Voos Literários

A máquina do tempo de Temer

Flávia Cunha
4 de julho de 2017

Vocês repararam que, há alguns meses, a Rússia voltou a ser notícia? Primeiro, foram as “ligações perigosas” entre o presidente norte-americano Donald Trump e o governo russo. Depois, o nosso interino por aqui, o Michel Temer, em meio à crise que ameaça sua própria permanência no governo, resolve ir até Moscou. Daí surge a volta ao passado: Temer chamou os empresários russos de soviéticos.

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Lembrando que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas acabou lá em 1991, com a renúncia do último líder soviético, Mikhail Gorbachev, em meio a turbulências políticas

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Para quem pouco conhece o panorama russo atual, sugiro a leitura do romance policial O Fantasma de Stálin, escrito pelo norte-americano Martin Cruz Smith. O ponto de partida do enredo é a suposta aparição do espírito do ex-governante Joseph Stálin pelos túneis do metrô de Moscou. Aliás, a foto que ilustra esse texto é do metrô de Moscou, conhecido como Palácio Subterrâneo. Tem paredes de mármore, teto alto, candelabros, mosaicos, esculturas e decorações em alto-relevo. Foi inaugurado justamente por Stálin, em 1935.

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Voltando ao livro, o protagonista é o investigador Arkady Renko, que acredita que o fantasma é um teatro para fins políticos, que tem como objetivo reacender uma nostalgia latente no povo russo

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O jornal britânico Daily Express, na época do lançamento da obra, considerou o enredo “um retrato visceral da Rússia moderna em todo seu esplendor e decadência”.

Confiram um trecho:

“Rumo a Tver, Arkady deixou Moscou e entrou na Rússia.

Nada de Mercedes, nem Bolshoi, nem sushi, nem mundo pavimentado; em vez disso, lama, gansos, maçãs caindo de uma carroça. Nada de belas casas em comunidades fechadas, mas chalés divididos com gatos e galinhas. Nada de bilionários, mas homens vendendo jarras na estrada porque a fábrica de cristal onde trabalhavam não tinha dinheiro para pagá-los, então pagava-os com mercadorias, fazendo de cada homem um comerciante que segurava uma jarra com uma das mãos e espantava moscas com a outra.

Para um dia de inverno, o clima estava anormalmente quente, mas Arkady dirigia o veículo de vidros fechados por causa da poeira que os caminhões levantavam. O Zhiguli não tinha ar condicionado nem rádio, mas o motor podia funcionar à base de vodca se necessário. De tempos e tempos, a terra era tão plana que o horizonte abria-se como um leque, e prado e lodaçais se estendiam em todas as direções. Uma estrada de terra se ramificava por um punhado de chalés e uma igreja que parecia um bolo de Páscoa inclinado, emoldurada por bétulas.

[…] As aldeias no caminho estavam definhando, esvaziadas pela evacuação em massa dos jovens, que iam para Tver, para Moscou ou para São Petersburgo em vez de sofrer o que Marx chamara de “a idiota vida rural”.

O contraponto interessante que pode ser feito é a leitura de outra obra do mesmo escritor norte-americano, também situada em Moscou, mas na década de 1980, em que a KGB está em plena ação. Parque Gorki fez um grande sucesso na época e foi parar nas telonas como O Mistério no Parque Gorky, estrelado por William Hurt.

E a Rússia não deve sair tão cedo das manchetes mundiais. Tirando a aproximação com Trump, ainda teremos a Copa do Mundo do ano que vem por lá. Se Michel Temer sobreviver no cargo até lá, é bom aprender que soviéticos só fazem parte mesmo é do passado.

Voos Literários

Jornalismo feminista na década de 1960

Flávia Cunha
27 de junho de 2017

A Arte de Ser Ousada é o título de um livro em homenagem à Carmen da Silva, uma das precursoras do pensamento feminista na imprensa brasileira. Isso lá na década de 1960, na revista Claudia. Nascida na cidade gaúcha de Rio Grande, Carmen morou no Uruguai e na Argentina antes de ir para o Rio de Janeiro, onde fez história com a coluna A Arte de Ser Mulher.

