Voos Literários

A distopia da ficção e da vida real

Flávia Cunha
31 de julho de 2020
O BRASIL ATUAL É UMA DISTOPIA?

Escrevo esse texto enquanto se aproxima mais um final de semana de distanciamento social devido à pandemia do coronavírus. Sei que nem todo mundo tem o privilégio do home office como eu, que muitos trabalham na linha de frente do combate à doença ou em profissões que exigem a saída às ruas. Porém, considero imprudente e difícil de compreender o comportamento de quem nega a gravidade do atual momento e frequenta praças, parques, beira-mar ou a casa de amigos e familiares nos dias de folga. 

Às vezes, me parece que o que enfrentamos no Brasil atual é o enredo de uma distopia, e não a vida real. Com essa ideia em mente, pesquisei obras nacionais com essa temática para tentar entender a cegueira seletiva dos brasileiros em relação ao risco de contaminação pela Covid-19.

E SE AS PESSOAS PUDESSEM ENXERGAR O PROBLEMA?

Na distopia A Torre Acima do Véu, de Roberta Splinder, lançado em 2015, a causa da contaminação é visível: uma inexplicável neblina tóxica. Mesmo com a névoa sendo perceptível a olho nu, as autoridades tentam minimizar o problema:

“O homem engoliu em seco, mas não recuou. Ficar dentro da névoa não era uma opção. Se num único dia a situação já se encontrava daquele jeito, com pessoas saindo às ruas e pregando o fim do mundo, a tendência era só piorar. Além disso, os boatos dos efeitos da névoa o assustavam demais. Seu apartamento pertencia a um prédio mais baixo, construção antiga que foi engolida pela neblina, não queria ficar ali e acabar morrendo envenenado. Tinha que subir, sair daquelas brumas cinzentas de qualquer jeito. Cerrou os punhos, pronto para um inevitável embate. 
– Você não pode nos deixar aqui fora – gritou. – Por favor, tem gente sufocando com a névoa. É perigoso.
– Ninguém sufocou. As transmissões não falaram nada disso – o segurança atalhou depressa, trocando olhares nervosos com seus outros companheiros. Nenhum deles usava máscara de gás. Se a névoa fizesse mal à saúde, estavam tão condenados quanto as pessoas que intimidavam.” 
E COMO SERIA SE A CORRUPÇÃO FOSSE A CAUSA DE UMA EPIDEMIA?

Esse é um dos destaques do romance Desta Terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela, de Ignácio Loyola Brandão, lançado em 2018. O autor, que ocupa a cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras desde março de 2019, já escreveu outras obras dentro do gênero da distopia, como Zero e Não Haverá País Nenhum. Dessa vez, o escritor cria um futuro em que os brasileiros são vigiados desde o nascimento por tornozeleiras eletrônicas e o país enfrenta diferentes contaminações, entre elas a Corruptela Pestífera:

“A população se habituou a carregar máscaras, usadas quando caravanas fecham cruzamentos. Nas laterais, adesivos gigantescos:
Esta caravana é um empreendimento do governo para o bem?estar da população. 
Impacientes, as pessoas buzinam, as caravanas demoram.  A marcha é lenta, nada pode interrompê?la. Até quando vamos suportar esses trens? Pior são as composições especiais que transportam os mortos pela Corruptela Pestifera. A epidemia ocasionada pela corrupção dos parlamentos, do Judiciário, dos ministérios, das secretarias, das confrarias de lobistas, dos doleiros, dos empresários que negociavam leis, provocou uma doença incurável, pior do que o câncer, a gripe espanhola, a peste negra, a aids. Morrem milhares.”
O BRASIL 2020 É UMA DISTOPIA?

Voltando à nossa realidade, causa cada vez mais espanto a quem acredita na Ciência a tranquilidade de quem usa máscara no queixo, promove aglomerações e está em um clima festivo quando ultrapassamos a triste marca oficial de 90 mil mortos. Será que se existisse a Corruptela Pestífera imaginada pelo genial Ignácio de Loyola Brandão haveria tamanha negação da realidade por parte dos governantes? Teríamos tanto descaso por uma parcela cada vez maior da população, composta por inconsequentes de diferentes faixas etárias e classes sociais?

UM PS NECESSÁRIO:

Não tenho síndrome de vira-lata e observo essa falta de consciência e empatia não apenas no povo brasileiro. Basta lembrarmos das imagens dos pubs londrinos lotados logo após a quarentena e da segunda onda de contaminação que já atinge alguns países europeus. 

A mim, só resta lamentar essa triste realidade, escrever textos de alerta e seguir confinada. Aos companheiros de isolamento social, desejo persistência.
#vaipassar 

Imagem: Capa do disco Dystopia, da banda Megadeth/ Reprodução

Voos Literários

Maurem Kayna . O Conto da Aia e a distopia presente

Flávia Cunha
11 de dezembro de 2018

O Brasil atual e O Conto da Aia  guardam semelhanças assustadoras. A declaração de uma futura ministra de que “as mulheres nasceram para serem mães” é o símbolo do retrocesso que vivemos diariamente e conferimos nos noticiários.

A pedido da coluna Voos Literários, a escritora Maurem Kayna fez uma poderosa reflexão sobre o livro  da escritora canadense Margaret Atwood. O Conto da Aia também pode ser conferido em formato de série, sucesso de público e crítica. A segunda temporada estreou no segundo semestre de 2018 no Brasil.

Maurem define-se como “sempre curiosa, em geral um tanto perplexa com o mundo, permanece convicta de que a Literatura tem o poder de abastecer a Vida e mover rumos”. Para saber mais sobre a autora, acessem seu site.

Mas vamos ao texto. Boa leitura!

“Uma distopia presente”

 A diferença entre distopias e utopias não tem a ver apenas com o caráter negativo de um em oposição às expectativas positivas do outro. Tampouco com a suposta distância à frente no tempo. O mais aterrador é a diferença de probabilidade. Os fatos têm mostrado que as chances de concretização das distopias é bem maior que o das utopias, pelo menos até esse ponto da história.

Se pensarmos no tanto que há de 1984 (George Orwell), Admirável Mundo Novo (Aldoux Huxley)  e 1985 (Anthony Burgess) no nosso cotidiano, o Conto da Aia fica ainda mais assustador. Aliás, ele é tão estarrecedor não porque suscita o temor de que as situações narradas nos assolem em um futuro indefinido, mas porque muitos dos absurdos vivenciados pela protagonista e por todas as mulheres do livro já acontecem hoje em alguma medida. Ditaduras vinculadas a correntes religiosas existem, países onde mulheres não tem nenhum direito também existem, a crueldade de mulheres com outras que vivem uma condição distinta da sua também existe, e nem precisamos cruzar fronteiras para ver isso acontecendo. Se tudo no livro parecer exagerado, é bom prestar atenção a um trecho dos primeiros capítulos:

As matérias de jornais eram como sonhos para nós, sonhos ruins sonhados por outros. Que horror, dizíamos, e eram, mas eram horrores sem ser críveis. Eram demasiado melodramáticas, tinham uma dimensão que não era a dimensão de nossas vidas.

Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços brancos não preenchidos nas margens da matéria impressa. Isso nos dava mais liberdade.

Vivíamos nas lacunas entre as matérias.

Muito provavelmente a maior parte das leitoras (e digo assim no feminino porque mesmo que os leitores homens se sensibilizem com as desventuras das mulheres da narrativa, terão dificuldade de entender o que é sentir na pele algumas das situações narradas)  enfrentará uma leitura entrecortada de pausas e angústia. O livro todo é devastador, não porque apresente um cenário sanguinário – ainda  que haja algumas cenas de violência. A fonte de agonia do leitor é mais pulsante nos trechos onde o silêncio imposto molda os movimentos e decisões das personagens.

A aia, cujo nome não saberemos porque todas as aias perderam o direito a um nome próprio para serem referidas como uma propriedade de seus comandantes, é quieta e passa pela patrulha moral que qualquer mulher em nossa sociedade enfrenta.

Evito olhar para baixo, para meu corpo, não tanto porque seja vergonhoso ou impudico mas porque não quero vê-lo. Não quero olhar para alguma coisa que me determine tão completamente.

Há um ponto da narrativa que me tocou fundo. Quando a aia recorda o momento chave em que as perdas de direito das mulheres se estabeleceu, a reação do seu parceiro é muito significativa. Ele lhe pede calma e promete cuidar dela, enquanto ela reconhece estar sendo tratada como criança, ao mesmo tempo em que se recrimina, acusando a si mesma de paranoica por sentir o desconforto que sente.

Houve passeatas, é claro, muitas mulheres e alguns homens. Mas foram menores do que se teria imaginado. […]

Ele não se importa com isso, pensei. Não se importa nem um pouco. Talvez até goste disso. Não somos mais um do outro, não mais. Em vez disso, eu sou dele.

Os dois lampejos de esperança do livro, porém, tem a ver com o poder da amizade  e com as várias e sutis resistências à norma vigente. A força que o afeto por alguém pode nos insuflar é um alento. Seja a amizade, seja o afeto que se entrelaça no corpo por conta da atração sexual. A aia tem uma amiga indócil e deseja que ela não desista, que não se submeta, que consiga salvar a própria pele ao mesmo tempo que deseja na amiga uma bravura que não consegue localizar em si mesma.

Sob o tecido coeso da tirania, também há o bálsamo de uma rede de solidariedade, a forma mais robusta de resistir, que requer, algumas vezes, uma coragem quase.

Uma simbologia interessante do livro é que dos dezesseis capítulos, sete tem “Noite” como título. São tempos escuros esses narrados por Atwood. E depois de tanta escuridão, temos um epílogo cuja função talvez seja nos fazer suportar a história pela certeza da sucessão dos regimes, uma maneira de nos assegurar que o passar do tempo sempre desacomoda qualquer regime – para o bem e para o mal.

Quando terminei a leitura do Conto da Aia, estava em uma cidade com muitas muçulmanas e a cada uma que encontrava envolta em véus e aquilo que minha vivência ocidental só consegue nomear como aceitação, sentia recrudescer a angústia da leitura. E ao revisitar os trechos sublinhados novas perguntas e novas esperanças me invadem.

Tenho o pão suficiente de cada dia, então não perderei tempo com isso. Não é o problema principal. O problema é engoli-lo sem sufocar com ele.

 Foto: Site da autora

Voos Literários

Que País É Esse? (Na Literatura)

Flávia Cunha
23 de maio de 2017

Imaginem o Brasil com um governo com representantes interessados apenas em vantagens pessoais. Não estou falando de um livro-reportagem abordando os dias atuais em território brasileiro, mas de uma obra escrita no início da década de 1980 por Ignacio de Loyola Brandão. Sendo Não Haverá País Nenhum uma distopia, evidentemente mostra um Brasil com ainda mais problemas do que enfrentamos no momento. Entre eles, a Amazônia transformada em um deserto, a cidade de São Paulo rodeada por toneladas de lixo que formam colinas imensas, sol tão forte que corrói a pele em poucas horas…

Porém, pelo menos dois fatores nos remetem a inconvenientes semelhanças com o país real. O período histórico relatado no livro é a Época da Grande Locupletação, referindo-se ao enriquecimento ilícito dos governantes. Além disso, o narrador da história está completamente desorientado em relação à política e não entende de uma forma clara o que se passa a seu redor. Que é, pelo menos para mim, a sensação que tenho ao assistir aos noticiários nos últimos dias. Meu palpite é que tem algo a mais por trás de todo o escarcéu com as gravações feitas pelos empresários falcatruas da JBS. Mas o que existe mesmo? Quais são os interesses financeiros e políticos em retirar Michel Temer do poder? E qual seria o sentido de denunciar Aécio Neves antes das eleições presidenciais de 2018?

Enquanto eu e o restante dos brasileiros que não recebemos malas com dinheiro de propina ficamos desorientados em relação ao sentido de tudo isso, recomendo leituras que nos façam refletir e não ser feitos de bobo por discursos políticos vazios. O livro de Ignacio de Loyola Brandão pode ser encontrado facilmente nas grandes livrarias, como por exemplo, aqui.

E, em se tratando de distopias e momentos políticos e governos questionáveis, não podemos deixar de citar 1984, de George Orwell. O protagonista desse romance tem um trabalho que é basicamente reescrever notícias, de acordo com as mudanças de posicionamento do governo totalitário que domina seu país. Esse clássico literário é de onde provém a expressão Big Brother, que é o olho que tudo vê.   

Já em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, a sociedade é desprovida de núcleos familiares e as pessoas são divididas por castas. Qualquer questionamento ao sistema é impedido através da ‘soma’, uma substância que impede o surgimento de emoções ou possíveis revoltas.

Para concluir, vale conferir esse artigo, bem didático, sobre a distopia na literatura, do qual destaco esse trecho:

“A literatura distópica também pode representar um regime utópico que na prática destoa da teoria. As comunidades regidas pela distopia normalmente apresentam governos totalitários, ditatoriais, os quais exercem um poder tirânico e um domínio ilimitado sobre o grupo social.

Nestes estados impera a corrupção e as regras instituídas em nome do bem-estar coletivo revelam-se elásticas. As conquistas tecnológicas são utilizadas também como instrumentos de monitoramento dos indivíduos, da Nação ou de grupos empresariais.”

Voos Literários

Os muros de São Paulo, a Literatura e Laranja Mecânica

Flávia Cunha
4 de abril de 2017

Uma treta entre o prefeito de São Paulo, João Doria, e a Amazon, depois de uma ação de publicidade da empresa nos muros da cidade, possibilitou que muita gente baixasse livros digitais de graça. Apesar de ser uma ação voltada aos moradores da capital paulistana, a promoção beneficiou usuários de todo o país.

Eu aproveitei esse momento de generosidade corporativa para baixar o livro Laranja Mecânica, de Anthony Burgess. O enredo foi consagrado no cinema pelo diretor Stanley Kubrick e mostra um futuro distópico de ultraviolência cometida por jovens delinquentes, que falam um linguajar próprio.

A experiência me deixou agradavelmente surpresa por motivos diversos. Primeiro, porque tenho um celular antigo (comprado em 2014, super ultrapassado nos nossos dias de obsolescência programada) e com um sistema operacional muito criticado por todo mundo. (não vou contar para vocês que é um windows phone, para vocês não acharem que a “blogueira” aqui é muito pobre). Apesar disso, consegui fazer download do aplicativo Kindle e ler o livro numa boa. Então, acredito que para quem tem iPhones e Androids seja ainda mais tranquila a utilização.

Outra razão para elogios é a edição muito bem feita pela editora Aleph, com uma introdução explicando a importância do texto e falando um pouco sobre a vida do escritor Anthony Burgess. Apesar de já ter lido bastante a respeito do filme, eu não tinha a mais vaga ideia das circunstâncias em que Burgess escreveu um dos maiores livros do século XX.

Nascido na Inglaterra e formado em Literatura Inglesa, ele foi diagnosticado com um tumor fatal no cérebro em 1960. Foi com a intenção de deixar uma herança para a esposa depois da sua morte que resolveu escrever de forma intensa. Foi nessa conjuntura, dois anos depois, que foi concebido Laranja Mecânica. O irônico é que o diagnóstico estava errado e o autor morreu em 1993, aos 76 anos.

Tempo suficiente para constatar a perenidade da sua criação, a história de Alex, integrante de uma gangue de adolescentes capturado pelo Estado e submetido a uma terapia de condicionamento socia. A edição da Aleph também contém observações do tradutor sobre o desafio de passar para o idioma português a escrita do Nadsat, uma gíria criada pelo escritor com influências do russo e do inglês.

A narrativa é fascinante, ao expor a violência social de forma desconcertante. Mesmo para quem assistiu ao filme, o enredo surpreende e faz a leitura valer a pena.