Reportagens Especiais

Epidemia de empobrecimento . Fim do auxílio emergencial deve recolocar milhões em situação de pobreza

Geórgia Santos
31 de dezembro de 2020

Por Flávia Cunha, Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol

“Me diz uma coisa: o que é que se perdeu não comendo manteiga, isso, que é mais um pirão de batatas do que manteiga? Ela não responde. — E o gelo?… pra que é que se precisava de gelo?… Faz-se uma pausa. Ele continua: — Gelo… manteiga… Quanta bobice inútil e dispendiosa… — Tu queres comparar o gelo e a manteiga com o leite? — Por que não? — Com o leite?! Ele desvia a cara de novo. — Não digo com o leite — acrescenta depois — mas há muito esbanjamento. — Aponta o esbanjamento. — Olha, Adelaide (ele se coloca decisivo na frente dela), tu queres que eu te diga? Outros na nossa situação já teriam suspendido o leite mesmo. Ela começa a choramingar: — Pobre do meu filho… — O nosso filho não haveria de morrer por tão pouco. Eu não morri, e muita vez só o que tinha pra tomar era água quente com açúcar. — Mas, Naziazeno… (A mulher ergue-lhe uma cara branca, redonda, de criança grande chorosa)… tu não vês que uma criança não pode passar sem leite?”

Em “Os Ratos”, Dyonélio Machado apresenta o protagonista Naziazeno durante o que o autor chama de “pega” com o leiteiro, que exige pagamento pelo leite de todo dia. Naziazeno contemporiza e tenta se convencer de que leite não é importante, de que não é necessário, mas ele sabe que não é assim que a banda toca. Ele precisa dar um jeito. A situação de Naziazeno em 1935 se repete, hoje, com milhões de brasileiros que foram beneficiados com o programa de auxílio emergencial criado pelo governo federal para ajudar as famílias mais vulneráveis durante a pandemia do novo coronavírus, que chegou ao Brasil em março.

De abril a dezembro, foram repassados cerca de R$ 322 bilhões em parcelas iniciais de R$ 600 e pagamentos “extras” de R$300. Estima-se que 70 milhões de pessoas receberam pelo menos um pagamento..

“Era um dinheirinho que dava para fazer algumas coisinhas, né? Não muito, mas ajudava.” A diarista Denise Basílio da Costa, de 30 anos, foi aprovada para receber o auxílio emergencial no início da pandemia. O valor mensal era destinado principalmente à compra de itens de alimentação para os filhos Vitória, de 10 anos, Vitor, 6 anos, e Lucas, de 4. Ela o marido, Cristiano, de 24 anos, ainda contaram com eventuais doações de cestas básicas ao longo dos últimos meses. “Meu marido faz bicos, como limpeza de pátios. A gente vai se virando, mas não sei como vai ser agora”, lamenta. Ela reconhece que não sabe como ficará o sustento da família com o fim do auxílio emergencial. “Esse dinheiro vai fazer falta, vai mesmo”.

Inúmeros fatores contribuem para a incerteza e ansiedade sobre o desempenho da economia, e o impacto na vida das pessoas, especialmente as mais vulneráveis. O fim do auxílio ocorre em um momento em que o desemprego atinge mais de 14 milhões de brasileiros, um índice de 14,3%, provocado, principalmente, pela gradual busca por vagas no mercado por trabalhadores que não estavam procurando. O desempenho da criação de vagas, no entanto, ainda depende da confiança do empresário, algo que não está acontecendo, em meio a indefinições sobre vacina e políticas fiscais. O Índice de Confiança do Empresário do Comércio fechou o ano de 2020 na menor pontuação desde 2017 (102 pontos).

Sem auxílio e com retomada mais lenta do que o necessário, o brasileiro ainda lida com inflação em alta em setores prioritários. No caso dos alimentos, a alta é de 17,46% – a maior desde outubro de 2003, em parte pela favorabilidade para exportações e, em outra, pelo aumento do consumo. E os mais pobres sofrem mais. Estudo do Banco Central (BC) divulgado em dezembro (17) mostrou justamente o impacto do auxílio emergencial na inflação dos mais pobres. A pesquisa mostrou que o benefício concedido pelo governo em razão da pandemia da Covid-19 elevou os preços da cesta de alimentos de quem ganha entre um e três salários mínimos.

O economista Ely José Mattos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), explica que o auxílio causou um impacto considerável do ponto de vista do consumo.  “Por exemplo, se a gente olhar carne de primeira e carne de segunda. Quando a gente pensa no movimento inflacionário da carne, por exemplo, esse dois tipos de carne tendem a caminhar mais ou menos juntos. Agora não aconteceu isso. A carne de segunda teve uma elevação relativamente mais acentuada que a carne de primeira. Ou seja, a gente teve uma pressão que é oriunda, sim, do aumento do consumo das famílias em função da renda. Cabe lembrar que os R$600 mensais, para muitas famílias, foi uma renda maior do que elas costumava receber regularmente antes da pandemia. São famílias que tem poder de poupança muito baixo, elas gastam esse dinheiro, afinal de contas, são famílias mais pobres e precisam usar esse dinheiro. Só que com a chegada desagrada extra, isso levou a uma pressão inflacionária.”

Além do reflexo no preço dos alimentos, o índice usado para reajustar aluguéis já passa de 23% ao ano. Para piorar, a inflação para classe de renda muito baixa – a mesma que não terá mais acesso ao benefício do governo – é quase três vezes a de renda alta, segundo dados do Ipea divulgados em novembro. Uma equação de difícil solução, sobretudo em meio a aumento do número de mortes e endividamento em alta.

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O IMPACTO DA PANDEMIA
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Pesquisa realizada pelo Datafolha a pedido do C6 Bank mostrou o quanto os brasileiros foram afetados pela pandemia sob o ponto de vista financeiro. O estudo mostra, ainda, que os brasileiros foram afetados de maneira desigual –  segundo os dados da pesquisa, as classes C, D, e E foram as mais atingidas.

Para a maioria dos brasileiros, mais especificamente para 67% dos entrevistados, a questão financeira foi motivo de estresse e ansiedade desde o início da pandemia. A maior parte dos brasileiros com mais de 16 anos precisou cortar gastos pessoais e com a família e 58% afirmam que a renda familiar diminuiu. Quase a metade da população precisou adiar despesas. E entre os integrantes das classes C, D e E, os impactos financeiros foram mais comuns do que nas classes AB.

A suspensão dos contratos de trabalho atingiu 20% da população, impactando tanto assalariados como profissionais autônomos e free-lancers. Foi o caso do Tiago Rosa, de 34 anos, que é autônomo e não conseguiu manter o ritmo do trabalho. “Eu e minha esposa, Julia, conseguimos o auxílio. O valor até foi suficiente para pagar as contas e a alimentação nossa e do Caio (11) e da Elisa (5)”, pondera. Antes da pandemia, ele tinha o próprio negócio, uma empresa de transporte de bandas para shows e eventos. “Levava músicos para shows em Porto Alegre, região metropolitana e às vezes até para outros Estados. Com a pandemia, meu negócio parou. Até consegui fazer alguns trabalhos em lives, mas não tem como comparar com os ganhos que eu tinha antes”, comenta. O projeto para 2021 é voltar a ser motorista de aplicativo, uma ocupação que havia abandonado principalmente pelo medo de assaltos e por ter investido em sua empresa. “Mas é o jeito agora,” resume.

Em situação similar à do Tiago, a pesquisa do C6Bank e Datafolha indica que cerca de um terço da população economicamente ativa e assalariada afirma que teve redução de salário durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus, o que representa 9% da população brasileira com 16 anos ou mais. Além disso, 43% dos entrevistados desempregados informaram que perderam o emprego durante a pandemia do Coronavírus.

Os números mostram a relevância do auxílio emergencial para a população mais vulnerável. Ainda, de acordo o economista Ely José Mattos, mostram a importância do benefício para o desempenho da economia brasileira em 2020. “O Banco Central projeta uma queda de PIB entre 4,5 e 5% pra 2020. Lá em junho nós apostávamos em quedas de 7%, porque o cenário era muito preocupante. O auxilio emergencial robusto, sem dúvida, ajudou a manter a dinâmica do varejo, do consumo básico. A gente teve, de fato, um componente de dinamismo econômico muito significativo. E foi fundamental pra manter as pessoas distantes de situações de muita necessidade e muita vulnerabilidade nesse período incerto e de tanto deslocamento das atividades econômicas. Tanto do ponto de vista do emprego quanto do ponto de vista de dinâmica. Então o auxilio emergencial foi fundamental.”

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DESIGUALDADE
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O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social) divulgou um estudo chamado “Covid, Classes Econômicas e o Caminho do Meio: Crônica da Crise até Agosto de 2020”, que mostra que, em meio à pandemia de covid-19, o auxílio emergencial contribuiu para a queda temporária da pobreza no país. Segundo a FGV, a pobreza é caracterizada pela renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo (R$522,50). A comparação feita com os dados fechados de 2019 aponta que 15 milhões de brasileiros saíram da linha de pobreza até agosto, uma queda de 23,7%. Mesmo havendo 50 milhões de pobres após a queda, foi o nível mais baixo de toda a série estatística. Com isso, de acordo com reportagem da jornalista Cássia Almeida publicada no jornal O Globo a partir de cálculo inédito do sociólogo Rogério Barbosa, a desigualdade brasileira chegou no menor nível histórico.

A questão é que a desigualdade no Brasil vinha aumentando desde 2016, e o fim do auxílio emergencial pode levar a desigualdade de volta ao patamar da década de 1980. Segundo reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, o índice de pobreza – neste caso caracterizada por uma renda de até um terço do salário mínimo (R$348) – caiu de 18,7% em 2019 para 11% em 2020. Mas sem o benefício do governo, de acordo com o sociólogo Rogério Barbosa, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), esse indicador pode chegar a 24%. Isso coloca quase um quarto de toda a população brasileira em situação de pobreza.

Apesar de se ventilar a ideia de um reforço do Bolsa Família, o economista Ely José Matos não enxerga a possibilidade de o governo federal financiar um novo auxílio.

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“Não consigo enxergar uma repetição do que aconteceu esse ano, nós não temos caixa pra isso. Mas se não tiver nada, a gente vai ver a volta de um percentual significativo da população de baixa renda para patamares abaixo da linha de pobreza, o que é terrível.”
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E essa discussão, segundo ele, maquia a realidade. “Porque quando a gente discute pobreza no brasil, a gente fala em pobreza crônica, não pobreza transiente, que é quando se entra na momento de crise e depois sai. Aqui está acontecendo o inverso. A gente tem uma situação de pobreza crônica, o auxílio emergencial resgatou, e assim que acabar, as pessoas voltam”, explica.

A perspectiva traçada pelo economista mostra um cenário dramático para 2021. Ainda mais dramático. Com uma taxa de desemprego alta, uma recuperação incerta. “Para se ter uma ideia, o (ministro da economia) Paulo Guedes declarou que aconselharia não dar o 13º do Bolsa Família pela questão fiscal. A gente vai precisar de algo mais criativo”, diz o professor Ely Mattos.

Mas se não se pode contar com o auxílio, se não se pode contar com o governo, o brasileiro vai precisar se virar. Não que seja novidade, a criatividade no povo do Brasil é famosa. Mas nao tem nada de bonito ou romântico nisso. É cruel. Porque mais do que nunca o brasileiro vê a necessidade de tirar leite de pedra, como Naziazeno. A educação financeira é um caminho – talvez o único caminho – além da solidariedade.

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EDUCAÇÃO FINANCEIRA
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É preciso cuidado para falar sobre educação financeira diante do fim do auxílio emergencial. Porque para quem está abaixo da linha da pobreza, parece uma brincadeira de mau gosto discutir prioridades, orçamento familiar ou planilhas de gastos. Tanto é assim que o presidente do SPC Brasil, Roque Pellizzaro Jr, alerta para o fato de que a teoria pode não ajudar, por exemplo, quem passa fome. “A teoria é muito bonita, diz que para aumentar a renda tem que aumentar as horas de trabalho e se qualificar. E do lado da despesa, trabalhar o orçamento. Mas para esse público, essas teorias tem valor próximo de zero. Porque eles tem extrema dificuldade de melhorar qualificação, e mesmo que conseguissem, demoraria um tempo razoável e, é claro, custaria mais dinheiro. E fazer orçamento para se gastar R$300 por mês? Tudo é prioridade.”

A questão é quando a gente pensa em educação financeira, logo imagina pessoas com muito dinheiro e investimentos. Mas a educadora financeira Cíntia Senna, ensina que ela pode ser aplicada também em famílias mais vulneráveis e de baixa renda. “Todos precisamos desse conhecimento, independente de quanto a gente ganha, escolaridade ou qualquer questão externa.”

Segundo Cíntia, diante do fim do auxílio emergencial e a falta de perspectiva de um novo benefício ou mesmo uma melhora na economia, a primeira coisa a se fazer é olhar ao redor, para a própria comunidade, vizinhos e amigos. “A gente tem que começar a observar o que é possível ser feito diante da realidade de cada um. E se perguntar, como está a minha comunidade, meu bairro, o que se pode fazer em conjunto. Pode ser importante olhar pra dentro da comunidade e observar quais as necessidades e ver o que cada um pode contribuir.  E em troca disso receber um recurso financeiro ou até encontrar novas possibilidades.”

O músico e cozinheiro Felipe Santos de Souza, de 44 anos, reativou o trabalho com gastronomia para conseguir pagar as contas depois de o setor de entretenimento começar a sofrer os impactos da pandemia, especialmente com o cancelamento de shows. Apesar de ter sido aprovado para receber o auxílio emergencial, o valor não foi suficiente para manter as contas da família em dia. “Resolvi vender comida congelada como uma forma de complementar a renda para além do auxílio”, conta. Mais recentemente, começou a trabalhar pintando apartamentos. E é com essa ocupação que pretende se sustentar no ano que vem. “Também pretendo enxugar mais ainda os gastos. Mas, certamente, é um dinheiro que fará falta, já que os shows, que eram minha principal fonte de renda, não têm data para serem retomados no Rio Grande do Sul.”

Mas nem todo mundo consegue encontrar novas possibilidades e pagar as despesas básicas se torna motivo de uma angústia profunda. Naziazeno não conseguia comprar leite. A Denise, que aparece no início da reportagem, agora não sabe se vai conseguir comprar comida.

Cíntia explica que o supermercado é responsável por 60% das despesas das famílias brasileiras. Ou seja, em média, 60% da renda, independente de qual seja, é utilizada para a compra de alimentos que, como mostra o início da reportagem, é fortemente impactada pela inflação. Mas mesmo assim, mesmo nessas condições, a educação financeira pode ajudar. “Além de olhar marcas e pesquisar preços, a gente precisa sempre olhar o que tem dentro de casa e ir até o supermercado com uma lista pronta e ciente da quantidade se precisa. Também é importante estabelecer um limite de gastos e observar o que eu preciso para a semana, e não para o mês. Porque pode haver diferença de preços em determinados produtos que, ao final de 30 dias, podem impactar consideravelmente o orçamento da casa”, explica. Mas essas são medidas convencionais, que se aplicam a famílias que tem o orçamento apertado mas que, apesar da dificuldade, tem condições de se organizar sem passar necessidade ou fome.

Para famílias mais vulneráveis, Cíntia sugere medidas menos ortodoxas e que, de novo, envolvem a comunidade. “Todas as famílias precisam de comida e precisam fazer as compras. Então, procure fazer algo em conjunto. Organize com os vizinhos um dia para as compras. Os produtos podem ser comprados em conjunto e, assim, é possível negociar com o supermercado para se fazer uma compra única e ter acesso a algum desconto pela quantidade que está sendo comprada. Assim,  é possível dividir e ter um custo bem menor. Isso pode ser feito em atacadões, que tem preços mais em conta. São estratégias que podem ser utilizadas para reduzir o valor da compra.” Segundo Roque Pellizzaro, presidente do SPC, a força das comunidades é muito importante nesse momento. “Esse lado cooperativo é muito nosso, muito do Brasil.”

Em momentos de crise como esse, muitas pessoas recorrem a empréstimos consignados com longos prazos de pagamento. No momento, até pode parecer uma boa ideia, mas o que pode resolver os problemas no curto prazo pode se tornar um problema maior no médio e longo prazo. Por isso, outra lição importante da educação financeira é fugir do crédito fácil. “Nós tínhamos muitas pessoas desbancarizadas no Brasil, fora do sistema financeiro. Por causa do auxilio emergencial, a gente enxergou essas pessoas. Mas nem todas são informadas e isso faz com que a oferta de crédito seja atrativa para esse público. E o aumento no nível de endividamento tem a ver com isso.”

O presidente do SPC Brasil, Roque Pellizzaro Jr, explica que é importante ter muito  cuidado com qualquer promessa de facilidade exagerada. “Eu sempre me preocupei com essa questão do empréstimo consignado. Em tese, é uma coisa muito boa, porque como ele reduz o risco, ele teria que reduzir o juro. E o consignado nasceu com a ideia de melhorar esse viés do risco e oferecer juros mais atrativos, mas isso foi desvirtuado com o tempo. Tudo em excesso é muito perigoso e essas ofertas de crédito com juro muito alto são muito perigosas.”

Roque explica que o mais importante, em momentos de vulnerabilidade como esse do fim do auxílio emergencial, é não pegar um empréstimo com o único fim de pagar uma dívida antiga. “O empréstimo só vai ser bom se você for gerar uma nova riqueza com ele e, com essa nova riqueza, pagar o empréstimo e ainda sobrar um dinheirinho”, explica.

O recomendável, então, com relação a dívidas antigas,  é renegociar com o credor. “Você vai vai conseguir uma taxa de juro muito mais barata do que tomando um empréstimo. Então, se você tem uma dívida, vá até o credor e diga: “eu não vou poder pagar. Vamos renegociar, eu vou precisar de seis meses, um ano.” O credor vai fazer, porque ele já está sem receber.”

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“Não tenha vergonha de procurar um credor. É melhor para você e paro o seu crédito uma renegociação do que ficar um tempo sem pagar e pagar tudo à vista com dinheiro emprestado.”
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Além de dívidas antigas, porém, há as contas que se acumulam todos os meses. Nesse caso, Pellizzaro sugere estabelecer prioridades. “O que eu preciso consumir todos os dias? Energia, água e alimentos. Ninguém vive sem isso. Essas são as prioridades. Então é importante manter as contas em dia ara não ter corte de luz e água e renegociar outras dívidas eventuais como compras antigas e parceladas. Não se pode pagar conta velha com dinheiro que você tem só pra comida.”


A educação financeira é algo que o brasileiro sempre exerceu muito pouco, de acordo com Roque Pellizzaro.  E ela, sozinha, não resolve a profunda desigualdade à qual o Brasil é submetido desde sempre. Tampouco é capaz de mover famílias que estão abaixo da linha da pobreza para uma situação mais confortável. Mas ela pode auxiliar famílias vulneráveis em momentos de crises mais agudos como o que se avizinha em 2021. Cíntia Senna lembra que, a partir deste ano, a educação financeira deve fazer parte do currículo de todas as escolas. Mas até que exista uma cultura de planejamento nas famílias brasileiras, há recursos que podem ser utilizados.

O primeiro passo, para qualquer família, segundo Pellizzaro, é organizar um orçamento familiar. Por menor que seja a renda. Porque isso facilita mover os recursos conforme a necessidade. “Vamos supor que a pessoa reserve R$20 por mês para gastar com remédios. Mas ela ficou doente e precisou gastar R$50. De onde ela vai tirar os outros R$30? Se isso não estiver no papel, fica muito difícil reorganizar o orçamento em situações de crise ou emergência. Eu sei que fica muito difícil para pessoas com baixa escolaridade, mas hoje há aplicativos e outras ferramentas que podem auxiliar.

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CANAIS DE EDUCAÇÃO FINANCEIRA NO YOUTUBE
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Nath Finanças .  A Nath Finanças se dedica à educação financeira para pessoas pobres e de baixa renda. A proposta do canal é falar sobre o tema de maneira fácil e prática, justamente para quem nunca estudou ou não tem familiaridade com o assunto.

Me poupe – A Nathalia Arcuri explica de forma didática as questões complexas do sistema financeiro e dá dicas para quem, por exemplo, está endividado.

Instituições financeiras – Algumas instituições financeiras, como o C6 e o Itaú, tem canais no Youtube que auxiliam as pessoas que, por exemplo, precisam cortar despesas. E o melhor é que não precisa ser correntista para acessar o conteúdo.

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APLICATIVOS
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Minhas Economias . O aplicativo permite que o usuário organize entradas e saídas por meio de categorias. Assim, é possível controlar receitas e despesas em grupos e controlar o impacto sobre a renda mensal. O aplicativo Minhas Economias pode ser baixado gratuitamente tanto no Google Play quanto na App Store.

Guia Bolso .  É um dos aplicativos de controle financeiro mais utilizados no país. O grande diferencial é a sincronização com a conta bancária do usuário. Ou seja, ele coordena o planejamento de gastos com a movimentação financeira, com as entradas e as saídas de recursos. O GuiaBolso pode ser baixado de graça no Google Play e na App Store.

Organize . É ideal para quem quer monitorar o quanto ganha e o quanto gasta. A ferramenta dispõe de um painel com as principais despesas do usuário e o quanto elas representam no orçamento total. O aplicativo Google Play e na App Store. O serviço também tem versão web.

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PLANILHAS
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Pra quem tem dificuldade com aplicativos, o ideal é apostar em uma planilha, que pode ser feita até em uma folha de caderno. Abaixo estão alguns modelos que facilitam o começo do trabalho.

Nath Finanças . A Nath finanças preparou uma planilha que pode ser acessada aqui e é perfeita para quem está começando a fazer o orçamento da casa.

Google Planilhas . Essa opção é menos intuitiva, mas é bastante eficiente. É similar ao Exel, mas é gratuito e dispoe de modelos prontos para organização financeira.


Segundo Pellizzaro, esse é um momento de transição bastante difícil. “Nós vimos essa dificuldade  já com a redução do auxilio de R$600 para R$300, nos primeiros dois meses houve um impacto especialmente no comércio, no comércio mais popular. A gente deve ter agora, no início de 2021, algo similar. Sé que com impacto ainda maior”, lamenta.  Apesar de 2021 trazer uma expectativa melhor em função da possibilidade de vacina – possibilidade, porque, ao contrário de outros países, até agora, não há um plano concreto de vacinação no Brasil –  não há nenhuma perspectiva de, já no primeiro trimestre, nós teremos uma vida social normal.

Por isso, enquanto ações de educação financeira ainda caminham, a solidariedade segue sendo uma força poderosa em tempos de crise. Não para reduzir desigualdades, mas para ajudar quem precisa. Para matar a fome.

OUÇA

 

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #37 A vida sem auxílio
Voos Literários

O último texto do ano

Flávia Cunha
31 de dezembro de 2020
Neste último texto do ano

começo confessando que fiquei na dúvida sobre o que escrever. Então, durante alguns dias, achei que poderia ser uma boa ideia fazer uma retrospectiva a respeito dos temas e livros abordados na coluna Voos Literários. Depois, imaginei que vocês, meus leitores, já estariam cansados de balanços e retrospectivas. E, certamente, se tem uma palavra que define 2020 é cansaço.

Neste último texto do ano,

prossigo confidenciando que continuei mais um tempo sem saber qual assunto eu analisaria aqui. Apesar da hesitação, cheguei a escrever uma espécie de inventário de quantos livros eu havia lido nos últimos 12 meses.  Para, assim, poder avaliar de que forma a pandemia e o distanciamento social afetaram meu ritmo de leitura. Porém, desisti deste projeto de postagem, por considerar inócua a minha experiência individual perante tantas pessoas acometidas de ansiedade e outras dificuldades.

Neste último texto do ano,

pensei, ainda, em refletir sobre o quanto 2021 será desafiador no Brasil. Sem auxílio emergencial, sem data certa para começar a vacinação. Com pandemia, com Bolsonaro. Porém, mais uma vez, abandonei o texto, antes mesmo de começar. Afinal, quem, infelizmente, não sabe disso? 

Neste último texto do ano,

acabei, meio na marra, optando por escrever apenas uma tentativa desajeitada de transmitir esperança. Mas como fazer isso?  Talvez compartilhar um sonho possa ser uma saída. Desejar que em algum livro, ainda a ser publicado, esteja a resposta para muitos de nossos problemas atuais. E não ter vergonha de fantasiar que, no próximo ano, poderia muito bem existir uma obra chamada “Como a vacina contra o coronavírus mudou o mundo”.  Além disso, aproveito para imaginar, com todas as minhas forças, um livro com o nome “A falta de planejamento da vacinação no Brasil resultou na queda de Bolsonaro”.  

Nesse último texto do ano,

termino me despedindo e propondo que a gente não desista. Que tenhamos força e resiliência em 2021 para, a cada dia, lutar, do jeito que der, por um mundo menos injusto.  Antes de encerrar, aproveito para deixar um pequeno presente para vocês: um poema de Mario Quintana, chamado Esperança. Pois se tem algo que precisamos, é dela.

ESPERANÇA

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano

Vive uma louca chamada Esperança

E ela pensa que quando todas as sirenas

Todas as buzinas

Todos os reco-recos tocarem

Atira-se

E

— ó delicioso vôo!

Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,

Outra vez criança…

E em torno dela indagará o povo:

— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?

E ela lhes dirá

(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)

Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:

— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…

PodCasts

BSV Especial Coronavírus #38 Sobre o ano de 2020

Geórgia Santos
30 de dezembro de 2020

Se você nos perguntar por onde andamos ao longo de 2020, a resposta é que nos desesperávamos. Desesperadamente gritamos em português. Gritamos de medo, por revolta, angústia, ansiedade, incerteza, dor, luto, desalento, desespero, desesperança, dúvida e mais medo.

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Desesperadamente gritamos em português por mais cuidado, mais emprego, renda, saúde, educação, mais atenção, remédios, mais médicos, empatia, respeito, máscaras, comida
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Mas não nos ouviram. O ano de 2020 fica marcado na historia do mundo como o receptáculo da pior pandemia dos últimos cem anos. E presentemente, nós, brasileiros, não podemos nos considerar sujeitos de sorte. Porque 2020, por estas bandas, fica marcado na história como o ano em que fomos abandonados à própria sorte.

Mais de 190mil brasileiros morreram vítimas do coronavírus, principalmente, porque o governo de Jair Bolsonaro escolheu ser guiado pela ignorância. Mais de 190mil famílias passaram o Natal de luto também porque o governo de Jair Bolsonaro escolheu não combater a pandemia. Mais de 190mil famílias não estão sãs, salvas e fortes porque o governo de Jair Bolsonaro escolheu ironizar medidas de proteção, incentivar o consumo de medicação não aprovada para combater a Covid-19, desacreditar as vacinas que chegam como um sopro de esperança.

Mais de 190mil brasileiros sangraram demais e pagaram a conta por termos escolhido uma pessoa que não é apenas despreparada para governar o nosso país, mas que é imoral, sádica e não, não está nem aí para a pátria, para Deus ou para qualquer família que não seja a dele.

De todas as vezes em que o brasileiro quis que um ano acabasse, o desejo nunca foi tão sincero. Mas emprestando a letra da canção de Belchior que virou o hino desta pandemia, chegamos ao último episódio do ano com o alívio de que pelo menos agora a gente já não pode sofrer no ano passado.

2021 se avizinha. Sim, com esperança, porque estamos juntos. Participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #38 Sobre 2020
PodCasts

BSV Especial Coronavírus #36 O preço da incompetência de Bolsonaro

Geórgia Santos
16 de dezembro de 2020

No início do ano, a esperança era passar o Natal e o Ano Novo com a família reunida. Mas a incompetência de Bolsonaro não permitiu. O coronavírus venceu. A incompetência de Bolsonaro está na morte de mais de 180mil pessoas por coronavírus no país. 

Enquanto isso, o ministro da saúde, General Eduardo Pazzuello, participou de festinha, sem máscara, na casa do governador de Brasília, Ibaneis Rocha. Com direito a karaokê e Zezé di Camargo.

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O máximo que o Ministério da Saúde faz é transmitir uma missa no canal do SUS
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Ah, mas tem o plano nacional de vacinação, não? Não. O governo convidou um grupo de 36 especialistas para montar a estratégia e inclusive cita o nome dos pesquisadores no documento de 93 páginas. O problema é que esqueceram de comunicar os pesquisadores, que ficaram sabendo do plano pela imprensa. Ou seja, o governo afirmou que os 36 cientistas endossavam o plano, mas eles sequer tiveram acesso ao documento. Pensa que acabou? Não. De acordo com reportagem da Folha de São Paulo, em reunião com Pazuello, pesquisadores tiveram microfones silenciados e não puderam falar.

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O mundo começa a ser vacinado, profissionais da saúde dançam de alegria nos Estados Unidos, e nós estamos aqui, esperando um governo inepto e criminoso assistir à população brasileira. Estamos à merce da incompetência de Bolsonaro
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Ah, e ainda tem o novo Fundeb e a ABIN, a Agência Brasileira de Inteligência, a serviço de Flávio Bolsonaro, filho do presidente. É mole? 2020 não dá folga nem dezembro. E não tem indicativo de que 2021 será melhor. A falta de planejamento e a incompetência cobram seu preço.

Participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #36 O preço da incompetência de Bolsonaro
PodCasts

BSV Especial Coronavírus #35 A vacina que o Brasil não quer

Geórgia Santos
9 de dezembro de 2020

Finalmente, uma vacina. Finalmente, uma luz no fim do túnel. O Reino Unido começou a vacinar a população contra a Covid-19 na última terça-feira, 8. Os britânicos estão sendo imunizados com a vacina da farmacêutica norte-americana Pfizer e da empresa alemã de biotecnologia BioNTech. Margaret Keenan, uma senhora de 90 anos, Margaret Keenan, foi a primeira a receber a dose da vacina que o Brasil não quer – pelo menos o governo age como se não quisesse.