Ao invés de conselhos recatados e do lar, a jornalista nadou contra a maré da época e enfrentou preconceitos para lutar a favor da igualdade da mulher perante o homem. Se, hoje em dia, a mulherada que defende o feminismo já é hostilizada, imaginem naquela época. Essa é uma de suas frases célebres:

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“Chega de ser barco à deriva, seja a protagonista de sua própria vida!”

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É bom frisar que a revista Claudia foi inovadora na época de seu lançamento, em 1961, justamente por trazer uma proposta feminista.  O número de lançamento, com tiragem de 150 mil exemplares, trazia entre seus textos Não, isto não tolero!, em que as leitoras eram aconselhadas a reagir “com firmeza, mas com doçura” aos defeitos do marido.

A coluna de Carmen da Silva surgiu em 1963 e foi publicada até sua morte, em 1985. Dizia essa mulher forte a suas leitoras:

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O que lhes proponho, em verdade, é radicalmente oposto às tradições em que foram educadas, aos preconceitos vigentes, à mitologia criada em torno do chamado ‘eterno feminino’, concebido em termos um tanto rococós de puerilidade, fragilidade, artifício e submissão. (…)”.

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Para quem não conhece muito o trabalho dessa jornalista, sugiro a visita ao site mantido pela professora do programa de Pós-Graduação em Letras da Furg, Núbia Hanciau. Já o livro que dá o título ao meu texto, pode ser comprado aqui. O texto Histórias Híbridas de Uma Senhora de Respeito traz outros detalhes sobre a carreira da jornalista.

A luta por igualdade proposta pelo feminismo ainda é muito atual, infelizmente. Mas a história de mulheres inspiradoras como Carmen da Silva trazem um alento para esse nosso século 21, tão turbulento e belicoso.

Para quem, como eu, acredita que lugar de mulher é onde ela quiser, fica o convite para o Festival NosOutras, que vai acontece em Porto Alegre, no dia 6 de julho. O evento traz atrações femininas, como a banda instrumental As Aventuras. Fazer parte da produção desse evento feminista e independente me dá a sensação de que a trajetória de mulheres como Carmen da Silva não foi em vão.

 

Voos Literários

Ocupações, (in)justiça e literatura

Flávia Cunha
20 de junho de 2017

Nos últimos dias, surgiu mais um gre-nal (ou fla-flu) nas redes sociais. A forma como ocorreu a reintegração de posse de um prédio público do governo do Estado, no centro de Porto Alegre, dividiu opiniões. Mesmo na mídia tradicional, não houve consenso, já que a ação da Brigada Militar foi considerada por muitos truculenta e inadequada e a decisão judicial abriu margem para que a operação ocorresse à noite, em plena véspera de feriado.

Vamos a um resumo dos fatos. Uma ação judicial determinou a desocupação de um imóvel que há cerca de dois anos abrigava moradores da chamada Ocupação Lanceiros Negros (uma referência aos negros livres que lutaram bravamente na Revolução Farroupilha). Vale ressalvar que o prédio já estava vazio há muito tempo quando essas famílias foram morar no local.

Mas o que realmente gerou questionamento foi a forma de atuação do poder público. A ocupação tinha crianças e até bebês. Como em uma situação assim não estava presente o Conselho Tutelar, por exemplo? Um comentarista de uma das maiores emissoras de rádio do Rio Grande do Sul considerou que princípios constitucionais foram violados, o que é gravíssimo.

O colunista de um grande jornal questionou porque um juiz recebe um polpudo auxílio-moradia enquanto  famílias de sem-teto ficam sem ter onde morar. A associação da categoria, em resposta, divulgou uma nota a respeito do comentário. Antes, a Ajuris havia lamentado a forma como ocorreu a reintegração de posse.

Em meio a esse cenário, recorro a Franz Kafka e seu célebre livro O Processo. A obra é uma grande crítica à injustiças e arbitrariedades do sistema. O julgamento de Josef K. por um tribunal misterioso demonstra a fragilidade do cidadão perante as autoridades, situação enfrentada muitas vezes no Brasil, principalmente pelos mais pobres.

O trecho a seguir, selecionado do início da obra, revela as incoerências do sistema, a partir da réplica de um dos guardas que aborda o protagonista, no início do processo:

Que é que o senhor quer? Julga que pode terminar rapidamente com o seu enorme processo, o seu maldito processo, só por se pôr a discutir conosco, que não passamos de guardas, questões de documentos de identificação e de mandados de captura? Nós somos apenas funcionários subalternos, que pouco ou nada percebem de documentos de identificação e que, neste caso, não têm outra missão a não ser a de vigiá-lo dez horas por dia. É para isso que nos pagam. No entanto, ainda somos capazes de compreender que as altas autoridades, ao serviço das quais estamos, antes de darem uma ordem de prisão, tiram minuciosas informações acerca da pessoa a ser detida e dos motivos da detenção. Assim, não há possibilidades de engano. As nossas autoridades, até onde eu conheço, e os meus conhecimentos não vão além das categorias mais baixas, não são daquelas que andam atrás das culpas das pessoas, mas, como diz a Lei, são forçadas pelos delitos a enviarem-nos a nós, os guardas.

Franz Kafka é considerado um dos grandes escritores de todos os tempos. Nascido em Praga, capital da atual República Checa, Kafka integra o canône literário alemão, por ter escrito nesse idioma. O livro O Processo é póstumo, tendo sido publicado em 1925, um ano depois de sua morte. Porém, permanece muito atual em seu nonsense, célebre na obra kafkiana também em outras obras, como A Metamorfose.

O livro O Processo foi para as telonas pela primeira vez na década de 1960, com direção do ícone do cinema Orson Welles e protagonizado por Anthony Perkins.

 

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Diretas Já, feminismo e literatura

Flávia Cunha
13 de junho de 2017

No último final de semana, aconteceram manifestações pelas Diretas Já em diversas cidades brasileiras. Em São Paulo, o protesto realizado nesse domingo teve um enfoque diferente: colocar em pauta os direitos das mulheres. A ideia partiu da escritora Clara Averbuck, sobre quem já escrevi aqui.

Eu respeito o trabalho literário da Clara e também sua coragem em se posicionar politicamente em um período de tanto ódio nas redes sociais e fora delas. A trajetória pessoal de escritores e outras personalidades nem sempre é admirável. Mas existem muitas mulheres que fizeram a diferença e servem de exemplos para todos com suas histórias de vida.

Em homenagem ao ato feminista pelas Diretas Já, selecionei cinco biografias de mulheres poderosas de diferentes áreas. Inspirem-se!!

 Carmen Miranda – A trajetória da pequena notável é contada com maestria por Ruy Castro em Carmen, Uma Biografia.

Clarice Lispector – A obra Clarice, é uma referência para os amantes da literatura, mostrando a vida e obra da escritora pela visão do norte-americano Benjamin Moser.

Frida Kahlo – O livro mostra a intimidade da pintora que transformou sua vida em arte. Frida – A Biografia foi escrita por Hayden Herrera.

Janis Joplin – A roqueira transgressora pela visão da irmã na obra Com Amor, Janis Joplin, de Laura Joplin.

Elis Regina – A cantora Elis Regina têm mais de uma obra dedicada à sua trajetória. Indico Elis, Uma Biografia Musical, escrita pelo gaúcho Arthur de Faria.

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“Os livros são o meu futuro”

Flávia Cunha
6 de junho de 2017

A imagem da pequena Rivânia, de 8 anos, em meio à enchente que atingiu a pequena cidade São José da Coroa Grande, no interior de Pernambuco, viralizou na web e virou notícia. A menina foi aconselhada a levar da casa alagada o que considerasse mais importante. Carregou sua mochila com livros e cadernos, por nele estarem “o seu futuro”. Como não se comover com uma fala com essa? Blogs de todos os tipos deram a notícia, até a grande mídia deu destaque para a atitude da menina. O governador de Pernambuco aproveitou o ensejo para doar livros para Rivânia e sua escola.

Sempre que aparecem notícias positivas como essa, meu coração se enche de esperança. É fato raro uma pessoa que não é da elite parar nos noticiários por uma razão positiva. O detalhe mais tocante é a que essa garotinha ainda é analfabeta, só tem a intuição de que os livros são o caminho para um futuro melhor.

Não tão longe na questão financeira, mas mostrados como verdadeiros monstros, estão os usuários de crack de São Paulo. Ao destruir o local da famosa Cracolândia, a prefeitura achou que resolveria magicamente um grave problema social e de saúde pública. A questão não é nova, como mostra essa matéria aqui, dura pelo menos 20 anos.

O escritor Joca Reiners Terron, radicado em São Paulo desde a década de 1990, mostra a luta entre policiais e usuários de crack como pano de fundo do livro A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves, lançado em 2013.

“Da janela do carro, ao passarmos pela região da Luz, enquanto ele investigava alguma cena microscópica que ocorria na nuca do motorista, eu via os vultos dos viciados em crack se arrastando pelas ruas com seus cobertores, através dos quais vazava a chama de isqueiros sendo acesos e apagados, acesos e apagados. Pareciam corações pulsantes na noite escura ou estrelas num céu preto de tempestade. Calçadas inteiras eram cobertas pelo emaranhado de membros, braços e pernas e pescoços de um só corpo sem início nem fim. A brigada policial observava aquele imenso tapete humano à distância, de cassetetes na mão, tangendo-o em blocos para o lado de lá da praça, mas qual lado?”

Um pouco mais adiante, ele amplia o olhar sobre esse assunto, que ronda São Paulo há tanto tempo:

“O campo de concentração estava ali mesmo, à vista de todos, no centro da cidade. De repente, uma bomba de gás lacrimogêneo explodiu e os noias debandaram em nossa direção, impedindo a passagem do táxi. Pude examiná-los muito de perto, como se estivesse no zoológico e observasse as jaulas dos animais. Suas caras eram umas máscaras distorcidas de medo e fúria, roupas imundas, a pele enegrecida de óleo e fuligem. Um deles se aproximou, encostando os olhos e exibindo as gengivas na janela ao lado do velho, que o encarou com toda a sua apatia. De imediato aqueles dois pares de olhos reconheceram um ao outro através do vidro, e por um instante pensei que afinal não eram os viciados que estavam entre as grades do zoológico, e sim nós detrás de vidros e portas fechadas.”

A solução mágica não existe. Nem na Literatura nem no mundo real. Resta ao poder público e à população encarar de frente a situação, sem maniqueísmo.

Voos Literários

A Revolução dos Bichos

Flávia Cunha
30 de maio de 2017

Estamos vivendo tempos estranhos no Brasil (e também em outros lugares do mundo), isso todos sabemos. Nesse contexto, é bom recorrermos a um clássico literário sobre política e poder. O romance satírico A Revolução dos Bichos, de George Orwell, é uma fábula que aborda uma verdadeira rebelião dos animais de uma fazenda contra seus donos.  O que poderia ser uma história com final feliz (“e os bichinhos viveram em harmonia para sempre”) degenera para uma tirania por parte de uma das espécies, que resolve agir como se fosse mais especial que as outras.

Sabemos que Orwell, o mesmo autor de 1984 – livro que comentei nesse post aqui – escreveu Animal Farm pensando especificamente em criticar o regime comunista da União Soviética que, para ele, era a degeneração do socialismo real, no qual ele acreditava. Porém, o que torna A Revolução dos Bichos um livro universal e atemporal é tratar de manipulações que, infelizmente, acabam ocorrendo em qualquer época e sistema político.

Na história, as ovelhas são retratadas como os animais com menos capacidade intelectual e, por isso, são sempre mostradas como as primeiras a concordarem com as mudanças impostas nas propostas de governar a granja, sem nem ao menos darem-se conta do conteúdo das modificações. Apenas são levadas a concordarem, no melhor estilo maria-vai-com-as-outras. (Como muitos internautas e eleitores que vemos por aí, no mundo real.)

