Voos Literários

Manifesto antifascista

Flávia Cunha
20 de dezembro de 2019

Precisamos falar sobre o avanço do reacionarismo no Brasil e, por mais pífia que tenha sido em termos de adesão, sobre a manifestação de integralistas saudando as ideias ultraconservadoras de Plínio Salgado, realizada há poucos dias em São Paulo. É importante, em primeiro lugar, ressaltar as semelhanças da Ação Integralista Brasileira com o nazismo e o fascismo. Para isso, recorro à análise do renomado crítico literário Antonio Candido, no prefácio da primeira edição do livro O Integralismo de Plinio Salgado, de autoria de J. Chasin, lançado em 1978, apenas três anos após a morte do controverso líder político. Candido não tem dúvidas da proximidade ideológica entre o movimento brasileiro e o extremismo nazifascista:

“Com efeito assim como os nazistas e fascistas, os integralistas pregavam a substituição da luta de classes pela ascensão dos melhores, para renovar as camadas dirigentes gastas e continuar estrutural e funcionalmente o seu papel na sociedade. No principal livro que escreveu como definição do movimento Plinio Salgado deixa tudo isso evidente. Ataca a liberal-democracia e diz que o integralismo será a democracia verdadeira. Reconhece afinidades com o socialismo, mas vê nele o perigo máximo contra a sociedade, negando-lhe o caráter revolucionário que, alega, caberia ao integralismo (exatamente como diziam Mussolini e Hitler sobre os seus movimentos).” 

Antonio Candido prossegue, nessa introdução, com a comparação do integralismo com o nazifascismo e minimiza as peculiaridades brasileiras do movimento integralista, que seriam mais na forma do que no conteúdo ideológico:

“De fato, a Ação Integralista·Brasileira possuía todos os elementos de caracterização externa do fascismo, como a camisa-uniforme; nascida da camiccia nera de Mussolini, que nele era verde (como nos congêneres romeno e húngaros), tendo sido parda no nazismo, preta nos fascistas tchecos e ingleses, azul nos irlandeses e nos portugueses de Rolão Preto; e até dourada num agrupamento mexicano aparentado. Ou, ainda, o signo de conotação meio mística: fascio littorio, svástica, cruz de flechas, tocha e, no Brasil, o sigma somatório. Ou, também, a saudação romana, comum a todas as modalidades e que entre nós passou por um processo revelador de assimilação, identificando-se à saudação indígena de paz com o brado ‘Anauê’. Resultou uma saudação nacional, peculiar, reveladora do indianismo que sempre reponta em nossos diferentes nacionalismos como busca do timbre diferenciador; mas que nem por isso deixa de ser manifestação do sistema simbólico do fascismo, geral.”

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Passado modernista

Candido cita o nacionalismo exacerbado dos integralistas e considero importante ressaltar o passado literário de Plínio Salgado. Antes de desenvolver seu ideário político conservador, ele foi um poeta parnasiano. Porém, aos poucos, foi se identificando com a estética do modernismo e chegou a lançar um manifesto modernista em 1927 chamado A Anta e o Curupira. No mesmo ano, lança O curupira e o carão, em colaboração com Menotti del Pichia e Cassiano Ricardo. Em 1926, já havia publicado o romance O Estrangeiro, considerado o primeiro do gênero de estética modernista.  Era um desafeto de Oswald  de Andrade dentro do movimento modernista, pelas ligações de Oswald com o comunismo e ideias libertárias. Aparentemente, Plínio Salgado apropriou-se de alguns elementos do modernismo, como a exaltação da cultura nacional, para criar seu ideário político. Em 1933, lança o livro O Que é O Integralismo. No ano seguinte, é alçado a chefe nacional do partido Ação Integralista Brasileira.

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Ligações com o  nazifascismo

Para quem ainda duvida da proximidade das ideias de Plinio Salgado com o nazismo, é bom destacar que nesse período dos anos 30 a AIB chegou a dividir sedes com o Partido Nazista em cidades catarinenses e recebia dinheiro do governo fascista italiano. Era um movimento majoritariamente branco e classe média, composto principalmente por descendentes italianos e germânicos. Apesar dos líderes integralistas dessa época publicamente rejeitarem o racismo e antissemitismo, há registro de espancamentos de negros por parte de integrantes da AIB. Um dos casos mais emblemáticos de violência racial ocorreu após uma manifestação integralista no centro do Rio de Janeiro, em 1936, quando militantes agrediram centenas de negros.

Os integralistas foram freados pela ditadura de Getúlio Vargas, que extinguiu os partidos políticos em 1937. Plínio Salgado acabou sendo exilado em 1939 e só retornou ao Brasil em 1945, com o fim do Estado Novo. Então, fundou o Partido de Representação Popular (PRP), procurando esconder o passado fascista e apresentando as ideias integralistas como alinhadas à democracia. Concorreu à presidência em 1955, tendo obtido 8% do total de votos. De 1958 até 1964, é deputado federal pelo PRP. Antes disso, em 1962 é um dos oradores da Marcha da Família com Deus Pela Liberdade, contra o presidente João Goulart. Plínio Salgado apoiou o regime militar e, com a introdução do sistema bipartidário, acaba integrando-se à Arena, partido de direita, onde obtém mais dois mandatos como deputado federal, antes de sair da vida pública.

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Respingos no presente

Percebemos então que os elementos ultraconservadores do integralismo estão mais próximos do que podemos imaginar da nossa política atual, já que os resquícios da ditadura militar ainda reverberam no Brasil reacionário do século 21. Por isso, precisamos ficar atentos a mais um partido conservador tentando ingressar na política brasileira atual. A Ação Integralista Brasileira, que em nada nega as ideias de Plinio Salgado, pretende participar das eleições de 2020. Será que as ligações históricas com o nazismo não deveriam ser razão suficiente para barrar a restauração desse partido?  

Para fechar com uma inspiração literária, resgato o trecho de uma crônica de 1943 de Jorge Amado, publicado no livro póstumo A Hora da Guerra. No texto, o escritor baiano, um comunista declarado, demonstra sua aversão ao integralismo a partir de um incidente registrado na época no Nordeste brasileiro:

“No Ceará encontraram, enterradas num buraco, camisas e insígnias integralistas. Enterradas, porém não destruídas. O dono de tais enfeites verdes estava evidentemente embaraçado, sem saber o que fazer deles no momento. Por outro lado não estava disposto a queimá-los certo de que camisas e insígnias ainda viriam a ter utilidade. Eis aí um exemplo claro, a atitude integralista no Brasil, a atitude fascista nos países onde se desenvolve a guerra contra o Eixo: esconder as camisas e insígnias, guardá-las bem guardadas, esperando o momento em que possam voltar a reluzi-las ao sol meridiano. Esse acontecimento do Ceará não é uma coisa isolada é apenas o símbolo de um fenômeno mundial.”

No final dessa crônica, Jorge Amado defende a ideia de que as camisas verdes integralistas apodrecerão nos esconderijos, pois nunca mais serão usadas. Imaginem o desgosto do escritor, falecido em 2001, se ficasse sabendo de integralistas nas ruas do Brasil novamente. É pelo nosso futuro e pela memória de quem lutou contra os conservadores desde o início do século 20 é que bradamos:

Fascistas, não passarão!

Sugestão de leitura antifascista: A Revoada dos Galinhas Verdes, de Fúlvio Abramo, que mostra a batalha entre integralistas e esquerdas na São Paulo da década de 1930.

Imagem: Reprodução/Internet

 

Voos Literários

Pagu: 10 vezes transgressora

Flávia Cunha
13 de dezembro de 2019

Há quase 60 anos, em 12 de dezembro de 1962, Patrícia Galvão, a Pagu, partia desse plano. Porém, seu legado permanece, tanto suas obras literárias como pela sua trajetória marcada por posturas arrojadas e corajosas. Destacarei 10 momentos em que essa escritora, nascida em 1910, demonstrou a grandiosidade de sua personalidade, que a levou a ser pioneira em diversas áreas.

  1. Estilo à frente do seu tempo – No auge de seus 20 anos, Patrícia Galvão chamava a atenção pelas roupa ousadas, maquiagem acentuada e cabelo arrepiado. Ela era apenas uma estudante nessa época, mas já destacava-se das mulheres de sua geração por usar minissaia e roupas com transparências. Além disso, fumava e falava palavrões. Foi nessa época que ganhou o apelido de Pagu, por um equívoco do poeta modernista Raul Bopp, que achava que seu sobrenome era Goulart.
  2.  Abandona a imagem de musa do modernismo e torna-se ativista política – Muito jovem, Pagu torna-se uma protegida dos modernistas Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Virou uma espécie de musa inspiradora do movimento modernista. Até que Oswald separa-se de Tarsila para ficar com Pagu, um escândalo na tradicional sociedade paulistana. Porém, ao invés de acomodar-se na situação de mulher casada com um escritor famoso, ela encontra no ativismo político um ideal de vida e acaba levando Oswald a também interessar-se pelo comunismo
  3. Viveu um relacionamento aberto com Oswald de Andrade – O casamento com Oswald, que durou até 1935, é marcado pela sinceridade completa, em que a infidelidade é tolerada. Porém, quando Pagu engravida do primeiro filho, precisa lidar com os relatos de Oswald sobre as relações com outras mulheres. Ela revela seu sofrimento a respeito da situação no livro Paixão Pagu (A autobiografia precoce de Patricia Galvão) , um romance epistolar dirigido a seu segundo marido, o escritor Geraldo Ferraz.  Casou-se com Ferraz em 1941 e ficou com ele até sua morte, em uma relação marcada pela cumplicidade e confiança. Juntos, escreveram, em 1945, o romance A Famosa Revista, uma crítica ao Partido Comunista, com o qual ambos haviam rompido.
  4. Vira operária por convicções ideológicas – As ideias marxistas tornam-se uma convicção tão profunda em Pagu, que ela resolve abandonar a área literária e tornar-se uma proletária no sentido estrito da palavra. Entre outros empregos, foi operária em duas fábricas
  5. É considerada a primeira presa política do Brasil republicano – Sua prisão ocorreu em 1931, durante um comício com trabalhadores na Praça da República. Antes de sua prisão, amparou nos braços o estivador negro Herculano de Souza, morto devido à repressão policial. Esse incidente é citado por Rita Lee na letra da música “Pagu”, no verso “Sou Pagu indignada no palanque”.  Ao longo de sua vida, Pagu foi presa 23 vezes devido às suas ligações com o comunismo
  6. Publicou o primeiro romance proletário brasileiro – Depois de sua experiência como operária, Pagu escreve Parque Industrial, publicado sob o pseudônimo de Mara Lobo. O romance não agradou o Partido Comunista, que o considerou “pornográfico e feminista”.
  7. É considerada a primeira mulher cartunista do país – Na década de 1930, publicou no jornal O Homem do Povo, de Oswald de Andrade, as tirinhas Malakabeça, Fanika e Kabeluda. Ela criava os desenhos e os argumentos, de conteúdo subversivo e feminista. 
  8. É jornalista em plena década de 1940 – Pagu sobreviveu durante grande parte de sua vida como jornalista, tendo dedicado-se de forma mais sistemática a publicações na imprensa a partir da década de 1940. Vale lembrar que, nessa época, a maior parte das mulheres era dona de casa e poucas dedicavam-se a profissões dominadas por homens, como era o jornalismo nesse período. Sua obra jornalística está sendo estudada na Universidade de Yale e deve ser publicada em formato de livro, conforme informações divulgadas em seu site oficial.
  9. Primeira escritora brasileira a publicar literatura policial  – Sob o pseudônimo de King Shelter, publicou contos policiais na década de 1940. Outra área predominantemente masculina que Pagu adentrou sem pudores. Seus contos policiais, publicados originalmente na revista Detective, foram reunidos e lançados, em 1998, no livro Safra Macabra.
  10. Foi candidata a deputada na década de 1950 – Ainda mantendo seu ativismo político mas fora do Partido Comunista, Pagu tenta ser deputada pelo Partido Socialista Brasileiro. Não foi eleita, mas demonstra mais uma vez sua postura feminista, já que em pleno século 21 ainda são poucas as mulheres na política. No Congresso Nacional do século 21 aproximadamente 10% do total de eleitos são mulheres,

Além dos livros citados, usei como referência para balizar esse texto a dissertação de mestrado Um Caminho à Liberdade: O Legado de Pagu, de Sarah Pinto de Holanda,  do Programa de Pósgraduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de 2014.  

Algumas homenagens a Pagu:

  • Pagu Vida e Obra, livro organizado por Augusto de Campos 
  • Eternamente Pagu, de 1988, longa-metragem dirigido por Norma Bengell
  • Pagu, música de Rita Lee

Imagens: Reprodução/Internet

Voos Literários

Caio F. e a epidemia silenciosa de Aids em 2019

Flávia Cunha
6 de dezembro de 2019

Entre os galhos da mangueira carregada espio a lua minguante sobre a Guanabara, lobiswoman esfaimada na curva das tormentas. Fumo além da conta, tenho umas febres suspeitas, certos suores à noite, muito além deste verão sem fim. Uns gânglios, umas  fraquezas, sapinhos na boca toda, será? Tenho lido coisas por aí, dizem, sei lá. Não duro muito, acho.”

Li esse trecho do conto Noites de Santa Tereza, do livro Ovelhas Negras, com a voz embargada, pela emoção e um pouco de vergonha, para cerca de 50 pessoas que participavam junto comigo do 1 Caio F Walking Tour. Minha modesta intenção com a leitura do trecho era conectar a obra do autor com um dos objetivos do evento: alertar para a epidemia silenciosa de Aids em Porto Alegre. Especialistas apontam que a geração atual, ao contrário da de Caio Fernando Abreu, pouco se preocupa com o vírus HIV. O escritor, como mostra esse conto datado de 1983, já estava alerta para a doença, mesmo que seu diagnóstico positivo tenha acontecido muitos anos depois. 

Precisamos falar sobre Aids em pleno século 21, porque a capital gaúcha ocupa atualmente o primeiro lugar no número de mortes pela doença no Brasil. e o segundo lugar no número de casos de Aids no Brasil (31,8 a cada 100 mil habitantes). Confira mais informações sobre a campanha Aids é Fato aqui.

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Para lembrar Caio F., com amor e engajamento social

O autor, que sempre dizia que queria ser amado pelo que tinha escrito, recebeu muito amor durante a caminhada pelas ruas da cidade que gostava de chamar de Gay Port. O evento, promovido pela ONG Minha Porto Alegre, pelo Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids) e Fórum Ong Aids do Rio Grande do Sul, teve uma curadoria cuidadosa tanto na seleção de textos quanto nos locais escolhidos para as paradas de leitura dos trechos e explicações das relações de Caio F. com determinadas ruas e locais da capital do Rio Grande do Sul. 

O ponto de encontro foi a Livraria Baleia, no centro histórico, onde Amanda Costa, astróloga e amiga do escritor, recordou como conheceu Caio e falou, com propriedade, sobre a presença da astrologia em seus textos. Amanda publicou o livro 360 Graus: inventário astrológico de Caio Fernando Abreu, uma excelente leitura para quer desvendar a obra do escritor em profundidade. De lá, saímos em uma caminhada em direção ao Teatro de Arena, onde a designer Zi Bonotto, da Minha Porto Alegre, começou a conduzir a atividade. Nesse ponto, ela lembrou a trajetória de Caio como ator e dramaturgo. Na Esquina Maldita, ponto próximo ao campus central da UFRGS, foi abordada a relação de Caio com os bares do local, muito frequentado por estudantes, classe artística e militantes políticos na década de 70. 

No Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção, falou-se das saudades que ele tinha dos plátanos do parque quando estava morando em São Paulo. Onde era o Cine Baltimore, foi destacada a relação do autor com o cinema, presente em sua obra, em citações diretas a filmes e na construção dos enredos, criados como um roteiro de filme, com as locações cuidadosamente analisadas e citadas.

Sobre a relação de Caio com a boemia do bairro Bom Fim, Amanda Costa recordou do conto O Rapaz Mais Triste do Mundo que, de acordo com ela, passa-se no Lola, um dos bares mais emblemáticos da Avenida Osvaldo Aranha na década de 80/90. O conto foi publicado no livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso:

O bar é igual a um longo corredor polonês. As paredes demarcadas – à direita de quem entra, mas à esquerda de onde contemplo – pelo balcão comprido e, do lado oposto, pela fila indiana de mesinhas ordinárias, fórmica imitando mármore. Nessa linha, estendida horizontal da porta de entrada até a juke-box do fundo onde estou e espio, ele se movimenta – magro, curvo, molhado – entre as pessoas enoveladas. Vestido de escuro, massa negra, monstro vomitado pelas ondas noturnas na areia suja do bar. Entre essas pessoas, embora vestido de cinza, ele parece todo branco. O homem pede uma cerveja no balcão, depois se perde outra vez no meio das gentes.”

Leia o conto completo aqui

Para completar a caminhada em homenagem à Caio Fernando Abreu, o ponto final foi o café Piperita, na rua João Telles, próximo ao Ocidente, bar representativo da boemia dos anos 80 que Caio fez parte. Lá, Amanda Costa falou mais um pouco sobre o amigo e, para finalizar a homenagem, a atriz Deborah Finocchiaro fez a leitura dramática de dois textos do escritor. Também foi feito no local um alerta: o conservadorismo do atual governo está fazendo com que retorne-se ao velho preconceito e o estigma para os portadores de HIV.

Deborah escolheu para homenagear o escritor o texto Zero Grau de Libra (confira o texto completo aqui) e também a crônica Verão de Julho, publicada no livro A Vida Gritando nos CantosO texto é um sopro de otimismo ao recomendar que “a partir deste ano (sem graça) de 87, fica decretado que todo mês de julho (mas pode ser junho, agosto, pode ser sempre, quando as almas andarem escuras e as pessoas não se amarem mais) haverá dez ou quinze dias de sol (dependendo do peso da barra a ser aliviado) e luz para que todos enlouqueçam um pouco de prazer.”

E prossegue:

[…] o vírus da Aids será enjaulado, permitidas as paixões devastadoras, os suspiros amorosos, permitidos os amassos, as paqueras e todas as suas consequências – desde que gostosas. Aconselhável vadiar pelas praças, respirar o cheiro de pipoca das esquinas, olhar vitrines, acreditar em Deus, sorrir para desconhecidos, acender todas as luzes da casa à noite.[…] Dançar valsa e rock and roll, andar de bicicleta, pular corda, girar o bambolê, procurar ovnis no céu, alimentar cachorros vagabundos. Tudo isso e muito mais será permitido e recomendável nesses dias em que palavras como crise, inflação e recessão serão sumariamente riscadas dos dicionários, bem como demitidos seus proferidores. Votar para presidente é permitido. 

Serão assim os verões de julho, de agora em diante. Que fique registrado em ata, Que se cumpra, que dure dentro e fora de cada um. Amém. “

Desejo ao leitores um lindo verão, que pode ser quando nossos corações precisarem, com a benção de Caio F. Mas sigamos enfrentativos, como ele gostava de dizer, para que a prevenção à Aids seja divulgada – educação sexual é importante para que o uso do preservativo seja natural desde o início da vida sexual de todos – e também para repudiar o preconceito com quem é HIV positivo. Sigamos na luta, porque o conservadorismo não pode vencer!

Fotos: Reprodução/Facebook

 

 

 

Voos Literários

Pelo fim da violência

Flávia Cunha
29 de novembro de 2019

Dentre as inúmeras datas que nos lembram do quanta falta avançarmos enquanto sociedade, está a de 25 de novembro, dia internacional de enfrentamento à violência contra a mulher. O assunto não deixa de ser abordado pela grande mídia, mas os noticiários em geral se detém em aspectos particulares de cada caso. O horror de Eliza Samúdio ter sido devorada por cães a mando do ex-amante, as fortes imagens do circuito interno de um elevador onde uma advogada foi espancada violentamente pelo marido. Depois, foi jogada do edifício de alto padrão no Paraná onde morava. Não resistiu. Cito esses exemplos porque me chocaram especialmente. Mas se os números são necessários para convencer o leitor desse texto a respeito da urgência de abordarmos este tema, vamos a eles. O levantamento mais recente, divulgado em março de 2019, aponta que foram registrados 4.254 homicídios dolosos de mulheres em 2018. Conforme o Monitor da Violência, uma mulher é morta a cada duas horas no Brasil.

Em 2017, a tipificação do crime de feminicídio foi questionada pelo então deputado Jair Bolsonaro, que classificou o assunto como “mimimi”. Nessa semana, a ministra  da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, contradisse a fala de dois anos atrás do agora chefe da nação, ao afirmar que “existem mulheres que são mortas apenas pelo gênero”.  Antes, fez uma questionável performance, ficando em silêncio durante uma coletiva de imprensa sobre o assunto.

Mas qual é a tipificação do feminicídio e por que  ele incomoda alguns homens?

No Brasil, o crime de feminicídio foi definido legalmente desde a entrada em vigor da Lei nº 13.104 em 2015, que alterou o art. 121 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.

Assim, segundo o Código Penal, feminicídio é “o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino”, isto é, quando o crime envolve: “violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher” […] pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos.

Ao incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio, o crime foi adicionado ao rol dos crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), tal qual o estupro, genocídio e latrocínio, entre outros.

Fonte:  Dossiê Femicídio da Agência Patrícia Galvão

E quais seriam possíveis caminhos para modificar esse panorama de violência contra a mulher?

Considero que o essencial é conseguirmos sair do lugar-comum dos noticiários sensacionalistas, que apenas ressaltam a crueldade particular de cada crime e não tentam entender as causas que levam tantas mulheres a serem assassinadas por maridos, namorados ou ex-cônjuges. Nesse sentido, trago algumas reflexões interessantes do livro O Feminismo é Para Todo Mundo, de bell hooks. (A autora, feminista e negra, prefere a grafia de seu nome com letras minúsculas.) Apesar dela referir-se aos Estados Unidos em seus textos, considero que os conceitos e questões abordadas podem ser úteis para qualquer país ocidental.

No capítulo Pelo Fim da Violência, a pensadora apresenta um conceito diferente do usual. Ao invés de violência doméstica, ela prefere utilizar o termo violência patriarcal:

A violência patriarcal em casa é baseada na crença de que é aceitável que um indivíduo mais poderoso controle outros por meio de várias formas de força coercitiva. Essa definição estendida de violência doméstica inclui a violência de homens contra mulheres, a violência em relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e a violência de adultos contra crianças. O termo ‘violência patriarcal’ é útil porque, diferentemente da expressão ‘violência doméstica’, mais comum, ele constantemente lembra o ouvinte que violência no lar está ligada ao sexismo e ao pensamento sexista, à dominação masculina. Por muito tempo, o termo violência doméstica tem sido usado como um termo ‘suave’, que sugere emergir em um contexto íntimo que é privado e de alguma maneira menos ameaçador, menos brutal, do que a violência que acontece fora do lar. Isso não procede, já que mais mulheres são espancadas e assassinadas em casa do que fora de casa.”

Em outro trecho do mesmo capítulo, a autora destaca que apesar da violência contra a mulher ser condenada pela sociedade, as causas dessa violência acabam sendo rechaçadas quando o argumento é o sexismo. Ela considera que o próprio feminismo pode ter contribuído, sem querer, para essa resistência ao assunto:

Em um esforço zeloso de chamar atenção para a violência de homens contra mulheres, pensadoras feministas reformistas ainda escolhem frequentemente retratar como vítimas sempre e somente mulheres. O fato de que vários ataques violentos contra crianças seja cometido por mulheres não é igualmente destacado e visto como outra expressão de violência patriarcal. Sabemos agora que crianças são violentadas, não somente quando são o alvo direto de violência patriarcal, mas também quando são forçadas a testemunhar atos violentos. Se todas as pensadoras feministas tivessem expressado ter se sentido ofendidas pela violência patriarcal perpetrada por mulheres, colocando isso em pé de igualdade com a violência de homens contra mulheres, seria mais difícil para o público ignorar a atenção dada à violência patriarcal, por enxergá-la como pauta antihomem.”

Mas como fazer para que as causas da violência contra a mulher deixem de ser consideradas uma pauta “antihomem’? A escritora bell hooks procura responder essa questão no capítulo Masculinidade Feminista:

Uma visão feminista que adere à masculinidade feminista, que ama garotos e homens e exige, em nome deles, todos os direitos que desejamos para garotas e mulheres, pode renovar o homem norte-americano. Principalmente, o pensamento feminista ensina a todos nós como amar a justiça e a liberdade de maneira a nutrir e afirmar a vida. Claramente, precisamos de novas estratégias, novas teorias, diretrizes que nos mostrarão como criar um mundo em que a masculinidade feminista prospere.”

Definitivamente, o feminismo precisa ser para todo mundo!

