Gustavo Chagas

Quid pro quo

Gustavo Chagas
19 de dezembro de 2019

A expressão latina quid pro quo significa a ação de dar uma coisa em troca de outra. No vivíssimo português, o sentido da frase ancestral se transformou graças a um livro farmacêutico levava esse nome. Com orientações para aplicar um princípio medicinal em vez de outro, com os mesmos efeitos, a publicação levou a culpa pelas confusões cometidas por seus leitores. Cada erro de receita sustentava o que virou o tão nosso quiprocó.

Coube ao ordenamento jurídico dos Estados Unidos trazer o original latino de volta à pauta. O presidente Donald Trump, denunciado na Câmara dos Representantes por abuso de poder e obstrução do Congresso, responderá a um processo de impeachment no Senado.

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O motivo? Quid pro quo!

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Trump teria oferecido, ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, liberar recursos retidos na área militar. Em troca, o hóspede da Casa Branca pediu uma atenção especial à suspeita de envolvimento de Hunter Biden (filho do ex-vice e atual pré-candidato democrata à presidência, Joe Biden) em um esquema de corrupção empresarial no país do leste europeu.

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Na pura essência das letras, _quid pro quo_!
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No início de dezembro, Donald Trump anunciou sanções a Brasil e Argentina pela desvalorização do real e do peso diante do dólar. Segundo o presidente dos Estados Unidos, os dois latino-americanos se aproveitavam deliberadamente do peso e do poder da verdinha. Como punição, taxas sobre o aço e o alumínio produzidos por aqui. O presidente Jair Bolsonaro disse ter uma linha aberta com o colega do norte, mas não houve correspondência. E antes já tínhamos ficado a ver navios no caso da OCDE, quando Trump preferiu apoiar a adesão de Argentina e Romênia no grupo dos ricos.

Na nossa nova diplomacia, com Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e America first, Bolsonaro bem que queria firmar um quid pro quo com Trump. Mas só dando e sem receber nada em troca, apenas nos sobrou o quiprocó.

 

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Pedro Henrique Gomes

Crítica – Parasita

Pedro Henrique Gomes
6 de dezembro de 2019

Do filme policial ao drama familiar, de monstros urbanos ao futuro distópico, as histórias narradas por Bong Joon-ho nunca renunciaram ao espetáculo de gêneros tal como proposto pelo cineasta em Parasita. Não é uma novidade, portanto, que, neste seu mais recente filme, uma sequência seja ao mesmo tempo repleta de violência graficamente explícita e, num golpe súbito, vire a chave para se desdobrar no mais sutil diálogo bem humorado, calibrado por um domínio das tensões que circulam em cena. O cineasta sul-coreano bem sabe como se movimentar entre as sensibilidades do espectador neste filme que, assim como o anterior, O Expresso do Amanhã (2013), propõe uma trama entre duas classes antagônicas e inconciliáveis. Cada personagem que aparece em cena provoca uma mudança de tom, embaralhando as ações. Parasita talvez seja o ápice dessa brincadeira – com Memórias de um Assassino (2003), talvez o seu melhor filme.

Esse conjunto de formas de expressão, de modulações da representação, mediado pelo trânsito entre diversos gêneros cinematográficos, no entanto, está organizado com a seriedade de quem compreende a dificuldade em estabelecer um registro tão político sem a gritaria do filme militante, muito satisfeito com suas certezas éticas.

No filme, Kim Ki-taek (Kang-ho Song) e sua família articulam modos de conseguir penetrar o universo de Park, cujo patriarca é um famoso arquiteto cheio de posses e poderes. Os Ki-taek moram num porão apertado. Aos poucos, Kim, sua esposa e seus filhos passam a trabalhar para a família Park. O aspecto aparentemente caricatural dessa oposição de classes se configura num jogo em que “os de baixo” tentam uma inserção forçada no universo “dos de cima”, que eles mesmos reconhecem como falso e careta. Mas embora a tentação da análise tenha instigado a crítica a buscar um sentido político na “luta de classes”, como se fosse apenas uma questão de opor os donos dos meios de produção contra a classe trabalhadora (e não é), o arquétipo da representação de Parasita parece interessado nos aspectos da sujeição que essa diferença social produz (e aquilo que os sujeitos produzem nela): os modos de (vi)ver a vida são exatamente outros e estarão sempre em rota de colisão – e, por isso, também as reações a eles, como o final do filme parece querer deixar evidente.

Curiosa articulação, pois os conflitos físicos do filme se estabelecem, praticamente todos, entre os mais humildes: com o homem que esbanja seu alcoolismo regularmente em frente a janela da casa da família Ki-taek até ser reprimido pelos moradores, justamente indignados, e entre a antiga funcionária e a própria família Ki-taek durante a segunda metade do filme. Em Parasita, a única conciliação possível entre ricos e pobres é, talvez ironicamente como na vida, um laço sexual, de paixão. Esse laço, ao contrário de todos os outros, nunca é rompido no filme. Nunca é rompido pois, no âmbito dos humildes, são as mulheres que tramam e indicam as decisões, seguram a barra (e se sacrificam, se sujam, se expõem…). Embora os gestos de violência física sejam iniciados e nutridos com gosto pelos homens, a maquinação dos planos, as melhores ideias, as defesas dos pontos de vista, ficam com as mulheres, isto é, a tapeçaria intelectual é fruto da imaginação feminina, enquanto a operação dessa organização mental é corporificada pelo masculino.

Diante desse conjunto de elementos e motivos cinematográficos que se desenredam de modo rocambolesco, a trajetória narrativa de Parasita comporta vários momentos que funcionam como clímax e estes ganham força pois a câmera de Bong Joon-Ho não tolera excessos. À primeira vista simples, sua mise en scène é determinada na busca por ângulos e enquadramentos precisos, fixos apenas no movimento do equipamento, pois a dinâmica interna das cenas são de uma força visual abundante. Joon-Ho quer enquadrar os rostos a uma distância segura, nem muito perto (em close), nem muito distante (em plano americano), preferindo planos médios para, com a força de seu elenco, dar a força expressiva ao filme. Essa construção dos elementos visuais do filme, que são tanto seus cenários quanto sua encenação e seus aspectos de representação, são as matérias do cineasta que, combinadas ao primoroso conjunto do elenco, reforçam a tensão do filme, que é constante. A esta obscenidade moral e estética que é a desigualdade social, o filme de Bong Joon-ho responde com uma combinação elegante de golpes que, como em quase toda boa história, sabe como gozar seu fim. É um dos melhores do ano.

Parasite, de Bong Joon-ho (Coréia do Sul, 2019). Com Kang-Ho Song, Woo-sik Choi, Park So-Dam, Chang Hyae Jin, Sun-Kyun Lee, Cho Yeo-jeong, Myeong-hoon Park.

Gustavo Chagas

Conversar com os russos

Geórgia Santos
5 de dezembro de 2019
(Bento Gonçalves - RS, 05/12/2019) Presidente da República Jair Bolsonaro, assiste à Assinatura de Atos. Foto: Alan Santos/PR

Depois de tantas crises espalhadas pelo continente, coube a Bento Gonçalves fechar o ano de 2019 no Mercosul. A cidade da serra gaúcha recebeu a Cúpula de Chefes de Estado do bloco econômico em um período de incertezas e de ruídos entre os países. O Brasil de Bolsonaro deixou clara sua mensagem aos povos (e, principalmente, ao diplomatas, ministros e presidentes) vizinhos.

O país, por intermédio do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, defendeu a abertura do Mercosul à economia mundial. O chanceler defendeu acordos bilaterais mais flexíveis e parcerias com a Europa, além de países asiáticos, caribenhos e latino-americanos. Até aí, uma posição legítima. No entanto, o discurso pragmático tinha em si doses de olavismo.

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Araújo condenou o “socialismo”, tratando como uma força que para o trem do desenvolvimento da América do Sul

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Disse que o modelo foi aplicado no Mercosul pelos governos anteriores e pela Venezuela, que colocaram o continente no “fundo da caverna”. O chefe do Itamaraty foi mais longe: disse que o Brasil de hoje não age mais por ideologia.

O recado foi interpretado, por jornalistas e correspondentes que cobrem a Cúpula, como um recado à Argentina de Alberto Fernández, que assume o poder no dia 10 de dezembro. O peronista de centro-esquerda chegou ao poder com o apoio do kirchnerismo, uma vertente que, na economia, adota uma postura bastante protecionista no mercado.

Se Araújo e Paulo Guedes, o ministro da Economia, realmente não têm ideologia e vão se guiar pelo pragmatismo, deverão sentar para conversar com Fernández e seu novo gabinete. Se o governo Bolsonaro quiser imprimir uma postura mais flexível e liberal na economia – e repito, é legítimo – não vai poder tratar tratar um governo igualmente legítimo da forma como vem tratando. Se o Brasil quiser tratar o Mercosul  não mais como um “freio”, mas como um “acelerador”, conforme declarou o chanceler, vai ter que conversar com os russos… ou melhor, com os argentinos!

Foto: Alan Santos/PR

Gustavo Chagas

Os caminhos do Chile

Geórgia Santos
28 de novembro de 2019
Há seis semanas, milhares de pessoas ocupam as ruas para protestar contra a situação política, econômica e social do Chile. Como as veias do país ainda carregam o sangue na ditadura de Pinochet, as imagens e os resultados da repressão aos movimentos têm um significado ainda maior e mais traumático. Ao menos 26 pessoas foram mortas e mais de 2,8 mil ficaram feridas em confrontos, quase sempre com os carabineros, a polícia ostensiva. Do total de feridos, impressiona a quantidade de pessoas com lesões graves nos olhos. São mais de 200. O jovem estudante Gustavo Gatica, de 21 anos, ficou cego após ser baleado no rosto e se tornou símbolo da luta que nasceu pelo preço da passagem do metrô.
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“Dei meus olhos para que o Chile desperte”, disse a sua mãe

O Chile parece ter despertado; mas seus políticos, ainda não

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Desde a eclosão da crise, o poder parece atordoado com o nível da reação popular. O presidente Sebastian Piñera ameaçou um discurso mais agressivo, na largada dos protestos, e se viu forçado a recuar. O recuo veio e, mesmo assim, as ruas seguem gritando. A pauta específica do transporte público – um problema que, em si, não era um dos mais urgentes da população chilena – foi ampliada e ficou cada vez mais difusa. O Latinobarómetro de 2018 mostra que a mobilidade era prioridade para 0,3% da população. Segurança liderava com 38,2%, sendo seguida de desemprego (8,8%), saúde (6%) e educação (5,8%). Por trás desses números, uma insatisfação generalizada e, até então, anestesiada.
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Afinal, o que querem os chilenos?
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O governo já prometeu rever as achatadas pensões dos aposentados, o valor do salário mínimo e os benefícios de saúde. Já se aventou a proposta de uma nova Constituição. O último gesto foi a redução pela metade dos salários dos políticos. Será o suficiente? Parece que não.

Enquanto tateia, Piñera volta a endurecer o discurso. Carabineros e Forças Armadas seguem nas ruas, sob graves denúncias de violações de direitos humanos. O futuro segue incerto. O presente é implacável. E o fantasma do passado está à espreita.

Foto: Claudio Santana /GETTY IMAGES
Pedro Henrique Gomes

Crítica – O Irlandês

Pedro Henrique Gomes
22 de novembro de 2019

Só o narrador compreende (quase) tudo de antemão em O Irlandês. Quem narra, dentro do filme, é o personagem de Robert De Niro, cujas ações enformam a trama. Por isso, a trajetória da vida de Frank Sheeran é o fio condutor de todos os acontecimentos do filme. Não é pouco, pois o recorte vai da Segunda Guerra Mundial, passa pela Revolução Cubana, pelo assassinato de Kennedy e pela Guerra do Vietnã, por Watergate, pela Guerra do Kosovo e invade o novo milênio. Mas a monumentalidade do filme de Martin Scorsese não é explicada por sua duração ou por seu plano de fundo histórico, mas pelo aproveitamento preciso de seus elementos dramáticos e pelas instâncias de sua narração. Em uma história atravessada por incontáveis formas de violência, tanto aquela que envolve a trama quanto a que lhe serve de subtexto (a “História”), O Irlandês está configurado, também ritmicamente, não para surpreender o espectador ou aprisioná-lo na espera pelo grand finale, mas para contorcer e explorar cada uma de suas sequências em igual medida de grandeza.

É precisamente nesse espaço mediado pela força que o personagem de Robert De Niro transita ao longo de todo o filme, e o faz com capricho. Cindido entre a necessidade de “ganhar a vida” e a procura por algo maior e mais virtuoso, Sheeran se insere num espaço que a princípio não é seu. Nunca poderia ser. Nascido logo após o fim da Primeira Grande Guerra, ele se tornou um veterano da Segunda. Lá aprendeu a ser impiedoso. De motorista de caminhão convertido em líder sindical e braço de direito de mafiosos, Sheeran constroi a sua trajetória de vida encurtando a vida de outros. A encenação de Scorsese lhe dá o tempo e o espaço necessários para que suas contradições e ambiguidades apareçam, saltando entre os vários tempos narrativos, pausando e acelerando os desdobramentos e incorporando os eventos externos ao próprio mal-estar e forma de consciência do protagonista-narrador, o narrador que confessa, que relata a sua vida de crimes que não comporta grandes ambições ou remorsos: remorso é ser preso ou morto (a figura cinematográfica histórica do gângster sempre causou um borramento nas fronteiras da justiça, instituição que é, grosso modo, a única a tomar corpo no filme como mediadora dos conflitos que, paradoxal que seja, geralmente se dão entre os próprios conglomerados mafiosos).

