Igor Natusch

Mesmo se não concorrer, Lula pode decidir a eleição – e ele sabe disso

Igor Natusch
13 de dezembro de 2017
07/12/2017- Rio de janeiro- Visita do ex-presidente Lula em Magé, no Rio de janeiro Foto: Ricardo Stuckert

Há algum tempo vem sendo dito em diferentes cantos da internet – por aqui, inclusive – que a ideia que move a pré-campanha de Lula à presidência nem é tanto viabilizar de fato a candidatura, mas inviabilizar ao máximo decisões judiciais que o tornem inelegível e, em última consequência, o coloquem na prisão. A situação se torna mais sólida na medida em que o TRF-4, com agilidade de todo incomum, já tem marcada a data do julgamento do barbudo: em 24 de janeiro do ano que vem a coisa começa, para o bem e para o mal, e o Brasil que se vire com um ano político já começando em tal intensidade.

Mesmo que o ex-presidente seja condenado em segunda instância (um cenário, no mínimo, bastante plausível), há considerável espaço para movimentos jurídicos de caráter protelatório, que podem arrastar a situação e permitir a candidatura. Mas penso eu que nem é esse o grande debate no momento.

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A questão é: Lula está mesmo determinado a concorrer à presidência? Ou trabalha com outros cenários, cogitando – e talvez até mesmo construindo – uma situação favorável a outro candidato que não ele próprio?

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Quem observa com atenção os recentes discursos do líder petista percebe que ele constrói duas narrativas paralelas. Em primeiro plano, coloca a si mesmo como um perseguido pela Justiça e por setores retrógrados do poder político nacional, um injustiçado que pode ir à cadeia sem que exista qualquer prova dos crimes que supostamente teria cometido. A outra esfera, menos óbvia, talvez, é talvez ainda mais importante: a de resgate de um passado recente pretensamente idílico, de negação das reformas promovidas pela gestão de Michel Temer ao mesmo tempo que acena para possíveis gestos de conciliação – algo que, vale dizer, ele está longe de ser a pessoa mais capacitada, neste momento, para propor.

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A primeira dimensão não é uma plataforma política, por assim dizer. A segunda é. A primeira é, por óbvio, indissociável de Lula e de sua imagem; a segunda, não. Ao contrário: talvez seja ainda mais palpável na medida em que o barbudo não esteja no centro do cenário

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Condenar Lula em segunda instância já é uma batata quente daquelas, com consequências políticas e sociais difíceis de prever. Há quem pense que a letargia da população facilita um cenário onde Lula vai pro xilindró; pessoalmente, não acredito muito nisso. Prender o ex-presidente é contrariar diretamente quase 40% da população que, segundo as pesquisas, manifesta interesse em elegê-lo novamente. Quem acha que isso pode ser feito sem que haja barulho e reação ou está na torcida, ou está sendo ingênuo.

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Nesse sentido, é possível inclusive dizer que Lula já teve sucesso – ou alguém acha mesmo que, condenado, ele viraria um proscrito, seria rejeitado pelas massas que hoje o veneram, deixaria de ter qualquer importância nos rumos políticos do Brasil?

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Ao contrário: talvez um veredito desfavorável o fortaleça ainda mais.

É difícil dizer, nesse momento, quem seria o plano B de Lula e do PT. Talvez uma figura mais jovem e menos desgastada da sigla, como Fernando Haddad? Quem sabe um outro candidato qualquer, sem chance de vitória, mas como um aceno a outras figuras de centro-esquerda, como Ciro Gomes ou até mesmo Marina Silva, para uma aliança no segundo turno? São cenários possíveis – e seguem perfeitamente possíveis, dentro do posicionamento que Lula vem adotando até aqui.

Longe da “radicalização” pintada pelos que desejam colocá-lo como o extremo oposto de um Bolsonaro, Lula usa um discurso não só palatável para diferentes setores de oposição, mas que também pode colar com quem está cansado de guerra e pode ver como injustiça uma eventual nova condenação. E que possivelmente concorda com a ideia de que Dilma Rousseff foi injustiçada, outra narrativa bem construída pelo ângulo petista da discussão política. Há força e viabilidade eleitoral para um candidato de Lula, seja o próprio Lula ou não. E isso faz com que o julgamento no TRF-4, mesmo importantíssimo, não seja tão definitivo politicamente quanto parece.

