Voos Literários

Voos Literários Entrevista: Clara Corleone

Flávia Cunha
1 de outubro de 2019

A coluna Voos Literários inaugura um espaço para entrevistas com a atriz e escritora Clara Corleone, que lança no dia 3 de outubro seu livro de estreia: O Homem Infelizmente Tem que Acabar – crônicas, deboches e poéticas. O bate-papo aconteceu na semana passada e durou cerca de 1 hora, em um café no Bom Fim, um dos bairros de Porto Alegre reconhecidos pela resistência cultural e centro da vida e obra de Clara Corleone, de 33 anos. 

Clara começou a escrever nas redes sociais e ganhou visibilidade (e seguidores) de forma despretensiosa. Seus textos abordam empoderamento feminino, relações amorosas e sua atribulada rotina de trabalho dividida entre a ONG Minha Porto Alegre, o estúdio Otto Desenhos Animados e a atuação como hostess no Bar Ocidente durante os finais de semana.

A seguir, um resumo da conversa, em que a Literatura e o amor pela escrita foi se mesclando a assuntos complexos e necessários como a violência contra a mulher, aceitação corporal e feminismo.

 

Ser escritora

“O que mais amo fazer é escrever. Mas não sabia como transformar meus textos postados no Facebook em um livro, de forma que fizesse sentido. Até que surgiu o convite, por parte da Editora Zouk, para que isso acontecesse. Foi um processo rápido, ao longo de alguns meses em 2019. O livro só aconteceu graças ao trabalho de edição feito pela Zouk e pela Joanna Burigo [fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura].

Título polêmico

 “O título do livro – O Homem Infelizmente Tem que Acabar – foi uma ideia minha e o defendi apesar do receio de que pudesse afastar da leitura o público masculino. Mas acho que esse nome tem o deboche e a ironia que costumo colocar nos meus textos. Mulheres heterossexuais solteiras e casadas entendem perfeitamente ao que me refiro.” 

Inspiração

“Eu gosto de imaginar que meu livro possa ser uma porta de entrada para o feminismo. Penso naquela adolescente que foi rejeitada por um babaca e pode, a partir da leitura dos meus textos, entender que ela tem valor em si e não ficar dependendo da opinião do cara por quem ela se apaixonou e está sofrendo. Se servir para isso, eu vou ficar muito feliz.” 

Influências

Patrícia Melo, com sua linguagem verborrágica sem dúvida me influenciou. Nos diálogos e no jeito de fazer graça das pequenas coisas do cotidiano penso que tem a ver com as minhas leituras de Luis Fernando Verissimo. E Caio Fernando Abreu me inspirou e me inspira muito na escrita.”

Exposição da vida privada

“Muita gente imagina que me conhece só por ler meus textos, mas a verdade é que penso bastante antes de escrever. Tudo que escrevo aconteceu mesmo, não é ficção. Mas tenho o cuidado de não expor sem necessidade as pessoas envolvidas nas situações relatadas e também a minha vida pessoal.”

Política

“Percebo o quanto o cenário político tem afetado meus amigos. E é por isso que resolvi expor minhas angústias sobre o governo Bolsonaro nas redes sociais e nos meus textos. É uma forma de quem me lê perceber que não está sozinho.”

Feminismo

“O feminismo é uma temática presente nas minhas crônicas por estar presente na minha vida. E claro que é importante a gente falar sobre aceitação corporal e de problemas como anorexia e bulimia. Mas precisamos refletir que lutar para acabar com a violência contra a mulher é a bandeira mais importante do feminismo. E essa consciência atingí ao trabalhar na ONG Minha Porto Alegre, em que vi dados assustadores sobre violência contra a mulher, que acabaram mudando a minha percepção  sobre o que é mais relevante dentro do feminismo. [confira dados sobre feminicídio e violência contra a mulher aqui]. A proibição do aborto também é uma questão que prejudica muito mais as mulheres pobres e por isso precisamos lutar pela sua descriminalização.

Privilégios

“Sou branca, hétero e cis e é desse lugar que ocupo na sociedade que escrevo. Mas não podemos deixar de pensar no quanto a vida de outras mulheres é mais difícil. Mulheres negras e periféricas, por exemplo. Ou mulheres com deficiência física, que sofrem mais violência física do que as outras.”

Sexo

“Ainda causar espanto que mulheres escrevam sobre sexo é uma mostra do quanto o machismo ainda está presente na nossa sociedade. Homens não precisam justificar-se para abordar esse tema. Bukowski é um bom exemplo disso. Mas como diz a Clara Averbuck [escritora gaúcha radicada em São Paulo, feminista e libertária em seus livros], não faço escrita confessional porque não estou confessando algo que me arrependo. Essa ideia de escrita ‘confessional’ é um termo usado pela crítica apenas para escritoras.” 

Novos projetos literários

Meu sonho é escrever um romance que mostrasse a verdadeira história da mulher solteira, sem os estereótipos das séries de televisão e das comédias românticas de Hollywood. Mas talvez isso demore para acontecer, porque sinto que para escrever uma narrativa longa preciso estudar mais e estar preparada para esse projeto. Mas o sonho existe e espero que um dia aconteça. De repente, antes eu lance mais crônicas antes de publicar um romance.”

Confira um trecho do livro O Homem Infelizmente Tem Que Acabar, de Clara Corleone.

Voos Literários

Orgulho e Preconceito (no Brasil)

Flávia Cunha
25 de setembro de 2019

O orgulho dele não me ofende tanto – disse Miss Lucas – como o orgulho em geral, porque existe um motivo. Não é de admirar que um rapaz tão distinto, com família, fortuna, tudo a seu favor, tenha de si mesmo uma alta opinião. Se posso exprimir-me assim, ele tem o direito de ser orgulhoso.

– Isto é bem verdade – replicou Elizabeth -, e eu perdoaria facilmente o seu orgulho se ele não tivesse mortificado o meu.

– O orgulho – observou Mary, que se gabava da solidez das suas reflexões – é um defeito muito comum, creio eu. Por tudo o que tenho lido, estou mesmo convencida de que é muito comum, que a natureza humana manifesta uma tendência muito acentuada para o orgulho, que são pouquíssimos os que não alimentam esse sentimento, fundados em alguma qualidade real ou imaginária! A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinônimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho se relaciona mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós.”

A frase acima é do clássico de Jane Austen, Orgulho e Preconceito. Um livro que aborda as diferenças de classe nas relações interpessoais na Inglaterra, no início do século XIX.  Mas qual a relação desse romance com o Brasil do século 21?

Vivemos há alguns anos em uma sociedade dividida entre orgulho e o preconceito. Enquanto a direita conservadora apega-se cada vez mais a conceitos preconceituosos, relativizando racismo, LGBTfobia e machismo, parte dos militantes do espectro mais à esquerda, em especial os intelectuais, parece não se dar conta da vaidade e do orgulho excessivos emanados em seus discursos.  

Em um país onde menos de 10% de seus habitantes conseguem completar o ensino superior, é preciso ter cuidado ao atribuir inteligência apenas a quem teve acesso às universidades. Não estou aqui dizendo que devemos ignorar a ciência e desvalorizar a educação como o governo Bolsonaro faz.  Porém, precisamos ficar atentos ao comportamento de militantes de esquerda que são favoráveis ao #Lulalivre e defendiam um operário no poder, mas que em, seu dia a dia, demonstram a vaidade de acharem-se superiores às pessoas que não tiveram acesso ao mundo acadêmico.

Como diz uma frase compartilhada em redes sociais:

“Não adianta ter doutorado e não cumprimentar o porteiro.”

Por mais duro que seja para nós de esquerda reconhecermos, é inegável que Bolsonaro e seus seguidores no PSL conseguiram mobilizar mais o eleitorado do que a esquerda nas últimas eleições. Um dos motivos é justamente a dificuldade de comunicar-se com a população, como alertou Mano Brown em um comício de Fernando Haddad: 

“A comunicação é a alma. Se não está conseguindo falar a língua do povo vai perder mesmo. Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que deveria ser conquistada”.

Para quem não é filiado a um determinado partido, restam as relações pessoais. Por isso, precisamos eliminar o orgulho e  elitismo intelectual do nosso cotidiano, se quisermos uma mudança no cenário político atual e a diminuição real das desigualdades sociais.

Foto: Cena do filme Orgulho e Preconceito (2005)

Voos Literários

A Liberdade é uma Luta Constante

Flávia Cunha
17 de setembro de 2019

Angela Davis, filósofa, escritora e ativista do feminismo negro, participará de eventos culturais em São Paulo e no Rio de Janeiro em outubro. Uma das atividades é a conferência de encerramento do seminário internacional “Democracia em Colapso?”.  A fala de Angela Davis no evento deve ser inspirada no livro A Liberdade é Uma Luta Constante, lançado por aqui pela editora Boitempo, em 2018.

O livro é uma compilação de entrevistas, artigos e discursos da intelectual que defende a liberdade das populações pobres frente a um Estado cada vez mais opressor. Uma das questões abordadas na obra é a violência policial contra negros, presente em países como Estados Unidos (e Brasil).  Uma das ponderações mais interessantes da escritora é que o racismo institucional na polícia é tão grande que pode existir mesmo em países em que a função policial é exercida por negros:

Bem, o que é muito interessante na África do Sul é o fato de que várias das posições de liderança de que as pessoas negras foram excluídas durante o apartheid são agora ocupadas por pessoas negras, inclusive no âmbito da hierarquia policial. Vi recentemente um filme sobre os mineiros de Marikana, que foram atacados, feridos e muitos deles mortos pela polícia. Os mineiros eram negros, os agentes policiais eram negros, a chefe de polícia da província era uma mulher negra. A chefe da força policial nacional é uma mulher negra. […] O racismo é tão perigoso porque não depende necessariamente de atores individuais, ao contrário, está profundamente enraizado no aparato.”   

Espera-se que a presença de uma figura tão representativa da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos sirva de inspiração e alerta para o quanto a violência está presente em território brasileiro. O que Angela Davis dirá se souber do hediondo caso de chicoteamento dentro de um supermercado, promovido por seguranças a um adolescente negro?

A liberdade precisa mesmo ser uma luta constante!

Foto: Divulgação/Boitempo

Voos Literários

Censura nunca mais!

Flávia Cunha
10 de setembro de 2019

Caros leitores, embarquem no túnel do tempo da política reacionária brasileira, em que a tentativa de censura a livros é vista como uma batalha a favor da moralidade em pleno século 21.

Refiro-me, claro, à atitude vergonhosa do prefeito Marcelo Crivella de tentar apreender, durante a Bienal do Rio de Janeiro, a HQ Vingadores, a Cruzada das Crianças pelo “perigo” de mostrar um beijo entre dois personagens masculinos. O caso teve repercussão internacional e, para pavor dos conservadores de plantão, alavancou a venda do livro e a comercialização e distribuição de outras obras com temática LGBT durante um dos eventos literários mais importantes do Brasil.

Mas por que me refiro ao túnel do tempo? Porque Crivella parece ter se inspirado em um decreto de 1970, quando o militar Médici estava no poder sem ter sido eleito pela via democrática. Aquele período histórico que muitos agora tentam dizer que não existiu, sabem?

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Observem alguns trechos do Decreto-lei nº1.077 e vejam como a atitude de Crivella não tem nada de original

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[…] não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes;

CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família, preserva-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade;

CONSIDERANDO, todavia, que algumas revistas fazem publicações obscenas e canais de televisão executam programas contrários à moral e aos bons costumes;

CONSIDERANDO que se tem generalizado a divulgação de livros que ofendem frontalmente à moral comum;

CONSIDERANDO que tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira;

CONSIDERANDO que o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional.

DECRETA:

Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.

[…]

Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.”

Sob o argumento desse decreto, muitos livros foram censurados durante a Ditadura Militar, mostrando que a sexualidade era uma das paranóias daquele período, juntamente com a ameaça comunista. Exemplo disso é a escritora Cassandra Rios, que foi campeã em obras censuradas (um total de 36 livros) não por abordar questões políticas mas por escrever literatura erótica, com muitas personagens lésbicas presentes em seus romances. Antes da censura ser implementada pelo regime militar, foi a primeira mulher a vender um milhão de exemplares no Brasil e foi uma das primeiras pessoas a assumir a escrita de livros como única profissão em um país conhecido por escritores precisarem de outros ofícios para sobreviverem.

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Para encerrar esse texto anti-censura, vamos a um trecho de um dos romances “proibidões” de Cassandra Rios (Copacabana Posto 6/ A Madrasta), vetado pelos censores em 1975
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“Vocês, como eu, já recalcaram todas as piores mágoas que um ser humano pode ter. Primeiro aquela surpresa de que nossos gostos são diferentes, contrários aos bons costumes sociais, que temos que ocultá-los. Segundo, a vergonha da palavra: lésbica! Homossexuais!”

Imagem: Reprodução/Instagram

Voos Literários

Jane the Virgin: amor incondicional à Literatura

Flávia Cunha
3 de setembro de 2019

Jane the Virgin chegou ao fim depois de 5 deliciosas temporadas de homenagem à telenovelas. Mas a série vai muito além disso. Aborda protagonismo feminino, imigração e romance lésbico, entre outros temas incomuns para comédias, de uma forma respeitosa e inovadora.

Em meio ao enredo por vezes propositalmente nonsense, sempre me chamou a atenção o grande amor da protagonista pelos livros. Jane poderia ser apenas uma grande fã de telenovelas, pois é essa a influência que teve da avó e da mãe, de origem latina. Porém, por ser uma verdadeira nerd, ela transferiu a paixão televisiva para a Literatura.

Alerta de spoilers sobre a trajetória de Jane como escritora:

Ao longo das temporadas, vemos Jane lutar para ser reconhecida profissionalmente como escritora, após saber que seu primeiro livro foi publicado principalmente por influência de seu pai, um famoso ator de novelas. Sua personalidade obsessiva por perfeição sofre para chegar ao que considera um romance à altura de seu próprio talento.

Nessa parte podemos esperar por um final muito feliz, já Jane consegue não somente lançar seu segundo livro, como ter a consagrada autora Isabel Allende como a responsável por seu prefácio, além de receber um cachê milionário pelo seu trabalho como escritora.

No fim das contas, trata-se de uma grande homenagem ao realismo mágico latino-americano, outra grande referência da produção.

A quinta temporada, que terminou de ser exibida na televisão norte-americana em julho de 2019, ainda não chegou à Netflix.

Fotos: CW/Divulgação

Voos Literários

Fernanda Young: “Tudo que você não soube”

Flávia Cunha
28 de agosto de 2019

A morte de Fernanda Young pegou a todos de surpresa. Aos 49 anos, de forma repentina e depois de posicionar-se de forma bastante contundente contra “tudo isso que está aí”.  Fernanda soube em vida ter a intensidade que precisamos para sobreviver ao atual momento sociopolítico. Seu último texto Bando de cafonas, publicado no jornal O Globo, foi exaustivamente compartilhado nas redes sociais e mostra que o muro e as meias palavras são cada vez mais o lugar dos covardes. 

“A cafonice detesta a arte, pois não quer ter que entender nada. Odeia o diferente, pois não tem um pingo de originalidade em suas veias.”

E coragem era uma das características dessa escritora, roteirista, apresentadora e atriz. Coragem para expor seu comportamento nada tradicional, suas loucuras e idiossincrasias, que transbordavam em suas obras cinematográficas, televisivas e literárias.  Ela sofreu pressão por parte da elite intelectual, que não a respeitava artisticamente. Com o tempo, foi impondo-se mais como sucesso de público do que de crítica, mas parecia não importar-se tanto com isso.

Para quem duvidava da sua capacidade literária, publicou 14 obras ao longo de duas décadas. Escolhi para homenagear essa figura controversa e inesquecível o livro Tudo que você não soube, um romance ficcional em que uma filha relata, de forma crua e honesta, detalhes de sua vida ao pai moribundo e ausente. Muito além da relação familiar, o texto denota todo o sarcasmo e ironia da escritora:

Eu fujo de gente que afirma não se irritar com nada. São, sem dúvida nenhuma, os mais perigosos. Porque não pensam naquilo que sentem e, sem pensar, agem. São como crianças, acreditam que um pensamento errado já é algo criminoso, então abafam suas mentes numa vaga letargia disfarçada de cuca fresca. Dizem-se calmos. Na verdade, estão atrapalhando o mundo e a natureza com seus comportamentos antinaturais. Não existe o bem-estar completo, e isso definiu o ser humano. Gente que não se incomoda com nada é o atraso da humanidade”

R.I.P, Fernanda Young. Seguiremos por aqui nos incomodando com os desmandos desse governo e tentando tornar nossa irritação produtiva e criativa, como bem nos ensinaste.

Foto: Reprodução/Instagram

 

 

Voos Literários

Atena Beauvoir: Existência, resistência e visibilidade

Flávia Cunha
20 de agosto de 2019

Escritora, poetisa, slammer, professora e filósofa, Atena Beauvoir provoca impacto por onde passa. Não seria diferente na noite fria de 14 de agosto de 2019, quando ela surgiu, com sua voz potente e bem colocada, fazendo uma performance que me levou às lágrimas em plena Livraria Cultura, em um shopping center de Porto Alegre conhecido pelo poder aquisitivo de grande parte dos frequentadores.

Confira o vídeo aqui.

A performance que falava sobre visibilidade LGBT e de resistência à violência contra pessoas trans fazia foi a estreia de um projeto realizado, a convite da Cultura, pelo Literatura RS, uma rede dedicada à divulgação da literatura produzida e editada no Rio Grande do Sul.  O ciclo de atividades, muito bem-vindo no cenário literário da cidade, será mensal e gratuito.

O bate-papo Visibilidade e Escrita, conduzido pelo jornalista Vitor Diel, fluiu tão bem que as quase duas horas de evento passaram muito rápido, mesmo com a profundidade das reflexões sobre existencialismo, mitologia e política, entre outros assuntos.

Atena revelou ter se tornado escritora ao perceber que escrever fazia parte do seu corpo, uma forma de reconhecer a própria existência. Não é à toa que escolheu homenagear a filósofa existencialista Simone de Beauvoir em seu nome civil, após a transição de gênero, devido à frase “Não se nasce mulher, tornase mulher”, do clássico O Segundo Sexo.

Após encantar-se por Simone, aprofundou-se na obra de Sartre, pelo qual nutre uma grande admiração por ter rejeitado receber o badalado prêmio Nobel de Literatura.

No vídeo abaixo, uma das leituras que tornaram o bate-papo ainda mais instigante.

Obras de Atena Beauvoir:

Contos Transantropológicos, com histórias sobre identidade e gênero. 

Libertê: poesia, filosofia e transantropologia, em que aborda conceitos da filosofia sartreana, a partir de reflexões sobre identidade, liberdade e autonomia existenciais.

Phóda, em que reflete sobre a obra História da Sexualidade, do filósofo Michel Foucault.

 

Foto: Literatura RS/Divulgação

Vídeo: Daiana Christ

Voos Literários

Mulheres intelectuais na Idade Média

Flávia Cunha
14 de agosto de 2019

Quando pensamos nos desmandos e arbitrariedades de um governo conservador e reacionário como o que está no poder no Brasil, automaticamente nos remetemos à Idade Média, uma época obscura, misógina e predominantemente masculina. Porém, apesar das imensas dificuldades enfrentadas nesse período histórico, novas pesquisas e publicações dão conta de relatos de trajetórias de figuras femininas que conseguiram estudar, trabalhar e ter destaque em diversas áreas do conhecimento, apesar do rígido controle da Igreja Católica no Ocidente.

Um dos livros que aborda esse viés é Mulheres Intelectuais na Idade Média – Entre a medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística. A obra. de autoria de Marcos Roberto Nunes Costa e Rafael Ferreira Costa, está disponível para download gratuito aqui.  O livro tem cerca de 50 perfis femininos com relatos historiográficos. Dentre tantas histórias interessantes, escolhi a de Hipátia de Alexandria (370-413 d. C), uma estudiosa grega de arte, ciência e literatura É considerada a primeira mulher especialista em matemática no mundo. Também teve grande destaque na área de filosofia.

Tinha independência e autonomia por influência do pai, um grande intelectual da época que deu à filha total  acesso à Educação algo difícil na época. Manteve-se casta por convicção filosófica platônica. Nem assim escapou do controle religioso.

Por viver numa época de luta entre o paganismo e o cristianismo, Hipátia acabou sendo vítima de uma trama políticoreligiosa que a levou a um trágico fim, que teve início a partir de 412, com a ascensão de Cirilo (Patriarca de Alexandria) ao poder. Um cristão fanático, árduo defensor da Igreja e acirrado adversário daqueles que ele considerava serem hereges. Por ser uma mulher pagã, seus ideais científicos converteram-se em alvo fácil para Cirilo, que convenceu os cristãos a elegê-la como bode expiatório. Assim, em 4153 , quando ela regressava do Museu, onde lecionava, foi atacada em plena rua pelos seguidores de Cirilo, os quais, enfurecidos, arrastaram-na para o interior de uma Igreja e lá, “seu corpo foi ultrajado e espalhado por toda cidade […]. Uma multidão de homens mercenários e ferozes, que não temiam castigo divino, nem vingança humana, matou a filósofa, e assim cometeram um monstruoso e atroz ato contra a pátria. Tinha entre 60 a 65 anos de idade quando foi assassinada.”

Relatos como esse são chocantes, mas podem servir de incentivo para todas as mulheres do século 21. Não podemos permitir que a fé em uma religião possa ser imposta.

Isso não existe mais?

Pergunte para uma mulher desesperada com uma gravidez indesejada se ela não tem medo de ser trucidada por fanáticos “pela vida”, caso esses tivessem oportunidade.

Ponha-se no lugar de vítimas de estupro que têm o crime relativizado por decisões judiciais que levam em conta o teor alcóolico das mulheres abusadas.

Em meio à barbárie pós-moderna, sigamos o exemplo das intelectuais medievais, que lutaram pelo direito de ser quem quisessem, mesmo que o preço a pagar pudesse ser alto demais. É importante esse resgate histórico para mostrar a resistência feminina, mesmo em tempos dificeis,

Seguiremos resistindo!

 

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O homem que calculava (o desmatamento)

Flávia Cunha
6 de agosto de 2019

Depois de uma verdadeira cruzada contra os cursos de Humanas, o presidente Jair Bolsonaro parece agora estar voltando sua verborragia para as Exatas. Refiro-me ao caso da demissão do diretor do Inpe, por “discordar” dos números do desmatamento na Amazônia.

Divergir  de dados mapeados por satélite me parece algo bastante difícil de sustentar-se enquanto recurso lógico. Mas na narrativa do governo, alertar que o desmatamento da floresta amazônica aumentou nos últimos meses é algo condenável. 

Houve inclusive uma tentativa de desmerecer a trajetória de Ricardo Magnus Galvão e insinuar interesses escusos no alerta do INPE: que seria para favorecer alguma ONG. O Currículo Lattes do físico fala por si. Entre outras titulações, é integrante da Academia Brasileira de Ciências. 

A Ciência, que se ampara em métodos e não aceita suposições como verdade, não é do agrado do atual governo.

No Brasil de Bolsonaro, o personagem principal do aclamado livro O Homem que Calculava, Beremiz Samir, podia não ser tão bem visto como no enredo da obra de Malba Tahan, pseudônimo do escritor brasileiro Julio Cesar de Mello e Sousa.

No livro, publicado em 1938, a Matemática, enquanto ciência, é vista como inquestionável, mesmo em um ambiente medieval na região do Oriente Médio:

Por ter alto valor no desenvolvimento da inteligência e do raciocínio, é a Matemática um dos caminhos mais seguros por onde podemos levar o homem a sentir o poder do pensamento”.

O livro, de caráter paradidático, é reconhecido mundialmente como uma forma de incentivar o gosto pela Matemática e pelas ciências exatas de uma forma geral. E o Conhecimento é a chave para nos libertamos da nova Idade Média brasileira. 

Imagem: Agência Brasil / Arquivo

Voos Literários

Como parar o tempo

Flávia Cunha
31 de julho de 2019

Um aplicativo de celular que simulava o envelhecimento a partir de fotos atuais dos usuários movimentou as redes sociais nesse mês de julho. Deixando de lado a discussão sobre invasão de privacidade virtual, o saldo que fica é de muitos jovens horrorizados com as rugas e papadas que terão (ou não) com o passar dos anos. 

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Mas o que existe por trás do pavor de ficar velho?

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Em uma sociedade em que o padrão é a juventude eterna, resolver não se submeter a padrões estéticos acaba sendo um ato de rebeldia. Isso acontece atualmente com a Xuxa, apresentadora por quem sempre nutri uma complacente aversão. Acontece que a Rainha dos Baixinhos resolveu deixar que a passagem do tempo ficasse explícita no seu rosto. E tem chovido haters criticando a aparência de Xuxa, desde o cabelo muito curto até as rugas, normais em uma mulher de 56 anos. Ao entrar na brincadeira do aplicativo de envelhecimento, a apresentadora deu uma alfinetada nos críticos ao comentar:

Gente… resolvi não fazer mais fotos com filtros…. essa sou eu … pelo menos é assim que muita gente me vê “.Ao perceber como o envelhecimento provoca um desconforto em muitas pessoas, fui em busca de três livros que podem nos provocar reflexões sobre o assunto.

Em Como Parar o Tempo, do escritor britânico Matt Haig, nos deparamos com a trajetória de Tom, um homem de mais de 400 anos com a aparência de 40. Como isso é possível? Ele é um tipo de ser humano que envelhece mais lentamente do que o normal. O que poderia ser a felicidade de muitas pessoas obcecadas com a própria imagem, para Tom transforma-se em uma maldição. Perseguido a partir da época da Inquisição por acreditarem que sua juventude eterna era obra de bruxaria, o personagem chega ao século 21 extremamente abatido mentalmente, mostrando que a vitalidade e a vontade de viver precisam ir muito além da aparência. Em determinado momento da narrativa, o personagem Tom, desiludido com tudo, nos brinda com o seguinte raciocínio a respeito da humanidade: 

“Ocorreu-me que seres humanos não vivem além dos cem anos porque simplesmente não aguentavam. Psicologicamente, quero dizer. Você se acaba. Não há você o suficiente para seguir em frente. Você fica muito entediado com a própria mente. Com o modo como a vida se repete. Como, depois de um tempo, não há mais sorriso ou gesto inédito. Não há mudança na ordem do mundo que não ecoe outras mudanças na ordem do mundo. E as notícias param de ser novidade. A palavra ‘novidade’ torna-se uma piada. É tudo um ciclo. Um ciclo rodando lentamente para baixo. E sua tolerância pelos seres humanos, fazendo os mesmos erros de novo e de novo e de novo e de novo outra vez, começa a desaparecer.”

Mas será que é apenas a aparência que amedronta as pessoas em geral a respeito da velhice? Um dos medos mais comuns é da solidão e do abandono por parte de parentes e amigos. O enredo de Enquanto a Noite Não Chega, do brilhante escritor gaúcho Josué Guimarães, mostra esse temor em uma situação-limite. Os protagonistas dessa história são um casal de idosos em uma cidade fantasma. Todos os seus filhos e demais familiares já faleceram. O povoado em que moram foi abandonado ao longo dos anos pelos demais habitantes, restando apenas eles e o coveiro. O trabalho que esse terceiro personagem ainda tem a executar é um grande incômodo para os velhinhos:

Dom Eleutério ficou sério, ruminando em silêncio os seus pensamentos. Tornou a balançar a cadeira desconjuntada. Comentou, como se não desse muita importância ao que dizia: 

– Não gostei da conversa dele ontem de noite, a querer saber como vai a saúde da gente, se a chuvinha do outro dia não gripou ninguém aqui em casa, a dizer que na nossa idade qualquer grau acima ou abaixo na temperatura pode ser muito perigoso. 

– Ele não é médico – disse ela, retomando o crochê.

– E nem padre para andar mexericando coisas. Se ele voltar hoje com a mesma conversa vou apontar a porta da rua e dizer que é a serventia da casa, que fique lá pelo seu cemitério, que é sua obrigação, e nos deixe em paz.”

O que resta, depois do medo do abandono e de doenças, é a incógnita da Morte. Por mais fé e teorias que possamos ter, ninguém realmente sabe o que acontece lá “do outro lado”. No romance Fim, de Fernanda Torres, a morte é o lugar comum. O grande mérito do enredo é mostrar como cada personagem encontra o final de sua vida de uma forma diferente, pelas escolhas que fez ao longo de sua própria trajetória. 

Torçamos para que, quando atingirmos o término de nossas existências, NÃO tenhamos um obituário parecido como esse descrito no livro de Fernanda Torres:

O filho de Sílvio Motta Cardoso Filho, Inácio, comunica o falecimento de seu malquisto pai,  infiel marido, abominável avô e desleal amigo. Peço perdão a todos os que, como eu, sofreram ultrajes e ofensas, e os convido para o tão aguardado sepultamento.”

E para encerrar esse texto falando de vitalidade, luta e resistência, necessárias em qualquer faixa etária, selecionei trechos de uma carta de Caio Fernando Abreu ao amigo e também escritor José Marcio Penido: 

Ninguém me ensinará os caminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vaflejo? não estou certo): ‘caminante, no hay camino, se hace camino al andar’ […] Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é.”