Geórgia Santos

O dia da mentira

Geórgia Santos
1 de abril de 2019

Muito se falou das comemorações do 31 de março. A tal celebração do golpe militar que culminou com uma ditadura que amordaçou, torturou e matou o Brasil ao longo de 21 anos. A questão é que enquanto militares e golpistas celebram a “revolução” em 31 de março, os fatos mostram que o golpe de 1964 ocorreu em 1º de abril. Sim, no Dia da Mentira – ou dos bobos, como queiram. 

O processo que culmina com o golpe de Estado começou quando as tropas comandadas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 31 de março. No momento em que se iniciou o deslocamento, o presidente João Goulart estava no Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia seguinte. O marco da queda de Jango é quando ele deixa Brasília, na noite de primeiro de abril de 1964. Ele chegou a Porto Alegre no dia dois quando, na mesma madrugada, o presidente da Câmara e golpista, deputado Ranieri Mazzilli, era empossado presidente. Aqui, o jornalista Mário Magalhães detalha a cronologia dos acontecimentos. 

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O fato de o golpe ter se concretizado no Dia da Mentira não é coincidência, é simbólico

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Há 55 anos há narrativas diferentes em disputa sobre o período da Ditadura. Inclusive narrativas mentirosas, como a de que os militares livraram o Brasil de uma ditadura comunista; de que toda a população brasileira era a favor do regime; de que apenas criminosos eram torturados (como se isso fosse aceitável); e por aí vai. Isso acontece, em parte, em função da decisão equivocada de não punir golpistas, torturadores e assassinos no período da transição para a democracia.  Recentemente, porém, o argumento de que “no tempo dos militares era melhor” ganhou força e solidificou-se no imaginário popular com a retórica do agora presidente Jair Bolsonaro. E o resultado disso é uma confusão que assola os incautos e reforça uma histeria coletiva que enxerga comunismo em tudo o que se move na direção contrária.

 

Algumas mentiras da ditadura

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1. “A ditadura no Brasil foi branda”

Convencionou-se chamar a Ditadura Militar brasileira de “ditabranda” porque, segundo as pessoas que se apoiam nesse termo, foi um regime menos cruel e sanguinário que outras ditaduras latino-americanas, como as instituídas na Argentina e Chile, por exemplo. O termo foi utilizado, inclusive, em editorial do jornal Folha de São Paulo, em 17 de fevereiro de 2009. 

Ignora-se, porém, o fato de que os direitos fundamentais do ser humano eram constantemente violados no Brasil. Tortura era a regra e assassinatos de presos político – e crianças – eram frequentes nos “porões” dos departamentos de “correção”. Em documento secreto de 1974 revelado no ano passado, o então diretor da CIA, William Egan Colby, escreveu que o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, não apenas sabia como autorizou execuções de opositores durante a ditadura. 

O relatório final da Comissão da Verdade indica que o regime é responsável pela morte ou desaparecimento de, pelo menos, 434 pessoas. 

OUÇA o primeiro episódio do podcast Sobre Nós, que traz relatos reais de vítimas de tortura durante a ditadura militar no Brasil.

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2. “A educação era melhor”

Comecemos pelo fato de que os militares tinham controle sobre informações e ideologia, o que empobrecia e distorcia o currículo das disciplinas de humanas. Tanto que Filosofia e Sociologia foram substituídas por Educação, Moral e Cívica e por OSPB (Organização Social e Política Brasileira).

Além disso, segundo o Mapa do Analfabetismo no Brasil, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), o Mobral foi um “retumbante fracasso”. O Movimento Brasileiro para Alfabetização era a resposta do regime militar ao método de Paulo Freire, que era considerado subversivo apesar de, já naquele momento, ter reconhecimento internacional e ajudado a erradicar o analfabetismo em outros países com seu método. Mas o contra-ataque não trouxe resultados positivos.

Também com relação ao ensino superior os números da democracia são superiores. Entre 1980 e 2016, a população brasileira cresceu 1,7 vezes. No mesmo período, o número de matrículas cresceu 4,75 vezes.

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3. “A saúde funcionava”

Antes de mais nada, o acesso à saúde era restrito, não era universal como é hoje. O Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) era responsável pelo atendimento público, mas era exclusivo a quem tinha carteira de trabalho assinada. Em 1976, os hospitais privados eram responsáveis por quase 98% das internações – lembrando que planos de saúde não existiam.

O saneamento básico, fundamental quando o assunto é saúde, também era um problema.  No início da década de 1980, o percentual de lares com acesso à agua potável não chegava a 60%, agora, esse número está perto de 100%. 

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4. “Não havia corrupção no Brasil”

É impossível auferir corrupção sem transparência. E tudo o que a ditadura militar não tinha era transparência. Não havia conselhos de fiscalização, a sociedade civil organizada não tinha acesso ao fluxo de recursos do governo federal e, depois da dissolução do Congresso, as contas públicas não eram sequer analisadas. Obras imensas como Itaipu, Transamazônica e a Ferrovia do Aço foram executadas sem fiscalização ou controle de gastos, por exemplo.

O coletivo Brasil em Dados e o Transparência Brasil mostram como combate à corrupção evoluiu durante a democracia.

Nenhuma descrição de foto disponível.

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5. “Os militares evitaram que o Brasil virasse Cuba”

João Goulart tinha, para os golpistas, todos os atributos para ser um comunista. Quando era vice, liderou uma missão econômica e parlamentar à China, à União Soviética e outros países do oriente – missão apoiada pelo então presidente, Jânio Quadros, que entendia que a aproximação traria benefícios econômicos aos brasileiros. Durante a viagem, porém, o presidente renunciou e Jango precisou retornar ao Brasil. Ele só assumiria a cadeira, porém, após o Movimento da Legalidade entrar em cena e garantir o que era seu de direito.

O governo de João Goulart era constitucional e seguia o protocolo. Mas a questão fundamental é que ele sequer era marxista. Populista, provavelmente. Comunista, não. Ele inclusive rejeitou a expressão em entrevista inédita divulgada pela Folha em 2014. “As pessoas na América Latina não são inclinadas ao comunismo. Justiça social não é algo marxista ou comunista”, disse. O jornal encontrou, na Universidade do Texas, a entrevista feita pelo historiador americano John W. Foster Dulles (1913-2008) em 15 de novembro de 1967 em Montevidéu.

Em 1964, o Brasil estava sob efeito da narrativa norteamericana do período da Guerra Fria, em que se confundia justiça social com comunismo – soa familiar? Ele defendia reformas de base, justiça e bem-estar social. Aos ouvidos de um mundo polarizado e paranóico, isso era papo de comunista. Também por isso, Jango creditou sua queda à influencia de Lyndon Johnson, presidente dos EUA à época. A participação americana no golpe, sabe-se, não foi direta, mas a retórica interessava aos americanos. “Não há, no Brasil, um sentimento contra o povo dos EUA. […] O país às vezes sente que há um excesso de interferência dos EUA, que falam muito em democracia, mas deveriam permitir a democracia”, disse Jango. 

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6. “A população queria a ditadura”

Pesquisas feitas pelo Ibope em 31 de março, mostram que Jango tinha amplo apoio popular. Em São Paulo capital, a aprovação chegava a 70%. A pesquisa não foi revelada à época, mas foi catalogada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Além disso, durante 25 anos, a escolha do presidente do país não estava submetida à vontade popular, afinal, não era uma democracia. Ou seja, a vontade popular era o que menos importava. 

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7. “O Brasil cresceu”

É verdade que houve um período de crescimento acelerado entre 1968 e 1973. Tempo conhecido por Milagre Econômico, em que o Brasil cresceu acima de 10% ao ano. Mas os pesquisadores do coletivo Brasil em Dados mostram que o período Militar aumentou a desigualdade e a concentração de renda. Quem era rico ficou mais rico, e quem era pobre ficou mais pobre. 

Até pouco tempo, dizia-se que o Milagre Econômico havia dado oportunidades aos mais produtivos e qualificados. Ou seja, se a desigualdade aumentou durante a ditadura, era uma espécie de consequência da meritocracia. Mas os dados (cf. Souza, 2018) mostram que a desigualdade durante a Ditadura Militar aumentou justamente no período de austeridade (1964-1967) e não durante o crescimento econômico acelerado.

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Tem correlação, portanto, com a política de redução do salário mínimo, que chegou a 50%; com as reformas fiscal e tributária; com as mudanças no direito do trabalho; com a repressão aos sindicatos e aos trabalhadores; e com os incentivos fiscais dados às empresas.

Sem falar no principal legado do regime: o aumento da dívida externa. Em 1984, o Brasil devia o equivalente a 53,8% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Mais da metade do que arrecadava.

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8. “Só morreram vagabundos”

Além dos 434 mortos e desaparecidos pelas mãos do regime, há o genocídio de povos indígenas  durante a construção da Transamazônica. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, 8 mil índios morreram entre 1971 e 1985.

Também devemos lembrar que muitas das vítimas da ditadura não faziam parte da guerrilha ou da luta armada.  Rubens Paiva e Vladimir Herzog são dois casos emblemáticos. Relatos de outras vítimas ainda dão conta do sequestro e tortura de crianças, por exemplo.


OUÇA o episódio 5 do podcast Bendita Sois Vós, em que conversamos com o sociólogo Rogério Barbosa, do coletivo Brasil Em Dados, que mostra, por meio de uma série de indicadores, as melhores que a democracia trouxe para o Brasil.

 

Foto de capa original: Arquivo / Estadão Conteúdo

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OUÇA Bendita Sois Vós #22 Marielle, presente!

Geórgia Santos
16 de março de 2019

Nesta semana, o assunto não poderia ser outro a não ser o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, ocorrido há um ano. Na noite de 14 de março de 2018, a ativista e vereadora pelo PSOL foi morta a tiros no Rio de Janeiro. Marielle nasceu e foi criada na favela da Maré. Tinha 38 anos de idade, atuava há mais de dez anos na defesa dos direitos humanos, das mulheres e jovens negros, de moradores de favelas e pelo direito de pessoas LGBT. Marielle também era combativa na denúncia de execuções extrajudiciais e outras violações cometidas por policiais e milicianos. Nesta semana, um ano depois de sua morte, algumas respostas.

Na terça-feira, dia 12, a polícia civil do Rio de Janeiro prendeu dois suspeitos de participarem do assassinato da vereadora. O policial militar reformado Ronnie Lessa e o ex-policial militar Élcio Vieira de Queiroz. Ambos negam participação no crime. Mas segundo a denúncia, Lessa teria disparado os tiros e Queiroz dirigido o carro que interceptou Marielle. É um avanço, mas, como disse o delegado Giniton Lages, da Delegacia de Homicídios, nada está encerrado.

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Por isso, a nossa pergunta é: quem mandou matar Marielle?

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Mas o Bendita Sois Vós desta semana será diferente, não vamos nos propor a responder à pergunta como é de praxe. Acreditamos, ainda, na seriedade da investigação e que cabe às autoridades essa reposta. Verdade que as prisões trouxeram à baila uma série de informações gravíssimas que mostram uma proximidade suspeita com uma série de pessoas importantes no contexto da política nacional. Mas nesta semana nós não vamos discutir ou debater ou conjecturar. Vamos ouvir. Vamos ouvir a irmã de Marielle, Anielle Franco.

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“Cada um na família perdeu a Marielle de uma forma diferente”

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Em um depoimento bastante objetivo, Anielle fala de como recebeu a notícia da prisão, da falta que sente da irmã, da dificuldade em lidar com mentiras e agressividade e do projeto do Instituto Marielle Franco. Mas principalmente, ela mostra um pouco da essência daquela que, segundo ela, era o ponto de equilíbrio da família.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Vida Schabbach trazem O Método, de Julio Cesar Monteiro Martins,  um texto realístico sobre o período da Ditadura Militar que faz parte da antologia de contos chamada Histórias de um Novo Tempo.

Geórgia Santos

Bom sujeito, não é

Geórgia Santos
12 de março de 2019

Há poucos dias, li algo curioso sobre a vida do Rei Ludwig II da Baviera, que reinou entre 1864 e 1886. No texto A Oktoberfest Escondida (tradução livre), o autor garante que o chamado “Rei de Contos de Fada” detestava a célebre festa bávara. Ao que tudo indica, Ludwig II era um misantropo que não gostava de grandes aglomerações, tinha pavor de cerveja e não gostava da Oktoberfest. O texto carece de fontes, embora a personalidade reclusa do monarca seja facilmente confirmada pela literatura e História. De qualquer forma, fiquei intrigada com esse regente  que não gostava de cerveja e desprezava a festa mais famosa de seu reino.

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Imediatamente, pensei que seria o mesmo que um presidente do Brasil detestar o carnaval

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Não propriamente impensável, afinal, cada um sabe de seu cada um, como diz meu pai. Mas seria curioso, especialmente depois de testemunharmos tantos presidentes aproveitando a folia à sua maneira. Quem não lembra de Itamar Franco curtindo um camarote ao lado de Lilian Ramos? Fernando Henrique Cardoso não foi à Sapucaí durante seu mandato, mas assistiu aos desfiles em 2013 e até deu entrevista enquanto molhava o bico. Luiz Inácio prestigiou o carnaval do Rio de Janeiro quando ainda era presidente. Tem até foto de Lula tascando um beijo na careca do Neguinho da Beija-Flor. Dilma, quando ainda era ministra, vestiu um chapéu colorido e assistiu ao Galo da Madrugada em Pernambuco.

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De fato, seria curioso um presidente do Brasil detestar o carnaval

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Mas minha curiosidade seria satisfeita em breve, afinal, a realidade brasileira não decepciona, jamais. No dia do carnaval, o presidente Jair Bolsonaro fez o impensável. Publicou, no Twitter, um vídeo em que um homem urina sobre a cabeça de outro homem, na rua, durante a festa de um bloco de carnaval. Com a seguinte legenda:

“Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões.”

O vídeo foi publicado sem restrição, para que todos pudessem ver e, como disse o presidente, comentar. Como se a situação não pudesse ficar pior, perguntou, também no Twitter, o que era “golden shower”, em alusão ao ato praticado pelos protagonistas das imagens divulgadas pelo chefe de Estado. Essa foi a forma que Bolsonaro encontrou para responder às críticas que recebeu em blocos de carnaval Brasil afora, em que até o seu boneco de Olinda levou cerveja na cara.

Ludwig II podia não gostar da Oktoberfest. Aliás, o tal texto dá conta de que, em 22 anos de reinado, só foi à festa em seis ocasiões e, mesmo assim, relutante. Praticamente arrastado. Mas foi. Não só foi como não teve a intenção de desmoralizá-la, pelo que consta. Não apenas tolerava como compreendia a importância das festividades para o fortalecimento da cultura de seu povo. Ludwig II podia não gostar da Oktoberfest, mas a respeitava. Algo que Bolsonaro parece desconhecer.

Preferia ter ficado na curiosidade. Preferia não saber como é ter um presidente no Brasil que não aprecie a importância do carnaval. Como diria Dorival Caymmi, bom sujeito, não é. Ruim da cabeça ou doente do pé. 

 

 

 

 

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OUÇA Bendita Sois Vós #21 O presidente agradece ao senhor Gustavo Bebianno?

Geórgia Santos
24 de fevereiro de 2019

É impossível deixar passar em branco a primeira crise política com consequências concretas do governo de Jair Bolsonaro. Gustavo Bebianno, o ministro da Secretaria-Geral de Governo, foi exonerado em 18 de fevereiro. Bebianno também era presidente do PSL durante a eleição. Essa é uma crise com muitas ramificações. Que vão desde o uso de laranjas na campanha de 2018, passando pela intromissão dos filhos do presidente no governo e chegando à primeira crise concreta de gestão, que provocou consequências importantes em um governo que parece não saber lidar com a rotina da POLÍTICA. Por isso, o Bendita Sois Vós desta semana pergunta: O presidente realmente agradece ao senhor Gustavo?

Participam os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol, que entrevista o professor Marcos Marinho, pesquisador e consultor em comunicação e marketing político. 

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon trazem algumas palavras de Galeano.

Geórgia Santos

A involução da ética de Moro

Geórgia Santos
20 de fevereiro de 2019

As pessoas mudam de opinião. É do jogo. Aliás, é saudável. Não há nada mais triste que um ser humano não disposto a aprender e evoluir. Convicção, por outro lado, é outra história. É uma opinião obstinada, uma crença embasada, ainda que não científicamente, em evidências ou motivos particulares. E o juiz Sérgio Moro tinha uma série dessas convicções a respeito da política brasileira e as expressava com a legitimidade de quem combatia a corrupção de forma vigorosa. Como nunca antes na história desse país, diziam alguns.

Como uma das figuras mais importante da Operação Lava Jato, Moro sempre foi firme em suas convicções. O então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba foi quem condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a nove anos e meio de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá.

Moro sempre foi firme em suas convicções. Inclusive quando alguém tentava minimizar ocorrências como o Caixa 2, o então juiz era taxativo quanto à gravidade dos danos provocados por políticos em campanhas eleitorais. Durante palestra na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Moro disse que Caixa 2 é pior que a corrupção tradicional. Ou seja, que  que a corrupção para financiamento de campanha era mais grave que o desvio de recursos para o enriquecimento ilícito.

– Temos que falar a verdade, a Caixa 2 nas eleições é trapaça, é um crime contra a democracia. Me causa espécie quando alguns sugerem fazer uma distinção entre a corrupção para fins de enriquecimento ilícito e a corrupção para fins de financiamento ilícito de campanha eleitoral. Para mim a corrupção para financiamento de campanha é pior que para o enriquecimento ilícito. Se eu peguei essa propina e coloquei em uma conta na suíça, isso é um crime, mas esse dinheiro está lá, não está mais fazendo mal a ninguém naquele momento. Agora, se eu utilizo para ganhar uma eleição, para trapacear uma eleição, isso para mim é terrível. Eu não estou me referindo a nenhuma campanha eleitoral específica, estou falando em geral.

A fala de Moro foi aplaudida em Harvard e a cruzada contra a corrupção transformou o juiz em uma espécie de herói nacional e o Super Moro estampava camisetas em manifestações populares coloridas de verde e amarelo. Como consequência, mesmo tendo afirmado em mais de uma ocasião que jamais entraria para a política, aceitou largar a toga para se tornar ministro no governo de Jair Bolsonaro.   A contradição não incomodou aos fãs do paladino da Justiça. E assim que aceitou o convite, Moro deixou claro que o “Pacote anticorrupção” seria a base de sua gestão.

Mas, nem tudo saiu como grande parte da população esperava. Ao contrário do juiz, o ministro Sérgio Moro não parece tão firme assim em suas convicções. Ao apresentar o famoso pacote de medidas para combater a corrupção, Moro dividiu o planos em três e, pasmem, deixou de lado a proposta que criminaliza o Caixa 2. Não deixou de lado, propriamente. Deixou “em separado” porque houve reclamações dos políticos. “Alguns políticos se sentiram incomodados de isso ?o crime de caixa 2?ser tratado junto com corrupção e crime organizado. Fomos sensíveis”, disse o ministro. Foram sensíveis, disse o ministro.

Obviamente o pacote não seria aprovado pelos deputados, entre os quais a prática do Caixa 2 é, sabidamente, muito comum. Mas ao desmantelar o pacote anticorrupção, Moro flexibilizou ainda mais suas convicções e atenuou a gravidade da prática ao dizer que “Caixa 2 não é corrupção”.

“Não, caixa dois não é corrupção. Existe o crime de corrupção e existe o crime de caixa dois. Os dois crimes são graves. Aí é uma questão técnica”, disse Moro.

 

Em 2016, Caixa 2 era trapaça.

Em 2017, Caixa 2 era pior que o desvio de recursos para enriquecimento ilícito e crime contra a democracia.

Em 2018, diminuiu a gravidade do Caixa 2 praticado – e assumido – pelo então deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), hoje ministro. “Quanto a esse episódio do passado, ele mesmo admitiu seus erros e pediu desculpas e tomou as providências para repará-lo”, explicou Moro.

Em 2019, após reiterar que era trapaça, Moro disse que Caixa 2 não era tão grave quanto o enriquecimento ilícito.

Aparentemente, a involução da ética de Moro acontece de acordo com as funções e cargos que ocupa. As convicções do juiz com relação à corrupção não se sustentam diante das opiniões do ministro.

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OUÇA Bendita Sois Vós #20 Até quando vamos morrer em tragédias evitáveis?

Geórgia Santos
16 de fevereiro de 2019

Já nos sentimos sobrecarregados com tudo o que aconteceu desde o primeiro dia de 2019. Em 25 de janeiro, uma barragem de minérios da empresa Vale rompeu-se no município de Brumadinho, em Minas Gerais. Até o momento, são 165 mortos, 155 desaparecidos e 138 pessoas desabrigadas. No dia seis de fevereiro, uma chuva torrencial provocou alagamentos e deslizamentos no Rio de Janeiro. Sete pessoas morreram. Dois dias depois, um incêndio atingiu o alojamento da base do Flamengo e dez adolescentes morreram. O que todas essas tragédias tem em comum? São evitáveis. Nada disso precisava ter acontecido se houvesse cuidado, fiscalização, responsabilidade e, principalmente, preocupação com a vida das pessoas. Por isso o Bendita Sois Vós pergunta até quando vamos morrer em tragédias que poderiam ter sido evitados?

Participam os jornalistas Geórgia Santos e Igor Natusch.  Juliana Deprá, representante do Movimento dos Atingidos por Minério (MAM) fala sobre Brumadinho e os impactos da extração de minério no Brasil. Já o professor Telmo Brentano, que é engenheiro civil e especialista em incêndio, fala sobre o incêndio no CT do Flamengo. 

No Sobre Nós, Raquel Grabauska aborda a questão da legislação no Brasil e em outros países. 

O Bendita Sois Vós também está disponível em Spotify, Itunes e Castbox.

Geórgia Santos

A falta que Boechat já faz

Geórgia Santos
12 de fevereiro de 2019

Toda morte repentina causa choque e traz aquela sensação egoísta de que não houve tempo para a despedida. A surpresa é inevitável e desconcertante. Parece que a qualquer momento alguém vai dizer que não é verdade, que foi um engano e tudo permanece bem, igual. Quando é alguém conhecido do grande público, a perplexidade se amplifica e o luto se alastra. Já não precisa ser íntimo  para chorar e doer. É assim sempre e foi assim com a morte do jornalista Ricardo Boechat, que faleceu após a queda de um helicóptero em São Paulo. O piloto, Ronaldo Quattrucci, também morreu no acidente.

A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos chocou o país. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos encheu de dor o coração da esposa, dos seis filhos, de amigos e colegas que destacam, incansavelmente, sua generosidade e profissionalismo. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos deixou um vazio no jornalismo brasileiro.

Não vou entrar no mérito sobre Boechat ser ou não o melhor jornalista do país. Ele é um ídolo e referência para milhares de profissionais. Assim como há pessoas que o respeitavam, mas que não tinham tanta afinidade com seu estilo. Assim como há pessoas que não gostavam do trabalho dele. Faz parte. É do jogo. Dito isso, é inegável que Boechat era uma voz corajosa e lúcida em um momento delicado.

Não concordei com tudo o que Boechat já disse. Pelo contrário. Frequentemente me incomodava com a forma com que abordava determinados temas. Mas mesmo me incomodando, era importante que um âncora de televisão e rádio de uma grande emissora tivesse a liberdade para sair do script do TP. A sua obsessão pela informação precisa e constante indignação eram mais do que necessárias em tempos de pós-verdade. Mais do que isso, eram uma raridade no jornalismo diário da mídia tradicional. E a prova de sua importância está registrada em diversos momentos marcantes de sua carreira.

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“…pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia”

Em 2015, colocou o dedo na ferida quando disse que era no âmbito de igrejas neopentecostais que acontecia  a incitação à intolerância religiosa. Mais que em outras esferas da vida em sociedade. A declaração provocou a fúria do pastor Silas Malafaia, que publicou no Twitter: “Avisa o jornalista Boechat que está falando asneira, dizendo que os pastores incitam os fiéis a praticarem intolerância; um verdadeiro idiota”. O pastor ainda convocou o jornalista para um debate. Em seu programa diário na rádio BandNews, Boechat disse, após mandar o religioso “procurar uma rola”, que Malafaia era “um idiota, um paspalhão, um pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia.”

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“Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber”

Em 2016, após o então deputado Jair Bolsonaro homenagear Brilhante Ustra durante sessão de votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, Boechat não deixou barato. “Registre-se a infinita capacidade do deputado Jair Bolsonaro de atrair para si os holofotes falando barbaridades sucessivamente. […] Torturadores não têm ideologia. Torturadores não têm lado. Não são contra ou pró-impeachment. Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber. São covardes, são assassinos e não mereceriam, em momento algum, serem citados como exemplo. Muito menos numa casa Legislativa que carrega o apelido de casa do povo”.

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“A culpa está no campo da Vale e da fiscalização”

No último programa que comandou, o jornalista Ricardo Boechat chamou a atenção para a impunidade que permeia os grandes desastres no Brasil, como foi o caso de Brumadinho. “A culpa não pode ter recaído sobre o Vaticano, nem na república da Bessarábia. A culpa está no campo da Vale, no campo da legislação”, disse.

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A falta que Boechat já faz é escancarada a partir do momento em que há quem comemore sua morte. Seja porque foi “um artífice do golpe”; “porque criticava Bolsonaro”; ou porque “mexeu com Deus e os pastores”. Uma sociedade em que as pessoas celebram a dor precisa, justamente, de alguém como ele. De alguém que não se intimida diante da ignorância, que não se acanha perante o obscurantismo.

Foto: Reprodução/Band

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OUÇA Bendita Sois Vós #19 Quais os possíveis impactos da flexibilização da posse de armas?

Geórgia Santos
25 de janeiro de 2019

Jair Bolsonaro assinou o decreto que facilita a posse de armas no Brasil. Algumas mudanças foram questionadas, outras aceitas pelos correligionários. Embora as regras não tenham mudado tanto, demonstram uma retórica a ser perseguida nos próximos anos. Mas as consequências serão percebidas somente a longo prazo. Então, no episódio 19 do podcast Bendita Sois Vós, perguntamos quais os possíveis impactos da flexibilização da posse de armas?

Participam os jornalistas Tércio Saccol, Flávia Cunha e Igor Natusch. Ainda uma entrevista com a coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi. 

No Sobre Nós, “A primeira hora em que o filho do sol brincou com chumbinhos”, de Matilde Campilho. 

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OUÇA Bendita Sois Vós #18 Precisamos falar sobre Venezuela

Geórgia Santos
18 de janeiro de 2019

No episódio 18, os jornalistas do Bendita Sois Vós colocam o dedo na ferida. Precisamos falar sobre Venezuela. Êxodo populacional, hiperinflação, violência análoga a guerra, fome e embargos. A Venezuela experimenta uma crise com muitas causas e poucas perspectivas de melhora. Uma crise complexa.

Para discutir as origens e as lógicas econômicas e sociais da convulsão venezuelana, os jornalistas Flávia Cunha, Igor Natush e Tércio Saccol conversam com o também jornalista Álvaro Andrade, que recentemente esteve na Venezuela experimentando de perto a realidade do país militarista. O Oficial de Soluções Duradouras do ACNUR no Brasil, Paulo Sergio Almeida analisa a imigração venezuelana.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon  trazem um sensível relato sobre Caracas.

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OUÇA Bendita Sois Vós #15 O que levamos de 2018?

Geórgia Santos
28 de dezembro de 2018

No último episódio do ano, os jornalistas do Bendita Sois Vós perguntam o que aprendemos em 2018 e fazem uma retrospectiva dos principais acontecimentos. Foi um ano intenso em que testemunhamos, perplexos, a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes. Em seguida, a prisão do ex-presidente Lula. Greve dos caminhoneiros, Copa do Mundo, incêndio no Museu Nacional, Bolsonaro esfaqueado, eleições, Bolsonaro eleito presidente, e agora João de Deus culpando o todo poderoso pelos crimes dos quais é acusado.

Participam da conversa os jornalistas Geórgia Santos, Igor Natusch e Tércio Saccol.

No Sobre Nós desta semana, Raquel Grabauska e Angelo Primon trazem Luis Fernando Veríssimo.