Foto: Ricardo Stuckert

Yo No Soy de Aquí

O dilema de imigrar

Alvaro Andrade
12 de outubro de 2017

Imigrar não significa ignorar o que acontece no Brasil. Independente da distância, é impossível repercutir a espiral de retrocessos vividos desde o golpe de 2016. Ao mesmo tempo, sucita um dilema permanente, uma espécie de culpa de alguém que optou por um confortável autoexílio enquanto amigos e colegas tentam formar uma resistência aos constantes ataques a direitos que jamais imaginei que seriam retirados. Nasci em 85, sou filho de militante política criado no berço da democracia e da liberdade.

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E eis me aqui vivendo em outro país em busca de liberdades e oportunidades que vejo recrudescerem todo dia na terra onde nasci

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É uma angústia, uma sensação de impotência. Uma dúvida sobre minha dignidade em dizer alguma coisa sobre minha terra a partir do conforto da tela do celular enquanto a luta é travada no dia-dia. Mas também sei que no Brasil, tomar posição nesta disputa reduziu meu círculo social, que aliado à escalada da violência foram determinantes para trocar de endereço.

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Eu já não me sentia livre para me expressar, não me sentia mais confortável para circular, não via sentido no que estava fazendo

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Já faz quase meio ano e ainda fico dividido entre minha liberdade de escolher um local onde tenho tranquilidade para planejar a vida e o sentimento de egoísmo por deixar para trás os problemas de onde nasci. O futuro me parece cada vez mais tenebroso do outro lado da fronteira e não sei bem quando volto, até por que sinto ainda não consegui partir completamente.

Igor Natusch

As fake news apenas dizem o que você quer ouvir – e lucram bastante com isso

Igor Natusch
11 de outubro de 2017

A completa degradação do debate político no Brasil tem muitas camadas, como uma cebola que apodrece de fora para dentro e não o contrário. Uma delas, com certeza, é o descrédito dos atuais veículos de imprensa.

Semana passada comentei sobre o editorial do Estadão defendendo Michel Temer como talvez uma mãe amorosa não defendesse um filho, e tivemos recentemente casos de crítica que beiram o absurdo, como um protesto chamando a Rede Globo de esquerdista – algo que, convenhamos, só alguém completamente desligado dos últimos 30 ou 40 anos de noticiário pode considerar minimamente crível. Por outro lado, sites de “notícias” que publicam qualquer besteira como se fosse um fato “ignorado” pela mídia hegemônica proliferam como mato, direcionados a leitores de todos os espectros políticos – que, é claro, vão até eles de forma ávida, em busca da “verdade” que o jornalão e a emissora de tevê estão escondendo da população.

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As duas situações se alimentam da mesma tendência (uma das tantas que já existiam meio que desde sempre, mas que as redes sociais aparentemente ajudaram a multiplicar): a de enxergar a notícia como confirmação de ideias já existentes, ao invés de el

emento para a formação de opinião

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O jornal de grande circulação mente e/ou é desprezível apenas quando noticia algo do meu desagrado – afinal, se a notícia é prejudicial ao “outro lado”, lá vou eu compartilhá-la sem nenhum constrangimento. E tanto faz a credibilidade do “veículo” que sigo e/ou reproduzo, desde que a manchete reflita a suposta convicção que já carrego dentro de mim. Ou será possível acreditar que ninguém jamais percebe que está difundindo informações falsas ou, pelo menos, pouquíssimo confiáveis? Percebem sim, e muitas vezes – mas seguem dando likes e RTs, seguem postando em seus perfis, seguem compartilhando com os contatos do Whatsapp. Não importa se é real: o importante é que diga a coisa que desejamos ler ou ouvir.

O que nos leva à curiosíssima notícia, produzida pela Vice, dando conta de que o site JornaLivre (que é, basicamente, um espaço pseudo-jornalístico onde o MBL vende suas ideias e ataca seus desafetos) usa um script que lucra criptomoedas às custas dos leitores, usando o processador de máquinas alheias para tal. Todos os que visitavam o domínio acabavam sendo vampirizados, seja pelo MBL ou por pessoas nas sombras que sequestraram o site para tal fim. É um caso ilustrativo, pois leva às raias da caricatura algo que, para quem parar um pouco para pensar, já seria bem claro: esses sites não mentem e distorcem por prazer ou idealismo, mas para obtenção de poder – político, sim, mas acima de tudo econômico.