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Um dos exemplos de manipulação mostradas na história são os mandamentos dos bichos, que, originalmente, eram 7

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  1. 1. qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo
  2. 2. qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo
  3. 3. nenhum animal usará roupas
  4. 4. nenhum animal dormirá em cama
  5. 5. nenhum animal beberá álcool
  6. 6. nenhum animal matará outro animal
  7. 7. todos os animais são iguais

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Ao longo da história, são modificados

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  1. 4. nenhum animal dormirá em cama com lençol
  2. 5. nenhum animal beberá álcool em excesso
  3. 6. nenhum animal matará outro animal sem justo motivo

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Com a opressão sendo institucionalizada na fazenda, resta apenas um mandamento:

Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais que os outros.

Para quem interessou-se por saber mais detalhes e curiosidades sobre esse clássico literário, publicado pela primeira vez em 1945, pode dar uma conferida nessa matéria da revista Galileu. E, nesse link aqui, é possível conferir, na íntegra, uma animação baseada no livro e datada de 1954, além de um filme para a TV lançado em 1999.

Voos Literários

Que País É Esse? (Na Literatura)

Flávia Cunha
23 de maio de 2017

Imaginem o Brasil com um governo com representantes interessados apenas em vantagens pessoais. Não estou falando de um livro-reportagem abordando os dias atuais em território brasileiro, mas de uma obra escrita no início da década de 1980 por Ignacio de Loyola Brandão. Sendo Não Haverá País Nenhum uma distopia, evidentemente mostra um Brasil com ainda mais problemas do que enfrentamos no momento. Entre eles, a Amazônia transformada em um deserto, a cidade de São Paulo rodeada por toneladas de lixo que formam colinas imensas, sol tão forte que corrói a pele em poucas horas…

Porém, pelo menos dois fatores nos remetem a inconvenientes semelhanças com o país real. O período histórico relatado no livro é a Época da Grande Locupletação, referindo-se ao enriquecimento ilícito dos governantes. Além disso, o narrador da história está completamente desorientado em relação à política e não entende de uma forma clara o que se passa a seu redor. Que é, pelo menos para mim, a sensação que tenho ao assistir aos noticiários nos últimos dias. Meu palpite é que tem algo a mais por trás de todo o escarcéu com as gravações feitas pelos empresários falcatruas da JBS. Mas o que existe mesmo? Quais são os interesses financeiros e políticos em retirar Michel Temer do poder? E qual seria o sentido de denunciar Aécio Neves antes das eleições presidenciais de 2018?

Enquanto eu e o restante dos brasileiros que não recebemos malas com dinheiro de propina ficamos desorientados em relação ao sentido de tudo isso, recomendo leituras que nos façam refletir e não ser feitos de bobo por discursos políticos vazios. O livro de Ignacio de Loyola Brandão pode ser encontrado facilmente nas grandes livrarias, como por exemplo, aqui.

E, em se tratando de distopias e momentos políticos e governos questionáveis, não podemos deixar de citar 1984, de George Orwell. O protagonista desse romance tem um trabalho que é basicamente reescrever notícias, de acordo com as mudanças de posicionamento do governo totalitário que domina seu país. Esse clássico literário é de onde provém a expressão Big Brother, que é o olho que tudo vê.   

Já em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, a sociedade é desprovida de núcleos familiares e as pessoas são divididas por castas. Qualquer questionamento ao sistema é impedido através da ‘soma’, uma substância que impede o surgimento de emoções ou possíveis revoltas.

Para concluir, vale conferir esse artigo, bem didático, sobre a distopia na literatura, do qual destaco esse trecho:

“A literatura distópica também pode representar um regime utópico que na prática destoa da teoria. As comunidades regidas pela distopia normalmente apresentam governos totalitários, ditatoriais, os quais exercem um poder tirânico e um domínio ilimitado sobre o grupo social.

Nestes estados impera a corrupção e as regras instituídas em nome do bem-estar coletivo revelam-se elásticas. As conquistas tecnológicas são utilizadas também como instrumentos de monitoramento dos indivíduos, da Nação ou de grupos empresariais.”

Voos Literários

Uma Longa Vida Dedicada à Literatura

Flávia Cunha
16 de maio de 2017

Morreu, recentemente, aos 98 anos, Antonio Candido, um dos mais reconhecidos estudiosos da Literatura Brasileira. Ao ver no Facebook a publicação de um conhecido da área de Letras comentando o fato, imaginei que o fato não teria grande repercussão na grande mídia. Felizmente, me enganei e houve justas homenagens a esse crítico literário e professor universitário da USP. Destaco especialmente os artigos do Estado de São Paulo, em que há uma boa análise da sua trajetória, e da Folha de São Paulo, no qual ele é comparado a grandes teóricos como Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) e Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil).

A comparação é feita principalmente devido ao trabalho mais grandioso desse carioca radicado em São Paulo: Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos. Lançado na década de 1950, a obra ainda está disponível para venda e é uma referência no meio acadêmico. Candido optou por estudar o Arcadismo e o Romantismo, considerados por ele decisivos para a formação do que ele chama de sistema literário, de forma a estabelecer uma tradição.

O interessante é que a criação desse sistema literário não era considerado por Antonio Candido o essencial de sua obra, mas foi o mais chamou a atenção da crítica. Rebatendo seus críticos da época, ele escreveu o seguinte comentário no prefácio da segunda edição da obra (ainda na década de 1950):

“Este livro foi recebido normalmente com louvores e censuras. Mas tanto num quanto noutro caso, o que parece haver interessado realmente aos críticos e noticiaristas foi a “Introdução”, pois quase apenas ela foi comentada, favorável ou desfavoravelmente. Esse interesse pelo método talvez seja um sistema de estarmos, no Brasil, preferindo falar sobre a maneira de fazer crítica, ou traçar panoramas esquemáticos, a fazer efetivamente crítica, revolvendo a intimidade das obras e as circunstâncias que a rodeiam.”

Ele também enfrentou artigos contrários na imprensa da época pelo fato de não ter incluído em seu o livro um estudo sobre o Barroco. Sobre essa fato, Candido argumentou nunca ter negado a existência da literatura barroca e que a censura à sua decisão de utilizar o século 18 como o momento em que o sistema literário se configura se deve “a uma vontade por parte da crítica de compreender que a literatura pode ser estudada de várias formas”.

E a gente aqui achando que os haters são uma novidade da pós-modernidade…

Ainda sobre Antonio Candido, outro fato que sempre me chamou a atenção sobre ele foi sua amizade com Oswald de Andrade, o modernista mais transgressor da Semana de 1922. Curiosamente, foi devido a uma crítica literária negativa que a amizade entre os dois começou.

“Ele zangou e escreveu um artigo muito violento sobre mim. Mas depois nos encontramos em uma livraria e ele disse: ‘ataquei você com violência e você respondeu com serenidade. Proponho que nos tornemos amigos’.”

A revelação de Antonio Candido ocorreu durante evento promovido pela Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2011.

Quem dera que as críticas (sejam elas literárias, ou não) sempre acabassem assim: em harmonia e com a descoberta de uma verdadeira amizade.

Voos Literários

De Eros ao Erotismo

Flávia Cunha
9 de maio de 2017

Erotismo refere-se ao estímulo sexual não explícito, o que o diferencia da pornografia. O aspecto mais sutil envolvido no erotismo é o que considero mais atraente. O termo remete ao período greco-romano e era aplicado à paixão e ao desejo sexual, representado pelo deus Eros, o famoso Cupido. Ele foi imortalizado com sua musa Psique, a alma, na famosa escultura de Antonio Canova, exposta no Louvre e retratada na foto dessa matéria.

Passando para a literatura, podemos pensar desde o lendário Kama Sutra, passar por clássicos como Decameron, os textos escandalosos do Marques de Sade e chegar no chatinho e contemporâneo Cinquenta Tons de Cinza. São inúmeros os livros que se enquadram na categoria literatura erótica, esse gênero nem sempre bem quisto pela crítica e que já rendeu problemas para quem se atreveu a publicar textos do tipo.

Que o diga Oscar Wilde, autor de obras como Teleny ou O Reverso da Moeda, considerado o primeiro livro da literatura inglesa a abordar o amor homossexual. Wilde incomodou tanto a sociedade britânica que acabou sendo preso pelo crime de sodomia. Ser gay era considerado um crime grave no século XIX na Grã-Bretanha.

