A coluna abordará os assuntos ligados ao universo da literatura de forma leve e descomplicada – com o ar contemplativo de um pássaro planando. Lançamentos, comentários sobre obras nacionais e estrangeiras e, principalmente, reminiscências. Vale tudo para enaltecer o livro como combustível para a vida.
Neste espaço também haverá referências à cultura pop, como a relação da Literatura com o Cinema, HQs, séries de televisão e moda. E, claro, não esquecerá da conexão entre os livros e a roda viva da sociedade e da política. Em um país onde o hábito da leitura ainda é privilégio de poucos, a intenção é popularizar o assunto, sem perder de vista a qualidade das obras literárias selecionadas para análise.
Inspirada pelas oitavas de final da Copa do Mundo, proponho uma espécie de super trunfo de livros dos países classificados nessa fase da competição. Para a escolha das obras, criei o seguinte critério: escritores contemporâneos e ainda em atividade. Vamos às duas competidoras dessa batalha.
.
Representante da França . Marie NDiaye, 51 anos
Minibiografia . Filha de uma francesa e de um senegalês, publicou seu primeiro livro em 1985. Tem uma vasta obra de livros adultos e alguns infantojuvenis. Também é dramaturga e foi uma das roteiristas do filme Minha Terra África, de 2010.
Livro escolhido para essa batalha . Três Mulheres Fortes, publicado em 2010
Motivo da escolha . Com esse título, não tem como não chamar a atenção de uma feminista. Mas a verdade é que retratar o sexo feminino sem pudores e em situações-limite é o ponto forte dessa obra.
Bônus . O livro foi vencedor do Prêmio Gouncourt em 2009, uma dos mais respeitados da França.
.
Representante da Argentina . Samanta Schweblin, 40 anos
Minibiografia . Nascida em Buenos Aires, a escritora resgata o realismo fantástico na literatura argentina e é considerada sucessora de Julio Cortázar. Também integra listas dos escritores contemporâneos mais promissores em língua espanhola.
Livro escolhido para essa batalha .Pássaros na Boca, o primeiro da autora publicado no Brasil
Motivo da escolha . Apesar do peso da comparação com Cortázar pode ser uma maldição, os 18 contos da obra fazem jus à herança literária. Um mundo insólito repleto de estranhezas é o universo dessa obra. Para quem gosta de mergulhar na realidade paralela do realismo fantástico, é uma boa pedida.
Bônus . O livro é vencedor do prêmio Casa de Las Américas, o mais prestigiado em língua espanhola.
Muita gente por aí reclama do conteúdo do que vê postado pelas redes sociais. Pois eu tenho o privilégio de cultivar uma “bolha” de alto nível, com assuntos culturais sempre em destaque. Por isso, é comum haver indicações de leituras com texto muito bem escritos passando constantemente pelas minhas atualizações.
Foi assim que tive acesso a essa resenha da jornalista e coordenadora editorial Lu Thomé, uma figura querida, competente e reconhecida no meio literário do Rio Grande do Sul. O livro indicado por ela é forte e trágico:Canção de ninar, de Leila Slimani. Ainda não tive oportunidade de ler, mas fiquei bastante curiosa após o relato de uma profissional da área:
As opiniões se dividem a respeito deste livro. Vi leitores apaixonados. Vi críticos implacáveis. O estilo de Slimani é seco, pontual, enfiando o dedo direto em uma ferida aberta e purulenta. Uma vez me disseram que meus textos são como um trem andando no trilho. Veloz, curto, com socos em intervalos constantes. Se uma escritora pode representar isso com perfeição é Slimani. As frases curtas, o estilo direto, a crueza que conta a cada linha sem grandes descrições ou voltas. Ela não emprega tempo ou esforços para preparar o terreno. Não precisa disso. E constrói um narrador em terceira pessoa que é implacável com todos – até mesmo com as crianças. Não é um texto para qualquer leitor, e não porque seja rebuscado ou sofisticado. Pelo contrário: é mundano, é simples, é direto no ponto máximo que a literatura permite. Mas algo mais sintomático ocorre: é uma narrativa forte que encontrará – inevitavelmente – mais eco nas mães (e eu não escrevo mulheres aqui de forma proposital). É mais do que um exercício de empatia: é um espelho na nossa cara, refletindo nossas escolhas, nossos problemas, nossos embates, nossa solidão, nossas possibilidades, nossas loucuras e – especialmente – nossas culpas. Porque só quem já ouviu um “Como é que tu consegue?” sabe todo o universo que está envolvido nesta simples, direta e bruta pergunta. Um livro sobre os conflitos sociais, os problemas domésticos, o peso da rotina, o mercado de trabalho opressivo. Mas, essencialmente, um grande livro sobre a maternidade.
Sinopse: Apesar da relutância do marido, Myriam, mãe de duas crianças pequenas, decide voltar a trabalhar em um escritório de advocacia. O casal inicia uma seleção rigorosa em busca da babá perfeita e fica encantado ao encontrar Louise: discreta, educada e dedicada, ela se dá bem com as crianças, mantém a casa sempre limpa e não reclama quando precisa ficar até tarde. Aos poucos, no entanto, a relação de dependência mútua entre a família e Louise dá origem a pequenas frustrações – até o dia em que ocorre uma tragédia. Com uma tensão crescente construída desde as primeiras linhas, Canção de ninar trata de questões que revelam a essência de nossos tempos, abordando as relações de poder, os preconceitos de classe e entre culturas, o papel da mulher na sociedade e as cobranças envolvendo a maternidade. Publicado em mais de 30 países e com mais de 600 mil exemplares vendidos na França, Canção de ninar fez de Leïla Slimani a primeira autora de origem marroquina a vencer o Goncourt, o mais prestigioso prêmio literário francês.
Quer ver sua dica de leitura publicado no Voos Literários? Escreva para flavia@vos.homolog.arsnova.work
Sou completamente alheia à Copa do Mundo. Não por motivos políticos, mas por total falta de interesse e afinidade com o futebol como forma de entretenimento. Porém, ao pensar na cultura de cada país envolvido com essa competição esportiva, comecei uma pesquisa sobre escritores de diferentes nacionalidades.
Partindo do grupo de países do qual o Brasil faz parte nessa primeira fase da Copa, selecionei autores da Suíça, Sérvia e Costa Rica, além de um representante brasileiro pouco conhecido pelo público.
.
Suíça
O senso comum coloca os suíços como imparciais, os isentões da Europa. Porém, para minha surpresa, um autor que não foge de polêmicas nasceu no país do chocolate, dos relógios e do paraíso fiscal preferido dos brazucas: o filósofo Alain de Botton. Uma de suas obras mais famosas aborda ateísmo e religião, demonstrando o quanto ele não foge de temas espinhosos:
“Tentar provar a não existência de Deus pode ser uma atividade divertida para ateus. Críticos pragmáticos da religião encontraram grande satisfação no desnudamento da idiotia de crentes com cruel minúcia, parando somente após sentirem ter revelado seus inimigos como absolutos tolos ou maníacos. Embora esse exercício tenha suas recompensas, a real questão não é se Deus existe ou não, mas para onde levar a discussão ao se concluir que ele evidentemente não existe. A premissa deste livro é que deve ser possível manter-se como um ateu resoluto e, não obstante, esporadicamente considerar as religiões úteis, interessantes e reconfortantes — e ter uma curiosidade quanto às possibilidades de trazer algumas de suas ideias e práticas para o campo secular.”
Estabelecida formalmente como país apenas em 2006, a Sérvia tem um representante literário ilustre: Ivo Andri?, que ganhou o Nobel em 1961, na época da antiga Iugoslávia. Porém, como a maior parte das suas obras foram escritas em sérvio, é reconhecido como um escritor dessa nacionalidade.
Selecionei um trecho de um de seus poucos romances traduzidos para a língua portuguesa, que fala sobre um religioso preso por engano:
Se quiseres saber o que vale um Estado e o seu governo, e qual é o seu futuro, é só ver quantos homens honestos e inocentes há nas prisões desse país e quantos criminosos e delinquentes em liberdade.”
A escritora Carmen Lyra era uma daquelas mulheres à frente de seu tempo. Além de escritora, meteu-se com política. Era comunista, o que lhe rendeu a expulsão de seu país de origem na década de 40. Morreu no exílio cerca de um ano depois. Somente por volta de 1980 foi resgatada a sua importância para a literatura costa-riquenha, em especial seus textos escritos para o público infantil.
Cuentos de mi tía Panchita, publicados em 1920, é uma reunião de pequenas histórias conhecidas mundialmente e recontadas dentro do imaginário do país.
Um dos contos mais curiosos é La Suegra del Diablo (sem tradução para o português) que relata a história do demônio que consegue ser vencido pela mãe de sua esposa humana, que conseguiu prendê-lo utilizando-se de sua astúcia. Quando é solto por um lenhador, o diabo foge de volta ao inferno ao saber que a sogra está em seu encalço.
En vez de contestar, el Diablo preguntó: –Hombre, ¿qué es ese alboroto? El otro respondió: –Aguardate, voy a ver qué es. Inmediatamente volvió y dijo: –¡Que Dios te ayude! Es tu suegra que ha averiguado que estás aquí y ha venido con la botijuela para meterte en ella de nuevo.
¿Quién le iría con la cavilosada a la vieja de mi suegra? –dijo el Diablo. ¿Y patas para qué las quiero? Salió corriendo y no paró sino en el infierno.”
.
Brasil
Meu representante brasileiro dessa seleção literária é o maranhense Sousândrade. Um verdadeiro poeta maldito, ele é considerado parte do movimento do Romantismo.
Mas seus versos fragmentados e meio doidos não fizeram sucesso na época de seu lançamento, no fim do século XIX. Também pudera, Sousândrade flertava com a mistura do português com o inglês, em uma época em que a literatura brasileira só fazia referências (e reverências) à França. O escritor morou um período em Nova York, de onde tirou ideias para seu projeto mais grandioso: OGuesa ou O Guesa Errante.
A história de um guerreiro latino-americano que é sacrificado pelos corretores da Bolsa de Valores de NY, devotos de Mammon, deus do dinheiro e da especulação, não fez sucesso e só teve seu reconhecimento anos depois, com o redescobrimento de sua obra efetuado por escritores do movimento concretista.
O Inferno de Wall Street é o canto mais famoso desse livro difícil de ser compreendido até hoje. A Bolsa de Valores (no poema chamada apenas de stock) é o símbolo de uma sociedade baseada no dinheiro:
A Bíblia da família à noite é lida;
Aos sons do piano os hinos entoados,
E a paz e o chefe da nação querida
São na prosperidade abençoados.
— Mas no outro dia cedo a praça, o stock,
Sempre acesas crateras do negócio.
O assassínio, o audaz roubo, o divórcio,
Ao smart Yankee astuto, abre New York.”
Ao longo da Copa do Mundo farei mais seleções literárias, com azarões e craques da escrita. Também aguardo sugestões de leitura para entrar no clima futebolístico ou fugir dele.
No Dia dos Namorados, o amor na visão de grandes escritores
Flávia Cunha
12 de junho de 2018
Tenho uma certa implicância com o aspecto comercial do Dia dos Namorados, mas é bonito de ver o amor ser exaltado mais do que o ódio nas redes sociais, pelo menos uma vez no ano. Em homenagem à data, selecionei alguns trechos de grandes escritores falando sobre esse sentimento poderoso, incontrolável e, por vezes, incoerente.
Para começo de conversa, um pouco de Caio Fernando Abreu aos que vislumbram os primeiros sintomas do amor (e da paixão):
“Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro.”
Indico Clarice Lispector para os que amam e, por algum motivo, sofrem por esse amor:
“Mas há a espera. A espera é sentir-me voraz em relação ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem pra hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo”.
Aconselho aos portadores perpétuos de paixões desmedidas, ler Gabriel García Márquez sem moderação:
“Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas más e amplia as coisas boas, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado.”
Há algum tempo, tenho observado nas redes sociais ataques a artista plástica Frida Kahlo (1907-1954), que também ficou conhecida na área literária pelo grande sucesso editorial de seu diário, recentemente relançado pela editora José Olympio. O curioso das críticas à Frida é que elas partem tanto de setores mais conservadores da sociedade quanto de vertentes do feminismo.
Dos grupos posicionados mais à direita no espectro político, a popularidade da pintora é questionada com insultos inaceitáveis como “peluda” e “feia”, quando, por exemplo, houve o lançamento de uma Barbie em homenagem à artista mexicana.
.
Da parte das feministas, as críticas são para um certo “glamour” em torno do amor de Frida pelo marido Diego Rivera. O casamento tem fortes indícios de ter sido uma relação abusiva por parte do pintor.
.
Para os caretas que xingam a aparência física dessa artista notável, dou um conselho: pesquisem mais a respeito dela e terão argumentos mais válidos para suas críticas. Spoiler: Ela era comunista e chegou a ter um envolvimento afetivo (e sexual) com Trótski, um dos principais líderes e organizadores da Revolução Russa. Que bafo, amigos do MBL! Isso sim é argumento para falar mal dela, né?
Para as manas do feminismo, fica meu apelo para levarem em conta que, mesmo que Frida tenha vivido uma relação abusiva, isso não a impede ter sido uma pintora genial e dona de um estilo próprio. Ao contrário do que algumas das críticas dizem, ela também trabalhou em prol da justiça social, seja por meio da militância ou de sua arte. Também não apaga o fato de que não ter se rendido a convenções e de ter tido personalidade suficiente para se vestir de uma forma “diferente” e de bancado uma aparência considerada “exótica” para os padrões da época em que viveu.
Uma de suas frases mais famosas de Frida refere-se justamente à aparência física:
.
“A beleza e a feiura são uma miragem, pois os outros sempre acabam vendo nosso interior.”
.
E, encerro esse texto com essa reflexão da pintora, que tem tudo a ver com a sua arte:
.
“Eu costumava pensar que era a pessoa mais estranha do mundo, mas então pensei, há muita gente no mundo, tem que existir alguém como eu, que se sinta bizarra e danificada da mesma forma que eu me sinto. Consigo imaginá-la, e imagino que ela também deve estar por aí, pensando em mim. Bom, eu espero que se você estiver por aí e ler isso, saiba que, sim, é verdade, eu estou aqui e sou tão estranha quanto você.”
Em meio ao momento tenso que atravessamos no Brasil, o mundo perdeu um dos maiores escritores de todos os tempos. O norte-americano Philip Roth escreveu textos considerados polêmicos e sofreu acusações pessoais de misoginia, principalmente de quem mistura o enredo de obras literárias com a vida real. Entretanto, a excelência de seu trabalho é inegável, tendo recebido prêmios reconhecidos, como o Pulitzer de ficção pelo livro Pastoral Americana.
O jornalista e radialista Paulo Moreira, um especialista em jazz que também saca muito de Literatura, escreveu em seu perfil pessoal no Facebook um relato precioso sobre sua relação com as obras de Roth. Reproduzo o texto aqui, com sua devida autorização:
“Quando eu tinha uns 16 anos, lá nos idos dos anos 70, alguém me falou de um livro muito engraçado chamado Complexo de Portnoy, cujo autor era um escritor judeu, Phillip Roth. Eu li numa edição de bolso – é, na época, tinha livro de bolso estilo americano – e nunca mais larguei o cara. Lembro que comecei a ler o Pastoral Americana na praia, numa noite de verão e não consegui largar. Só parei às 5 da manhã porque o sono me venceu. Phillip Roth é um daqueles escritores que até os livros que não são muito bons te fazem pensar e refletir. A partir dele, comecei a prestar a atenção nos outros escritores judeus, tipo John Updike e Isaac Bashevis Singer. Tenho todos os livros que foram lançados no Brasil nos últimos 20 anos e ainda resgatei alguma coisa nos sebos. Confesso que fiquei chateado quando ele disse que iria parar de escrever mas depois entendi que sua missão estava cumprida. […] O Ewan McGregor dirigiu seu primeiro filme baseado neste livro (Pastoral Americana). Como sempre, o filme é legal, mas empalidece perante as descrições e o estilo do Phillip. Mas vale a pena conferir. Tem no Netflix.”
Casamento real: um ensaio sobre ficção e realidade
Flávia Cunha
22 de maio de 2018
O casamento real britânico tomou conta dos noticiários brasileiros de uma maneira que achei um tanto excessiva. Mas os tablóides europeus estão aí para provar que dar destaque a futilidades e fofocas não é mérito apenas do terceiro mundo. Não importa se você é do time que levantou cedo para saber detalhes da cerimônia que uniu o príncipe Harry com a atriz Meghan Markle ou se se acha tudo isso uma grande bobagem.
A proposta desse texto despretensioso é fazer uma comparação do Reino Unido atual com a Idade Média, por meio de uma viagem ao universo de As Brumas de Avalon, série de autoria de Marion Zimmer Bradley lançada em 1979. A obra conta a lenda do Rei Arthur (aquele da famosa távola redonda) pela perspectiva feminina.
No segundo volume da série, intitulado A Grande Rainha, o enredo gira em torno do casamento de Arthur com “a bela, recatada e do lar” Guinevere ou Gwenhyfar. Ela representa a mulher mais comportada, que segue preceitos cristãos e foi criada para casar e ter filhos.
.
Aqui, uma reflexão da personagem sobre sua situação pré-nupcial:
“Ela era apenas parte dos acessórios entre os cavalos e os homens, o equipamento e uma mesa enorme. Era apenas uma noiva, com todas as coisas próprias de uma noiva, roupas, vestidos e jóias, um tear e uma chaleira e uns pentes, e fusos para fiar o linho. Não era ela mesma, não havia nada para ela, constituía apenas propriedade de um Grande Rei que nem sequer se dera ao trabalho de vir até ali para conhecer a mulher que lhe estavam mandando junto com todos aqueles cavalos e arreios. Ela era uma outra égua, uma égua reprodutora para as cavalariças reais, na esperança de gerar um garanhão.”
Para quem achou que não haveria destaque ao vestido da noiva, eis a descrição da roupa, para agradar os fashionistas de plantão:
“Seu vestido era de lã branca, fina como uma teia de aranha. Gwenhwyfar contou a Igraine, com um orgulho tímido, que o tecido fora trazido de um país distante, mais distante até do que Roma, e era mais 60 caro do que ouro. Seu pai comprara uma medida desse pano para a pedra do altar de sua igreja, e um pedaço menor para envolver uma relíquia sagrada, e dera-lhe também um corte com o qual fizera seu vestido de casamento.”
A narradora de As Brumas de Avalon é Morgana, o oposto da noiva. Ela foi criada para ser uma sacerdotisa pagã e, por isso, teve acesso à educação e até os 34 anos ainda não estava casada.
“Morgana sentiu, apesar de seu belo vestido e da excelência de seu véu, como se fosse uma criatura grosseira, anã, terrena, ante a brancura etérea e o dourado precioso de Gwenhwyfar. A sensação durou apenas um momento; depois a moça deu um passo à frente e abraçou-a, beijando-a no rosto como convinha a uma parenta. Morgana, retribuindo o cumprimento, sentiu que Gwenhwyfar era frágil como um cristal precioso, ao contrário da solidez de que ela, Morgana, era dotada.”
Os livros de As Brumas de Avalon mostram muito da condição da mulher no período medieval e resultam numa leitura envolvente sob o viés do protagonismo feminino. Em pleno século 21 do mundo real, muita coisa mudou. A atriz Meghan Markle está longe de ser coadjuvante na realeza britânica, tendo quebrado alguns paradigmas na cerimônia de casamento em que a questão racial teve um destaque merecido, com direito a um coral gospel e tudo.
Para saber mais sobre a família real britânica, que desperta amor e ódio em igual medida, seguem algumas sugestões de leitura:
The Queen – O livro mostra a reação da Rainha depois da morte de Lady Di
A Família Real – Uma biografia não-autorizada da família real.
5 coisas que podem ser um problema na adaptação de “A Amiga Genial” para a TV
Flávia Cunha
15 de maio de 2018
O anúncio de que os 4 livros da série napolitana “A Amiga Genial” vão virar um programa da HBO me deixou com sentimentos contraditórios. Fiquei feliz de poder reviver o enredo intenso e visceral criado pela misteriosa escritora italiana Elena Ferrante, mas deu aquele medinho de fã de que a adaptação estrague a magia criada no universo literário.
Por isso, listei 5 coisas que podem ser um problema na adaptação da obra (sem spoilers):
1 – Como a série vai dar conta das milhares de páginas dos quatro livros?
2 – As atrizes escolhidas conseguirão interpretar de forma competente a complexa amizade das duas protagonistas?
Seja com Lenu e Lila crianças, adolescentes ou adultas, a relação entre elas é constituída por uma intrincada mistura de sentimentos que considero difíceis de transpor para um seriado. Outro desafio será o de manter o ritmo e a sintonia a cada troca dos pares de atrizes, com a mudança de faixa etária das personagens.
3 – A grande gama de personagens secundários será mantida?
Os 4 livros focam-se na história das protagonistas, mas não seria a mesma coisa sem os amigos e familiares das duas. Resta saber se os produtores serão fiéis aos livros ou “passarão a faca” nas histórias paralelas que dão um sabor especial à tetralogia.
4 – O clima da periferia de Nápoles conseguirá ser transposto para a série?
Nápoles é fundamental para a história criada por Elena Ferrante. É um personagem à parte, eu diria. Menos mal que o seriado está sendo gravado em dialeto napolitano. O que justifica sua demora em estrear (informações divulgadas recentemente dão conta de que o lançamento será até março de 2019).
5 – As tramas paralelas que envolvem temas complexos como feminismo e política serão conservadas no roteiro?
Os livros de Elena Ferrante podem ser lidos em várias camadas. A história principal de Lenu e Lila pode ser interpretada como um “novelão”, em que as pessoas brigam, reconciliam-se, casam-se, etc. Porém, um dos grandes méritos das 4 obras é justamente conseguir conciliar as relações humanas com movimentos políticos e sociais a partir da perspectiva italiana.
—
Independente do resultado, compartilho com quem é fã de Elena Ferrante a ansiedade em ver de uma vez esse seriado pronto. Vamos logo, HBO!!
Um dos livros mais sensíveis que já li sobre maternidade é o depoimento dado à jornalista Regina Echeverria por Lucinha Araujo, mãe do cantor e compositor Cazuza. Só as mães são felizes, título de uma das canções mais viscerais do artista também dá nome a essa autobiografia pungente e sincera. Os capítulos têm epígrafes do cantor, como essa do prefácio:
.
“Mãe, aconteça o que acontecer, eu vou estar sempre junto de você “ Cazuza
.
O que as mães fazem quando perdem seus filhos? No caso de Lucinha, ela encontrou forças para seguir em frente. O livro foi uma de suas formas de expressar seu amor infinito pelo filho e também uma forma de desvendar sua própria trajetória.
.
“Nos 32 anos de vida de Cazuza, nosso relacionamento atravessou o tempo sempre no fio da navalha. Foi intenso enquanto ele era criança, intensíssimo na adolescência e transcendental na idade adulta. Tive, nos três anos e quatro meses de doença de meu filho, inúmeras oportunidades de pensar e repensar tudo o que vivemos juntos. Nos devaneios de meu pensamento, buscava em mim a explicação para seu comportamento, fosse ele alegre ou triste, expansivo ou retraído. E percebi que era preciso entender primeiro a minha história, antes de compreender a dele.”
.
E Lucinha conta as histórias de família, o seu ponto de vista sobre a trajetória meteórica e genial do filho e também como lidou com o luto. A Fundação Viva Cazuza, ainda em atividade, que dá assistência a crianças e adolescentes de baixa renda e portadores do vírus HIV é a prova concreta de que a perda de alguém querido pode ser transformada em algo benéfico.
Lucinha, para mim, é um exemplo de mãe que preferiu doar seu amor aos outros, sem deixar de cultuar a memória de seu filho amado. Afinal, de acordo com o poeta, só as mães são felizes. E Lucinha seguirá mãe, mesmo sem receber um abraço especial no próximo domingo.
Especial Dia do Trabalho – Saramago, Kafka e Caio F.
Flávia Cunha
1 de maio de 2018
Escritores são, em geral, seres inconformados com a realidade. Então, não foi difícil selecionar 3 livros para refletirmos neste Dia do Trabalho, livros que abordam, de alguma forma, o universo do trabalho e suas injustiças e incoerências. Os autores escolhidos são reconhecidos pela forma perspicaz de trazer para a ficção idiossincrasias do mundo real. Vamos aos trechos de obras de José Saramago, Franz Kafka e Caio Fernando Abreu.
.
“A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca.”
José Saramago – Todos os Nomes, o trecho selecionado fala do funcionamento de um grande cartório, chamado na história de Conservatória Geral do Registo Civil. O conservador citado no texto é o grande chefe, que não trabalha ‘quase nunca’.
.
“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.
(….)
Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis.”
Franz Kafka – A Metamorfose. Nesse clássico da Literatura Mundial, o protagonista, mesmo passando por uma incrível transformação corpórea, tem na ausência forçada ao trabalho sua principal angústia. Irônico, no mínimo.
.
“Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha um nome. Chamava-se ? um emprego.
(…)
Verdade que só um completo idiota ou alguém totalmente inexperiente sentiria, nem digo êxtase, mas qualquer espécie de animação por ter conseguido um trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo. Acho que ainda não tinha me transformado num idiota, não completamente pelo menos.”
Caio Fernando Abreu – Por Onde Andará Dulce Veiga. Caio F. usa de todo seu sarcasmo para descrever a sensação do protagonista desse romance ao conseguir um emprego. O trabalho de repórter vai resolver, ainda que de forma precária, a difícil situação financeira enfrentada pelo personagem. A crítica do escritor é embasada na realidade. Caio Fernando Abreu trabalhou durante muito tempo para sobreviver como jornalista.