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Permita-me repetir: esse pessoal está se lixando para o que você acredita ou não

Eles querem se aproveitar de você para se dar bem

E para ganhar grana. Muita grana

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Como todas as coisas, a ignorância também é um negócio. E alimentar essa ignorância com uma ração diária de pseudo-fatos tornou-se um nicho bastante lucrativo. Para quem usa Google Ads e lucra horrores com acessos, para quem usa acessos para acumular bitcoins – e para quem, desvinculado de escrúpulos, vai usar e muito esse recurso para tentar se dar bem em 2018. O MBL, por exemplo, faz altas articulações com olhos voltados à eleição presidencial do ano que vem – e o JornaLivre, umbilicalmente ligado ao MBL, tem uma função um tanto óbvia nesse panorama.

O mais curioso é que esse pessoal traz, no próprio caráter de seu conteúdo, o antídoto para a perda de leitores. Afinal, as mais de 12 milhões de pessoas difundindo notícias falsas estão bem satisfeitas com o conteúdo que repassam, e vai devolver o rótulo de “fake news” a qualquer veículo que fale outra coisa, seja ele sério ou não. Os que criticam o JornaLivre são desonestos, estão contaminados pelo esquerdismo, e são eles que produz material falso para atacar quem revela a verdade pelo outro lado – é isso que o JornaLivre possivelmente diria diante de uma acusação, e é o que a multidão de pessoas que compartilha seu conteúdo vai aceitar, em questão de segundos, como a explicação mais aceitável.

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Como todas as coisas, a ignorância também é um acordo. E só encontrando um mecanismo que encoraje as pessoas a romper esse acordo em nome de um conhecimento mais pleno será possível a nós – os que acreditam no jornalismo e os que acreditam na política – combater essa tendência cada vez mais assustadora

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Imagem: Reprodução da página inicial do JornaLivre, mostrando a presença do script mineirador de criptomoedas. Publicado originalmente pelo site da Vice. 

Igor Natusch

O estranho caso do editorial que ama mais Temer do que a realidade

Igor Natusch
4 de outubro de 2017
Brasília - Presidente Michel Temer durante pronunciamento sobre a liberação do PIS-Pasep, no Palácio do Planalto (Valter Campanato/Agência Brasil)

Um dos principais memes da semana acabou tendo origem inesperada: o Estado de São Paulo, um dos mais tradicionais jornais do País. Diante de pesquisas que colocam Temer como míseros 5% de aprovação (o mais baixo índice de um presidente desde a redemocratização), um editorial do citado veículo partiu para uma defesa apaixonada de dar inveja ao casal mais inseparável, atribuindo os índices ora a pesquisas que “não encontram correspondência na realidade”, ora à desinformação que “campeia nestes tempos de fake news”. Contraditórias em si mesmas (afinal, a pesquisa identifica ou não a opinião supostamente desinformada das pessoas?), as duas alegações estão na mesma frase do citado editorial – sinal inequívoco de que o objetivo (proteger o presidente) chegou bem antes dos argumentos no texto em questão.

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Hoje em dia, afirmar que Michel Temer é impopular é quase elogiá-lo: ele é, na verdade, execrado pela quase totalidade da população brasileira

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Já tivemos inclusive pesquisa onde, pela margem de erro, sua popularidade poderia ser abaixo de zero entre jovens até 24 anos; a mais recente, do Datafolha, é quase positiva em comparação. Valendo lembrar que, quando Dilma Rousseff bateu nos 7%, o próprio Michel Temer disse a empresários que era “difícil” para qualquer presidente concluir o mandato em semelhantes condições.

