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OUÇA Bendita Sois Vós #35 Protestos no Chile

Geórgia Santos
28 de outubro de 2019

Nesta semana, falamos sobre o ciclo de protestos no Chile. Os jornalistas Geórgia Santos, Tércio Saccol e Flávia Cunha conversaram com a jornalista Isabela Vargas, que vive em Santiago e trouxe o relato de quem está testemunhando a História. Também participam do debate o professor Marcelo Kunrath, da UFRGS, especialista em confronto político e o novo colunista do Vós para América Latina, o jornalista Gustavo Chagas.

Além da crise do Chile, os jornalistas ainda discutem a instabilidade política da América Latina como um todo. Brasil, Equador, Bolívia e até a Argentina. O repórter do portal Sul 21, Luis Eduardo Gomes, esteve em Buenos Aires e falou sobre a situação das eleições antes do resultado.

Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox.

Samir Oliveira

Uma farsa criada para perseguir ativistas

Samir Oliveira
23 de fevereiro de 2017
Foto: Caroline Ferraz/Editorial J

Não é exagero afirmar que o ano de 2013 foi um ano decisivo na minha vida. Naquela época trabalhava como repórter e foi nesta condição que acompanhei todas as manifestações que tomaram conta de Porto Alegre, no lastro de uma revolta popular que revirou o Brasil e amedrontou a casta política.

As jornadas de junho fizeram parte do meu amadurecimento político. Foi com a juventude nas ruas em 2013 que fortaleci minha consciência de militante LGBT, percebendo que algo novo estava sendo gestado naquele momento. Conheci muita gente, me aproximei de coletivos e movimentos. Fui tomado por aquela atmosfera incontrolável e potente.

“Nem o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez conseguiria ser tão criativo na invenção de uma crônica fantástica como essa montada pela polícia gaúcha, com a cumplicidade do Ministério Público e a anuência do Judiciário”

Mas este texto é mais do que um exercício de nostalgia. É uma necessidade. No dia 21 de fevereiro iniciaram-se as audiências de um processo que se arrasta desde 2013 contra seis ativistas que participaram das jornadas de junho: Matheus Gomes, Rodrigo Brizolla, Lucas Maróstica, Gilian Cidade, Alfeu Neto e Vicente Mertz. Trata-se de uma farsa jurídica. Nem o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez conseguiria ser tão criativo na invenção de uma crônica fantástica como essa montada pela polícia gaúcha, com a cumplicidade do Ministério Público e a anuência do Judiciário.

Estes jovens não estão sendo acusados por acaso. Todos faziam parte da organização do Bloco de Lutas pelo Transporte Público, esforço de diversos coletivos e entidades que se unem em torno de uma pauta comum para mobilizar a sociedade porto-alegrense por um transporte 100% público e de qualidade. Foram selecionados pelo Estado para servir de exemplo a todos os manifestantes, numa tentativa de rebaixar os movimentos sociais a algo semelhante a uma quadrilha perante a opinião pública.

As acusações

Os seis militantes são acusados de liderar depredações e saques. A acusação é baseada no depoimento de uma pessoa desconhecida, que disse ter roubado dois secadores de cabelo a mando do Bloco de Lutas. Uma piada de mau gosto. Como se o levante juvenil e popular de 2013 tivesse ido às ruas do Brasil inteiro para roubar secadores. Mas a trama fica mais interessante quando verificamos as outras testemunhas que embasam a ação: um policial militar e o jornalista Voltaire Santos que, na época, trabalhava na Rádio Gaúcha.

O repórter em questão se infiltrou de forma clandestina em uma assembleia do movimento, afirmando à polícia ter presenciado a organização de ações violentas por parte dos manifestantes. É a expressão de um tipo de jornalismo que sempre atuou em uma relação umbilical com a polícia. O mesmo jornalista foi um dos responsáveis pelo fechamento de uma clínica de aborto em Porto Alegre, gerando constrangimento a mulheres que se veem obrigadas a recorrer a estes locais e ainda por cima acabam sendo expostas como criminosas em uma articulação perversa entre mídia e polícia.

A minha participação

Como repórter, acompanhei de perto todas as manifestações de 2013. Estive em assembleias do movimento durante a ocupação da Câmara Municipal e nunca presenciei qualquer organização de atividade violenta. Eu tinha contato direto com muitos dos ativistas acusados nesta ação. Nunca vi nenhum deles com uma pedra na mão ou incitando – muito menos coordenando – qualquer atitude violenta. As depredações que ocorreram foram um sintoma daquele momento político, um fenômeno espontâneo e incontrolável das ruas em ebulição, não uma atitude orientada por qualquer movimento. Dificilmente multidões se rebelam com um sorriso no rosto e flores nas mãos.

Sei que esta coluna é um espaço para falar de temas relacionados à população LGBT. Talvez pareça que este texto não tem relação nenhuma com isso, mas tem. Em 2013, centenas de milhares de jovens tomaram as ruas mandando um recado ao nosso sistema político apodrecido: “Não nos representam”. Essa foi a síntese de um acontecimento que, mesmo com imprecisões, representou uma fissura no regime. É por isso que a juventude que saiu às ruas está até hoje sendo perseguida. É por isso que o Estado quer transformar ativistas em réus.

A comunidade LGBT nunca foi representada por este sistema denunciado em 2013. A institucionalidade brasileira não dá a seus cidadãos LGBTs direitos básicos, como casamento – regulado pela esfera judicial, mas inexistente no âmbito legal -, direito à livre identidade de gênero e um conjunto de políticas públicas voltadas à educação para a diversidade e ao combate ao preconceito. A ausência destes direitos alimenta uma cultura do ódio e torna cada um de nós, LGBTs, alvos permanentes. Por isso optei por usar este espaço hoje para denunciar esta farsa, este processo kafkiano. Os LGBTs conhecem de perto o arbítrio e estão sujeitos a todo tipo de autoritarismo, portanto nenhum de nós deve compactuar com este tipo de situação.

Foto: Carolina Ferraz/Editorial J