Por aqui, o presidente da República Federativa do Brasil, um país em que mais de 178 mil pessoas morreram em função da Covid-19, não faz nada. Não, faz sim. Jair Messias Bolsonaro inaugurou uma exposição com as roupas que ele e a primeira-dama, Michelle, usaram na posse.

O governo de São Paulo anunciou que pretende começar a imunização com a CoronaVac em janeiro.  A vacina está sendo desenvolvida no Brasil pela chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan. Mas depende da aprovação da Anvisa. E não nos esqueçamos que Bolsonaro colocou militares na Anvisa para controlar as vacinas.

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É quase como se ele não quisesse que a pandemia acabe
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Participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

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BSV Especial Coronavírus #30 Bolsonaro contra a vacina

Geórgia Santos
28 de outubro de 2020

A pandemia ainda não acabou e está muito longe de ser controlada. Prova disso é embate nonsense de Jair Bolsonaro contra a vacina, que configura mais uma negligência do governo em um país em que mais de 157mil pessoas já morreram vítimas do coronavírus.

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Ele diz que não entende o motivo de haver uma corrida  pela vacina contra a COVID-19
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Ele ainda diz que não entende o motivo de não se investir em uma cura em vez de procurar a vacina. E, como se não bastasse,  ele voltou a defender o uso de medicamentos sem comprovação científica contra o coronavírus.

No final das contas, o que pesa para o posicionamento de Bolsonaro sobre a vacina é uma retórica que mescla negacionismo com xenofobia. Por outro lado, há uma conjuntura desfavorável para o Bolsonaro. Argentina mudou de governo “no meio do caminho”, Chile deve fazer uma reforma constitucional, Bolívia elegeu um presidente de esquerda e, principalmente, há a possível mudança de comando dos Estados Unidos, onde, ao que tudo indica, o democrata Joe Biden será eleito presidente. Tudo indica, portanto, que o negacionista Bolsonaro ficará isolado.

E ainda há o aniversário de 75 anos de Luiz Inácio Lula da Silva. Participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #30 Bolsonaro contra a vacina
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BSV Especial Coronavírus #29 Bolsonaro, as emas e Robinho

Geórgia Santos
21 de outubro de 2020

Neste episódio, mostramos como a ineficácia no combate à pandemia, a corrupção, os dados do anuário da segurança e a repercussão do caso Robinho estão ligados a Bolsonaro.

A pandemia não acabou. Acreditem. E falando em pandemia, Jair Bolsonaro disse que não apostou na cloroquina. O cara que fez vídeo tomando cloroquina, que ofereceu cloroquina para as emas do Planalto, que falou sobre esse remédio por meses, que determinou que se aumentasse a produção do medicamento sem comprovação de eficácia contra a Covid -19, que importou caixas e mais caixas dos Estados Unidos, disse que não apostou, nem jogou, na hidroxicloroquina.

E por falar em Bolsonaro, o senador Chico Rodrigues, vice-líder do governo, levou o transporte de dinheiro na cueca a um outro nível. O curioso é que isso aconteceu na semana em que Jair Bolsonaro disse que acabou com a Lava-Jato porque não tem corrupção no governo.

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Enquanto isso, O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou o Anuário da Segurança e as más notícias são muitas
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Foram quase cinco mil mortes violentas de crianças no ano passado. 75% de crianças negras. Também em 2019, mais de 13 mil mortes não esclarecidas que sequer entraram nas estatísticas de homicídio. Houve ainda um Aumento de 120% nos registros de arma de fogo em 2020 e queda nas apreensões. Mais de seiscentas mulheres vítimas de feminicídio no primeiro semestre deste ano. Mas isso mobiliza menos que futebol.

O jogador Robinho foi condenado por estupro na Itália, mas para o novo clube, isso só foi problema quando os patrocinadores entraram na jogada. O tal do craque, apesar da condenação, se comparou a Bolsonaro, disse que é perseguido pela “emissora do demônio” – Rede Globo – e que o problema são as feministas.

Participam do programa os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #29 Bolsonaro, as emas e Robinho
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BSV Especial Coronavírus #23 Queda do PIB, 4 anos do golpe e eleições

Geórgia Santos
2 de setembro de 2020

A queda do PIB fez com que o episódio desta semana fosse uma espécie de viagem no tempo. Isso porque a economia brasileira sofreu um tombo recorde, com uma queda história de 9,7% no segundo trimestre. Assim, o Brasil voltou ao patamar de 2009. O desempenho é parecido com o de países ricos durante a pandemia de coronavírus, mas, por aqui, também é reflexo da falta de liderança. O resultado ainda impactou diretamente na decisão do presidente Jair Bolsonaro, que resolveu prorrogar o auxilio emergencial com redução de 50%. Agora, o benefício será de R$300 reais, pago em quatro parcelas até o final do ano.

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Parece, afinal, que não bastava “tirar a Dilma”
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Aliás, nesta semana, dia 31 de agosto, fez quatro anos do golpe jurídico e institucional que tirou Dilma Rousseff do poder, em 2016. Algumas das repercussões desse evento ainda podem ser observadas hoje. Porém, talvez o momento exija uma guinada de discurso por parte da esquerda.

E do passado a gente dá pulinho no futuro porque as eleições municipais estão chegando e já mostram uma rearticulação das direitas brasileiras em torno de Bolsonaro. Quem sabe mostrando algo que pode acontecer em 2022. Afinal, já tem crítico arrependido, não é mesmo, governador Ronaldo Caiado?

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch e Tércio Saccol. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox e outros agregadores.

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #23 Queda do PIB, 4 anos do golpe e eleições
Reportagens Especiais

Epidemia de ansiedade . Pesquisa indica que 81% dos brasileiros estão mais ansiosos desde o início da pandemia

Geórgia Santos
30 de agosto de 2020

“Mrs Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores.” O romance de Virgínia Woolf que leva o nome da protagonista e foi publicado originalmente em 1925 começa assim. Uma rotina parecida com a da nossa Clarissa*, acostumada a comprar as flores – ou a assumir o comando das coisas enquanto lida com a ansiedade.

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Por Flávia Cunha  e Geórgia Santos

O dia transcorria tranquilamente, exceto pelo peso de mais uma responsabilidade. Pela primeira vez desde o início da pandemia de coronavírus, ela precisaria participar de uma reunião presencial. A ideia não era confortável por uma série de motivos, mas talvez o principal fosse o medo de se expor ao vírus. Ela temia não apenas ficar doente, mas principalmente infectar alguém da família. Afinal, Clarissa divide a casa com outros três e ajuda a cuidar dos pais idosos e, também por isso, convive bastante com eles e com as irmãs. Ela não saía de casa há meses, mas mesmo assim era obrigada a dividir o espaço, pelo menos, com essas pessoas. Naquele momento, era quase imperceptível, mas ela sentia que uma espécie de aflição estava tomando conta do corpo e da mente de uma forma que ela sentira poucas vezes antes.

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Rosas, pensou, sarcasticamente. Bobagens, minha cara, Pois em verdade quando se tem de beber comer e deitar, tanto nos bons como nos mais dias, a vida não tem nada a ver com rosas.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Ela lembrava de duas ocasiões em que algo parecido aconteceu. Mas não deu atenção àquela lembrança, afinal, em ambos os casos ela estava em viagem e esse deveria ser o motivo dos desconfortos passados. Nada a ver com o acontecia agora, ela acreditava. O que acontecia agora parecia, de alguma forma, mais potente, mais intenso. Nem por isso cogitou faltar ao compromisso. Em vez disso, decidiu ligar para a filha e espairecer.

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“Oi, tudo bem?
Tudo e por aí?
Não sei, tenho que ir a uma reunião amanhã, mas não queria.
Então não vai, tem mil justificativas pra não participar de uma reunião a essas alturas. ?
Eu preciso ir, mas acho que fico com medo de me expor.
É normal sentir medo, eu também teria. Mas se tu não tem como faltar, é só se proteger bastante. Usa máscara, leva álcool gel e fica longe das pessoas. O lugar é grande?
Sim, é bastante espaçoso e tem uma mesa grande, nós podemos nos sentar e ficar longe uns dos outros, eu acho.
E é bem ventilado?
Tem uma janela.
Fica perto da janela, então, já ajuda.
Mas tá muito frio, guria.
Aguenta, oras. (risos) Tá, não precisa ficar NA janela, mas fica perto. Vai ter muita gente?
Acho que não, umas cinco ou seis pessoas. ?
Ah, então fica tranquila. Toma esses cuidados e tentem não ficar mil anos conversando. Faz tudo rapidinho.
Pera aí que a campainha tá tocando, já te ligo.”
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A sensação de aflição e de angústia que Clarissa estava sentindo era uma manifestação de ansiedade. Algo bastante comum na população em geral, especialmente durante uma pandemia, em que o medo de se infectar ou de ser responsável pela contaminação de outras pessoas pode ser sufocante. Mas além do medo, há outras dois fatores de estresse: a sobrecarga com questões de casa e da família e o isolamento em si.

Tanto é assim que Clarissa não está sozinha. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil vive uma epidemia também de ansiedade. É o país com a maior taxa de pessoas com transtornos de ansiedade no mundo. O levantamento indica que 9,3% dos brasileiros têm algum tipo de transtorno nesse sentido, o que corresponde a mais de 18 milhões de pessoas. E o problema se agravou agora. Pesquisa do Datafolha/C6 Bank realizada em julho deste ano com mais de 1500 entrevistados mostra que 81% dos brasileiros se sentiram mais estressados ou ansiosos com os cuidados com a família e a casa desde o início da pandemia de coronavírus, em março. Além disso, 68% afirmam que as exigências e obrigações dentro do ambiente familiar também aumentaram, especialmente para as mulheres.

A pesquisa ainda mostra que 43% dos entrevistados se sentem solitários e que esse sentimento de isolamento e solidão é mais intenso entre os moradores do interior. O número chega a 46% ante 39% dos residentes nas regiões metropolitanas. Além disso, os integrantes das classes D/E (definições pré-estabelecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)) também relatam sentir mais os efeitos da solidão. O percentual chega a 51% dos entrevistados. Também nesse caso os efeitos parecem ter um peso extra sobre as mulheres, que tendem a sentir mais os efeitos do isolamento social uma vez que os relatos de aumento nas exigências e obrigações na família, o sentimento de isolamento e o uso de medicamentos para a ansiedade são mais frequentemente citados do que entre os homens.

Àquela altura, Clarissa ainda não fazia parte dos 19% de mulheres que responderam precisar de remédio para controlar a ansiedade, mas, como ela ficaria sabendo em seguida, esse dia não demoraria a chegar.

Quem estava à porta de Clarissa era um dos colegas que participariam do encontro no dia seguinte. Ele queria discutir algumas coisas antes da reunião. A simples presença daquela pessoa à porta foi suficiente para despertar um medo que ela jamais havia sentido. Era um pavor paralisante que começava no peito e era irradiado para as extremidades do corpo. Ela não convidou o amigo para entrar, mas conforme se afastava dele, ele se aproximava. E a cada passo, o pânico aumentava. Ela tratou de encerrar a conversa o mais rápido possível e, assim, achou que ficaria mais tranquila, mas não foi o que aconteceu. O medo aumentou e uma sensação de urgência tomou conta.

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Horrível, pensava, adivinhar mover-se nela aquele monstro brutal! ouvir ramos estralejando e sentir aqueles cascos nas profundezas dessa floresta cheia de folhas, a alma; nunca estar inteiramente alegre, nem inteiramente segura, pois a qualquer momento o animal podia estar movendo-se; ódio que, especialmente depois da sua doença, fazia-lhe sentir um doloroso arrepio na espinha; causava-lhe uma dor física, todo o prazer da beleza, da amizade, do bem-estar, de sentir-se amada, de tornar a casa deliciosamente acolhedora, tudo vacilava e pendia, como se na verdade houvesse um monstro a roer as raízes, como se toda a panóplia do contentamento não fosse mais que amor próprio! e aquele ódio! 

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Ela começou a limpar o chão que ele havia pisado com água sanitária. Em seguida, usou álcool 70% para higienizar maçaneta, porta, tudo o que via pela frente. Mas nada parecia funcionar, o cérebro simplesmente não entendia os sinais que ela queria enviar. Então, a respiração começou a ficar mais intensa, mais rápida, da mesma forma que as batidas do coração. Ele pulsava de maneira frenética e ela ficou assustada. Isso era novo. Pensamentos horríveis invadiram sua mente e ela achou que poderia morrer ali, naquele momento. Ofegante, resolveu ligar para a filha novamente.

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Oi.
Oi, tá tudo bem? Tu tá ofegante.
Não, eu não sei o que aconteceu. O Pedro* veio aqui e de repente eu fiquei tomada de medo.
Mãe…
Eu acho que nem ouvi o que ele falou e não sei se eu articulei as palavras direito.
Mãe…
Comecei a limpar tudo, limpei onde ele pisou, acho que ajuda, né?
Sim, mas…
E agora eu não sei, eu tô ofegante, meu coração tá batendo rápido.
Mãe, tu tá tendo uma crise de ansiedade.
Será?
Sim, teu coração tá batendo mais forte?
Sim.
Tá ofegante, como se não conseguisse respirar direito?
Sim.
Tá com medo?
Tô, tô tremendo.
Tá achando que vai morrer agora?
Sim.
Tu tá tendo uma crise de ansiedade. Senta em uma cadeira e apoia os pés firmes no chão e respira fundo. Isso vai passar. Tenta respirar de forma bem lenta e calma e focar teus pensamentos na respiração. Inspira em quatro, prende quatro e solta em quatro. faz isso algumas vezes. Depois, faz um chá de camomila. E fica conversando comigo. Pode deixar no viva-voz. Amanhã a gente fala com teu médico.

*O nome foi modificado a pedido da entrevistada

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Ao 61 anos, pela primeira vez na vida, a advogada estava conhecendo uma crise de ansiedade. A manifestação, também chamada de ataque de pânico, ocorre de forma abrupta no momento em que os sintomas de ansiedade alcançam um pico e  sobrecarregam o indivíduo. Quando as sensações de medo dominam a mente, elas ativam gatilhos que geram uma espécie de curto-circuito que provoca extrema insegurança e descontrole. O organismo libera, então, noradrenalina e adrenalina, que são substâncias responsáveis, além de outros processos, pelas manifestações físicas que duram alguns minutos em alta intensidade. A noradrenalina é um hormônio e neurotransmissor cuja principal função é preparar o corpo para uma ação específica, tanto que é conhecida como uma substância de luta ou fuga. Já a adrenalina, um hormônio secretado pelas glândulas suprarrenais,  é liberada em casos de estresse extremos e age como um mecanismo de defesa para uma ação rápida. Por isso são liberados em momentos de pânico.

Para o psiquiatra Érico Moura, a crise de ansiedade é uma manifestação física como um todo. Assim como aconteceu com a Clarissa, é possível notar sintomas cardiovasculares, autonômicos e psicológicos. “São sintomas muito desconfortáveis. Normalmente a pessoa tem uma sensação de que ela vai morrer agora, que ela não vai suportar, vai cair, desmaiar, ter um infarto, um AVC, então dá um medo de morrer. E com relação às repercussões físicas, a pessoa normalmente tem uma taquicardia, o coração acelera, dá palpitações, aquela sensação de que o coração vai sair pela boca, dá um nó na garganta. Algumas pessoas descrevem como uma bola na garganta, que sobe e desce. E tem as repercussões de suar, tremer, pode dar, às vezes, diarreia, tontura e a pessoa se sente mal ao ponto de precisar deitar porque a pressão baixou. E são sintomas que começam rápido. Ela pode passar o dia ansiosa, mas uma crise de pânico acontece abruptamente. De uma hora pra outra esse gatilho dispara”, disse. Foi o que aconteceu com Clarissa, de uma hora para outra, o gatilho disparou.

Segundo o médico, se o paciente conhece uma crise de ansiedade, se já passou por uma, é relativamente mais fácil lidar com ela, porque já está acostumado com os sintomas e reconhece a manifestação. Mas quem nunca teve uma crise de ansiedade, sofre ainda mais.  Para Érico Moura, são as pessoas que mais sofrem. “Elas, de fato, acham que estão tendo um infarto, um AVC, ou, agora, que estão com coronavírus. E aí é mais complicado porque ainda não tem conhecimento de si, não sabe que é portador de um transtorno mental de ansiedade. Por isso, se estiver sozinho, é importante tentar se acalmar e ligar para alguém. Pra um familiar, amigo ou pra um canal de atendimento solidário em saúde mental.”

Clarissa, mesmo sem saber, agiu de forma adequada e ligou para a filha, que, por experiência própria, recomendou um exercício de respiração. “Há medicações que podem ser usadas apenas em crises de ansiedade e são prescritas por médicos. Mas se é a primeira vez que acontece, há medidas comportamentais que podem ser adotadas, como ir para um lugar silencioso, mais escuro, sem estímulos visuais e sonoros e procurar puxar o ar lentamente pelo nariz e soltar lentamente pela boca. Durante uma crise de ansiedade, como o coração acelera, a respiração acelera junto para compensar a resposta cardiovascular. E quando a gente acelera a respiração, a gente acumula gás carbônico e dá uma sensação muito ruim de mal estar que pode causar até desmaio. Então, é importante respirar lentamente. Algumas pessoas usam até um canudinho porque ajuda mecanicamente a puxar o ar mais devagar e soltar mais calmamente”, explicou o psiquiatra.

Sentir ansiedade neste e em outros momentos é absolutamente normal, segundo o psiquiatra Érico Moura. É preciso estar atento, porém, aos efeitos que isso causa na rotina. Ou seja, quando a ansiedade começa a atrapalhar a rotina e impacta a saúde ou causa prejuízos sociais e profissionais, é necessário procurar um médico psiquiatra, porque a pessoa pode estar lidando com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG), depressão ou Síndrome do Pânico, cuja incidência, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), é estimada em 1,5% a 3,5% da população. Novamente, acomete mais mulheres do que homens, na proporção de 2 para 1.

 

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SINAIS

O psiquiatra Érico Moura recomenda prestar atenção aos detalhes, porque toda mudança de funcionamento do organismo, especialmente o padrão de sono e apetite. “Eu gosto de dar atenção especial ao sono, ele funciona como um termômetro do humor. Quando a gente está deprimido, normalmente tem alteração no sono. Ou dorme pouco, ou dorme muito. E quando a gente está ansioso, geralmente dorme pouco ou tem dificuldade para começar a dormir, então tem que estar atento a isso. Se ficar dois ou três dias com o sono alterado, é bom procurar o médico ou o serviço de saúde para saber o que fazer”, orientou.

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Bem, pensava Clarissa pelas três horas da madrugada, lendo o barão Marbot pois não conseguia dormir, isso demonstra que ela tem coração.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Passada a crise de ansiedade, Clarissa foi capaz de perceber que há alguns dias havia algo errado. Ela não dormia bem há mais de uma semana e comia pouco. Sem notar, havia emagrecido bastante. Era o sinal de que ela realmente precisava de ajuda médica.

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Mesmo o sabor (Rezia gostava de sorvetes, chocolates, coisas doces) não tinha gosto para ele. Pousava a xícara na mesinha de mármore. Olhava as pessoas lá fora; pareciam felizes, reunindo-se no meio da rua, gritando, rindo, discutindo por nada. Mas não conseguia saborear, não conseguia sentir.

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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Segundo o psiquiatra Érico Moura, esse é o caminho a seguir. Inclusive quando a pessoa perceber que se sente atrapalhada para realizar as atividades de rotina  e até mesmo a higiene pessoal. “Tem um canal online que a Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul e outras entidades criaram pra receber essa demanda. É um coletivo de sociedades de psicologia, psiquiatria e psicanálise em que voluntários se disponibilizaram para atender essa demanda durante a pandemia e eu sou um desses profissionais. A gente ouve as queixas e dá o melhor encaminhamento possível”, diz. Para atendimento online, basta preencher este formulário e aguardar o contato. No Rio grande do Sul, ainda é possível contatar o serviço pelo telefone (51)  32243340, das 9h às 18h. O serviço é oferecido pela Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Centro de Estudos de Psiquiatria Integrada, Centro de Estudos de Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência, Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia, ITIPOA e Centro de Estudos Luís Guedes.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) também produziu o Manual Saúde Mental e Covid-19, que traz sugestões de como reduzir o impacto negativo do isolamento social e da quarentena na saúde mental.

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HISTÓRICO DE ANSIEDADE E DEPRESSÃO

Tudo isso foi uma novidade para Clarissa, que sempre se viu como uma pessoa prática e racional. Não estar no controle da situação foi uma novidade e ainda é difícil de aceitar que ela esteja sofrendo com depressão e TAG. Mesmo assim, ela está em tratamento, medicada e engajada em sessões de psicoterapia. E, assim como ela, há muitas pessoas que descobriram esses sentimentos agora, durante a pandemia do novo coronavírus. Mas também há milhões de pessoas que já tinham histórico de ansiedade e depressão e agora precisam lidar com um novo problema global. Além de ser o país mais ansioso do mundo, dados da OMS ainda indicam que o Brasil é o quinto em casos de depressão, que atinge  5,8% da população.

E essas pessoas, apesar de relativamente acostumadas ao problema, precisam de atenção redobrada neste período. O psiquiatra Érico Moura ressalta que a pessoa que já foi diagnosticada deve manter as orientações recebidas pelo médico e manter o uso da medicação, se for o caso. “Se estiver sem uso de medicação, apenas fazendo psicoterapia, pode tentar manter o atendimento online. É muito importante manter as suas rotinas, as atividades diárias.”

Profissionais da área de saúde mental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, instituição pública ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, realizaram uma pesquisa durante a pandemia. O estudo O impacto do distanciamento social nos ritmos biológicos e na saúde mental: um estudo da efetividade de intervenções em ritmos biológicos e sono foi feito à distância, com voluntários selecionados pelas redes sociais. A jornalista do Vós Flávia Cunha foi uma das escolhidas e,  seguir, compartilha um pouco da rotina de monitoramento.

Cada participante recebeu um actígrafo, um equipamento para monitorar ciclos de atividade e descanso. O aparelho, semelhante na aparência a um relógio de pulso, devia ser usado ao longo dos cerca de 40 dias de estudo. A outra parte da pesquisa era o preenchimento diário de um questionário online, com questões relacionadas ao sono, energia e concentração. Também havia perguntas sobre a frequência de hábitos, como assistir noticiários, praticar exercícios físicos e fazer atividades de lazer.

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UM DIA RUIM

“Acordei meio zonza depois de uma madrugada de insônia e ansiedade. Os pensamentos negativos foram se acumulando, enquanto as horas se passavam e o sono não vinha. Me imaginei contaminada. Como conseguiria atendimento sem plano de saúde? De que forma daria conta dos projetos que assumi? E aquele livro que estou produzindo, será lançado se eu ficar doente? E o evento online lá em novembro? O que aconteceria? O coração foi apertando, enquanto eu pensava nas contas que ficariam atrasadas se eu não pudesse trabalhar devido ao Covid. Mesmo estando confinada, há tantos meses, corro risco porque meu marido segue trabalhando e convivendo com várias pessoas. Sai de casa de máscara, tranquilo e sem pensar na possibilidade de ser mais um na longa lista de casos da doença. Gostaria de ser assim, de não me preocupar… Porque agora estaria dormindo, como ele. Depois de poucas horas de sono, acordo e preencho o formulário da pesquisa. Nada muito bom para relatar.”  – Flávia Cunha

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O medo de se infectar, segundo o médico psiquiatra Érico Moura, é normal. Isso não significa que seja fácil lidar com ele. “Eu acho que tem duas estratégias, uma individual e outra social ou familiar. Do ponto de vista individual, a gente tem que parar pra pensar no que está acontecendo. Existem muitos sentimentos. Neste momento, o medo é um sentimento predominante, seja o medo de ficar doente, de se contaminar, de contaminar as pessoas que a gente ama ou as pessoas que estão ao nosso redor. E o medo de todos, o medo da morte. Ao identificar o que nos dá medo e gera angústia ou apatia, ajuda bastante procurar canais pra resolver isso.” Ele explica que é importante não sufocar esse sentimento. Ou seja, é fundamental procurar resolver com algum profissional ou conversar com as pessoas que estão à nossa volta. “É importante falar sobre as coisas. O tédio, o vazio, a angústia, o que a gente tem que fazer, o que deixou de fazer, o que a gente vai perder em termos de ganhos financeiros, de oportunidades. Porque as pessoas que estão ao nosso redor estão sentindo coisas parecidas, perdendo coisas. Então pensar sobre isso é fundamental.”

O psiquiatra Érico Moura alerta, ainda, que é importante estar bem informado e procurar usar as fontes mais confiáveis do jornalismo. Mas sem exageros. “Existe uma música do Jorge Drexler que diz “Data, data, data, data, data, data, data / Cómo se bebe de una catarata”. Ou seja, com essa quantidade de dados que a gente recebe, como beber dessa cachoeira. Eu acho que é como uma dieta, a gente não pode comer muito, mas também não pode não comer nada. Então eu acho que a qualidade da nossa comida, da nossa informação, é fundamental para que a gente possa fazer uma digestão boa. Se a comida for muito pesada, vai demandar uma digestão mais longa. Então, nesse momento, o ideal é “comer” a informação aos poucos. Ficar se “embebedando” de uma informação tóxica, não ajuda, só aumenta a ansiedade. A gente tem que saber o que está acontecendo no mundo, ao redor da gente, mas o mais importante é a informação confiável.”

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UM DIA BOM

“É possível ser feliz durante uma pandemia? Me questiono, enquanto vibro com uma conquista profissional alcançada no privilégio do home office classe média. Cheia de energia e foco, meus dedos percorrem com agilidade o teclado do notebook, terminando mais um texto antes do dia do prazo final. Me levanto da cadeira sorrindo e vou tomar uma água. Decido me exercitar em casa ao som de uma boa música. Quase uma hora de atividade física, enquanto meus pensamentos percorrem as tarefas que preciso executar durante a semana. Penso nos milhares de mortos pelo coronavírus e meu entusiasmo diminui um pouco. Olho o celular, confiro as mensagens. Dou risada de um meme engraçado, com um pouco de remorso. O preenchimento do formulário acusará minha boa energia nesse dia e não sei se fico feliz ou triste com isso. A alegria na quarentena é um pouco envergonhada.”  – Flávia Cunha

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Todo sentimento é válido. No livro Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, existe um abismo entre quem os personagens são, o que cada um sente na intimidade e o que parecem ser. Septimus, por exemplo, carrega um trauma vivido na Primeira Guerra e não consegue falar dessa dor; Lucrezia, esposa de Septimus, não entende o marido e sofre com o fato de que a vida é diferente do que ela esperava; Peter lamenta um amor não correspondido; Richard tem dificuldade de expressar o que pensa. Na vida fora dos livros, decerto, não é diferente. E em um momento como esse, o ajuste é ainda mais difícil e delicado.

Esse é um momento em que a gente precisa se adaptar às mudanças, que são constantes. Cada dia uma nova disposição, cada dia um novo decreto, uma nova tragédia, uma nova esperança. Isso demanda calma e paciência. Mas ninguém precisa suportar isso sozinho. Milhares de pessoas estão enfrentando problemas como ansiedade e depressão e isso é absolutamente normal. Segundo o psiquiatra Érico Moura, o caminho está sendo construído dia a dia, ele não está pronto. “Lidar com a impotência, com a nossa fragilidade, é difícil. É difícil pensar que um vírus pode causar esse caos na sociedade. Então tem, sim, muitas coisas pra gente refletir. Mas podemos também aproveitar para pensar em construir uma sociedade mais democrática, mais igualitária, mais justa, em que as diferenças não sejam tão grandes de oportunidades, tratamento médico, de condições, de uma vida saudável, produtiva e de uma vida social gratificante e rica do contato humano.”

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 Assim, num dia de verão, as ondas se juntam, balançam e tombam; e o mundo inteiro parece dizer: “Isso é tudo”, cada vez mais forte, até que o coração, no corpo estendido sob o sol da praia, também diz: “Isso é tudo”. “Não mais temas”, diz o coração. “Não mais temas”, diz o coração, confiando a sua carga a algum mar que suspira coletivamente por todas as dores, e recomeça, ergue-se, tomba. E o corpo sozinho ouve a abelha que passa; a onda se quebra; o cão, lá ao longe, ladrando, ladrando… 

Mrs Dalloway – Virginia Woolf

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*A identidade foi preservada a pedido da entrevistada

PodCasts

BSV Especial Coronavírus #20 O vírus do autoritarismo e a máscara de Bolsonaro

Geórgia Santos
12 de agosto de 2020

Enquanto a gente se protege desse vírus novo, o governo de Jair Bolsonaro infecta a democracia brasileira com um vírus antigo, o do autoritarismo.

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Na última semana, o Vós lançou um documentário em áudio chamado Democracia Infectada, justamente mostrando os traços do autoritarismo de um governo extremamente militarizado e centrado na figura de Bolsonaro
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Passados alguns dias, uma série de eventos corrobora o nosso argumento. Na edição deste mês da Revista Piauí, uma reportagem da jornalista Monica Gugliano reconstrói o dia em que Bolsonaro decidiu intervir no Supremo Tribunal Federal. No dia dois de agosto, reportagem de Raquel Lopes na Folha de São Paulo indica que o governo Bolsonaro tem uma média de uma denúncia de assédio moral por dia por parte de servidores. Eles relatam perseguição ideológica e toda uma sorte de constrangimentos.

Sem contar o dossiê do Ministério da Justiça e Segurança Pública sobre quase 600 servidores públicos ligados a movimentos antifascistas. Tudo isso associado a um comportamento antidemocrático de Jair Bolsonaro que, convenhamos, não é novidade.

Para discutir a desintegração da democracia brasileira, participam os jornalistas Geórgia Santos, Flávia Cunha, Igor Natusch. Você também pode ouvir o episódio no SpotifyItunes e Castbox e outros agregadores.

Vós Pessoas no Plural · BSV Especial Coronavírus #20 O vírus do autoritarismo e a máscara de Bolsonaro