De fato, difícil é. O próprio Temer, praticamente escorraçado pela população que governa, ainda tem uma segunda denúncia contra si, que exigirá ainda mais articulação (troca de favores?) no Congresso para não avançar – a primeira, como já sabemos, foi uma farra daquelas. Ainda assim, não é nada impossível, tanto que os prognósticos são, no momento, mais favoráveis à permanência de Temer no trono do que à sua destituição. E a impopularidade, longe de travar suas ações, não impediu que medidas notoriamente impopulares avançassem serelepes pelo Congresso, prontas para dificultar ainda mais a vida de todos nós.

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Não precisa ser o sábio da montanha para entender que a voz das ruas, mesmo que estivesse pulsando de indignação, não seria suficiente para liquidar o governo Temer – da mesma forma que não é necessário um doutorado em ciência política para concluir que não foram as ruas que apertaram o botão que ejetou Dilma da cadeira

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Tanto na época quanto agora, são outros elementos que atuam no sentido de forçar ou inviabilizar uma decisão – e boa parte deles são compreensíveis ao ler o cômico editorial do Estadão, que faz parecer que estamos diante de um estadista revolucionário, não de um governante soterrado em denúncias graves e que precisa abrir a guaiaca para garantir que não será processado.

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Há um sentimento de wishful thinking que perpassa todas as frases do citado editorial. Mais do que demonstrar a suposta injustiça dos índices, o Estadão parece ansioso para legitimar os próprios dados que utiliza, como se fosse preciso tornar os próprios argumentos convincentes antes de elencá-los

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Ou seja, para ser convencido pelo texto, é preciso acreditar que os dados econômicos fornecidos pelo próprio governo são verdades gravadas em pedra, que os escândalos de corrupção são menos graves e não guardam relação direta com os dos governos petistas (ignorando, claro, que Michel Temer foi duas vezes vice de Dilma Rousseff), que a leitura de que o país é contra o presidente, mesmo alicerçada em numerosas pesquisas, é “simplista” e um “óbvio despautério” e por aí vai. Mais que apreço à lógica e à leitura da realidade, é preciso ter fé, acreditar que o governo não fracassa, que a economia toma fôlego para disparar, que o Brasil não mergulha em um abismo de ilegitimidade política poucas vezes vislumbrado em sua história.

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Para um pequeno núcleo (produtores e exportadores de matéria-prima bruta, sistema financeiro, as multinacionais favorecidas com generosas isenções e perdões de dívida) o governo não fracassa. Mas também não dá para dizer que triunfa amplamente, já que parte fundamental da tarefa era trazer alguma estabilidade ao País, e ninguém poderá dizer que isso está acontecendo

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E a ojeriza a Temer é um sinal de que o povo não está na rua, mas que essa ausência não reflete de forma alguma em aprovação ou mesmo indiferença útil. Se não está tudo bem (e parece claro que não está), é preciso gritar aos ventos que está tudo bem, que estamos na trilha certa, e nada disso precisa ser verdade: basta que seja gritado mais alto que o resto, que seja capaz de deixar a verdade inconveniente um pouco menos audível, visível e incômoda.

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Quem acha que o editorial do Estadão está tentando convencer o conjunto da sociedade está, bem provavelmente, errando o foco

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Talvez caibam nos dedos das mãos os leitores que efetivamente interessam ao donos do jornal, claramente engajado que estão em vender a leitura mais interessante ao governo que ora ocupa o trono em Brasília. Não sou eu ou você que precisamos acreditar que as pesquisas, antes tão importantes para derrubar Dilma, agora não valem nada: são os que estão gostando de alguns aspectos do governo, e que precisam continuar gostando, para que os patos não voltem às avenidas e as mesmas pesquisas, por um passe de mágica, voltem a ser importantíssimas.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Igor Natusch

Marchezan segue a trilha do conflito, e abre caminho para coisa pior

Igor Natusch
2 de agosto de 2017
Foto: Luciano Lanes / PMPA

Entrando em seu oitavo mês de mandato, Nelson Marchezan Jr. tem deixado bem clara a disposição de seguir uma trilha de conflito, com poucas margens para conciliação. E o faz de uma forma não necessariamente truculenta, jogando com o imaginário de seu eleitorado cativo e consolidando, ao invés de enfraquecer, a imagem de pessoa dinâmica e dedicada a soluções, sem concessões e sem desperdício de tempo. Não é o único a adotar tal fórmula, nem o mais destacado, muito menos um inovador – mas seu exemplo é útil para entender alguns aspectos (bastante preocupantes, creio eu) da política atual.

Na última semana, a prefeitura de Porto Alegre lançou uma série de projetos e ideias que mudam radicalmente aspectos importantes da relação da população com a cidade.

Eliminar a gratuidade da segunda passagem de ônibus, propor que idosos e estudantes paguem mais do que hoje pagam para se deslocar, legalizar a deplorável prática do parcelamento de salários, aumentar os valores do IPTU, entregar à iniciativa privada serviços de água e esgoto – tudo isso proposto com pouca ou nenhuma discussão prévia com a sociedade.

Algumas dessas mudanças contradizem declarações dos tempos de campanha, outras sequer haviam sido ventiladas antes de virarem projetos de lei. E tudo que as sustenta é um slogan simplificador, muito mais vago do que parece: a afirmação de que estamos em grave crise financeira e é preciso agir rápido para que as coisas não fiquem ainda piores. É uma agenda que nunca foi exposta às claras, nem mesmo aos vereadores da base aliada, que periga virar lei sem que se conheça suas implicações e sem que haja certeza que a cidade concorda com ela. Ilegal não é, por certo, mas não é nada transparente.

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Diante de críticas que, certas ou erradas, nada têm de desonestas ou ilegítimas, a resposta de Marchezan e de sua gestão tem sido fomentar um confronto permanente, ainda que edulcorado com toques de populismo de internet

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Ao fazer vídeos dançando e editar decretos fictícios que, em meio ao pretenso bom humor, trazem críticas pouco veladas aos oponentes políticos, o prefeito opta por angariar simpatia ao invés de convencer no embate de ideias. Não se dirige à população, mas sim ao grupo que o elegeu, reforçando os elementos de aproximação entre eles – em especial os que remetem à antipatia contra os inimigos de esquerda.

Todo questionamento à atual gestão é imediatamente arremessado aos pecados de gestões anteriores e/ou de inimigos comuns, quando não atribuído diretamente a uma desonestidade, política ou intelectual, de quem traz as questões. Em certo sentido, a campanha eleitoral não acaba nunca – e se a necessidade de escolher um lado está sempre presente, anula-se a ideia de governar para todos, já que a oposição nunca abandona o cenário político.

Repito: Marchezan não é o criador dessas coisas, tampouco um inovador nesse sentido. É, para o bem e para o mal, só mais um. Ou é muito diferente o que João Dória tem feito sistematicamente em São Paulo, parecendo mais preocupado com Lula e o PT do que com a cidade que governa? É muito diferente do que José Ivo Sartori faz no Rio Grande do Sul, propondo extinção de fundações sem jamais explicar o benefício que tal medida traria e tentando arrancar da população o direito de decidir, em plebiscito, se topa ou não vender suas principais estatais? Diferencia-se tanto assim das medidas de Michel Temer na esfera federal, promovendo a toque de caixa e sem debate prévio drásticas mudanças na legislação sob a alegação de que é preciso “modernizar” para “retomar o desenvolvimento”?

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No coração da dita democracia brasileira crescem práticas que são pouquíssimo democráticas. E elas se multiplicam na medida em que há uma falência de princípios importantes para a democracia: a transparência, o debate, a coletividade

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Na medida em que o processo eleitoral deixa de ser uma escolha coletiva e passa a ser uma mera legitimação de grupo, andamos rumo à exceção. E dizer isso não é dizer que Marchezan, ou Dória, ou Temer (ou mesmo Lula, por exemplo, que andou por trilhas semelhantes em vários momentos e parece seduzido pela ideia de fazê-lo uma vez mais) são fascistas ou autocratas. Eles apenas estão, desejosos ou não, conscientemente ou não, pavimentando o terreno. Entenderam, de forma consciente ou instintiva, o caldo de cisões do nosso tempo, e o usam a favor de suas agendas. Se não temos certeza de como agir diante disso tudo, que ao menos não nos falte o alerta: isso pode nos criar problemas bem maiores do que um prefeito querendo governar sozinho.

Foto: Luciano Lanes / PMPA

Igor Natusch

Fala de Michel Temer não é sobre Deus, mas sobre quem pode mantê-lo vivo

Igor Natusch
28 de junho de 2017
Brasília - O presidente Michel Temer fez um pronunciamento no qual contestou a denúncia apresentada ontem (26) pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Hoje, a política brasileira é um atoleiro, onde cada passo nos deixa mais cobertos de constrangimento e, por mais que andemos, parece impossível avançar. A cada minuto extra sendo governados por Michel Temer, um presidente acusado pelo Procurador-Geral da República de crime comum, cometido no exercício do mandato, mais fundo pisamos no barro pútrido, mais desastrosa se torna nossa jornada pela infâmia política.

E essa inundação parece ter alcançado um nível especialmente alto com o surreal pronunciamento de Temer, concedido na tarde de terça-feira, 27 de junho de 2017. Uma fala assustadora em vários níveis, que vão muito além do insólito “não sei como Deus me colocou aqui” – uma frase tão cara de pau que já virou meme, com toda justiça.

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Antes de tudo, um desafio de compreensão se impõe. A quem, no fim das contas, Michel Temer desejava falar?

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Ao povo brasileiro, junto ao qual goza de uma impopularidade quase sem paralelos no Brasil democrático, certamente que não. Afinal, em nenhum momento dirigiu ao povo palavras de tranquilidade, esperança ou convicção – aliás, quase poderíamos dizer que não dirigiu ao povo palavra alguma. Ao alto empresariado, talvez? Mas de que jeito, se mencionou as tão trombeteadas reformas apenas de passagem, se não trouxe nenhum indicativo de melhora econômica, sequer um dividendo positivo de sua tragicômica viagem para Rússia e Noruega foi capaz de enumerar?

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Pretendendo vender a imagem de estadista ultrajado por acusações falsas, Temer só fez desnudar sua incapacidade de liderar um Estado. Ou existe qualquer coisa de líder em alguém que, diante da angústia de uma nação, dedica toda a sua fala a, mal e porcamente, defender a si mesmo?

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Nada disso: o discurso de Temer só faz sentido quando se olha para o Congresso Nacional. É a ele, ou ao que resta de apoio dentro dele, que Temer dirigiu suas palavras de frágil defesa, ao mesmo tempo que posicionou-se de forma clara em uma guerra contra o Ministério Público e a Polícia Federal. “Querem parar o país”, disse o presidente, e ao dizer tal coisa falava não ao detentores do poder econômico, mas aos deputados e senadores que podem salvá-lo da investigação no Supremo. Estou com vocês, é isso que Temer quis dizer, o tempo todo, com tal ânsia que a mal-disfarçada mensagem saltava o tempo todo para fora das entrelinhas. Estou com vocês, meu inimigo é o mesmo, estejam comigo e juntos lutemos até o fim. Querem parar o país, ora pois.

Só assim faz sentido a ausência de justificativas ou perspectivas, as ilações que comete enquanto diz que não as cometeria, os torpes comentários sobre Rodrigo Janot, o procurador Marcelo Miller e a JBS. Não explica o conteúdo de sua conversa com Joesley Batista, não justifica ter sido flagrado em mentira sobre a viagem de jatinho com um “bandido notório”, não faz mais que tergiversar sobre a gravação que, segundo perícia da PF, não foi adulterada como alega. Não entra nesses méritos simplesmente porque não é essa sua estratégia.

A luta é outra: parar de derreter no Congresso, onde até companheiros de sigla (e não estou falando de Renan Calheiros) não se constrangem mais em avacalhá-lo publicamente.

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Sem a maioria na Câmara e no Senado, Temer não tem nada – e fala grosso para tentar deter a debandada, demonstrar que está pronto para brigar por si e, por tabela, em nome deles

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Chama uma claque um tanto patética para aplaudi-lo (com direito a ridículos gritos de “bravo!” por parte de Darcísio Perondi) e elogia o “quórum suficiente para uma sessão na Câmara”, agradecendo pelo “apoio extremamente espontâneo”. É falso e patético, mas não é desprovido de função.

O cadáver político que é Michel Temer vem apodrecendo em público desde a revelação devastadora da gravação feita por Joesley. Já são 40 dias em que sua presença é um misto de infâmia, desaforo e constrangimento. A disposição, evidente quando diz que a denúncia é “uma ficção” calcada em “provas armadas”, é insistir em submeter o país a uma presença que quase ninguém tolera mais, sem brandir sequer as tais reformas estruturantes como desculpa. A briga é para salvar a pele, e a instituições que funcionem no raio que as parta. Curioso perceber que, em meio a tanta dissimulação e delírio, a fala de Michel Temer não deixa de ter uma distorcida forma de sinceridade.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Igor Natusch

O governo Michel Temer é um cadáver que não apodrece

Igor Natusch
31 de maio de 2017
er Campanato/Agência Brasil

O governo Michel Temer tenta brincar de Lázaro. Esteve imensamente morto, logo depois da devastadora gravação de sua conversa com Joesley Batista, e continua bastante morto desde então – afinal, não conseguiu sair da defensiva, passa os seus dias a rebater acusações e demonstra fragilidade absoluta no trato com o Congresso, sendo incapaz de evitar que os agregados discutam a partilha do espólio, mesmo antes do capitão dar o grito de abandonar o navio. O país está paralisado, a economia definha, as instituições funcionam com a harmonia e a fluidez de um moedor de carne enferrujado.

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Ainda assim, está se dando com o cadavérico governo Temer um estranho fenômeno: ao mesmo tempo que decompõe-se de forma visível, suas feições ganham uma cor mais viva, sua aparência dá ligeiros sinais de melhora, a carcaça esquenta ao invés de esfriar. Enquanto morre, dá sinais de que pode reviver. Como explicar tal coisa?

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Na verdade, quem enxerga esses tempos de incerteza em termos de Michel Temer está visualizando apenas uma parcela do todo. Ninguém quer realmente que Temer sobreviva politicamente, possivelmente nem ele próprio: a batalha é para manter vivo um grupo político, que se alastra por alguns partidos, e que chegou a poder menos por estratégia e muito mais por senso de oportunidade. Ter o poder é ter dívidas caras a pagar e pouca margem para perdões ou parcelamentos. Basta olhar para Lula e Dilma para entender o peso dessa afirmação.

Michel Temer e sua entourage chegaram ao Planalto assumindo uma tarefa clara: estabilizar a economia e entregar as reformas encomendadas não apenas pelo sistema financeiro, mas pelo alto empresariado e pelos barões do agronegócio, entre outros. Atingir essa meta é mais do que uma prerrogativa do atual governo: é um dever inalienável para qualquer um desse grupo que deseje ter futuro na política.

Como se vê, a dificuldade para cumprir a missão é cada vez maior. E os recentes acontecimentos não ajudaram muito um presidente que, antes dos áudios, já tinha uma popularidade ridícula e necessitava rastejar diante de deputados para aprovar, mesmo nas primeiras votações, suas polêmicas iniciativas.

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Em meio a essas duas urgências – a de salvar o projeto delineado e também o próprio pescoço – a conta que Michel Temer e seus aliados fiéis fazem é em termos de calendário. Cada dia que passa é um pequeno respiro, um passo de bebê para fora da área de tempestade.

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Por isso já é possível ver estratégias para arrastar o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE por, pelo menos, 120 dias. Por isso o esforço de garantir que Osmar Serraglio não volte ao Congresso, mantendo o suplente (e potencial delator) Rocha Loures com mandato em vigor. Por isso é reforçada, em todas as oportunidades disponíveis e até mesmo em algumas criadas especialmente para esse fim, que a agenda de reformas continua, que o presidente está firme, que o país não pode parar. Por isso Rodrigo Maia, um dos integrantes dessa construção, já deu sinais claros de que arquivará ou sentará indefinidamente em todas as propostas de impeachment que chegarem em seu caminho.

Na panela de pressão que cozinha o ex-vice, a esperança de seus parceiros é que o gás do fogão acabe antes que a carne esteja no ponto para servir. É uma engenharia difícil, mas não inviável – ainda mais em um cenário onde vários setores tentam diminuir a intensidade do fogo, e os grupos capazes de colocar mais chamas em ação ainda buscam a melhor maneira de acender os fósforos. A briga mais importante está ali, no entorno do fogão. É para lá que me parece mais conveniente olhar.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil