forças Armadas seguem nas ruas, sob graves denúncias de violações de direitos humanos. O futuro segue incerto. O presente é implacável. E o fantasma do passado está à espreita.

Foto: Claudio Santana /GETTY IMAGES
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OUÇA Bendita Sois Vós #35 Protestos no Chile

Geórgia Santos
28 de outubro de 2019

Nesta semana, falamos sobre o ciclo de protestos no Chile. Os jornalistas Geórgia Santos, Tércio Saccol e Flávia Cunha conversaram com a jornalista Isabela Vargas, que vive em Santiago e trouxe o relato de quem está testemunhando a História. Também participam do debate o professor Marcelo Kunrath, da UFRGS, especialista em confronto político e o novo colunista do Vós para América Latina, o jornalista Gustavo Chagas.

Além da crise do Chile, os jornalistas ainda discutem a instabilidade política da América Latina como um todo. Brasil, Equador, Bolívia e até a Argentina. O repórter do portal Sul 21, Luis Eduardo Gomes, esteve em Buenos Aires e falou sobre a situação das eleições antes do resultado.

Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

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OUÇA Bendita Sois Vós #34 Eleições 2022, Bolsonaro e a crise no PSL

Geórgia Santos
21 de outubro de 2019

Nesta semana, discutimos as eleições de 2022. Sim, falta mil anos, mas o presidente parece não perceber. Afinal, Jair Bolsonaro e o seu partido, PSL, estão em crise e o país virou um novelão. Brasil é, finalmente, Sucupira.

Mas Bolsonaro está longe de ser o Bem-Amado. ’Queimado para caramba’; ‘Ingratidão impera’; e ‘Vou implodir o presidente’ são algumas das frases que marcaram o racha no PSL.

A crise política opõe o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da sigla, Luciano Bivar. A disputa envolve controle da legenda e das verbas do fundo partidário e do fundo eleitoral.  Além da permanência do presidente e de deputados na legenda. Sobrou até para a deputada Joice Hasselmann. Ela foi destituída do cargo de líder do governo no Congresso após apoiar a manutenção do delegado Waldir na liderança do PSL na Câmara. Segundo ela, a inteligência emocional de Bolsonaro é menos 20 e traição é modus operandi do Governo.

E em meio a isso tudo, o PSL rompe e flerta com Wilson Witzel, Luciano Huck brinca de candidato, a esquerda está zonza e, claro, há um crescente descrédito na política institucional e a eleição de 2022 já começa a ser discutida.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. O convidado da semana é o professor Marcos Marinho, pesquisador e consultor em comunicação e marketing político. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

 

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OUÇA Bendita Sois Vós #30 Bolsonaro, Amazônia e a crise internacional

Geórgia Santos
5 de setembro de 2019

Nesta semana, discutimos a negligência do governo federal com relação às queimadas na Amazônia e a crise internacional  que deriva dos constantes equívocos – para não dizer outra coisa – do presidente Jair Bolsonaro. Ele chegou ao cúmulo de endossar uma piada sobre a aparência da primeira-dama francesa. O presidente da França, Emanuel Macron, disse que espera que os brasileiros tenham logo um presidente à altura do cargo.

Para compreender melhor esse panorama, conversamos com o analista de política internacional da Rádio CBN e colunista do Estadão, o jornalista Lourival Sant’Anna.

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch, e Tércio Saccol. Na trilha, Aluga-se, de Raul Seixas.

Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

Reportagens Especiais

Venezuela . a distopia após duas décadas de Chavismo

Alvaro Andrade
19 de julho de 2019

Texto e fotos: Alvaro Andrade / Venezuela

Em Caracas, no bairro 23 de Enero, os olhos de Hugo Chávez ainda pairam sobre o povo. O grafite em preto e branco com la mirada del comandante está por todos os lados e parece manter a vigilância sobre o reduto de maior apoio ao chavismo na Venezuela. A região, a menos de um quilômetro do Palácio Miraflores, sede do regime, é estratégica, pois ali estão concentrados os colectivos, grupos paramilitares criados para operarem como milícias de segurança nos bairros e que hoje são um braço civil armado do governo. No topo de um morro, à direita da entrada para o mausoléu 4 de Febrero, onde estão os restos mortais do ex-presidente, uma capela religiosa leva seu o nome e sua fotografia está posta em um altar, cercada por velas acesas e outras imagens. “Chávez era do povo, por isso é tão amado”, diz o porteiro do quartel 4F, um simpático caraquenho vestido com a indefectível camisa vermelha do PSUV, o partido socialista que comanda a Venezuela.  

Pelo caminho, parte do legado chavista pode ser notado nos incontáveis prédios de Misión Vivienda, plano de moradia gratuita que, segundo dados oficiais, já alcançou os 2 milhões de imóveis distribuídos gratuitamente ao povo. No entanto, basta afastar-se das regiões centrais de Caracas para  perceber que o bolivarianismo ainda ficou distante de muita gente.Em Petare, maior favela da América Latina, composta por 80 bairros em diferentes morros de Caracas, a insatisfação fervilhava em meados de dezembro. Moradores bloquearam a via expressa que fica logo abaixo e foram reprimidos pela Ordem Interna, um grupo militar destinado especificamente a conter manifestações.

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“Nos falta água, nos falta luz. Não há comida, nem trabalho. Prometeram um pedaço de pernil e nem isso chegou”, reclama um aposentado diante de uma oficina instalada às margens de um dos becos da favela

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Apesar da má reputação de violência e territórios controlados, Petare não se difere muito das favelas brasileiras. Casas sem reboco, vielas, escadarias, falta de saneamento e gatos de luz. Mas na capital venezuelana, a fome mata os sorrisos e todos repetem o mesmo. “Estamos  hartos!”, ou seja, cansados, exaustos, fartos de esperar. “Esse era um governo que se dizia do povo, mas já nos esqueceu faz tempo”, diz o mecânico que se desdobra para consertar um dos tradicionais veículos antigos que, assim como o país consome muito e vive cheio de problemas.

LEI DE TALIÃO

Dois retalhos de calça jeans servem como bandagem para conter a hemorragia nas pontas dos braços onde antes havia mãos; o rosto está empapado de sangue, pois os olhos e a língua também foram arrancados. Leocer Maiz, um jovem de 19 anos, foi entregue assim, com vida e consciente, no hospital da cidade de El Callao, no sul venezuelano. Ele sofreu as consequências por ter praticado uma série de roubos na região controlada pelos pranas, máfias locais que exploram ouro ilegalmente e que jamais perdem a chance de reafirmar sua autoridade.

A  mutilação de Maiz não foi um fato isolado. As máfias operam sem piedade na região conhecida como Arco Minero, a cerca de 250 quilômetros da fronteira com o Brasil. São cinco povoados às margens da rodovia Troncal-10, em uma área que parece esquecida pelo governo venezuelano.

Apesar da presença militar em postos de controle a cada 50 quilômetros, quem realmente manda na região são os garimpeiros. Las Claritas, um povoado sugestivamente conhecido como Sodoma e Gomorra, é o retrato brutal dos contrastes venezuelanos.

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Às margens das crateras e do barro da estrada que se mistura ao lixo e ao esgoto a céu aberto, se espalham vitrines de lojas com fartura digna de áreas comerciais de grandes cidades.

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“Tudo que falta na Venezuela se consegue aqui: remédios, pneus, máquinas. Também tem drogas e prostituição. Onde tem ouro, tem dinheiro, então essas coisas vêm junto”, conta Manoel González, taxista de El Callao já acostumado com a estética decadente da região. “Se não incomodar ninguém aqui, nada vai te acontecer. Mas nem pensa em filmar ou fotografar”, adverte.

O sol escaldante aquece o piso úmido e o resultado é um abafamento sufocante. Além do forte odor de esgoto, do permanente fluxo de motos barulhentas e caminhões a poucos centímetros da calçada, o semblante de quem está por ali não é nada convidativo. Bancas compram e vendem ouro à luz do dia; um grande mercado oferece de bananas a animais recém abatidos, passando por analgésicos, motosserras e muita bebida alcóolica.

Mesmo tão inóspito, o Arco Minero se converteu em uma das últimas esperanças de trabalho dos venezuelanos dentro do próprio país. Alexiis Urquia Rivas, 24 anos, tenta manter-se afastado dos problemas, mas conhece bem os riscos da região. “Aqui ainda é possível trabalhar e conseguir um pouco mais do que no resto do país. Se encontrar ouro, ganho dinheiro. Muita gente está vindo de outros estados com essa ideia, mas muitas vezes se assustam quando encontram a realidade”.

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EXPROPRIAÇÕES VIRARAM MATO

A crise se agravou desde a morte de Chávez, em 2013. O sucessor, Nicolás Maduro, que não chega à sombra do seu carisma, herdou uma crise diplomática permanente, dívida pública em alta e queda brutal no preço do petróleo, o que em parte ajuda a explicar a dimensão das dificuldades venezuelanas, além do agravamento dos bloqueios econômicos e sanções internacionais.

Enquanto Maduro implementa sucessivos planos econômicos, concede reajustes salariais para tentar conter a inflação e usa o bloqueio como justificativa para todos os males, a produção interna é praticamente nula e o país depende essencialmente de importações. A economia pouco diversificada é outro fator que agrava a situação, levando ao desabastecimento. E quando a demanda é maior que a oferta, naturalmente há  inflação.

Poucos meios de produção tomados pela revolução estão organizados e funcionando, especialmente na produção de alimentos. A maioria fica relegada ao abandono, agravando a escassez. Segundo um levantamento do Observatório de Direitos de Propriedade, 1.359 empresas foram expropriadas entre 2005 e 2017, além de mais de 5 milhões de hectares de terras, segundo a Federação Agrícola do país.

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A produção no campo minguou, as empresas alimentícias foram fechadas, o bloqueio externo se agravou e os produtos desapareceram das prateleiras.
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Desde indústrias de lácteos, passando por fábricas de cimento ou insumos agrícolas, a mão do Estado chegou a diversos setores da iniciativa privada, mas não deu sequência ao trabalho. As empresas que não foram estatizadas acabaram abandonando o país, gerando desemprego e pulverizando a classe média.

Em Valencia, multinacionais como GM, Ford, Crysler e Good Year encerraram operações por falta de matéria-prima e deixaram um rastro de mais de 10 mil desempregados na cidade, um polo industrial da região oriental. Hoje, vê-se obras inacabadas, apagões, racionamento de água e rodovias sem manutenção; as gôndolas dos supermercados já não estão tão vazias, mas os preços seguem completamente distantes do poder aquisitivo representado pelo salário mínimo. “Nosso hotel tinha ocupação média de 80%, hoje estamos em 10 a 15%”, lamenta o brasileiro Antonio, radicado há 40 anos na Venezuela. “O comunismo não deu certo. Eu, que sou empresário, já tenho dificuldade. Imagina esse povo todo na rua. As pessoas não tem o que comer, mas isso não era assim”.

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A ESPERANÇA É O MADURO DOS OUTROS

Dificilmente faz frio na Venezuela. Naquela noite de começo de janeiro, nada no céu indicava que iria chover. Jéferson, um menino de 12 anos, percebe que vou dormir na rua após o segurança pedir para me retirar do saguão do terminal de Puerto Ordaz, que será fechado na madrugada. O garoto se aproxima e me convida a dormirmos juntos sob a marquise. Gentilmente estende um dos cobertores e pede para que eu retire os tênis. “Mais tarde vai chover, mas assim você sente a brisa fresca e dorme melhor”. Ato contínuo, ele toma a outra manta e me cobre com delicadeza. “Estás cômodo?” Quase não consigo responder e me ponho a chorar, emocionado com tamanha doçura. Ele senta ao meu lado, me dá um abraço e diz para eu não ter medo. “Aqui estamos seguros”. Logo ele adormece e eu fico acordado a tempo de ver a chuva chegar. É minha última noite na Venezuela.

Antes de dormir Jéferson me contou que fugiu de casa há 5 meses, onde morava com a avó após os pais ‘viajarem’ para outro país, que ele não sabe qual. Não vai a escola. Sua vida e sua casa são o aeroporto de Puerto Ordaz, no centro-sul. Sobrevive da boa vontade dos funcionários e dos passageiros que não conseguem fugir de tanta simpatia. “Bom dia, tudo bem? Que faça boa viagem!”, exclama ele ao amanhecer, distribuindo sorrisos com a cara ainda amassada. O dia começa, os aviões pousam e decolam e ele logo se dispersa em meio ao rebuliço do aeroporto.

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Sigo conversando com os trabalhadores locais e, sabendo que sou brasileiro, fazem uma pergunta recorrente:
E o Bolsonaro, quando chega?

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De norte a sul, sufocados pela crise, é difícil encontrar quem se oponha a algum tipo de intervenção para ‘libertar’ o país. A recente escalada diplomática já era vista com muita esperança em meados de janeiro, quando a oposição articulava com governos do exterior o isolamento do presidente reeleito, Nicolas Maduro. Assim que ele foi empossado, o presidente da Assembleia Nacional, que teve poderes cassados pela Suprema Corte, autodeclarou-se presidente interino. Juan Guaidó, um deputado outsider oriundo dos protestos de 2014, assumiu o enfrentamento aberto com Maduro e convocou as Forças Armadas a apoiá-lo no golpe, mas ficou apenas com parte do apoio popular e estrangeiro.

O FUTURO

“As coisas pioraram muito desde que tu partiu. Os preços subiram ainda mais e a polícia está mais violenta. Prenderam meu sobrinho simplesmente porque ele tinha mensagens combinando que iria ao protesto do dia 23 de janeiro”, diz Jose Zerpa, um dos amigos feitos na Venezuela ao longo dos 20 dias de reportagem. Assim como ele, outros relatam sua esperança com as manifestações de apoio da comunidade internacional.

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“Eu fui às ruas, não podemos mais conviver com Maduro e esse regime”
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Em seu discurso de posse na contestada e desacreditada reeleição, Maduro prometeu combater a corrupção e corrigir rumos, mas frente a circunstâncias tão dramáticas as palavras já não dispõem de credibilidade para aplacar os críticos, muito menos colocar comida na mesa daqueles que, por falta de opção, excesso de persistência ou um tanto de malandragem dia a dia sobrevivem na terra de Bolívar.

 

Geórgia Santos

In family we trust

Geórgia Santos
18 de julho de 2019
(Washington, DC - EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PR

Na última semana, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que pretendia indicar o terceiro filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. O comunicado informal foi feito no dia 11, um dia depois de  Eduardo completar 35 anos, idade mínima necessária para assumir o cargo de embaixador. Em tempos de sociedade da informação, a reação negativa foi praticamente instantânea na internet. Da oposição, é claro, mas também os aliados se mostraram contrários à decisão de Bolsonaro. O “guru” Olavo de Carvalho disse que se tratava de um retrocesso.

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Até os apoiadores do Twitter roeram a corda

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É NEPOTISMO?

O primeiro “problema” é, obviamente, o fato de o presidente indicar o próprio filho para a função de embaixador no que se pode chamar de país mais importante do mundo. Não há precedentes em outras democracias. O único estadista a indicar o filho para a Embaixada dos EUA foi um rei saudita. Bolsonaro garante que não há nepotismo, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) tem decisões difusas sobre a legalidade do tema. Em agosto de 2008, foi aprovada uma súmula que proíbe a nomeação de cônjuge ou parente até terceiro grau para cargos em comissãos, de confiança ou função gratificada. Isso vale para todos os poderes em níveis municipal, estadual e federal. A questão é que  não está claro se a regra vale para cargos de natureza política,  como ministros de Estado e embaixadores.

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ELE PODE SER INDICADO?

Uma segunda crítica com relação à decisão de Bolsonaro provém do fato de que ele Eduardo não é um diplomata, logo, não poderia ocupar o cargo. Mas não é bem assim. É verdade que a legislação brasileira estabelece que os chefes das chamadas missões diplomáticas permanentes devem ser escolhidos entre os ministros de primeira ou segunda classe do Itamaraty. Mas há uma exceção. Brasileiros natos que não pertençam aos quadros do Ministério das Relações Exteriores e que sejam maiores de 35 anos de idade podem ser indicados para embaixadas. A prerrogativa de escolha é do presidente. Desde que sejam cidadãos “de reconhecido mérito e com relevantes serviços prestados ao país.” E é aí que a porca torce o rabo.

Jair, na mesma ocasião em que anunciou a possibilidade de indicá-lo, garantiu que Eduardo é a melhor pessoa para ocupar o posto de embaixador nos Estados.  “Ele é amigo dos filhos do Trump, fala inglês e espanhol, e tem uma vivência muito grande no mundo. Poderia ser uma pessoa adequada e daria conta do recado perfeitamente”, disse o presidente. 

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Poderia, mas não é

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Eduardo discorda e, na mesma hora, disse estar honrado com a escolha. Não apenas isso, garantiu estar preparado para o desafio.  “É difícil falar de si próprio, né? Mas não sou um filho de deputado que está do nada vindo a ser alçado a essa condição, tem muito trabalho sendo feito, sou presidente da Comissão de Relações Exteriores, tenho uma vivência pelo mundo, já fiz intercâmbio, já fritei hambúrguer lá nos Estados Unidos, no frio do Maine, estado que faz divisa com o Canadá, no frio do Colorado, em uma montanha lá. Aprimorei o meu inglês, vi como é o trato receptivo do norte-americano para com os brasileiros”, disse o parlamentar.

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EDUARDO É QUALIFICADO?

Dificilmente fritar hambúrguer no frio do Maine faça alguma diferença para quem quer ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Além do mais, alguns veículos brasileiros informaram que a lanchonete onde ele diz ter trabalhado não serve hambúrguer. Já falar inglês é importante. Mas também, há vídeos do terceiro filho de Bolsonaro que circulam pela internet e mostram o deputado falando um inglês sofrível, o que indica que ele consegue se comunicar em inglês, mas que não é fluente.

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Diante das críticas aos seus atributos, ele resolveu responder divulgando no Twitter o que ele chamou de “breve currículo”
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Foto: Reprodução /Twitter

Ai, não foi uma boa resposta. Especialmente errando a sigla da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, no caso. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro não recuou. Uma semana depois de iniciada a polêmica, ele finalmente decidiu por indicar o filho Eduardo Bolsonaro como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. E se mostrou surpreso com a “pressão” que a família vem sofrendo.

“Por que essa pressão em cima de um filho meu? Ele é competente ou não é competente? Dentro do quadro de indicações políticas, que vários países fazem isso, e é legal fazer no Brasil também, tá certo”, disse.

Não, ele não é competente, caro presidente. E o currículo que ele tanto exibe é, binariamente, uma prova bastante contundente da falta de preparo de Eduardo – e da irresponsabilidade da indicação.

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Apesar disso, a escolha de Bolsonaro faz sentido

Explico

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Bolsonaro já mostrou ser bastante desconfiado de maneira geral, o que faz com que se cerque, cada vez mais, de sua família. Esse é um traço que o presidente do Brasil tem em comum, justamente, com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Afinal de contas, o conselheiro sênior de Trump é, nada mais, nada menos, que seu genro, Jared Kushner. O currículo dele é, com certeza, mais impressionante que o de Eduardo Bolsonaro, mas sua experiência como investidor e magnata do ramo imobiliário nunca o credenciaram para que ele ocupasse a posição que ocupa. Além de Jared, Ivanka Trump, a filha do presidente americano, é figurinha carimbada na administração e em eventos internacionais. Quem não lembra das caretas com que ela nos brindou durante as reuniões do G20?

Ivanka acompanhou o pai durante todo o tempo. Ela inclusive sentou ao lado dos chefes de Estado como se fosse algo absolutamente normal, como se pode ver em uma das imagens acima. Da mesma forma que Eduardo fez durante a primeira viagem oficial de Jair Bolsonaro aos Estados.

(Washington, DC – EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PRbaix
(Washington, DC – EUA 19/03/2019) Encontro com o Senhor Donald Trump, Presidente dos Estados Unidos da América. Foto: Alan Santos/PR

Não acho que seja uma boa escolha, não acho que Eduardo Bolsonaro tenha o mínimo de preparo intelectual e experiência necessários para ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Mas, dentro da lógica de Trump, que montou um “negócio de família”, faz sentido. “In family we trust”, parafraseando um ministro aí.

 

 

Foto de capa: Alan Santos/PR

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #26 Democracia em Vertigem

Geórgia Santos
14 de julho de 2019

No episódio desta semana do Bendita Sois Vós, a jornalista Geórgia Santos conversa com os também jornalistas Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol sobre Democracia em Vertigem, o documentário de Petra Costa sobre a escalada da crise política brasileira.

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Mais do que uma análise da produção, há um debate sobre os erros e acertos da cineasta no que tange aos fatos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, e a eleição de Jair Bolsonaro

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Também em pauta está o documentário Brasil em Transe, do jornalista Kennedy Alencar para a BBC. Uma produção que se propõe a explicar os anos que antecedem o atual momento do Brasil.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Juçara Gaspar interpretam o poema Traduzir-se, de Ferreira Gullar, do livro Na Vertigem do Dia.

O episódio desta semana foi sugerido pela ouvinte Beatriz Costa. Você também pode ouvir o episódio no Spotify, Itunes e Castbox.

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #21 O presidente agradece ao senhor Gustavo Bebianno?

Geórgia Santos
24 de fevereiro de 2019

É impossível deixar passar em branco a primeira crise política com consequências concretas do governo de Jair Bolsonaro. Gustavo Bebianno, o ministro da Secretaria-Geral de Governo, foi exonerado em 18 de fevereiro. Bebianno também era presidente do PSL durante a eleição. Essa é uma crise com muitas ramificações. Que vão desde o uso de laranjas na campanha de 2018, passando pela intromissão dos filhos do presidente no governo e chegando à primeira crise concreta de gestão, que provocou consequências importantes em um governo que parece não saber lidar com a rotina da POLÍTICA. Por isso, o Bendita Sois Vós desta semana pergunta: O presidente realmente agradece ao senhor Gustavo?

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol, que entrevista o professor Marcos Marinho, pesquisador e consultor em comunicação e marketing político. 

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon trazem algumas palavras de Galeano.

Geórgia Santos

Qual a tua parcela de culpa no caos?

Geórgia Santos
10 de outubro de 2017

A essa altura do campeonato, creio que todos concordam que vivemos sob a ameaça iminente do caos, do obscurantismo, do autoritarismo. Sim, AINDA está no campo da ameaça porque, infelizmente, tudo ainda pode piorar por estas bandas.

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Mas será possível?

Será possível que as águas possam ficar ainda mais turvas?

Como?

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A verdade é que o caminho para uma espiral sombria de piração é bem curto, basta abrirmos mão do pensamento crítico. E, lamento, estamos bem avançados. Começamos negando a ciência; depois, foi a vez de relativizar a História com a cegueira daqueles que não querem ver; agora, estamos demonizando a arte; o próximo passo é o apedrejamento.

E nesse caminho em que a gente desaprende a pensar, é cada vez mais conveniente apontar terceiros culpados pela desgraça a que estamos submetidos. A culpa é sempre deles.

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ELES é que destruíram o país. ELAS é que são umas vadias. ELES é que são corruptos. ELAS é que são ladras. ELES é que são degenerados. ELAS é que acabaram com os valores da família. ELES é que serão apedrejados

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E nesse caminho em que a gente desaprende a pensar, a culpa sempre será deles, aqueles com quem não concordamos. Nunca nossa e dos nossos incautos. Nunca minha e dos meus puros. Torna-se cada vez mais fácil e conveniente esquecer que todos somos responsáveis, de uma forma ou outra, pela realidade que ajudamos a moldar. Consciente ou não, oferecemos as pedras que serão atiradas contra quem se levantar e que serão usadas para construir o muro do feudo que se cria em nossa nova idade média. Isso acontece toda vez que proferimos uma palavra de intolerância, uma ofensa, um desejo de morte, uma reverência à tortura, um pedido de intervenção. Isso acontece toda vez que censuramos o que deve ser dito. Uma palavra. Uma pedra.

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Voltemos a pensar, antes que seja tarde

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E nesse caminho em que a gente reaprende a pensar, pensa em qual a tua parcela de culpa no caos.

Guia de Viagem

O Novo Velho Continente

Ana Martins
12 de setembro de 2016

Crise! É o clima político que percorre o Ocidente—de norte a sul aí no “novo mundo”, de canto a canto aqui pelo velho. Em poucos anos vivemos, não uma, mas muitas crises sucessivas. E do seu cúmulo, o velho continente já não nos parece tão familiar. Paira no ar a sensação de que a Europa que até ora conhecemos mudou, sem se saber bem para o quê.

“A história é feita de longos períodos em que nada parece mudar, e de momentos em que o mundo parece ter mudado de repente”, ouvi um dia um Professor dizer. Estes “momentos” começaram em 2008 com o estalar da crise financeira, mas têm ocorrido a um ritmo cada vez mais acelerado nos últimos dois, quase três, anos.

Despertámos em choque no início de 2014 com a anexação da Crimeia pela Rússia. Um momento que trouxe à memória europeia a era de conflitos que julgávamos ter deixado no século XX. Parecia ser coisa do passado. Mas de um passado bem mais distante são os atos de violência inqualificável praticados em nome de um Deus, pensávamos.

2015 começou com o ataque islamista (fundamentalista, entenda-se—não islâmico) a Charlie Hebdo, e acabou com os ataques de Paris em novembro. Seguiram-se este ano os ataques no Aeroporto de Bruxelas e mais recentemente em Nice. Novidade não eram—vimos ataques destes ao longo da última década. Mas a insistência em tão curto espaço de tempo operou uma mudança na nossa perspectiva. Um ataque terrorista entristece-nos, preocupa-nos, revolta-nos, mas já não nos surpreende. E isto sim é novidade!

Coisa do passado parece-nos também o apoio crescente à extrema-direita que se alimenta de sentimentos racistas, xenófobos e nacionalistas que aqueles acontecimentos só vieram intensificar. Há quem veja nestes sentimentos a causa do momento histórico que fez toda a Europa estremecer há poucos meses atrás: o Brexit. Houve, convém dizer, argumentos sãos e sérios do lado Leave. Mas o certo é a incerteza que esta decisão inédita trouxe para o futuro do Reino Unido e da União Europeia. Teme-se pela coesão das duas uniões, especialmente desta última com as eleições francesas e alemãs a caminho—dois países onde a extrema-direita tem ganho terreno.

Já na Península Ibérica, a ascensão do outro extremo—à esquerda—lançou Portugal e Espanha em situações sem precedente, ainda que diferentes. Há um ano os dois países atravessavam eleições em simultâneo. Em Portugal o partido de centro-esquerda aliou-se aos partidos da extrema-esquerda formando um governo famosamente apelidado de “gerigonça”. Mas um ano depois, Espanha nem gerigonça tem! Irá a eleições pela terceira vez antes do final deste ano—um recorde!

Novidades eleitorais e referendárias à parte, o que é mais preocupante são as vozes antieuropeístas numa União Europeia instável, incerta e desacreditada. Fora dela ficará certamente a Turquia depois de uma tentativa de golpe de Estado levar o país a dar uma guinada para o autoritarismo desvelado. E pelo meio fica uma crise ainda mais difícil de resolver: a dos refugiados Sírios e de outras partes de um Médio Oriente sem paz à vista. Esta é a mais urgente e desumana das crises que afetam a Europa. É um problema que aprofunda as suas divisões, medos e hesitações, e que a faz questionar-se acerca dos seus valores fundamentais.

Todas estas crises evidenciam uma crise ainda mais profunda: a crise de identidade europeia. Diz-se que a UE é um OPNI (Objeto Político Não Identificado). E este mistério está no cerne da discussão entre e no interior dos seus Estados-membros que ponderam o grau de “união” que querem na União, já para não mencionar se querem continuar a ser parte dela.

Mas crise é sinal de mudança que, não vindo a bem, vem a mal. Estas crises podem parecer inesperadas, mas os sinais estavam à vista para quem os quisesse ver. A liderança europeia, até agora inerte, confronta-se com as questões de fundo que tem evitado. O que virá das crises financeira, de segurança, estrutural, política e humanitária está nas suas mãos. Pode ser que desta crise existencial o velho continente saia esclarecido quanto à sua identidade e direção nesta era globalizada.

Daqui da Europa prometo partilhar com o Vós o que vou percebendo deste novo velho continente.

Até breve,

Ana