Apesar do tom melancólico que ecoa aqui e ali a partir de uma espécie de abandono que muitos dos travellings que o filme opera indicam, inclusive em seus planos iniciais e finais, o abrigo que Frank Sheeran encontra não está exatamente nos laços de sangue, mas nos laços do crime, que, como se sabe, não são sólidos. É também a esta ambiguidade das relações (mais que na “complexidade” dos personagens) de família e poder que Scorsese deposita o esforço dramático do filme.

O modelo narrativo de O Irlandês alterna tempos como que para reforçar a ideia de que o passado e o futuro são reféns do presente e se confundem nele e, embora siga a cartilha cronológica clássica, em que um acontecimento prepara o terreno para outro, também a subverte. Essa manipulação temporal da ação lhe confere uma medida de grandeza incomum, pois seria fácil se perder em meio a tantas entradas e saídas de personagens, tantos elementos para aguçar a dispersão do foco narrativo. Scorsese é fiel ao passo macabro que seu protagonista realiza e raramente sai dele para dar movimento à trama do filme – e o faz com a calma do monge e a sabedoria do xamã. Lá onde Os Bons Companheiros e Cassino investiam na tradição, vá lá, épica da máfia (as drogas, o sexo, a sede juvenil da conquista do poder), O Irlandês se assenta na sobriedade da luz, nos pensamentos já corroídos pelas dúvidas e vacilos contaminados pelo tempo e a experiência, o que faz dele um filme mais nublado e disposto a fazer circular as suas contradições – e as de seus personagens que envelhecem. É asfixiante.

Essa obsessão pelos detalhes da representação não é arbitrária e o panorama que ela forma é inseparável da brutalidade da encenação. Se todo o ideário do American Dream estava florescendo “lá fora”, se a política externa do país, por meio das guerras, confirmava sua sanha conquistadora, O Irlandês não se mantém alheio a isso, mas lhe reserva pouca comoção. Baseado no livro de I Heard You Paint Houses, de Charles Brandt, em que os relatos de Sheeran confessam as suas práticas, o filme de Scorsese, assim como O Lobo de Wall Street, é fiel na medida certa aos seus contornos e contextos e não sucumbe a sociologismos para justificar as ações daquilo que deseja representar. Scorsese é um grande narrador criado ao modo dos clássicos: não se trata somente de “filmar o real” passivamente, mas de transformá-lo em criação própria, dar-lhe uma forma nova e revigorada.

Se a mirada de Scorsese aponta agora para o fim de um ciclo particular de representação (que a sua geração já apresentara modificada em relação aos cineastas das gerações anteriores), coisa que o faz com elegância, existem sempre inúmeras formas de recuperar os seus motivos. A tarefa só fica um pouco mais árdua para os cineastas que se empenharão nela.

The Irishman, de Martin Scorsese (EUA, 2019). Com Robert De Niro, Joe Pesci, Al Pacino, Harvey Keitel, Anna Paquin, Ray Romano, Bobby Cannavale.

Gustavo Chagas

Mujiquismo

Geórgia Santos
21 de novembro de 2019

Com uma crise (ou mais) por semana no continente, me sinto mal em repetir o tema “Uruguai” na terceira coluna que escrevo para o Vós. Mas é do pequeno país de 3 milhões de habitantes que vêm os melhores exemplos políticos da América do Sul. E, diante da imensa turbulência pela qual passamos, é nos uruguaios que devemos buscar inspiração.

As eleições deste domingo (24) devem confirmar a vitória de Luis Lacalle Pou, do conservador Partido Nacional, à presidência uruguaia. As pesquisas e a lógica apontam para o fim dos 15 anos de governo da Frente Ampla. Não é necessário ir muito longe, no tempo ou no território, para perceber que as forças políticas que chegam ao poder não gostam de deixá-lo.

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Pois no Uruguai é diferente…
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O ex-presidente José “Pepe” Mujica deixou claro qual será o papel da FA caso os prognósticos se confirmem. “Se tivermos que ser oposição, seremos oposição, e não esperem que estejamos com uma pedra em cada mão”, afirmou em entrevista a uma rádio local. A frase não é de um político demagogo querendo parecer democrata. É discurso, mas é prática.

Em 2014, tive a oportunidade de encontrar Mujica. Era repórter de uma emissora de rádio de Porto Alegre e fui escalado para uma coletiva de imprensa do então presidente uruguaio no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. Estávamos em processo eleitoral e, naquele momento, Marina Silva era quem ameaçava as chances de Dilma Rousseff na corrida ao Planalto. Me posicionei na ponta da fila de jornalistas para a rodada de perguntas e preparei a minha.

– Presidente, o senhor conhece Marina Silva? O que acha da candidata que concorre contra Dilma Rousseff?

Dei azar. A assessoria de imprensa responsável pela organização do evento tinha montado duas filas. Apesar de eu ser o primeiro de uma, eles começaram pela outra e o colega que estava na ponta oposta fez justamente a pergunta que eu tinha planejado. A resposta de Mujica, no entanto, me marcou:

– Seria de mau gosto que eu, presidente do Uruguai, me pusesse a opinar sobre a política brasileira diante da imprensa – afirmou – Vocês que são brasileiros que se resolvam.

A resposta evasiva (e, aparentemente, tosca e grosseira como de um gaucho do campo) era mais do que isso. Mujica sabia que não cabia a um chefe de Estado estrangeiro opinar sobre as eleições de outro país.

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A postura poderia servir de modelo para outros líderes, como o brasileiro Jair Bolsonaro, que adora opinar sobre o voto alheio. Mas as lições democráticas de Mujica vão além. Com seus ideais, a oveja negra uruguaia sabe, todavia, que a realidade é que manda
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“Se a ideologia substitui a realidade, aí estás vivendo o fictício e isso te leva à ruína ou a conclusões fantasiosas, que não o são. Eu tenho que lutar para melhorar a vida das pessoas na realidade concreta de hoje e não fazê-lo é uma imoralidade. (…) Estou lutando por ideais, macanudo. Mas não posso sacrificar o bem-estar da gente por ideais. A vida é uma e é muito curta.”

Em uma América Latina que dá golpes, persegue e mata por ideologia (ainda que use o disfarce de ser contra ideologias), proponho o mujiquismo. Se não der certo, ao menos, vamos aprender com o velho.

Airan Albino

Carta de um guri que cresceu ouvindo samba

Homenagem pessoal a uma figura que representa o tempo e o samba
Airan Albino
21 de novembro de 2019
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“Veja bem, nosso amor é perfeito.” Já ouvi tantas vezes essa frase, esse verso, em muitas vozes e momentos diferentes. Principalmente na voz do meu pai. Mesmo sendo dos casos mais raros, por estar junto dele nos rolês, entre seus amigos e amigas, passei a chamar meu pai pelo nome, Adão, o Adãozinho.

Acho que por essas e outras respeito demais um mais velho. Admiro essa figura que carrega em si o tempo. Esse mesmo Adão, me criou cantando suas reais letras, seus nobres versos. Todos os dias, todas as semanas, me conduzia ao espaço, ao universo do samba quando eu ainda era só uma esponja.

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A foto é de 10 de agosto de 2019, sábado, véspera de Dia dos Pais
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Aeroporto Santos Dumont, Rio de Janeiro. Crédito: Airan Albino

Eis que lhe vejo, seu Reinaldo, saindo de um dos portões de desembarque. Parecia mentira. Não ia perder essa chance de falar com o senhor. Apesar de achar que não teria coragem, fui. Mesmo de fone, o senhor parou e me escutou. Agradeceu pelo carinho e falou que teria mais shows pela frente. Aquilo pra mim foi tudo. Lhe desejei um feliz dia.

Nesse mesmo 2019, ano em que não haveria motivos pra gente falar dessa gente de bem que só tem mal pra dar, falamos. Falamos até de linha sucessória de famílias brasileiras. Bom, na minha família, o Adão me disse desde guri, que eu era um príncipe. Ele me carregava pra cima e pra baixo, e cantava, cantava muito as músicas do senhor. Que o senhor descanse em paz.

Que os outros tantos e tantas que o senhor inspirou sigam carregando o aprendizado de suas letras e compartilhando com o tempo. Eu prometo fazer isso. Obrigado por me mostrar a realeza, Príncipe. Essa é a minha oração pedindo pro senhor Oyá.

Reinaldo Gonçalves Zacarias (09 /11/1954 – 18/11/2019)
Samir Oliveira

Um ano depois: LGBTs vão do medo à luta para enfrentar Bolsonaro

Samir Oliveira
20 de novembro de 2019

Os dias que se seguiram à vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 foram marcados por um sentimento de medo profundo entre a comunidade LGBT. Era como se, de repente, nossas vidas estivessem ainda mais em risco. Como se passássemos a viver sob o fio de uma espada, pronta para decepar nossos sonhos, nossas conquistas e nossas possibilidades de ser e amar.

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Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar?

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Um ano já se passou desde então. Eu senti esse medo. Meus amigos sentiram este medo. Foi impossível não se deixar tomar por este sentimento. Ainda mais quando muitos de nós percebemos, como foi o meu caso, que este projeto violento de Brasil foi eleito com o apoio de nossos familiares, amigos e conhecidos. Como pode uma política que agride nossa existência receber o voto entusiasmado de quem diz nos amar? O Brasil ainda ficará devendo esta resposta a milhões de LGBTs por um bom tempo.

O sentimento imediato era de que os 57 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro não toleravam nossa existência. Como viver em um país que está disposto a patrocinar nosso extermínio? Conheço gente que não conseguiu suportar. Pessoas que partiram antes das eleições e não pretendem mais voltar. E pessoas que ainda estão pensando em se mandar de vez.

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Assim como percebi medo e horror, também vi brotar um sentimento de resistência muito grande entre LGBTs
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Mais do que nunca, nossa estética virou uma forma de afrontar o sistema. As cores do arco-íris, que tanta repulsa causam à base de apoio mais dura do bolsonarismo, ostentam nosso orgulho. As paradas LGBTs continuam levando multidões às ruas, demonstrando ao mundo que não iremos voltar ao armário. A criminalização da LGBTfobia pelo STF foi uma conquista civilizatória em tempos de Bolsonaro. A decisão do Supremo de equiparar LGBTfobia ao crime de racismo é um espinho na garganta do bolsonarismo. Não é pouca coisa que ela tenha ocorrido justamente durante o reinado de ódio que se instalou no país.

Também causa indigestão a esta gente o fato de que um casal gay se encontra no epicentro da oposição ao governo. O jornalista Glenn Greenwald e o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ) viram suas vidas serem reviradas do avesso pela segunda vez. A primeira aconteceu quando revelaram ao mundo a rede suja de espionagem dos Estados Unidos. Agora Glenn, com a coragem característica dos bons jornalistas, desnudou a tragédia farsesca de um juiz-acusador e de um procurador apaixonado por si mesmo. E com isso atraiu para si a fúria do bolsonarismo e os insultos dignos de quinta série associados à sua sexualidade e à sua família. A disputa chegou ao esgoto quando até mesmo sua mãe, com câncer em estágio terminal, e seus filhos foram atacados.

A conjuntura política é grave. Não podemos contar apenas com nosso voluntarismo diante da corrosão democrática que o país vive. O melhor que temos a fazer é nos organizarmos para enfrentar este período histórico. Nossa resistência individual precisa encontrar na luta coletiva um elo que dê sentido à revolta e à mobilização por transformações estruturais no Brasil. 

Bolsonaro nada mais é do que a face mais desumana de um sistema podre que recorreu ao medo para rebaixar ainda mais as condições de vida da classe trabalhadora. O recrudescimento da opressão contra a população LGBT está inserido neste projeto nefasto de país, em que interessa ao capitalismo que nós sejamos considerados cidadãos de segunda categoria, para que possamos ser mais facilmente explorados. Por isso, nossa resistência precisa andar lado a lado de uma luta que também seja antissistêmica, encontrando sentido nas trincheiras ao lado das mulheres, da negritude, do sindicalismo, dos ambientalistas, dos estudantes, e de todas e todos que estejam dispostos a apontar um novo rumo para o país.

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O medo experimentado após o resultado eleitoral vem, ao longo deste ano que insiste em não terminar, cedendo lugar à certeza de que não estamos sozinhos
Mas apenas nossos aliados de sempre não bastam
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Precisamos conduzir um esforço de diálogo com setores da base bolsonarista que não compactuam com ideias fascistas – base essa que vem sendo corroída desde a posse do presidente. Bolsonaro não seguirá seu mandato agarrado ao que existe de mais alucinado, radical e intransigente em sua base de apoio – e a criação de seu novo partido indica essa tentativa de organizar com mais solidez este setor. Suas declarações absurdas e as palhaçadas cotidianas servem para manter um núcleo fiel energizado, mas afastam franjas importantes do bolsonarismo que não estão dispostas a ir para o vale tudo em nome de uma cruzada ideológica e antidemocrática da extrema-direita.

Essas pessoas precisam estar do nosso lado na luta pelos direitos sociais, contra o autoritarismo e em defesa das chamadas “minorias”. Muitas pesquisas já demonstram evidências fartas de que nem todo mundo que votou em Bolsonaro é racista, misógino e LGBTfóbico. Não podemos desprezar este dado, pois não iremos virar este jogo apenas com nossas próprias forças. Temos que energizar nossas bases e falar para os nossos também, mas precisamos ir além, encontrando em nossa organização coletiva um canal para ampliarmos nossas vozes e furarmos as bolhas.

Foto capa: Mídia Ninja

Gustavo Chagas

A Bolívia e a Organização dos Governos Americanos

Gustavo Chagas
14 de novembro de 2019

A semana boliviana foi amplamente discutida pela imprensa brasileira. Depois de muita indecisão de alguns, parece que, finalmente, chegou-se à conclusão de que houve golpe militar contra Evo Morales. O singelo pedido do comandante das Forças Armadas para que o presidente renunciasse foi atendido mesmo depois de ele aceitar a realização de novas eleições diante das evidências de fraude no pleito anterior.

Evo Morales ficou acuado, não só politicamente. Teve de deixar o país se esgueirando entre espaços aéreos fechados até o México

A violência já vista nas ruas ganhou níveis cada vez maiores. Prisões injustificadas, ataques incendiários, agressões em praça pública marcaram o movimento que tinha como pretexto restabelecer a democracia da Bolívia. Um estranho grupo que mistura o extremismo militar com o fundamentalismo religioso (Rá!) tomou conta do poder. Uma senadora, Jeanine Áñez, reclamou para si a vaga da presidência e vestiu a faixa amparada pela Bíblia, pelos homens de farda e pela falta de quórum.

É bem verdade que Evo atropelou a regra do jogo ao forçar suas reeleições com manobras sobre manobras. O correto seria escolher um sucessor e deixar a decisão final nas mãos do povo. Mas não deixa de ser óbvio que não é (ou não deveria ser) a força militar a decidir como ou quem vai liderar a transição, da forma como está acontecendo, e pior: sem a certeza de que vai haver transição.

Tendo claro o que houve na Bolívia, vamos para fora dela

A América do Sul assumiu uma postura interessante nas relações exteriores. O tão temido aparelhamento ideológico de outrora com outrem agora dá as cartas da diplomacia no continente sem constrangimentos. Para substituir a comunista Unasul, tomada pelo Foro de São Paulo, inventou-se o Prosul, de Macri, Piñera, Bolsonaro e companhia. A nova organização, de tendência liberal-conservadora (com toques de olavismo), iria reunir os interesses dos países do continente. Mas até quando? Macri já está fazendo as malas da Casa Rosada e Piñera não sabe se termina sua estadia em La Moneda.

A negociação e a conciliação ficam em segundo plano, enquanto lideranças aproveitam as crises alheias para obter ganho político para a ideologia. Jeanine Áñez, a Guaidó boliviana, já foi reconhecida como presidente pelo Brasil de Bolsonaro. Certamente não será reconhecida pela Argentina de Fernández. Como fica?

As opiniões de governo assumiram o lugar de posições de estado. A Organização dos Estados Americanos, que deveria ser a voz da ponderação, cedeu aos gritos dos mais fortes, dizendo que não houve golpe senão os de Morales. Na reunião do grupo, Estados Unidos e Brasil apoiaram o resultado do golpe. Chile e Peru, comandados por líderes de centro-direita, ficaram constrangidos em endossar a clareza bolso-trumpiana. Já países com presidentes de esquerda ficaram a ver navios na Bolívia que não tem mar. Uruguai e México criticaram a inaceitável pressão militar.

Sem estados e movida pelos interesses de governos de plantão, a OEA poderia trocar de nome para OGA. A Organização dos Governos Americanos vige até segunda ordem (garantida, sempre que necessário, com a força dos quartéis).

Samir Oliveira

Abrindo as porteiras da diversidade no tradicionalismo gaúcho

Samir Oliveira
15 de julho de 2019

Fui criado no campo. Tinha tudo para me tornar um tradicionalista de primeira linha. Cresci envolvido em todas as atividades do universo rural: acordar cedo para tirar leite de vaca, encilhar cavalo, brincar de laçar vaca parada, colher ovos no galinheiro, dar lavagem aos porcos e tocar o gado para a mangueira. Na infância, era comum andar pilchado e comparecer aos rodeios e às invernadas. 

Aquele era o meu mundo. Sempre foi. Eu me sentia bem. Gostava do contato com a natureza, de pescar no açude, de tomar banho de valo, de conviver cercado de animais por todos os lados. Ainda hoje lembro de tudo e penso: “Como era bom”.

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E por que mesmo deixou de ser?
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À medida em que eu ia crescendo, ficava cada vez mais evidente que eu não me encaixava naquele mundo. Meu comportamento se distanciava à galope da rígida masculinidade esperada de um menino do campo no interior do Rio Grande do Sul.

A notícia da homenagem à prenda transexual Gabriella Meindrar de Souza no CTG Cancela da Tradição me encheu de esperança. Esperança de que muitos meninos e meninas por este Rio Grande afora consigam conciliar o estilo de vida rural – se for o que desejarem – com sua sexualidade ou identidade de gênero. Que possam viver em um ambiente seguro e acolhedor. Afinal existem muitos LGBTs no campo, na zona rural e nas fazendas, e o avanço civilizatório é imparável. Em algum momento todos os armários serão rompidos, mesmo aqueles localizados nos rincões mais distantes do país.

Foto: Julian Kettermann (Divulgação)

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Tradicionalismo e discriminação

A história de discriminação no tradicionalismo gaúcho não é recente, mas felizmente vem mudando. Em 2002 o folclórico Capitão Gay, candidato a deputado pelo antigo PPB, atual PP, provocava a gauderiada ao se apresentar como um tradicionalista e militante pelos direitos dos homossexuais. Chegou a ser recebido a pedradas no Acampamento Farroupilha e surrado com relhos no desfile de 20 de setembro daquele ano.

Em 2008 o tradicionalista Ademir Canabarro publicou um artigo denunciando o “avanço assustador do homossexualismo” no MTG. Sem meias palavras, saiu batendo as esporas, horrorizado com peões que dançam nos CTGs “disputando com a prenda doçura e meiguice”, a tal ponto que parecem “duas prendas dançando”. Ecoando o sentimento da parcela mais atrasada do tradicionalismo, cravou que CTG não é lugar para “cultura homossexual”.

O presidente do MTG na época, Oscar Grehs, lamentavelmente assinou embaixo do artigo, alertando para o perigo da ameaça gay à cultura gaúcha, que estaria determinada a “transformar os CTGs num mundo cor-de-rosa”. Desesperado, chegou a dizer: “Que Deus me tire a vida se o MTG virar isso”.

Quem pensa que essas bravatas são coisas do passado deveria dar uma olhada mais atenta ao presente. Em 2014 o CTG Sentinelas do Planalto, em Santana do Livramento, sofreu um atentado após o anúncio de que lá seria realizado um casamento coletivo que contaria, entre tantos casais, com a celebração da união entre duas mulheres. O local foi incendiado e o casamento acabou sendo transferido ao Fórum da cidade.

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Por isso é tão importante que Gabriella tenha sido homenageada como a prenda que sempre foi
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Suas palavras traduzem bem o significado deste reconhecimento: “Sou e sempre serei aquela tradicionalista que ama nosso estado! Que este momento não seja tratado como afronta ao movimento, mas um momento de transformações, desconstruções, para de um movimento mais fraterno, humano e igualitário”, disse, repetindo as palavras estampadas na bandeira do Rio Grande do Sul.

Pessoalmente, não sou um grande admirador do tradicionalismo. Tenho severas críticas ao movimento e não compactuo com a romantização de uma suposta tradição que se instituiu a ferro, fogo, escravização e misoginia em nosso Estado. Mas vou defender até o fim o direito que a população LGBT tem de estar onde ela quiser, inclusive no tradicionalismo gaúcho, se assim desejar.

Peões e prendas LGBTs ajudam a construir este movimento, algo reconhecido pela atual diretoria. É muito positivo que o presidente do MTG, Nairo Callegaro, não repita os erros de seus antecessores e se coloque como alguém disposto a tornar o tradicionalismo um ambiente mais acolhedor, sem compromisso com o preconceito.

A homenagem à Gabriella não escapou à insanidade destes tempos em que o ódio saiu do armário. Brutamontes inconformados chegaram a ameaçar colocar fogo na sede do MTG, repetindo o atentado ao CTG em Santana do Livramento.

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Pois eu digo que não haverá brasa o suficiente para reduzir a pó os avanços civilizatórios
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Que Gabriella e muitos outros abram as porteiras da diversidade no tradicionalismo e percebam que suas vozes importam para milhares de crianças no interior do Rio Grande do Sul que, assim como eu, um dia sentiram que jamais poderiam conciliar quem são com o ambiente em que vivem.

Ps: Já que estamos falando sobre a situação da população LGBT no meio rural, não posso deixar de recomendar aqui a música perfeita do Gabeu: Amor Rural. Orgulho imenso dessa nova geração de artistas que está desbravando fronteiras e quebrando paradigmas. Gabeu tomou para si a missão de ajudar a construir o pocnejo: uma espécie de sertanejo voltado ao público gay. E está indo muito bem!