Geórgia Santos

A falta que Boechat já faz

Geórgia Santos
12 de fevereiro de 2019

Toda morte repentina causa choque e traz aquela sensação egoísta de que não houve tempo para a despedida. A surpresa é inevitável e desconcertante. Parece que a qualquer momento alguém vai dizer que não é verdade, que foi um engano e tudo permanece bem, igual. Quando é alguém conhecido do grande público, a perplexidade se amplifica e o luto se alastra. Já não precisa ser íntimo  para chorar e doer. É assim sempre e foi assim com a morte do jornalista Ricardo Boechat, que faleceu após a queda de um helicóptero em São Paulo. O piloto, Ronaldo Quattrucci, também morreu no acidente.

A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos chocou o país. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos encheu de dor o coração da esposa, dos seis filhos, de amigos e colegas que destacam, incansavelmente, sua generosidade e profissionalismo. A morte abrupta e violenta desse homem de 66 anos deixou um vazio no jornalismo brasileiro.

Não vou entrar no mérito sobre Boechat ser ou não o melhor jornalista do país. Ele é um ídolo e referência para milhares de profissionais. Assim como há pessoas que o respeitavam, mas que não tinham tanta afinidade com seu estilo. Assim como há pessoas que não gostavam do trabalho dele. Faz parte. É do jogo. Dito isso, é inegável que Boechat era uma voz corajosa e lúcida em um momento delicado.

Não concordei com tudo o que Boechat já disse. Pelo contrário. Frequentemente me incomodava com a forma com que abordava determinados temas. Mas mesmo me incomodando, era importante que um âncora de televisão e rádio de uma grande emissora tivesse a liberdade para sair do script do TP. A sua obsessão pela informação precisa e constante indignação eram mais do que necessárias em tempos de pós-verdade. Mais do que isso, eram uma raridade no jornalismo diário da mídia tradicional. E a prova de sua importância está registrada em diversos momentos marcantes de sua carreira.

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“…pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia”

Em 2015, colocou o dedo na ferida quando disse que era no âmbito de igrejas neopentecostais que acontecia  a incitação à intolerância religiosa. Mais que em outras esferas da vida em sociedade. A declaração provocou a fúria do pastor Silas Malafaia, que publicou no Twitter: “Avisa o jornalista Boechat que está falando asneira, dizendo que os pastores incitam os fiéis a praticarem intolerância; um verdadeiro idiota”. O pastor ainda convocou o jornalista para um debate. Em seu programa diário na rádio BandNews, Boechat disse, após mandar o religioso “procurar uma rola”, que Malafaia era “um idiota, um paspalhão, um pilantra, tomador de grana de fiel, explorador da fé alheia.”

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“Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber”

Em 2016, após o então deputado Jair Bolsonaro homenagear Brilhante Ustra durante sessão de votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, Boechat não deixou barato. “Registre-se a infinita capacidade do deputado Jair Bolsonaro de atrair para si os holofotes falando barbaridades sucessivamente. […] Torturadores não têm ideologia. Torturadores não têm lado. Não são contra ou pró-impeachment. Torturadores são apenas torturadores. É o tipo humano mais baixo que a natureza pode conceber. São covardes, são assassinos e não mereceriam, em momento algum, serem citados como exemplo. Muito menos numa casa Legislativa que carrega o apelido de casa do povo”.

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“A culpa está no campo da Vale e da fiscalização”

No último programa que comandou, o jornalista Ricardo Boechat chamou a atenção para a impunidade que permeia os grandes desastres no Brasil, como foi o caso de Brumadinho. “A culpa não pode ter recaído sobre o Vaticano, nem na república da Bessarábia. A culpa está no campo da Vale, no campo da legislação”, disse.

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A falta que Boechat já faz é escancarada a partir do momento em que há quem comemore sua morte. Seja porque foi “um artífice do golpe”; “porque criticava Bolsonaro”; ou porque “mexeu com Deus e os pastores”. Uma sociedade em que as pessoas celebram a dor precisa, justamente, de alguém como ele. De alguém que não se intimida diante da ignorância, que não se acanha perante o obscurantismo.

Foto: Reprodução/Band

Do seu gênero

Mulheres também sabem, sabia?

Évelin Argenta
11 de janeiro de 2019

Como as mulheres estão presentes na mídia? Foi para ter uma resposta para essa pergunta que comecei uma pesquisa em busca de trabalhos que retratem como a mulher aparece na imprensa. Trabalho com produção diária de notícias há quase 10 anos (eita!) e foi somente nos últimos dois que comecei a questionar a presença de mulheres como FONTE de informação.

A prevalência masculina nas agendas jornalísticas nem precisa de pesquisa para ser comprovada. Você, amigo jornalista, faça um teste. Pense em uma fonte para falar sobre o discurso do presidente Jair Bolsonaro nas relações internacionais do governo, por exemplo. Se o primeiro nome que veio a sua mente foi um nome feminino, parabéns! É de gente como você que a difusão de conhecimento precisa.

As mulheres são maioria em todos os níveis de ensino e nas bolsas de iniciação científica e mestrado do CNPq. Olhando os dados do próprio CNPq e do Inep percebi que as mulheres representam 57% do público nos cursos de graduação, 55% dos cursos de iniciação científica, 52% dos programas de mestrado e 50% no doutorado. A curva começa a inverter quando o caminho traçado é a docência.

Apesar de serem minoria durante todo o caminho acadêmico, os homens chegam à docência universitária e têm o reconhecimento à pesquisa em menos tempo. Eles lideram 53% dos grupos de pesquisa. Cinquenta e quatro por cento dos professores universitários são homens e 64% das bolsas de produtividade em pesquisa são destinadas aos homens.

Em 2018 eles chegaram ao topo da vida acadêmica aos 50 anos. Elas, aos 55. E a maternidade é apontada como uma das causas do “atraso”. Há uns dois anos, produzindo uma reportagem para retratar o número cada vez maior de mulheres que não queriam ter filhos no Brasil, conversei com a presidente da ONG Artemis, Raquel Marques. Se quiser ouvir a reportagem, ela está aqui 

Depois de uma longa conversa sobre os fatores que levam as mulheres e quererem menos filhos, ela me fez refletir sobre algo que, apesar de óbvio, ainda não tinha aparecido no meu raciocínio. Raquel disse que, normalmente, o ápice profissional das mulheres coincide com o limite biológico para gerar filhos. É que muitas de nós, aos 40 anos, estamos com a seguinte pergunta em mente: “ser a teta das galáxias na minha área ou desacelerar e ter um filho?”

Se a resposta for a primeira, você vai ser julgada como insensível e irresponsável. A Previdência precisa de seus úteros, meninas! Se você escolher a segunda opção, prepare-se. Quando você voltar ao trabalho, precisará concorrer com o seu colega que, na mesma idade que você, não terá que “deixar o trabalho” eventualmente para cuidar da cria. Ah, sim…mesmo que ele seja pai.

É por esse motivo que muitas mulheres são “esquecidas” em suas áreas de trabalho. A ideia de conhecimento foi social e culturalmente ligada ao gênero masculino.  É por isso que as agendas jornalísticas (onde estão as fontes para qualquer assunto) são predominantemente masculinas. Tem dúvida? Então olha só esse estudo feito pelo Global Media Monitoring Project (GMMP), em 2015. O Grupo de Monitoramento Global da Mídia (ufa!) analisou 22.136 relatos transmitidos jornalistas de 2.030 veículos de comunicação em 114 países. É o estudo mundial desse tipo mais recente. O resultado:

  • somente 24% das matérias de rádio, TV ou jornal de 2015 contaram com mulheres como fontes;
  • quando o assunto foi política ou economia, as mulheres representaram apenas 16% das fontes;
  • apenas 35% das notas informativas ou programas diários de televisão retrataram mulheres em 2015;
  • a seleção das fontes para o jornalismo em 2015 se concentrou nos homens. O estudo mostra que a escolha é inclinada à masculinidade ao selecionar personagens e fontes para opinião “especializada” e “testemunhos comuns”;
  • as mulheres mostram suas opiniões em três casos: como mães/donas de casa (13%), quando são apenas moradoras de uma localidade (22%) ou quando são descritas como estudantes (17%);
  • somente 4% das matérias produzidas em 2015 questionaram os estereótipos de gênero;
  • a proporção de mulheres noticiando fatos ficou muito abaixo da paridade nas editorias de política e economia. Somente 31% das notícias que abordam política e 39% das que falam de economia foram produzidas por mulheres;
  • nos noticiários de televisão, as mulheres predominam quando jovens e, conforme a idade aumenta, elas são substituídas por homens. Na faixa dos 65 anos, as mulheres desaparecem totalmente da ancoragem e da reportagem. Os homens continuam.

O estudo, como podem imaginar, é bem mais complexo e proporciona uma série de outros cruzamentos. Se você ficou curioso pode clicar nesse link e ver o levantamento na íntegra. O original é em inglês, mas existe uma versão em espanhol também.

Para contribuir com a discussão, deixo aqui um site que tenho usado muito como referência quando estou buscando uma fonte para falar de determinado assunto. É uma lista organizada por cientistas sociais, comunicadoras, historiadoras e filósofas para mostrar que #MulheresTambémSabem. O banco de dados é super acessível e colaborativo. Ele contém o nome  de professoras, pesquisadoras e profissionais especialistas em uma variedade de áreas das Ciências Sociais, Sociais Aplicadas e Humanidades.

Mulheres Também Sabem: https://www.mulherestambemsabem.com

 

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #17 Bolsonaro, uma nova forma ou uma “não-forma” de se comunicar?

Geórgia Santos
11 de janeiro de 2019

Jair Bolsonaro já é o presidente do Brasil, com direito a retrato oficial e tudo. Desde a campanha eleitoral, deixou claro o desprezo pelo jornalismo produzido no país. No dia em que tomou posse, a hostilidade tomou novas formas. Os jornalistas não tinham autorização para conversar com as fontes, enfrentaram restrições para beber água, e precisavam pedir autorização para usar o banheiro. Sentaram no chão e até maçãs eram revistadas. Tudo controlado. A orientação era para não levantar as câmeras, pois snipers estavam autorizados a atirar se detectassem qualquer movimento suspeito. Além disso, o Twitter é o novo canal oficial do presidente com os cidadãos, evitando a mediação. Diante disso, no episódio 17 do podcast Bendita Sois Vós, perguntamos: o governo Bolsonaro traz uma nova forma de se comunicar ou uma “não-forma” de se comunicar?

Participam os jornalistas Tércio Saccol, Flávia Cunha e Igor Natusch. Evelin Argenta entrevista a cientista social Tathiana Chicarino, especialista em mídias sociais e democracia. 

No Sobre Nós, Raquel Grabauska fala d´O Homem Mais Mentiroso do Mundo

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #13 Quem são os ministros de Bolsonaro? 

Geórgia Santos
14 de dezembro de 2018

O governo de Jair Bolsonaro já está desenhado. O presidente eleito pretendia ter 15 ministérios, deve ficar com 22 – mas o Ministério do Trabalho foi extinto.Entre os ministros, sete militares, o mesmo número de militares que ocuparam ministérios no governo do General Costa e Silva. Mas quem são os ministros de Bolsonaro? E o que essas escolhas representam em termos de tendência?

Os jornalistas Geórgia Santos, Tércio Saccol e Igor Natusch discutem os nomes do novo governo e entrevistam o sociólogo Fernando Cotanda, coordenador do curso de Pós-Graduação em Relações do Trabalho da UFRGS. Ele fala sobre a extinção do Ministério do Trabalho. Evelin Argenta conversa com Carlo Rittl, secretário -executivo do Observatório do Clima, sobre a indicação controversa para o Ministério do Meio Ambiente. Ele falou ao Vós diretamente da COP24, na Polônia.

No Sobre Nós, Raquel Grabauska e Angelo Primon trazem “A Fuga”, de Clarice Lispector, como uma provocação a algumas das ideias ventiladas no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Reportagens Especiais

Eugênio Bucci: “A imprensa serve para duvidar do poder”

Geórgia Santos
19 de novembro de 2018

No episódio 9 do podcast Bendita Sois Vós, a liberdade de imprensa esteve no centro do debate.  Somos livres? Qual a  função do jornalismo na sociedade – e em uma democracia? Para contribuir com a reflexão, a jornalista Evelin Argenta conversou com o professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) sobre o jornalismo pós-Bolsonaro.

A pergunta é ampla, mas importante para começar. Essas eleições foram marcadas por uma proliferação de fake news e o uso político disso. Tivemos grandes empresas de comunicação que formaram comitês de checagem, mas parecia que estávamos enxugando gelo. Jornalistas atacados, ameaçados, perseguidos, apurações contestadas. Como o jornalismo sai dessa eleição?

Eugênio Bucci – Eu acredito que sai um pouco machucado em função das intimidações, agressões, tivemos vários episódios de intolerância, de desgaste produzido pelas redes sociais, descrédito de jornalistas construído artificialmente e em campanhas quase industriais. Todo tipo de ameaça, de desqualificação, isso tudo é muito ruim e sem dúvida nenhuma machuca a instituição. E eu não estou juntando aí algo que precisamos levar em conta, que é o nível de agressão física contra jornalistas. Nós temos assassinatos de jornalistas no Brasil, que infelizmente dá destaque ao país nesse sentido.

Ao mesmo tempo, a gente sai dessa eleição com uma experiencia acumulada que é muito importante. Eu não sei se o trabalho das instituições e grupos que checaram os boatos para separar o que é falso do que é verdadeiro foi apenas um trabalho de enxugar gelo. Eu tenho a impressão de que, em grande medida, isso foi importante, nós temos que pensar como teria sido se não houvesse esforço das redações e dos jornalistas profissionais para desconstruir essas falsidades e fraudes produzidas industrialmente que tinham como objetivo confundir o eleitor e tirar proveito disso. Eu diria que a gente sai machucado, mas com um aprendizado.

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Em uma pesquisa recente da Universidade de Oxford, na área de pesquisas da internet, apareceu um conceito que é o “junk news” – junk de lixo – que á junção de fake news, que são as noticias fraudulentas e as mentiras que tem aparência jornalística, com o discurso de ódio e a teoria da conspiração. Então isso virou um bolo que fez o maior estrago infelizmente nessa campanha eleitoral no Brasil.

Eugênio Bucci

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A gente não faz jornalismo para agradar ninguém, se estamos agradando, tem alguma coisa errada. Mas a impressão é que as pessoas começaram a ver o jornalista como oposição, como se houvesse uma espécie de partidarização do jornalista. O senhor concorda que saímos como oposição?

Eugênio Bucci – Eu não tenho essa impressão, a gente teria que ver depois em análises mais precisas e pesquisas, mas o jornalismo é fonte de contestação, especialmente em relação ao poder. Nós temos que nos acostumar como um dado da rotina. A imprensa serve para duvidar do poder, para contestar os discursos do poder, para pedir demonstrações e provas sobre aquilo que o poder afirma. Então a impressão de que o jornalismo é uma oposição é parcialmente verdadeira desde que não seja entendida como oposição partidária. O jornalismo é um contrapeso do poder, é um contrapeso no sentido de ser uma contestação, uma fonte que duvida, um polo de antagonização. E aí é nosso papel. Mas uma coisa que eu gostaria de pôr em destaque é que, nessas análises, talvez a gente misture o que é fake news com outros relatos igualmente fraudulentos, mas diferentes.

Temos aí no meio o discurso de ódio, que as vezes mobiliza uma informação falsa, mas outras vezes não. Ele existe simplesmente para difundir ódio, intolerância, vontade de eliminar um determinado agente político, um grupo de pessoas ou uma etnia. O outro componente que não é necessariamente fake news é o discurso ligado às teorias da conspiração, que se misturam ao discurso de ódio e um pouco às próprias fake news. É a ideia de que alguém armou uma grande estratégia para promover um determinado candidato ou para prejudicar outro. E então aparecem essas coisas como a informação de que a facada do Bolsonaro foi encenação e esse monte de baboseiras que a gente vê. Em uma pesquisa recente da Universidade de Oxford, na área de pesquisas da internet, apareceu um conceito que é o “junk news” – junk de lixo – que á junção de fake news, que são as noticias fraudulentas e as mentiras que tem aparência jornalística, com o discurso de ódio e a teoria da conspiração. Então isso virou um bolo que fez o maior estrago infelizmente nessa campanha eleitoral no Brasil.

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Ele pode usar Twitter e Redes Sociais, o problema é quando isso vem junto com uma vontade de ofender, desqualificar, insultar e dirigir infâmias em relação aos jornalistas e à imprensa.

Eugênio Bucci

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Os brasileiros elegeram um presidente que desde o começo da campanha usou muito as redes sociais a seu favor e, depois do atentado, da facada que tomou, não conseguiu fazer campanha, participar de debates e ficou mais restrito ao ambiente virtual. Tanto que o primeiro pronunciamento logo depois de eleito, antes do discurso da televisão, foi pelo Facebook. Nessas primeiras semanas de transição, anúncios são feitos pelo Facebook, nomes de ministros confirmados pelo Twitter. A gente está inaugurando um modo Trump de Comunicação? O que nos espera nos próximos quatro anos?

Eugênio Bucci – Bom, isso nós temos que perguntar para o presidente eleito e para a turma dele, mas eles tem dito que vão usar essa comunicação direta. A expressão, aliás, poderia ser tema de uma longa conversa. O que é comunicação direta? Mas isso em si não é um problema, o problema é a tentativa de desqualificar a imprensa. Isso mostra uma tendência autoritária em muitos governantes de muitos países e isso desconstrói a democracia.  E eu não estou dizendo isso por uma defesa corporativista dos jornalistas ou da imprensa ou dos jornais, eu estou dizendo isso simplesmente porque a presença da imprensa, do repórter, do jornalista, do articulista, sempre joga na arena pública uma voz discordante. E isso ajuda, é essencial para o esclarecimento da opinião pública. Sem falar da reportagem, que faz perguntas incômodas. O repórter sempre é uma figura incômoda para o poder e os governantes. O repórter trabalha com determinado método que apura os fatos, esclarece os acontecimentos e promove um nível de informação que é indispensável para o seguimento da democracia. Se a imprensa é descartada e ofendida e desqualificada, o que se estabelece é uma linha direta, sem mediação e sem crítica, sem discordância, entre o poder que tem, sem trocadilho, um poder de fogo imenso e a sociedade. Então, aquele que governa, que pratica o ato de governar, é também aquele que pratica o ato de informar, e isso desequilibra a democracia. Numa linha simplificada, isso cria um vínculo direto entre o governante e o público e atropela as mediações e, na sequencia, as instituições, a observância das garantias e direitos fundamentais, e isso pode sim distorcer a democracia

Trump vive ofendendo NYT, CNN e os jornalistas e imprensa. É um paradoxo, mas ele acusa a imprensa de produzir fake news. Nós tivemos no Brasil, infelizmente, algumas manifestações do presidente eleito Jair Bolsonaro de ofender veículos. A Folha foi o mais recente, que ele chegou a dizer que não vai passar verbas públicas para compra de espaço publicitário na Folha. Isso mostra, de um lado, um descompromisso com relação ao principio da impessoalidade, ou seja, quando o governo faz compras públicas, como compra de espaço para veiculação de mensagens oficiais, ele não pode adotar critérios pessoais, ele precisa adotar criterioso impessoais, e por isso públicos, e por isso republicanos. E por outro lado, mostra uma disposição do presidente eleito de perseguir um determinado veículo jornalístico. Isso é muito ruim pra democracia. É, de fato, o que corrompe a ordem pública. Ele pode usar Twitter e Redes Sociais, o problema é quando isso vem junto com uma vontade de ofender, desqualificar, insultar e dirigir infâmias em relação aos jornalistas e à imprensa. Levando a população a desacreditar no trabalho da imprensa, e isso é muito ruim e nos deve deixar atentos.

Foto: Aberje

PodCasts

Sobre Nós #9 Imparcialidade

Geórgia Santos
19 de novembro de 2018

No Sobre Nós desta semana trazemos o mito da imparcialidade para o centro do debate nas palavras George Orwell, em Homenagem à Catalunha. Com Raquel Grabauska e Angelo Primon.

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #9 O jornalismo é livre?

Geórgia Santos
16 de novembro de 2018

Nesta semana, o Bendita Sois Vós discute a liberdade de imprensa e a função do jornalismo na sociedade – e em uma democracia. Além da jornalista Geórgia Santos, participam o jornalista e professor Tércio Saccol e os jornalistas Igor Natusch e Marcelo Nepomuceno.

Evelin Argenta entrevista e professor Eugênio Bucci, da Escola de Comunicação e Artes da USP, sobre o jornalismo pós-Bolsonaro.

No Sobre Nós, dirigido por Raquel Grabauska, trazemos o mito da imparcialidade para o centro do debate nas palavras George Orwell, em Homenagem à Catalunha. 

O episódio também está disponível em Itunes e Spotify e Castbox.

Geórgia Santos

Entre a imparcialidade e a conivência

Geórgia Santos
24 de outubro de 2018

A imparcialidade é uma espécie de véu que se espera que os jornalistas vistam, como aqueles véus usados por carolas para ir à igreja aos domingos –  nem translúcido, nem opaco. É possível enxergar a silhueta por baixo do pano, mas o tecido não é transparente o suficiente para identificar as feições de quem o veste. Assim é a imparcialidade, um véu que, de certa forma, protege o jornalista de se deixar levar por paixões e afinidades que possam atrapalhar uma abordagem objetiva. A ideia por trás do conceito de imparcialidade é não privilegiar ninguém ou nenhuma parte quando se aborda qualquer fato.  Mas esse véu também está diante dos olhos. Esse véu também nubla a visão.

Faço parte do grupo de pessoas que entende que a imparcialidade é impossível de ser atingida. Não acredito que seja possível para uma pessoa – mesmo que treinada para exercer o jornalismo – se despir totalmente de suas convicções ao escrever uma reportagem. Nossas preferências aparecem até mesmo na escolha das palavras. Em uma cobertura que envolva uma ação do Movimento dos Sem Terra (MST), por exemplo, a escolha entre “ocupação” ou “invasão” já é suficiente para perceber a forma como o jornalista vê o movimento.

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O que não significa que o profissional não deva aspirar a imparcialidade. Podemos não ser imparciais, mas ainda devemos buscar a objetividade, a equidade e a verdade, obviamente. Essa é uma busca que não termina. 

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A questão é que aspirar ser imparcial e justo no exercício do jornalismo é uma excelente forma de disciplina e uma ótima maneira de atingir excelência no trabalho, mas a obsessão com a imparcialidade pode transformar esse traço do jornalismo contemporâneo em conivência, especialmente quando se trata de política.

O Brasil vive o que se pode chamar, com tranquilidade, de a eleição mais turbulenta da história democrática do país, que começa em 1985, depois de duas décadas de Ditadura Militar. Há inúmeros aspectos atípicos que envolvem esse pleito, desde a instabilidade política que se desenhou com os protestos de 2013 e foi agravada com a saída de Dilma Rousseff até a personalidade caricata de candidatos que, entre outras coisas, jejuam no monte. Mas há outras questões.

Pela primeira vez há um candidato que defende abertamente o regime militar e a tortura, a ponto de atestar que “o erro da ditadura foi torturar e não matar” (entrevista à rádio Jovem Pan, junho de 2016). Pela primeira vez há um candidato declaradamente racista, que foi em um quilombo e disse que “o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais” (palestra no Clube Hebraica, abril de 2017). Ele ainda afirmou eu não “corria o risco” de um filho seu namorar uma mulher negra, porque, segundo ele, seus filhos foram “bem educados” (entrevista ao CQC, março de 2011). Pela primeira vez há um candidato claramente machista, que acredita que mulheres devem receber um salário menor que os homens em função do risco da gravidez (entrevista ao jornal Zero Hora, dezembro de 2014; entrevista ao programa SuperPop,  fevereiro de 2016). Pela primeira vez há um candidato assumidamente homofóbico, que disse ser  “incapaz de amar um filho homossexual”, que prefere que um filho seu “morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí” ( entrevista à revista Playboy,  junho de 2011). Pela primeira vez há um candidato abertamente xenófobo, que disse que os imigrantes haitianos, senegaleses, iranianos, bolivianos e sírios são a “escória do mundo” (entrevista ao jornal Opção, setembro de 2015). Pela primeira vez há um candidato  que flerta com o autoritarismo a ponto de dizer que vai “acabar com todo o tipo de ativismo” e que afirma, com todas as letras, que a oposição “se quiser ficar aqui, vai ter se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para cadeia.”

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Ainda assim, nós, jornalistas, de maneira geral, vestidos com o véu da imparcialidade, hesitamos em dizer que se trata de um candidato de extrema-direita, racista, misógino, xenófobo e autoritário

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A busca pela imparcialidade, embora utópica, é muito importante. Mas não pode ser desculpa para tratar essa candidatura com equivalência. Não pode ser justificativa para não dar nome aos bois. Não pode ser motivo para ignorar o fato de que esse comportamento é inaceitável em uma democracia sadia. Até porque a excelência profissional não se esgota na neutralidade. No Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros está claro, no Artigo 6º, que é dever do jornalista:

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“I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; “

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A imparcialidade não pode, portanto, ser utilizada para acobertar os riscos que uma candidatura desse tipo representa. Se a busca é a objetividade, o público precisa ser informado sobre o significado do atual momento político e a desinformação precisa ser confrontada com jornalismo de qualidade. Já em 1947, a Hutchins Commission percebeu que não é suficiente relatar o fato, é preciso relatar a verdade sobre o fato. E tratar essa candidatura como qualquer outra não é imparcialidade, é conivência.

Não é crime um jornalista assumir como pensa, muito menos motivo para demérito ou descrença. O exemplo clássico disso é Homenagem à Catalunha, de George Orwell, uma das maiores obras da reportagem política. No último capítulo, Orwell escreve: “Caso eu não tenha dito isso em algum lugar no início do livro, direi agora: cuidado com meu partidarismo, meus erros factuais e a distorção inevitavelmente causada por ter visto os eventos de apenas um ângulo”. Ele completa: “Não acredite em mim.” E por causa de sua transparência, acreditamos.

Reporteando

O jornalismo pós-Bolsonaro

Évelin Argenta
22 de outubro de 2018

No apagar das luzes da eleição presidencial e sem a real perspectiva de que haverá alguma mudança no resultado, precisamos pensar em como serão nossos próximos, no mínimo, quatro anos. Falo isso como mulher, cidadã, mas, acima de tudo, como jornalista.

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Precisamos estar atentos e fortes para não jogar pelo ralo toda a liberdade que conquistamos ao longo do período democrático

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A eleição de Jair Bolsonaro (PSL), depois de 28 anos no Congresso Nacional sem ter apresentado produtividade condizente com o tempo que ocupa os corredores da Câmara, tem como fator fundamental a imprensa. Sob o pretexto de ridicularizar um parlamentar que não sabia de leis, não tinha presença marcante em comissões e se orgulhava em ostentar comportamentos misóginos, homofóbicos e racistas, fomos dando voz e cara a Jair Bolsonaro. Antes desconhecido, migrando de partido em partido, hoje exerce uma atração quase gravitacional em torno de uma sigla que só existe em função de seu nome. Jair Bolsonaro é, em parte, fruto da imprensa e do discurso construído em torno da Lava Jato.

O atual processo eleitoral, disputado principalmente no território virtual das redes, talvez revele mais sobre nós do que estávamos preparados para digerir. Diferentemente das reuniões fechadas, dos discursos enlatados preparados para a televisão, o atual processo contou com a voz ativa da população. Ao final nos descobrimos misóginos, racistas, homofóbicos e altamente egoístas. Sempre fomos assim, mas agora temos um legitimador, um líder, alguém que nos guia e nos representa.

Em momentos como os que se aproximam, a imprensa terá um papel fundamental, quase pedagógico. Será nossa função, mais do que nunca, dar voz aos descalabros vindouros, fiscalizar os eleitos, contestar os generais e, acima de tudo, insistir por informação pública. A era Bolsonaro talvez inaugure no Brasil o “sistema Trump de comunicação”, em que todos os avisos, decisões, opiniões, decretos e defesas serão feitos pelas redes sociais. O twitter será a agenda oficial do presidente e o Facebook sua rede de TV particular.

O advogado Francisco Brito Cruz, que é diretor do InternetLab – um centro independente de pesquisa em direito e tecnologia que está monitorando os tipos de propaganda usados pelas campanhas durante as eleições 2018 – faz uma avaliação interessante na Folha de São Paulo nesta segunda-feira (22). Muitos pesquisadores internacionais têm discutido que as pessoas antes se alimentavam em fontes que passavam pelos protocolos jornalísticos e que agora, talvez, estejam se alimentando menos nessas fontes, o que pode ter um impacto em termos de desinformação. Os veículos profissionais têm de competir por atenção com conteúdos de propaganda política travestidos de notícia.

Se a internet será o novo território da discussão pública, aos jornalistas caberá ainda mais resistência. O acesso a documentos públicos será cada vez mais difícil e a Lei de Acesso à Informação será utilizada de maneira diária para os fins mais banais. O represamento de informações precisará entrar na nossa rotina e precisaremos estar dispostos a buscar mecanismos que nos permitam continuar trabalhando.

Só para ter uma ideia do que nos espera, cito aqui um levantamento feito pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, a Abraji. Do início deste ano até o primeiro turno das eleições, em 7 de outubro, 137 jornalistas em todo o país foram agredidos ou ameaçados enquanto trabalhavam na cobertura do processo eleitoral. Do total de casos, 62 se referem a agressões físicas e 75 a ataques e ameaças pela internet.

A pergunta dos próximos quatro anos será: Como lidar com a realidade de que o jornalismo sai desta campanha com a imagem de ser o partido de oposição? O discurso não ataca a concentração de poder da mídia ou um preconceito de classe, ataca a identidade da mídia, justamente no momento de maior crise do jornalismo como negócio. Ironicamente, nunca foi tão importante fazer jornalismo.

PodCasts

OUÇA Bendita Sois Vós #2 O que os eleitores querem?

Geórgia Santos
28 de setembro de 2018

No segundo episódio do Bendita Sois Vós, os jornalistas Geórgia Santos, Airan Albino, Igor Natusch e Tércio Saccol discutem a expectativa dos eleitores para o pleito deste ano e formas de renovar a agenda eleitoral. A entrevistada é a antropóloga Lúcia Scalco, que conduz pesquisa com jovens eleitores de Bolsonaro na periferia de Porto Alegre. E no quadro Sobre Nós, a fome em pauta.

 

* O Bendita Sois Vós, uma parceria do Vós com a Rádio Estação Web e vai ao ar todas quintas-feiras, das 19h às 20h. Clique aqui para saber como ouvir no seu celular e em aplicativos.