Um pouco depois, no início do século XX, nascia uma escritora francesa que também dava calafrios nos “cidadãos de bem” da época. Anaïs Nin escrevia sobre orgias, triângulos amorosos e a descoberta da sexualidade feminina. Tudo isso em uma época em que o protagonismo feminino estava longe de ser visto como algo natural e que a liberação sexual da mulher ainda era pouco debatida.

Meu livro preferido dela é Uma Espiã Na Casa do Amor, lançado em 1954. O enredo mostra uma atriz de 30 anos, que aproveita a compreensão excessiva do marido para ter uma vida dupla para lá de movimentada, com inúmeros amantes.

Anaïs também escreveu durante toda a vida um diário em que revela suas próprias experiências amorosas e sexuais. Seu romance mais conhecido foi com o escritor Henry Miller, o cultuado autor da trilogia (erótica)  Sexus, Plexus, Nexus. Baseado no diário de Anaïs, o filme Henry e June narra a paixão da escritora por Miller e por sua esposa, June, em plena década de 1930, em Paris. Aqui é possível saber mais sobre a relação dos dois escritores, que foi uma das mais famosas da história da Literatura.

Os livros de Anaïs sempre me fazem refletir sobre o pioneirismo dessa mulher, que não teve medo de se expor com seus textos e que certamente deve ter enfrentado muito preconceito por onde passou. Porém, desconfio que ela não se intimidou com as polêmicas que provocava. Uma das suas frases mais conhecidas é:

“A vida se contrai e se expande proporcionalmente à coragem do indivíduo.”

Desejo coragem às Anaïs da atualidade, na Literatura e na vida.

Voos Literários

Maravilha de Feminismo

Flávia Cunha
2 de maio de 2017

O que um livro sobre a Mulher Maravilha, personagem clássica de HQs, faz na seção de Ciências Sociais de uma livraria na Califórnia? Foi essa intrigante questão que me trouxe a editora-chefe do Vós, a jornalista Geórgia Santos. Em uma pesquisa a respeito da obra The Secret History of Wonder Woman (A História Secreta da Mulher Maravilha, em tradução livredescobri o motivo, até então desconhecido para mim: a criação da super-heroína teve influência do movimento feminista e das sufragistas, que lutaram pelo direito de voto feminino.

“Nunca tinha parado para pensar no ambiente social em que a super-heroína foi criada, o que é desvendado pelo livro escrito pela historiadora (e jornalista) norte-americana Jill Lepore”

Meu amor à Mulher Maravilha nada tem a ver com literatura ou feminismo, duas outras paixões da minha vida. Na verdade, remete ao meu desejo infantil (não realizado) por uma fantasia da personagem, com aquele emblemático shortinho de estrelas. Depois de adulta, desenvolvi uma saudável obsessão pela personagem, o que faz com os mais chegados sempre lembrem de mim quando encontram algo a respeito da MM.

Nunca tinha parado para pensar no ambiente social em que a super-heroína foi criada, o que é desvendado pelo livro escrito pela historiadora (e jornalista) norte-americana Jill Lepore. Conforme a publicação, a personagem foi criada por um psicólogo excêntrico, chamado William Moulton Marston, que atuava como uma espécie de consultor pela editora DC Comics.

O comunicado à imprensa na época do lançamento, em 1941, tem um tom extremamente arrojado e feminista

“A Mulher Maravilha foi concebida pelo Dr. Marston para estabelecer entre as crianças e os jovens um padrão de feminilidade forte, livre e corajosa; para combater a idéia de que as mulheres são inferiores aos homens, e para inspirar as meninas a terem autoconfiança para conquistas no atletismo, nas ocupações e nas profissões monopolizadas por homens, porque a única esperança para a civilização é a maior liberdade, desenvolvimento e igualdade das mulheres em todos os campos da atividade humana.”

 

A obra ainda não tem tradução para o português (alô, editoras!!). Para quem se interessou, aqui é possível saber mais a respeito do livro. Para quem domina o inglês, tem um texto ótimo do The Economist, a respeito do que eles intitulam como as estranhas raízes de um ícone norte-americano. 

E confesso que depois de saber mais detalhes a respeito dos bastidores da criação da Mulher Maravilha, minha porção intelectual ficou mais tranquila em gostar tanto desse ícone da cultura pop.