Voos Literários

Caio F. Em 30 anos, nada mudou

Flávia Cunha
18 de setembro de 2018

Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido? Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça?”. Quem inventou essa violência desenfreada que tomou conta do País não foram os marginais – foram os poderosos”

O trecho da crônica Adeus, agosto. Alô, setembro! de Caio Fernando Abreu, de 1987, foi lido para um grande público no Sarau Voador dedicado ao escritor gaúcho, que completaria 70 anos no dia 12 de setembro. Morto precocemente após um diagnóstico de HIV positivo, em 1996, os textos de Caio F. sempre nos surpreendem pela atualidade. O trecho acima poderia ser uma bela resposta aos que falam, em pleno século 21, que bandido bom é bandido morto.

Na abertura do Sarau Voador dedicado a Caio, a atriz e amiga do escritor, Débora Finocchiaro, interpretou, com seu habitual talento, um trecho de Zero Grau de Libra, um texto muito conhecido do autor em que ele faz um série de pedidos a “isso que chamamos de Deus”. Pede um olho bom para o planeta, para a cidade de São Paulo e para quase todas as pessoas. Mas faz uma ressalva:

Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio. Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça.”

E finaliza:

Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse Zero Grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.”

O sarau em homenagem a Caio F. foi apenas uma das minhas atividades realizadas em diferentes cidades brasileiras  relembrando a trajetória e a relevância do chamado escritor da paixão. Até o Doodle do Google lembrou a data do aniversário de Caio, como destaca essa matéria aqui.

Em Brasília, uma exposição foi montada no Museu Nacional da República, com visitação até o dia 27 de outubro. Para quem é do interior do Rio Grande do Sul, uma dica é conhecer a cidade natal de Caio Fernando Abreu. Em Santiago do Boqueirão, tem uma mostra em homenagem ao autor e até um restaurante onde seus escritos estão em destaque, como pode ser conferido nesse vídeo.

Por fim, é relevante destacar ser um ato de resistência à intolerância e à homofobia celebrar o trabalho de um autor como Caio Fernando Abreu. Por mais  que segmentos conservadores brasileiros tentem impor de forma arbitrária seus conceitos obtusos, a literatura libertária de Caio permanece para a posteridade, em contos com enredo homoafetivo (como Aqueles Dois, do livro Morangos Mofados, publicado em 1982, e lido no Sarau Voador que tive o privilégio de assistir).

E o que diria Caio F. desse avanço do conservadorismo em 2018? Certamente estaria com uma postura “enfrentativa”, termo que ele gostava muito de usar. E poderia nos dizer, como consolo:

Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.”

Foto: Acervo Paula Dip

Voos Literários

No Dia dos Namorados, o amor na visão de grandes escritores

Flávia Cunha
12 de junho de 2018

Tenho uma certa implicância com o aspecto comercial do Dia dos Namorados, mas é bonito de ver o amor ser exaltado mais do que o ódio nas redes sociais, pelo menos uma vez no ano.  Em homenagem à data, selecionei alguns trechos de grandes escritores falando sobre esse sentimento poderoso, incontrolável e, por vezes, incoerente.

Para começo de conversa, um pouco de Caio Fernando Abreu aos que vislumbram os primeiros sintomas do amor (e da paixão):

“Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro.”

Em Pequenas Epifanias

Indico Clarice Lispector para os que amam e, por algum motivo, sofrem por esse amor:

“Mas há a espera. A espera é sentir-me voraz em relação ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem pra hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo”.

Em Água viva

Aconselho aos portadores perpétuos de paixões desmedidas, ler Gabriel García Márquez sem moderação:

“Ele ainda era demasiado jovem para saber que a memória do coração elimina as coisas más e amplia as coisas boas, e que graças a esse artifício conseguimos suportar o peso do passado.”

Em O amor nos tempos do cólera

Esse poema de Mario Quintana é fundamental aos que temem ser exaustivos na expressão de seus sentimentos:

Fere de leve a frase… E esquece… Nada

Convém que se repita…

Só em linguagem amorosa agrada

A mesma coisa cem mil vezes dita.”

Em Espelho Mágico

E, por fim, recomendo Shakespeare aos céticos à entrega amorosa genuína:

É um amor pobre aquele que se pode medir.”

Em Antônio e Cleópatra

 

 

Voos Literários

Especial Dia do Trabalho – Saramago, Kafka e Caio F.

Flávia Cunha
1 de maio de 2018

Escritores são, em geral, seres inconformados com a realidade. Então, não foi difícil selecionar 3 livros para refletirmos neste Dia do Trabalho, livros que abordam, de alguma forma, o universo do trabalho e suas injustiças e incoerências. Os autores escolhidos são reconhecidos pela forma perspicaz de trazer para a ficção idiossincrasias do mundo real. Vamos aos trechos de obras de José Saramago, Franz Kafka e Caio Fernando Abreu.

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“A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo a que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca.”

José Saramago – Todos os Nomes, o trecho selecionado fala do funcionamento de um grande cartório, chamado na história de Conservatória Geral do Registo Civil. O conservador citado no texto é o grande chefe, que não trabalha ‘quase nunca’.  

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“Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto.

(….)

Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá a casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis.”

Franz Kafka – A Metamorfose. Nesse clássico da Literatura Mundial, o protagonista, mesmo passando por uma incrível transformação corpórea, tem na ausência forçada ao trabalho sua principal angústia. Irônico, no mínimo.

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“Pense nesse milagre, homem. Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha um nome. Chamava-se ? um emprego.

(…)

Verdade que só um completo idiota ou alguém totalmente inexperiente sentiria, nem digo êxtase, mas qualquer espécie de animação por ter conseguido um trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo. Acho que ainda não tinha me transformado num idiota, não completamente pelo menos.”

Caio Fernando Abreu – Por Onde Andará Dulce Veiga. Caio F. usa de todo seu sarcasmo para descrever a sensação do protagonista desse romance ao conseguir um emprego. O trabalho de repórter vai resolver, ainda que de forma precária, a difícil situação financeira enfrentada pelo personagem. A crítica do escritor é embasada na realidade. Caio Fernando Abreu trabalhou durante muito tempo para sobreviver como jornalista.

 

Voos Literários

22 anos sem Caio Fernando Abreu

Flávia Cunha
27 de fevereiro de 2018

Em fevereiro de 1996, partia para outro plano o escritor da paixão. Caio Fernando Abreu se foi, mas ficou a obra, o legado de escrita visceral que ganhou novo fôlego por meio das redes sociais.

Caio F., como gostava de assinar em sua correspondência a amigos, foi extremamente corajoso ao expor o diagnóstico de HIV positivo publicamente em uma época em que o assunto ainda era tabu. Selecionei um trecho do livro Cartas, organizado por Italo Moriconi e lançado em 2002. No texto escrito para Maria Augusta Antoun e datado de 1º de dezembro de 1995, Caio comenta sobre o pouco de tempo de vida que imagina ter, devido ao estado precário de saúde:

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“[…] e eu barganho com Deus o tempo todo pedindo tempo para escrever pelo menos mais uns seis livros. Estou escrevendo. Sei que o tempo que eu tiver será exato. E sei também que pode acontecer não “um milagre”, mas uma sobrevivência maior. Há novos remédios e uma maladie muito recente. Talvez a cura esteja chegando? Sei que tenho tido uma fé enorme. E me sinto um homem de sorte — estou protegido, cercado de amor. A dor, a morte, pouco importam (ou é só o que importa), porque são parte da condição humana. Mas que se tenha uma vida completa, que se possa passar por ela deixando algo bom para o planeta, para os outros. Vezenquando penso que, no que escrevo, quase consigo. E me sinto sereno. Mas quero fazer mais. Não sinto culpa nem revolta, nem remorso, em nenhum momento algum sentimento escuro. Dores sim, físicas. Mal-estares, fragilidades terríveis. […] E descobri que somos muitíssimo mais capazes de suportar a dor do que supomos. Vide Frida Kahlo.”

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Caio, que sempre foi uma pessoa angustiada, descobre no final da existência uma tranquilidade que não conhecia até então. E também aproveita a carta para perguntar sobre Vera Antoun, a sua única namorada “oficial”, antes de decidir assumir sua homossexualidade:

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“A gente se dá conta tarde de que a felicidade é fácil, não? Gostaria de saber mais de você e de toda a família. Sei que Vera formou-se em Medicina, encontrei-a certa vez (uns 15 anos?) na praia. No meu último livro, Ovelhas negras, tem um conto chamado Lixo & purpurina em que ela é personagem (com o nome de “Clara”). Dificilmente poderei escrever assim longamente outra vez para você. Meu tempo é medido — saúde, jardim, literatura. E há muita coisa profissional a ser tratada — traduções, publicações no estrangeiro, crônicas para jornal. Estou pagando todo o meu tratamento (é caríssimo: acabo de sair de uma radioterapia de seis mil!), o que me deixa muito orgulhoso, mas também fatigado.”

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A versão impressa do livro Cartas, uma preciosidade para os fãs da obra de Caio Fernando Abreu, está esgotada há alguns anos. O texto acima eu copiei do exemplar que tenho em casa. Para quem ainda não leu a obra em questão, resta procurar em sebos a preços bastante altos – cheguei a ver por R$ 200,00 na Estante Virtual. Outra opção é a versão atualizada em e-book, disponível aqui.

Porém, para que os desavisados não imaginem que Caio Fernando Abreu sempre foi o cara zen da época pós-diagnóstico, também selecionei um texto bem polêmico escrito por Caio durante a campanha para a eleição presidencial de 1989. Ele foi chamado pelo Jornal do Brasil para criar um texto sobre o então candidato Fernando Collor de Mello.

Caio, no mais autêntico espírito rebelde, oferece ao JB um conto em que Fernando, ainda menino, faz um pacto com o diabo. O texto acabou censurado, como explica o autor no trecho abaixo:

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“O jornal pediu para o Márcio Souza escrever sobre o Lula e eu faria o mesmo com o Collor. Escrevi a história de um menino que sonha com um garoto ruivo e manco. No dia seguinte, vai para as pedras do Arpoador, no Rio, e lá aparece o garoto. Ele pergunta ao menino Collor se quer ser o dono de um país inteiro. Ele diz sim. E o garoto acaba comendo ele – era o demônio. O conto se chama O Escolhido. O José Castello, que era o editor, disse que a cúpula do jornal optou por não publicar. Quando o Collor ganhou, liguei e disse: “Por causa de covardia como a de vocês é que o cara foi eleito”.

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Vocês podem ler mais textos do blog Voos Literários sobre Caio Fernando Abreu aqui, aqui e aqui. Caio uma vez falou: “Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que eu escrevi”. Façamos sua vontade.

A foto selecionada para esse post é da exposição Doces Memórias, realizada em homenagem a Caio F., há alguns anos, em cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Voos Literários

Leituras para 2018 e uma retrospectiva de 2017

Flávia Cunha
26 de dezembro de 2017

2017 foi um ano “daqueles” para todos, eu imagino. Mas em vez de reclamar do que passou, vamos recorrer à literatura como uma forma de reagir ao momento sociopolítico conservador e tenso.

Para se inspirar com uma leitura, comece o novo ano com o novo romance da Carol Bensimon. Ela é uma das minhas escritoras favoritas pelo simples motivo de ser dona de uma escrita que me faz não querer desgrudar do livro até chegar em sua última página. Em O Clube dos Jardineiros da Fumaça , o protagonista é um professor de Porto Alegre que vai morar em uma região da Califórnia que concentra a maior produção de cannabis sativa dos Estados Unidos. Em pauta, a descriminalização da maconha, em um enredo que mistura realidade e ficção.

*Bônus Para quem não conhece o estilo da escritora, recomendo seu livro de estreia Pó de Parede.

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E agora, vamos a uma retrospectiva de textos, que podem ajudar a fazer o ano de 2018 mais literário e engajado

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Fevereiro – Dizem que o ano não começa antes do Carnaval. Nesse texto comentei sobre livros que tem a ver com a festa de Momo. Para quem não curte a folia, a leitura é sempre um  bom refúgio.

Março – O terceiro mês do ano é marcado pelo Dia Internacional da Mulher. Tem quem se contente com uma flor, mas o legal mesmo é apoiar a mobilização da mulherada nessa época do ano.  E respeitar as minas, sempre.

Abril – Primeiro de abril será a Páscoa em 2018, quando os adultos darão de presentes para a criançada muito chocolate. Mas e se ao invés disso, a opção for dar livros de presente? Aqui tem algumas sugestões de obras literatura infantil.

Maio – 2018 será um ano eleitoral, não podemos esquecer. E em maio acaba o prazo para regularizar o título de eleitor. Mas do que adianta ter esse documento em dia, se não houver uma consciência sobre os perrengues que estamos vivendo no Brasil? Esse texto pode ajudar em um reflexão sobre o assunto.

Junho – Esse também será um ano de Copa do Mundo. Se alguém por aí não é de futebol, não precisa se sentir mal. Eu, por exemplo, sou adepta do slogan da antiga MTV: desliga a TV e vai ler um livro.

Julho – Esse é um mês de férias de inverno para a criançada. E desculpem se posso parecer repetitiva, mas vale muito a pena incentivar a leitura dos pequenos.

Agosto – É o mês em que começará a propaganda eleitoral nas ruas e nos meio de comunicação. Como aguentar essa barra? Vamos de Caio Fernando Abreu que sempre dá certo.

Setembro – Eis que o nono mês chega, com aquele ufanismo do dia 7. Para quem anda meio sem vontade de compartilhar desse sentimento, recomendo esse texto sobre política e poder em um clássico literário.

Outubro – E chega o momento das eleições, em um cenário em que muita gente anda por aí defendendo a volta da ditadura. Nesse texto tem uma reflexão sobre porque devemos prezar a democracia, mesmo com seus percalços.

Novembro – Então, chegamos ao resultado das eleições. Desculpem parecer pessimista, mas o independente do resultado, o que deve rolar é o costumeiro “toma lá, dá cá”.

Dezembro – Mas não vamos desanimar. Para o último mês do ano, que tal um pouco de esperança, relembrando essa linda história da menina que salvou livros ao ter sua casa invadida pelas águas?

E em 2018 também terá novidades nessa singela coluna. Aguardem. Nos vemos no ano que vem!!

 

Voos Literários

Caio Fernando Abreu – Inspiração para a sobrevivência diária

Flávia Cunha
28 de novembro de 2017

“De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria, em cada noite, descobrir um motivo razoável para acordar amanhã.”

Caio Fernando Abreu – Ovelhas Negras

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Sempre que o caos impera internamente e externamente, lá vou eu recorrer a Caio Fernando Abreu. Já fiz isso durante o mês de agosto e agora, em meio ao estresse de final de ano, sobrecarga de projetos profissionais somado ao cenário sociopolítico cada vez mais preocupante, lá vou eu de novo recorrer ao meu guru.

Em 2012, escrevi esse texto para justificar a escolha de Caio F. como objeto da pesquisa para a dissertação de mestrado em Letras pela UFRGS:

“Minha paixão por Caio Fernando Abreu começou de forma quase clichê: um exemplar de Morangos Mofados chegou por acaso às minhas mãos e foi amor à primeira leitura. Por tratar-se de uma era ainda pré-internética, nos já longíquos anos 90, pouco sabia sobre o escritor no momento de ler a obra e ainda demorou um tempo até saber algo sobre a vida de CFA. Tempos depois, tive acesso a outros livros, comprados com esforço ou então pegos por empréstimo na biblioteca do Centro Municipal de Cultura de Porto Alegre.

Depois, veio o objeto de desejo: Cartas, organizado por Italo Moriconi. Era caro para o meu bolso e eu passei meses namorando a obra, pela Internet ou em livrarias. Em um aniversário, ganhei-o de um grupo de amigos, que perceberam que esse seria o melhor presente para uma amante da literatura e fã confessa do escritor gaúcho.

Li e reli Cartas nesses quases dez anos. Naquelas páginas, descobri que CFA atuava no jornalismo por obrigação, como forma de sobreviver. Ter um ponto em comum com o ídolo sempre é uma surpresa para um leitor devoto. Assim, o livro transformou-se em uma espécie de oráculo para mim. Folheava aleatoriamente o exemplar e começava a ler aquelas linhas que pareciam ter sido escritas especialmente para aquela ocasião. Normalmente, funcionava (e ainda funciona). Em dias de baixo astral, Caio me consolava ao falar da beleza das flores, de como é importante cultivar as amizades e de como as possibilidades e impossibilidades do amor são o que há mais de humano em nossas vidas. Em momentos de revolta, principalmente com as injustiças da profissão de jornalista, CFA me acalentava, ao sofrer dos mesmos males, ao reclamar dos salários, das cobranças, das péssimas condições de trabalho.

Por amor à obra de CFA, adentrei na área de Letras. Primeiro, na graduação. Depois, em um desses movimentos que eram típicos na vida do escritor mas que aconteceram poucas vezes comigo, acabei saltando para a pós-graduação antes mesmo de concluir a faculdade. O destino colocou em meu caminho uma professora especialista no escritor e que, quase por acaso, sugeriu o tema da atual dissertação: a trajetória de CFA no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Uni, assim, duas áreas do conhecimento: o jornalismo, muitas vezes cruel mas ainda necessário para minha subsistência,  e a literatura, minha grande paixão desde criança.”

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Caio me inspira e me dá forças para seguir adiante. E, como já contei nesse texto, abandonei o jornalismo em redação para trabalhar em projetos ligados ao meio editorial, após tantas inspirações literárias.

Sigo sendo uma ovelha negra. O que pode ser muito bom, como diz Caio no texto de abertura de Ovelhas Negras, obra com uma seleção de textos escritos pelo autor entre 1962 e 1995: “Remexendo, e com alergia a pó, as dezenas de pastas em frangalhos, nunca tive tão clara certeza de que criar é literalmente arrancar com esforço bruto algo informe do Kaos. Confesso que ambos me seduzem, o Kaos e o in ou dis-forme. Afinal, como Rita Lee, sempre dediquei um carinho todo especial pelas mais negras das ovelhas.”

 

 

 

 

Voos Literários

Um alento em meio à tormenta

Flávia Cunha
8 de agosto de 2017

Diante do cenário político frustrante, em tantos sentidos, permito-me uma evasão da realidade. Sonho, fantasia, idealização, a tal utopia? Não sei. Talvez uma busca de fé no futuro. E nada melhor para isso, na minha opinião, do que recorrer ao escritor Caio Fernando Abreu. Ele, que tinha um profundo desgosto com o mês de agosto, escreveu bastante a esse respeito.

A crônica a seguir é do livro Pequenas Epifanias, uma seleção de textos publicados originalmente em jornais. Um alento para os dias atuais.

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Sugestões para Atravessar Agosto
Caio Fernando Abreu

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro — e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah!, escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.

Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir. Dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais, e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos, de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzsche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agostos.

Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos — ou precauções — úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile à fantasia, categoria originalidade… Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo zap!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.

Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu — sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antônio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún, ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.

Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques — tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informação para que as desgraças sociais ou pessoais não deem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas — coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo; evasão, escapismos. Assumidos, explícitos.

Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruto e seco.

 

Voos Literários

Existe consumismo em se tratando de literatura?

Flávia Cunha
14 de fevereiro de 2017

Primeiro, vamos deixar claro o conceito básico de consumismo: a compulsão para a compra de bens, mercadorias ou serviços considerados supérfluos. Ou seja, itens desnecessários. Como fervorosa defensora de livros, tenho dificuldade em aceitar que esses possam ser considerados de alguma forma dispensáveis. Porém, vamos encarar a realidade: conheço muita gente boa que adquire livros mesmo sabendo que não terá tempo para lê-los. Existe outro tipo de pessoa que vai às compras literárias porque quer ter diversos exemplares vistosos nas prateleiras de casa, com o objetivo de parecer culto e nem tem a intenção de ler aquelas obras.

Em comum nas duas categorias acima, está o dinheiro extra na conta bancária. Livros podem mesmo ser um símbolo de status e prestígio. Já li reportagens sobre sebos especializados na venda de obras por metro para decoradores contratados por clientes interessados em dar pinta de intelectual. A vontade de parecer um admirador de literatura chega mesmo ao extremo do uso de livros cenográficos.

“Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas e se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings?”

No outro extremo, está a grande parcela dos apaixonados por livros. Muita vontade de ter uma biblioteca particular imensa e pouca grana no bolso. Muito se discute sobre as obras literárias serem caras demais no Brasil, mas se formos comparar com o preço dos ingressos de cinema em shoppings, de itens de vestuário e de show internacionais, por exemplo, os livros estão longe de serem inacessíveis, ao menos para a classe média.

Se a crise realmente bateu à sua porta, ainda assim isso não é desculpa para não ler. Existem sebos, inclusive virtuais, com livros vendidos a preços variados, basta pesquisar. Existem, ainda, sites com obras disponibilizadas online para download (alguns são perseguidos pela Polícia Federal por causa dos direitos autorais dos livros oferecidos de graça, mas isso é papo para outro texto).

E as bibliotecas?

O paraíso dos leitores sem dinheiro no bolso. Em Porto Alegre, recomendo a do Centro Municipal de Cultura. Sou frequentadora desde adolescente e tem muita coisa boa por lá. Foi lá que li grande parte da obra de Erico Verissimo, descobri quase todos os livros escritos por García Márquez e tive acesso ao maravilhoso Travessuras da Meniná Má, de Mario Vargas Llosa. Também foi graças a esse templo da cultura que li praticamente todos os livros do Caio Fernando Abreu (e depois fui comprando devagarinho para ter em casa). Outra preciosidade garimpada entre as prateleiras da biblioteca Josué Guimarães está Scar Tissue, autobiografia do Anthony Kiedis, vocalista do Red Hot Chili Peppers. Como vocês podem ver, um acervo variado e que vale mesmo a pena conferir.

Para ir além: