Igor Natusch

Greta Thunberg: a pirralha que você respeita (ou deveria)

Igor Natusch
11 de dezembro de 2019

Está sendo uma ótima semana para a jovem ativista sueca Greta Thunberg. Afinal, ela acaba de ser confirmada como personalidade do ano pela revista Time, um dos maiores reconhecimentos que uma pessoa pública pode receber da mídia internacional. É um indicativo claro de que, nesse 2019 de céus carregados e promessas de tempestade, Greta foi capaz de nos apontar um horizonte além das nuvens. Reconhecimento merecido e, mais do que isso, importante para todos nós.

Além dessa honraria, ela recebeu outra deferência marcante – vindo, como era de se esperar, do caleidoscópio de demência em que se transformou o Brasil. Jair Bolsonaro, o Minúsculo, chamou Greta Thunberg de “pirralha”, ao responder sobre o inaceitável assassinato de dois indígenas da etnia Guajajara no último dia 7.

“A Greta já falou que os índios morreram porque estavam defendendo a Amazônia. É impressionante a imprensa dar espaço para uma pirralha dessa aí. Pirralha!” – BOLSONARO, Jair

O porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, ainda tentou uma acrobática relativização, dizendo que a fala não foi “descortês”, já que chamar alguém de pirralha é apenas mencionar sua “pequena estatura”. Não precisava ter se submetido ao ridículo papel, convenhamos. Afinal, a própria Greta Thunberg ostentou, durante cerca de 24h, a palavra “Pirralha” como descrição no perfil oficial do Twitter – sinal de que sentiu-se honrada, e não insultada, pela fala tosca de nosso presidente. E eu concordo com ela: foi, de fato, um elogio daqueles. Quase uma medalha, daquelas que a gente ostenta com orgulho nas ocasiões especiais.

Afinal, quando somos governados pelos velhos escrotos e pelos adultos mau-caráter, ser um pirralho ou pirralha é um predicado fabuloso.

A reação raivosa que homens deploráveis como Jair Bolsonaro sentem diante de Greta Thunberg é um misto de antagonismo e admissão de irrelevância. A sueca tem 16 anos e, como é natural para todas as pessoas de sua idade, se permite sonhar com um mundo diferente – algo que provoca pavor em homens poderosos, enrugados e bolorentos que extraem da ausência coletiva de sonhos a sua força. A esperança e o otimismo são esmagados por esses senhores de terno desalinhado porque é desses sentimentos que podem surgir a indignação, a recusa e a vontade de algo diferente – e é tudo isso que Greta Thunberg simboliza, em uma potência mobilizadora que vai muito além das concordâncias ou discordâncias que se possa ter quanto a ela, seus métodos e posições.

É de pirralhas como Greta Thunberg que o mundo está carente. E que ela nos ajude a encontrar a pirralhice perdida dentro de nós, que nos faz resistir diante desse cinismo ponderado e adulto, que insiste em nos dizer que não existe alternativa ao abismo.

Existe, sim, desde que nos recusemos a aderir a esses senhores lamentáveis e suas sufocantes certezas. E que se incomodem bastante, porque o papel de pirralhos e pirralhas é mesmo irritar os mais velhos – e, se eles estão indignados e passando recibo, é sinal claro de que se está tocando no nervo certo.

Foto: Leonhard Lenz / WikiMedia Commons

Igor Natusch

Uma tarde qualquer nos escritórios de George Soros

Igor Natusch
4 de dezembro de 2019

– Em resumo, fomos desmascarados – diz uma figura séria e sisuda, de óculos fundo de garrafa, posicionado na cabeceira da mesa. Enquanto fala, um serviçal enxuga de modo meticuloso os pingos de suor amarelado que surgem na careca e ameaçam escorrer pela testa da figura que preside a reunião.

– Sem essa. Besteira – retruca um dos presentes, homem já idoso mas ainda dotado de farta cabeleira, óculos de sol suaves que ameaçam escorregar pelo amplo narigão.

Os demais presentes, por sua vez, mantêm um preocupado silêncio. Sabem que um encontro daqueles não seria convocado em nome de besteiras. A figura que preside a reunião segue imperturbável. Com um rápido olhar, ordena ao serviçal que abra um notebook colocado a seu lado, de forma que todos os demais na mesa possam ver o que está na tela.

Como a figura na cabeceira da mesa não tem braços, cabe ao serviçal operar o mouse e fazer os comandos necessários. Surge uma página de notícias brasileira. Nela, está a manchete:

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Dante Mantovani, novo presidente da Funarte, diz que ‘rock leva ao aborto e ao satanismo’

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Nenhum dos presentes entende uma palavra em português, de modo que nenhum deles esboça qualquer reação. Com um clique, o serviçal aciona a tradução automática do Google. A manchete surge reescrita, agora em inglês:

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Dante Mantovani, Funarte’s new president, says ‘rock leads to abortion and satanism’

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A compreensão desperta um denso e preocupado silêncio. Durante vários segundos, só se ouve o som monótono do ar condicionado, ligado em modo ventilação. Os presentes trocam olhares, mexem-se desconfortáveis em suas cadeiras.

– O que é Funarte? – pergunta um senhor de cabelo pintado e rosto fino, com barba rala e bigodinho.

– Não importa, Ritchie – responde o homem ao seu lado, um senhor que talvez parecesse respeitável, não fossem os mullets e as roupas coloridas que usava. Parecia alguém vindo às pressas de alguma praia do Havaí. Instantes depois de interromper o amigo, dirige-se ao cabeça da reunião. – Isso… É no Brasil, Theo? Essa pessoa faz parte do governo do Brasil?

– Adorno, George. Me chame de Dr. Adorno – responde ele, seco.

– OK, desculpe – corrige-se George. – Essa pessoa é do governo brasileiro, Dr. Adorno?

A cabeça mumificada de Theodor W. Adorno olha novamente para o serviçal. Este, obediente, ergue a bandeja onde ela está localizada – única parte que resta do corpo do filósofo – e a deposita um pouco à frente. Aparentemente, a luz da tela o estava incomodando.Neste momento, de forma inesperada, a porta da sala abre-se abruptamente. Um senhor de rosto inconfundível surge, esbaforido.

– Desculpem, rapazes – balbucia, com uma voz que parece feita para cantar músicas sobre como o dinheiro não é importante, pois o dinheiro não é capaz de comprar amor. – Tivemos mau tempo e o pouso demorou.

Há apenas uma cadeira vazia, ao lado do idoso cabeludo e de óculos de sol.

– Oi, John – diz o recém-chegado, sentando-se.

– E aí, Paul – responde John Lennon, com um tom irônico na voz.

Após ter certeza que todos estavam de novo concentrados nele, Adorno recomeça a falar.

– Senhores, desde que o governo de Jair Bolsonaro assumiu no Brasil, a posição de nossa grande revolução cultural  global encontra-se em risco. Enquanto era só aquele Olavo de Carvalho falando sobre eu ter escrito as músicas dos Beatles, estava tudo sob controle: nosso uso massivo da indústria cultural impedia que qualquer ideia contrária ao Grande Plano tivesse credibilidade. – Faz uma pausa, como quem estivesse com um pigarro na garganta, embora sua voz fosse produzida por um sintetizador digital. – Mas a coisa tornou-se perigosa para nós. Bolsonaro destruiu todas as barreiras que criamos, e dissemina informações sensíveis via redes sociais.

– Nosso acordo com Mark não era esse – interrompe Paul McCartney, muito interessado.

– Zuckerberg não é confiável. Nunca foi – resmunga George Harrison, em tom taciturno.

– Seja como for – retoma Adorno, aparentemente irritado com a interupção – nosso segredo está sendo revelado para mais e mais pessoas, através de grupos de WhatsApp. E agora este senhor, Dante Mantovani, está no governo. E ele sabe de tudo.

– Ora, vamos, Theo. Ele não pode saber de tudo – diz John Lennon, incrédulo e desaforado.

O notebook está, agora, ao lado da cabeça morta-viva de Theodor Adorno. Fazendo uso de um espelho, trazido pelo serviçal, ele lê trechos da reportagem:

– “Além dos temas mais técnicos da música erudita, Mantovani discute aspectos da cultura relacionados à filosofia. Em um dos vídeos, ele relaciona Adorno, teórico da Escola de Frankfurt, com os Beatles e reforça teorias da conspiração de que havia infiltrados comunistas na CIA, serviço de inteligência americano. ‘A União Soviética levou agentes infiltrados para os Estados Unidos para realizar experimentos com certos discos, realizados inclusive para crianças'”.

O silêncio volta a cair pesado na sala.

– “O rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto. A indústria do aborto, por sua vez, alimenta uma coisa muito mais pesada, que é o satanismo. O próprio John Lennon disse abertamente, mais de uma vez, que ele fez um pacto com o diabo para ter fama e sucesso”.

– Filho da mãe – resmunga Lennon, agora tão preocupado quanto os demais.

– Caiu a casa, então? – a voz de Ringo Starr surge alta, quase como um grito. – O que a gente pode fazer?

– Teremos que fazer alguma coisa – afirma McCartney, com voz fria. – No que você está pensando, Dr. Adorno? Talvez no… – Um momento de hesitação. – Plano Leslo?

– Você está louco – grita George Harrison. – Eu não vou sair da minha aposentadoria agora!

– Talvez seja necessário, George – tenta atalhar Ringo.

– Não venha com essa, Ritchie. Eu estou aposentado, cumpri todas as metas do Grande Plano, não quero mais nada com isso! De mais a mais, como vamos explicar que eu e John estamos vivos até hoje? Já foi uma barra daquelas transformar o Billy em Paul McCartney depois que precisamos…

Interrompeu-se bruscamente. Os olhares de reprovação eram gerais.

– Eu sou Paul McCartney, George – acentua Paul, com um desagrado quase irreconhecível na voz. – Eu sempre fui, e sempre serei Paul McCartney. Billy Shears é só uma teoria de conspiração. Ele nunca existiu. OK?

– OK, me perdoe, Paul. Mas ainda assim, não tem como acionar o Plano Leslo agora. Free As a Bird foi divertida de gravar, mas vimos os riscos já naquela época. Algumas pessoas suspeitaram do papo de “gravações quase perdidas”. É perigoso. Não dá para fazer uma turnê de reunião. Vamos precisar pensar em outra coisa!

– Pois eu acho que seria uma ótima ideia – diz então Lennon, após uma curta risada. – Combater uma teoria maluca de conspiração transformando uma teoria maluca de conspiração em realidade! “Os Beatles estão de volta! John e George nunca morreram! Turnê mundial com participação especial de Theodor W. Adorno nos backing vocals!”

– Exato – acrescenta Adorno. A expressão de seu rosto morto é singular: se ele ainda tivesse um corpo, talvez se pudesse dizer que esfregava as mãos de satisfação. – Vivemos tempos em que o tecido da realidade está rasgado. Para evitar a ruína do Grande Plano, talvez seja hora de abrir mão da realidade de vez. Revelar que dois Beatles estavam vivos esse tempo todo renderá uma atenção midiática inédita na história. Todas as atenções estarão direcionadas para nós. Será um potencializador fantástico para nossa mensagem. O mundo estará cantando she loves you yeah yeah yeah, e as revelações desse Sr. Mantovani serão definitivamente desmoralizadas.

Enquanto Adorno falava, o ânimo dos presentes mudou. Antes preocupados e irritadiços, todos pareciam mais confiantes, convencidos. Mesmo George Harrison sorria de leve.

– Senhores, é a hora dos Fab Four reconquistarem a música pop – a voz digital do filósofo se erguia, em inusitada empolgação para alguém tão austero. – Uma nova beatlemania! Com os atuais recursos de palco, podemos fazer shows de várias horas sem que isso seja cansativo para o público ou para vocês. Posso inclusive entregar algumas músicas novas, lançar um novo single no Spotify, um documentário para o Netflix. E então, temos um acordo?

Um a um, os quatro músicos uniram as mãos. Ringo tinha uma lágrima de emoção escorrendo lentamente pelo rosto.

– Serviçal, faça uma ligação – disse então Adorno, retomando a sisudez, mesmo que ainda sorrisse. – Temos que agendar uma turnê.

Foto: Montagem sobre fotografia de Dante Mantovani (Reprodução) e Theodor Adorno (Reprodução).

Igor Natusch

Brilhante Ustra sorri no inferno

Igor Natusch
27 de novembro de 2019

Em 2012, eu tive um sonho com Brilhante Ustra. Um pesadelo, melhor dizendo. Embora minha recordação é de que tenha sido um sonho breve, foi algo tão intenso que eu o recordava nitidamente na manhã seguinte, ao ponto de me sentir capaz de registrá-lo. Publiquei um texto sobre ele no meu antigo blog, que hoje está offline.

Era assim:

“Sonhei que estava em uma coletiva de imprensa na qual falaria o Brilhante Ustra. Pelo jeito, ele ia anunciar que estava livre de processos judiciais, comemorar a impunidade garantida a ele pela Lei da Anistia – ao menos, é essa a pauta que eu recordava ter recebido.

A sala era ampla e estava cheia de entusiastas, muitos militares, alguns poucos repórteres. Um deles, conhecido meu de pautas em Assembleias e Câmaras por aí, comentou comigo, em voz baixa:

– Pelo jeito, esse cara se escapou mesmo…

Respondi, em um cochicho, com um tom de ironia:

– Se escapou nada, nem imagina a matéria que eu vou fazer sobre essa palhaçada toda!

Ustra estava com uma expressão radiante, plena de confiança. Sorria. Recebia tapinhas nas costas. No centro da sala, uma imensa bandeira brasileira, de verde vivo e chamativo. Nos cantos do palco (pelo jeito, a coletiva seria em um palco), estranhos arranjos misturando rosas brancas, lírios e metralhadoras.

Eu, sentado a um canto, sinto nojo daquilo tudo.

Começa a tocar o hino nacional. Todos se erguem, em júbilo absoluto, para saudar a pátria mãe. É como a abertura de uma convenção partidária. Eu permaneço sentado, segurando o bloquinho e a caneta.

– O senhor precisa se levantar. É o hino – diz uma pessoa, cujo rosto eu não enxergo.

– Não vou me levantar – respondo eu, em voz branda, mas já prevendo incomodação.

– Levante e saúde o líder – disse outro, mais ríspido, me tocando no ombro.

Repeli sua mão. Outras pessoas começam a se aproximar. Meu colega jornalista (que estava de pé, mas sempre esteve de pé, então não era por adesão a eles que se erguia) tentava debilmente me defender.

– Não vou levantar. Não vou! – continuava eu, já cercado, levando os primeiros empurrões, enquanto o hino tocava mais alto, cada vez mais alto.

Acordo a instantes do linchamento.”

Hoje entendo que esse sonho foi profético. Para mim, nem é questão de acreditar nessas coisas ou não: basta comparar o que me restou de memória com o que vejo hoje, nos jornais impressos e nos sites de notícias, e a certeza é impossível de contornar.

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Lembro do arranjo de balas de grosso calibre que alguém achou por bem fazer para homenagear a Aliança Pelo Brasil, movimento fascista que finge desejar ser um simples partido político
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Lembro dos alucinados marchando e batendo continência para uma réplica da Estátua da Liberdade, em frente a uma loja da Havan. Lembro do parlamentar que transformou uma bandeira brasileira em terno, e de outro que vociferou frases horrendamente racistas em plenário, às vésperas do Dia da Consciência Negra. Lembro do filho do presidente dizendo que, se os opositores não ficassem quietinhos, podia rolar um novo AI-5 – um desaforo que deveria resultar em cassação de mandato, embora eu tenha a triste certeza de que não chegaremos nem perto disso.

Lembro da ideia simplória e estúpida de que basta espalhar colégios militares pelas principais cidades brasileiras para a educação dar um salto de qualidade. Do presidente propondo, aos sorrisos, que militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem tenham carta branca para matar. Do governador do Rio de Janeiro metralhando favelas com helicópteros, comemorando a morte de um sequestrador com grotescos socos no ar. E lembro não só do então deputado federal (e agora presidente) evocando a memória de um torturador desumano para agredir Dilma Rousseff, como do chanceler distribundo o livro abjeto desse ser repugante como se fosse leitura recomendável, de sua viúva tomando chá com Jair Bolsonaro, dos que ostentam camisetas repugnantes defendendo que Ustra ainda vive.

A verdade é que Ustra, mesmo condenado em segunda instância, escapou-se da justa punição pelos horrores que perpetrou. E que, mesmo morto e enterrado, encontrou uma caricatural e grotesca forma de sobrevida.

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Tenho certeza que, a essa altura, Brilhante Ustra sorri no inferno
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É possível tirar o sorriso de escárnio do rosto morto do facínora? Não tenho dúvida de que sim. Mas acordar desse pesadelo passa por uma etapa fundamental – duas, na verdade: preservar a memória do que foi e não permitir que, mais tarde, se esqueça o que hoje está sendo. Se hoje a ideia burra e mentirosa de que “tudo era melhor na ditadura” ganhou força ao ponto de virar um elemento de debate, é porque o lado mais obscurantista do Brasil teve sucesso em manter e, depois, disseminar essa falsidade. Se hoje pessoas se dizem discípulas de alguém como Ustra, é porque há sucesso crescente na estratégia reacionária de reinventar a história. É contra isso que precisamos nos erguer, é isso que não podemos permitir. É assim que podemos nos libertar da idolatria a torturadores e assassinos, arremessar Ustra e outros de sua laia de volta ao abismo do qual jamais deveriam ter saído.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil.

Igor Natusch

Uma viagem no tempo em marcha a ré

Igor Natusch
20 de novembro de 2019

O governo brasileiro está determinado a descobrir a fórmula para a viagem no tempo. De acordo com algumas correntes da física, a viagem ao futuro é teoricamente possível – mas o governo Bolsonaro detesta a ciência com grande paixão, então a opção natural é seguir em sentido oposto. Aos invés de descobrir as maravilhas do futuro, o esforço é para reviver o  passado – fazendo uso de métodos arcaicos e grosseiros, mas que até aqui se mostram bastante funcionais.

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É a viagem no tempo em marcha a ré
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A paixão pelo passado, como a gente sabe, é uma característica fundamental dos movimentos reacionários. Mas não é um passado qualquer, é claro: tem que ser um passado idealizado, onde só aconteceram as coisas que sejam do agrado, com o mínimo de nuances possível. Se for o caso, dá até para editar o passado, ou fazer uma espécie de peça teatral dele, mesmo que fique bem pouco parecido com o passado que de fato existiu. Antigamente é que era bom, dirão os viajantes do tempo em marcha ré – e, como nos filmes e livros de ficção científica, vão alterando o mundo do passado sem pensar nas consequências.

Para ser um bom viajante do tempo em marcha a ré, é fundamental ser uma figura lamentável no presente. Ajuda muito se você mentir qualificações acadêmicas que não tem, combater ameaças conspiratórias que não existem ou sentir um recalque imenso pela diversão que os outros talvez nem tenham de verdade, mas que você não consegue suportar nem imaginar que tenham. Do mesmo modo que o bom soldado de guerra é o que odeia o inimigo sem fazer a menor ideia do porquê, o bom viajante ao passado precisa ter raiva do presente – e, é claro, precisa morrer de medo de qualquer coisa que está por vir.

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Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil

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A viagem no tempo em marcha a ré é uma tarefa que se cumpre em duas esferas. Não basta marchar rumo ao passado: é fundamental dispor-se, com todas as forças, a esfacelar o presente – afinal, desmanchar o agora é a melhor forma de cancelar o futuro, e o simples conceito de um futuro possível torna o recuo no tempo muito mais difícil. A partir daí, é o esforço para vender o pacote ideológico básico: que o presente é nojento, podre e corrompido, e que o futuro ideal não é uma caminhada para frente, mas o resgate do passado tão lindo que os malvados destruíram com suas conspirações e libertinagens.

Parece absurdo, mas convence muita gente. Porque a angústia une as pessoas: todo mundo tem seus medos, suas incertezas, suas próprias carências e recalques. Quando se consegue direcionar toda essa frustração em um único feixe de energia, abre-se enfim o túnel para o passado: a vontade coletiva vira combustível, e o surto reacionário direciona nossa máquina do tempo rumo ao que está lá longe e, ao mesmo tempo, nunca existiu.

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O lado mais funcional desse método é que não há surpresas: a gente encontra lá atrás, no fim do túnel, exatamente o mundo que nossa imaginação inventou antes de partir
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No Brasil que os viajantes de marcha a ré querem a todo custo resgatar, o Império foi uma maravilha, a família imperial guiava a nação mais progressista do mundo, sorriam todos em um Brasil cosmopolita e pulsante de prosperidade. A Proclamação da República foi, nessa curiosa fibra do tempo, um erro que, quem sabe, ainda dá tempo de corrigir. Um Brasil onde racismo não existia – afinal de conta, ninguém falava em racismo, e o racismo só existe porque insistimos em falar nele, não é? Onde as mulheres eram felizes servindo aos maridos como donas do lar, onde a arte não falava de bandalheiras, onde os índios morriam em silêncio sem encher o saco. Onde a Terra inteira flutuava no espaço, perfeita em sua planitude sem curvas, com os astros celestes flutuando sobre o berço esplêndido tal móbiles em um quarto de bebê.

Se você olhar com cuidado, vai perceber que se trata de um passado horroroso: nele, a grande maioria das pessoas só existe para sofrer, ou nem isso. Mas não tem problema. Na revolucionária anti-ciência da viagem no tempo em marcha a ré, dá sempre para ir arrumando o passado pelo caminho, e qualquer coisa é só colocar a culpa nos malvados esquerdopatas de sempre.

Foto: Reprodução/YouTube

Igor Natusch

A política brasileira precisa sextar mais vezes

Igor Natusch
13 de novembro de 2019

Foi forte o sextou do último dia 8 de novembro. Dá para dizer, inclusive, que foi o mais longo sextou de 2019: começou ainda na quinta-feira, com a decisão sobre a prisão em segunda instância no STF, e estendeu-se pelo menos até o domingo, quando os informes do golpe na Bolívia surgiram para azedar novamente nosso noticiário. Um momento que, é claro, teve na concretização do Lula Livre seu momento de maior euforia.

A noite da sexta-feira passada foi, para boa parte desse povo que tentamos resumir com o termo “esquerda”, um gigantesco desafogo. Festiva, alcoólica, eufórica, transante. Esperançosa, acima de tudo. Diante de tantas tristezas e decepções com a política, a chance de um momento como esse foi a senha para a celebração – uma alegria represada que libertou-se, ao menos temporariamente, dos muros cada vez mais sólidos de uma amargura generalizada.

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Porque é isso, não é?

Está faltando alegria e sobrando amargura no Brasil

E isso está nos envenenando

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Corta para a morte estúpida e deprimente da engenheira agrônoma Júlia Barbosa de Souza, 28 anos, que levou um tiro na cabeça dentro do carro em Sorriso (MT) no último sábado. Seu assassino, Jackson Furlan, não estava cometendo um assalto ou algo assim: simplesmente se irritou porque achou que o carro onde Júlia estava com o namorado estava lento demais. Resolveu o problema iniciando uma perseguição e, finalmente, metendo bala em desconhecidos, que sequer moravam na cidade.

A caminhonete dirigida por Jackson trazia um adesivo a favor da reeleição de Jair Bolsonaro em 2022. Em suas redes sociais, postagens favoráveis ao agora presidente eram fáceis de encontrar. E isso é, sim, significativo.

Jair Bolsonaro não é, ao menos até onde se sabe, um assassino. Não foi ele quem apertou o gatilho que fulminou Júlia. Mas ele é um dos responsáveis por criar o cenário aterrador onde crimes horríveis e sem sentido como esse se tornam muito mais possíveis.

Estamos mergulhados em uma política do ressentimento. O ódio aos petistas/esquerdistas não é inédito, mas foi instrumentalizado de forma a tornar-se uma poderosa (e eficiente) arma política, capaz de eleger presidente uma figura abjeta como Bolsonaro. O problema é que esse sentimento ruim transbordou. Contaminou relações familiares, amizades, convivências do dia a dia. Transformou nossos dias em confronto. Deixou todo mundo infeliz.

O rancor gera votos, mas também multiplica a angústia. É uma batalha permanente contra o inimigo, gigantesco e ao mesmo tempo quase invisível, que se esconde em todos os cantos, em todas as pessoas. Nesse cenário de infelicidade coletiva, toda divergência é drástica, toda vitória é cruel, todo rompimento é brutal e definitivo. Qualquer frustração pode ser a gota d’água, e qualquer engarrafamento pode ser um motivo para matar.

Para os que odeiam Lula e tudo que ele representa, sua soltura foi a senha para uma noite de amargura. Para quem o apoia e sofreu com sua prisão, porém, foi a largada para um fim de semana de euforia. E me desculpem a franqueza, mas não é por acaso que Lula aparece em público abraçando os netos, beijando a namorada, citando longas listas de gratidão. Não é por ele ser um santo, um anjo que lança gotas de bondade sobre os meros mortais: é por entender, até de forma intuitiva, que era por isso que seu público ansiava. Que todos queriam, no fundo, um motivo para sorrir.

Muito se falou no discurso pesado de Lula contra os opositores, e ele de fato se fez presente. Mas acho mais importante pensar sobre a alegria intensa e genuína que sua soltura causou – uma alegria de grupo, dos seus para os seus. Se o ressentimento virou o fiador de um governo de trevas, talvez seja preciso alegrar-se mais, sextar mais, insistir no brilho no olho contra todas as desgraças que se empilham para apagá-lo. Não pelo bem do político da vez, mas pelo nosso próprio.

Foto: REUTERS/Nacho Doce

Igor Natusch

A falácia dos extremos e a normalização do absurdo

Igor Natusch
26 de setembro de 2019

Tenho certeza que a maioria de vocês já teve contato com a manifestação asquerosa do comunicador Gustavo Negreiros, então um dos profissionais da rádio 96 FM, do Rio Grande do Norte. Mais um dos muitos homens brancos adultos incomodados com a postura enfática e sem pedidos de desculpa da ativista Greta Thunberg, dedicou-se o jornalista a vomitar infâmias, no ar, contra a sueca – entre elas, dizer que faltava vida sexual a uma adolescente de 16 anos, diagnosticada com síndrome de Asperger.

Alertado por uma participante do programa de que estava se referindo a uma menor de idade, o cidadão não apenas reforçou as barbaridades, como desceu ainda mais o nível, dizendo que Greta deveria limitar-se a ficar fumando maconha em seu país natal. Felizmente, a reação ocorreu: a emissora perdeu patrocínios importantes, Negreiros foi demitido da 96 FM e deve enfrentar ainda alguns (justos) percalços em sua vida profissional.

Mas a fala odiosa do radialista nem foi a coisa mais preocupante, sabe. Referir-se desta forma a uma jovem é evidentemente horrendo, repugnante, vulgar, desolador – mas, infelizmente, não é novidade que muitos pensem de forma igualmente suja sobre mulheres, de qualquer idade, que ousem manifestar o que pensam na esfera pública.

O mais preocupante, para mim, está na voz contemporizadora de algum outro participante do programa, que não consegui identificar.

Diante das tentativas da participante de colocar um freio no chorume verbal de Negreiros, essa pessoa achou que era momento não de dar fim ao espetáculo abjeto, mas de aplicar panos quentes. “Não precisamos levar para os extremos“, disse a voz, ignorada pela metralhadora de lixo do apresentador.

Extremos? Só existe um extremo nessa fala: o extremo de ódio, ignorância, misoginia e pensamento depravado contra uma jovem menor de idade, proferido por um profissional de mídia no microfone de uma importante emissora de rádio local. E esse extremo precisa ser combatido assim que surge, de forma enfática e sem conciliação, exatamente como a mulher presente ao programa se esforçou, sem qualquer auxílio, para fazer.

É possível enxergar, em situações como essa, uma vitória discursiva do reacionarismo moderno: o bom senso e a revolta diante do absurdo viraram coisas “extremadas”.

Se você contesta, por exemplo, o extremo de uma política genocida como a do governador do RJ, Wilson Witzel, você está indo pro “outro extremo”. Se você pede que os detentos nas degradadas penitenciárias brasileiras sejam tratados com o mínimo de dignidade, você é visto quase como um radical, tão “extremado” quanto os que sugerem que ladrões de celular sejam trucidados no meio da rua. Se você diz que Jair Bolsonaro é, na leitura mais generosa possível, um completo despreparado para ser sequer síndico de prédio, que dirá presidente do Brasil, o super-trunfo do “e o Lula? E a Dilma?” virá não apenas do perfil com foto de ovo no Twitter, mas do âncora do telejornal e do colunista de política.

Claro que isso tudo é uma consequência direta da legitimação do grotesco como argumento, do delírio como temática, da infâmia como linha ideológica autorizada a tomar lugar na mesa de debate.

Como permitiu-se que a podridão tivesse voz ao microfone, passa a ser necessário disfarçar de alguma forma o absurdo que é sua presença, como se fingir que a besta não é uma besta fizesse dela menos ameaçadora. E a consequência é tratar o razoável como se extremado também fosse, para construir uma simetria capaz de criar, mesmo que de forma precária, uma ilusão de equilíbrio.

Mas não: contestar um escroto que diz que a revolta de uma adolescente é falta de sexo não é extremado. Trata-se, isso sim, de uma atitude obrigatória para qualquer adulto razoável na sala. E o mesmo cabe quando somos expostos a governadores que acham que “atirar na cabecinha” é política de segurança pública, ministros e candidatos a embaixador que reproduzem infâmias contra líderes políticos estrangeiros, presidentes que publicam vídeos com golden shower e atacam desafetos tripudiando sobre a morte de seus pais.

Em casos assim, não existem “extremos”: existe o absurdo e a necessidade de enfrentá-lo.

Em um mundo onde revoltar-se diante do monstruoso é ser “extremo”, qual será a linha do meio? Ofender só de leve, ser apenas um pouquinho mentiroso, matar só uma ou duas pessoas por semana?

Normalizar o intolerável é perigosíssimo. E impedir que isso ocorra passa por contestar também a ponderação forçada dos que não querem se incomodar.

Foto: 96 FM / YouTube / Reprodução

Igor Natusch

O namoro entre Bolsonaro e Lava-Jato acabou – e a separação será litigiosa

Igor Natusch
19 de setembro de 2019
Presidente da República, Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro durante a final da Copa América 2019, entre as seleções do Brasil e Peru.

Houve um tempo em que o bolsonarismo e a luta contra a corrupção andavam de mãos dadas – mesmo que, mais recentemente, fosse apenas para manter as aparências. Esses dias, contudo, estão cada vez mais distantes. E o que se percebe, de forma cada vez mais indisfarçável, é a iminência da separação.

Não é um rompimento que desagrade aos Bolsonaros, isso é certo.

Se há algo que se move sempre para frente neste governo, é a disposição em transformar o poder em negócio de família, sem qualquer disfarce, sem prender-se ao mínimo de decência. Mesmo a fundamental disputa no Senado pela reforma da previdência fica em segundo plano: mais importante é encher as burras dos senadores com cargos lucrativos no governo, para que topem a infâmia de sagrar Eduardo Bolsonaro embaixador nos EUA. Não é possível imaginar uma submissão mais escandalosa do público ao mais mesquinho interesse pessoal.

Mas pudores dessa natureza nunca fizeram qualquer diferença para Jair Bolsonaro, acostumado desde sempre a ver a política como uma generosa teta na qual mamar.

Para Bolsonaro e os seus, o argumento contra a corrupção foi apenas mais uma dessas torneiras vertendo leite. Muito útil durante a eleição do ano passado, fiador importante de popularidade a partir de Sergio Moro ministro, mas nunca uma bandeira irrenunciável – mesmo porque, no modelo bolsonarista de política, nenhuma bandeira é tão importante que não possa, em algum momento, virar pano de chão.

Com o avanço dos meses, esse papo de combater o crime a qualquer custo foi ficando pesado para o governo federal. Não apenas pela situação de Flávio Bolsonaro, enrascada que está exigindo uma série de ações pouco republicanas para ser minimizada, mas também pela posição cada vez mais incômoda de Moro no ministério. As muitas humilhações a que foi submetido não parecem ter sido suficientes para convencer o ex-juiz a desistir da pasta, escada importante para suas pretensões futuras, seja no STF, seja em um cargo eletivo próprio. E, mesmo desmoralizados pelas ruidosas revelações da Vaza Jato, Moro e a operação Lava-Jato seguem populares. Mais do que Bolsonaro, como provam as pesquisas.

Livrar-se de Sergio Moro, livrar a cara do filho encurralado, cravar os dentes ainda mais fundo no poder. Para cumprir todas essas tarefas, o caminho é um só: usar a bandeira contra a corrupção como capacho para limpar os pés.

Diante de tal tarefa, a aposta dos Bolsonaros tende a ser a de sempre: a radicalização no discurso ideológico.

A disposição de colocar Augusto Aras na PGR, rasgando vergonhosamente a lista tríplice e escancarando a disposição de brigar contra a Lava-Jato em nome da salvação do 01, disparou de vez a cisão. Janaína Paschoal, a proponente do impeachment de Dilma, revela seu desagrado; Moro, cansado de ser feito de palhaço, condiciona sua permanência à manutenção de Maurício Valeixo como diretor-geral da PF. E Olavo de Carvalho, guru picareta do delírio reacionário à brasileira, apressa-se a dar o tom: a “luta contra a corrupção”, segundo ele, foi inventada pelo PT nos anos 1990, como parte da rebuscadíssima, maléfica e eternamente inconclusa estratégia comunista para tomar o poder em escala global.

O casamento entre reacionários políticos e ativistas do Judiciário é, cada vez mais, de fachada. Não há mais paixão, nunca houve muito respeito mútuo e, a essa altura, mesmo o tesão já se perdeu.

O jogo, agora, é fazer com que o rompimento inevitável tenha o menor efeito possível sobre a horda fiel a Bolsonaro. O que também traz, é claro, um fortalecimento da família como únicos detentores do poder, assumindo de vez a nau desgovernada, para o bem e para o mal. Jogar a Lava-Jato para o lado de lá está longe de ser uma tarefa simples, mas não parece haver grandes constrangimentos na hora de tentar essa acrobacia.

Acumular inimigos sempre foi uma má estratégia de guerra. Mas Bolsonaro e os seus não se importam, ao contrário; na verdade, eles até que gostam bastante dessa posição.

Foto: Carolina Antunes / PR

Igor Natusch

De vez em quando, os fascistas não vão passar

Igor Natusch
12 de setembro de 2019

Na dura luta conta a escalada reacionária e fascista que ameaça transformar o Brasil em escombros, todas as vitórias devem ser comemoradas.

No último dia 7 de setembro, tivemos um triunfo significativo nesse sentido. Diante da censura homofóbica promovida pelo prefeito Marcelo Crivella contra a Bienal do Livro no Rio, uma reação (disparada, até certo ponto, pelo super-trunfo midiático Felipe Neto) forçou a ofensiva obscurantista a recuar, em uma sequência de acontecimentos que incluiu recordes de vendas, manifestações ruidosas e uma capa história da Folha de S. Paulo. A insensatez preconceituosa de Crivella (e do desembargador Cláudio de Mello Tavares, do TJ-RJ, que temporariamente autorizou o absurdo recolhimento de livros com temática LGBT) foi enfrentada e, no fim das contas, não triunfou.

Pela primeira vez em um tempo considerável, os fascistas não passaram.

Ainda assim, não foram poucos os que se mostraram, no mínimo, reticentes em comemorar. Afinal, argumentou-se, a ala mais radicalizada à direita estaria achando o máximo o posicionamento do prefeito carioca – e a reação estaria, na verdade, fidelizando e dando coesão às forças obscurantistas ao invés de enfraquecê-las. Ao falar do assunto, servimos à narrativa deles. Se continuarmos agindo assim, eles vão se reeleger, vão seguir no poder indefinidamente e nunca poderão ser derrotados etc e por aí vai.

Olha, sinceramente: está na hora de desapegar desse medo.

Não há qualquer sentido em disputar a mente dos apoiadores mais empedernidos de Bolsonaro, Crivella e de tudo que eles representam. Eles investiram muito de si nessa história, enormes quantidades de recalques e angústias, e simplesmente não vão saltar fora do barco ao primeiro sacolejo do mar revolto. Talvez desistam, em algum momento, desta trilha de destruição – mas dificilmente agora, e certamente não pelas palavras de ordem de um bando de petralhas esquerdopatas.

E, se converter os convertidos não está no horizonte, que sentido há em ficar temeroso pelo que eles pensam?

Quem propôs a briga foram Crivella e os seus. A reação veio porque, no caso, não tinha como não vir. Silenciar era inconcebível.

Ou permitir que os livros fossem recolhidos era, quem sabe, uma posição tática aceitável? Talvez, para evitar reforçar os reacionários, devamos aceitar que eles façam o que der na telha, sem qualquer tipo de contestação? Torcer para que, se ficarmos bem quietinhos, eles simplesmente desistam de nos importunar?

É possível acalmar a besta fingindo que não se escuta o que ela diz, que não se vê o que ela faz?

A fandom reacionária está, por assim dizer, perdida. Não temos que lutar por eles, mas sim enfrentar quem os usa como manobra. Agir de forma que, ao espectador ainda não posicionado, o lado do atraso, da destruição e do ódio a tudo que não seja espelho pareça tão inaceitável quanto de fato é. E, acima de tudo, temos que lutar pela nossa própria força. Temos que ser capazes não apenas de resistir, mas de confrontar. Se é preciso aprender a não dar fôlego a essa corrente-para-trás que nos consome, é igualmente importante tirar lições de nossas vitórias. Ser capaz de encontrar força, inspiração e estratégia em tudo que nos tira, mesmo que por poucos momentos, da defensiva.

Os fascistas não passaram, ao menos desta vez. E, se não passaram, é porque alguma coisa de certo a gente fez.

Foto: Ana Paula Rocha / Reprodução / Twitter

Igor Natusch

Com Lava-Jata enfraquecida, STF e Congresso se unem no contra-ataque

Igor Natusch
8 de agosto de 2019

Se há algo que aproxima a operação Lava-Jato do atual governo, é a disposição de usar o conflito como estratégia de legitimação e fidelidade. É apenas a partir deste ângulo que a intempestiva decisão de transferir o ex-presidente Lula de Curitiba para o presídio do Tremembé, em São Paulo, ganha motivação e significado.

Diante do enfraquecimento da aura de santidade em torno da operação, disparada pelos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil, a decisão da juíza federal Carolina Lebbos recoloca a figura odiada de Lula no centro do noticiário. Como elemento central da brincadeira, ficava no ar a possibilidade de colocá-lo em uma cela coletiva, ao invés da sala especial de Curitiba. Um aceno nada sutil aos anseios sádicos da ala que sempre sonhou em ver o ex-presidente em uma cela superlotada de um penitenciária comum. Ao frustar a realização (mesmo que apenas imaginária) dessa tara, o STF colaria em si mesmo a etiqueta de aliado de Lula, logo inimigo da Lava-Jato, logo inimigo do Brasil.

Esse parece ser o plano. Se o plano deu ou está dando certo, são outros quinhentos.

A movimentação mais significativa parece ter vindo do Congresso Nacional. O repúdio uniu parlamentares e senadores, de oposição e de centro, e recebeu um endosso emblemático do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Fazer uma pausa na votação dos destaques da Reforma da Previdência para que uma delegação de deputados pudesse falar com o presidente do STF, Dias Toffoli, é de uma simbologia muito forte.

Nada é mais importante no Congresso do que aprovar a reforma – mas enfrentar a decisão da Lava-Jato mostrou-se ainda mais importante do que isso. E ganhou, a partir do intervalo trazido por Maia, um caráter institucional.

Se a Câmara dos Deputados decidiu comprar essa briga, certamente não foi por solidariedade, ou porque acham o Lula bonito.

Ao enfrentamento explícito do Congresso, sucedeu-se uma demonstração quase afrontosa do Supremo. Um placar de 10 a 1 contra a transferência, vindo de um tribunal pressionado e dividido como o STF, é muito significativo, ainda mais em tema tão delicado e com rapidez de poucas horas. E que não surge da mera convicção de que a medida fosse equivocada. Quem poderá ignorar as recentes revelações do Intercept Brasil e veículos parceiros, mostrando ações do procurador Deltan Dallagnol para investigar, de forma ilegal, ministros do STF?

Se a ideia da Lava-Jato era demonstrar força e capacidade de enfrentamento, o efeito parece não ter sido o desejado. O que ficou evidente, isso sim, foi o enfraquecimento da operação, pelo menos diante de seus antagonistas.

A classe política, que passou anos no córner e viu muitas de suas principais figuras atrás das grades, ensaia uma reação. O STF, atacado tanto nos bastidores quanto à luz do dia, deixa claro que está disposto a dobrar a aposta. Pressionados pela opinião pública até então apaixonada pela Lava-Jato, esses núcleos evitavam reagir aos excessos da operação; agora, que o desgaste de Moro, Dallagnol e cia. é notório e crescente, unem-se para o contra-ataque. E nem o nome de Lula (figura cuja defesa pública, até há pouco tempo, era impensável para esses grupos) tem o mesmo poder de intimidação de antes.

Não é uma simples reação de corruptos contra o braço forte da Justiça. É um posicionamento coletivo na disputa pelo poder. E que se torna possível agora, que a Lava-Jato não parece mais tão imbatível quanto antes.

A estratégia de manter-se no ataque o tempo todo é eficiente para direcionar leituras e narrativas, mas não é livre de limites. Um deles é um tanto óbvio: quanto mais numerosas as frentes de batalha, mais difícil é manter a intensidade da artilharia.

A Operação Tremembé certamente amplia o fosso entre os defensores da Lava-Jato e os que criticam suas práticas, e isso favorece quem extrai seu poder justamente dessa oposição inconciliável. Mas o episódio também marca a primeira vez que uma ação da força-tarefa é enfrentada de forma coletiva, enfática e eficiente. E talvez o apoio da torcida não seja mais suficiente para garantir a vitória em casa.

Foto: STF / Divulgação

Igor Natusch

Ninguém é obrigado a responder mamadeira de piroca

Igor Natusch
1 de agosto de 2019

A frase do título foi publicada no Twitter pelo editor-executivo do The Intercept Brasil, Leandro Demori. Deveria ser alçada ao status de mantra, ser adotada sempre que nos fosse exigido um posicionamento sobre alegações absurdas e ridiculamente mentirosas. É tudo muito simples, na verdade: tudo que é falso e mentiroso ganha uma estranha espécie de legitimação quando recebe a dignidade de uma resposta. Não alimente os trolls. Não responda mamadeira de piroca.

Infelizmente, as coisas não estão funcionando assim. E é profundamente preocupante quando a legitimação, mesmo indireta, vem dos próprios veículos e espaços criados para combater a falsidade, para deslegitimar a mentira sem-vergonha com a exposição implacável da verdade e dos fatos. Vejamos, por exemplo, essa manifestação do Lupa, especializado em fact-checking:

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Com todo o respeito aos profissionais que trabalham no veículo, mas essa manifestação é um absurdo

Mais: é um absurdo perigoso

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Sites como Boatos.org e Snopes prestam um excelente serviço, basicamente porque partem de uma ótima premissa: ser uma database de desmentidos. O valor que oferecem, embora dialogue de forma óbvia com o noticiário, pouco tem a ver com instantaneidade: é ser uma fonte confiável a ser consultada sempre que o usuário da internet tiver dúvida sobre a veracidade de alguma alegação. Você tem dúvidas, e vai até eles fazer uma consulta. É eficiente, e com alto potencial de convencimento.

Veículos de fact-checking como Lupa são diferentes. Sua proposta é enfrentar fake news de forma dedicada e jornalística. O que é igualmente importante nesses tempos difíceis que vivemos, embora com uma metodologia diversa. Há uma informação que finge ser jornalística, e ela é desmontada a partir do próprio método jornalístico.

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Mas checar fatos é muito diferente de checar o que o outro lado tem a dizer

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Glenn Greenwald e David Miranda não têm que dizer absolutamente nada sobre a mentira cretina da qual foram vítimas. Por vários motivos, mas acima de tudo porque é uma mentira cretina, disseminada de forma cretina via redes sociais. Não é como se estivéssemos diante de uma denúncia séria, feita por uma instituição confiável ou a partir de uma metodologia adequada: é uma safadeza absoluta, feita para agredir desafetos políticos e ganhar alguns cliques e likes no processo.

De qualquer forma, o hospital onde supostamente a internação ocorreu já havia negado tudo. O próprio David Miranda havia publicado, no momento em que se disseminava a mentira, um vídeo ao lado do marido, sorridente e tranquilo no quarto do casal. Ainda assim, e mesmo com o histórico nada recomendável do pseudo-veículo que publicou a sujeira, os profissionais da Lupa, que “duvidam por essência”, não se sentiam seguros para cravar um “falso”.

Se a Lupa acha que Glenn Greenwald e David Miranda não “negaram de forma clara a alegação”, é porque o veículo começa a assumir, enquanto procedimento, que a fake news é uma indagação “respondível” e não uma mentira a ser desmascarada. Isso inverte a própria lógica que se espera do fact-checking, de uma forma degradante e que coloca sua própria função de existir em risco.

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Se não tinham convicção de que era falso, o problema não é de Glenn ou do Intercept Brasil: é do seu próprio método e, mais ainda, da sua concepção sobre o próprio trabalho

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É crescente o risco de criar-se uma espécie de simbiose com as fake news. As agências de fact-checking não apenas não saem da postura reativa, nunca conseguindo antecipar os movimentos da indústria de desinformação (o que é difícil mesmo, sem dúvida) como parecem estar retirando o seu próprio valor, por assim dizer, da existência das fake news. Não estão apenas desmentindo, mas sendo pautados por elas. E, na medida em que se permitem ficar em tal posição, vão reforçando o mecanismo que dá a essa indústria seu poder de persuasão.

Pois, em um cenário desses, não são mais apenas os veículos de checagem que precisam se antagonizar à mentira; a realidade também precisa dizer que é a verdade, e não uma versão calhorda dela, que define sua existência. E quem aqui não sabe que, se Glenn Greenwald diz que é mentira, isso será visto, pelos que os detestam, justamente como prova de que tudo é exatamente como as fake news estão dizendo?

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Há um limite, e ele precisa ser delimitado. Ninguém deve ser convocado a responder sobre mamadeira de piroca

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O fact-checking não é, e não pode virar, uma mera tabelinha com as fake news. Não há dois lados no combate a pseudo-notícias mentirosas. Checagem é o espírito do jornalismo, mas como forma de buscar os fatos, não de dar uma satisfação aos que vivem de disseminar a mentira.

Arte: Hrag Vartanian / Flickr