Imagem: Reprodução/Internet

Voos Literários

A luta antirracista precisa ser de todos

Flávia Cunha
23 de novembro de 2019

Escrevo esse texto em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, direto do Rio Grande do Sul, estado brasileiro que optou por não tornar feriado uma data tão significativa. Aproveito o ensejo para falar sobre racismo estrutural, já que muitos brancos insistem em não enxergar a brutal desigualdade racial brasileira, desde os tempos da escravidão até o século 21. Acho importante que uma pessoa que não seja negra toque no assunto, porque evita um dos argumentos mais furados dos racistas velados, que é o suposto vitimismo dos negros quando falam em racismo.

Nessa semana, foi divulgado que a menina Agatha, negra, foi morta mesmo pelo tiro acidental de um polícia militar no Rio de Janeiro. Não havia registro de operação no momento do disparo.  Ela é apenas um dos muitos casos de pessoas negras mortas por balas perdidas da polícia ou ao serem confundidas com criminosos em operações.  Mas quando se fala em genocídio da população negra no Brasil, tem sempre quem reaja contrário à essa ideia. Exemplo disso é o deputado Coronel Tadeu (PSL-SP), que rasgou uma placa de uma exposição no Congresso Nacional sobre o assunto. Ofendeu-se pelos policiais mostrados na imagem que ilustra esse post. Mas como dizer que não existe algo errado quando os negros são 54% da população brasileira mas o percentual de pessoas negras assassinadas no país chega a 71,5%? Veja mais detalhes aqui.

Mas vamos voltar um pouco no tempo.

Na coluna anterior, abordei o fim do império e a proclamação da República. Propositalmente deixei de fora uma questão nevrálgica envolvendo esse período histórico: o fim da escravidão. O Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravatura, em 1888. Mesmo sem prever nenhum tipo de compensação para os libertos, o sentimento dos ex-escravos foi de gratidão à Princesa Isabel. Contudo, a elite que ganhava dinheiro com a mão-de-obra escrava, não ficou nada feliz com a decisão imperial, em um momento em que a monarquia brasileira já estava fragilizada por outras questões. 

O movimento republicano ganhou força com apoio de produtores rurais que se sentiam “prejudicados” pelo fim da escravidão. Para se ter uma ideia de como ser republicano na época não era exatamente sinônimo de ser libertário, muitos abolicionistas eram favoráveis ao Império. Após o golpe militar que levou ao início da República, houve quem pressionasse o governo a tomar medidas para amparar a população negra, como a distribuição de terras para ex-escravos. Uma dessas vozes foi o poeta e jornalista José do Patrocínio. No jornal A Cidade do Rio, de sua propriedade, fazia duras críticas ao governo do então presidente (não-eleito) Floriano Peixoto. Resultado por tocar no tabu da falta de indenização aos escravos libertos no Brasil? Patrocínio foi exilado na Amazônia, teve depois seu jornal fechado pelo governo militar e acabou morrendo na miséria.

A tentativa de “passar pano” na dívida histórica brasileira com os negros parece ter raízes nesse momento histórico. Um romance que retrata a sociedade escravagista do século 19 é Um Defeito de Cor, publicado em 2006 pela escritora mineira Ana Maria Gonçalves, após uma extensa pesquisa histórica. O livro aborda a trajetória de Kehinde, que até a infância vivia em Savalu, na África, e acaba sendo capturada e trazida ao Brasil  em um navio negreiro. A obra vai virar minissérie televisiva em 2020. No trecho abaixo, a personagem descreve sua relação com a religião católica e com o que classifica como “defeito de cor”:

Ou seja, eles tinham dúvida se nós éramos humanos e se podíamos ser admitidos como católicos, se conseguiríamos pensar o suficiente para entender o que significava tal privilégio. Eu achava que era só no Brasil que os pretos tinham que pedir dispensa do defeito de cor para serem padres, mas vi que não, que em África também era assim. Aliás, em África, defeituosos deviam ser os brancos, já que aquela era a nossa terra e éramos em maior número. O que pensei naquela hora, mas não disse, foi que me sentia muito mais gente, muito mais perfeita e vencedora que o padre. Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensado com tanto êxito.

Outro livro que aborda a questão racial é Americanah, da aclamada escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A obra é uma leitura que pode ser interpretada em várias camadas, ao abordar a história de amor de Ifemelu e Obinze, separados quando a jovem sai da Nigéria e vai estudar nos Estados Unidos. (E acaba depois retornando ao seu país de origem, sendo a “americanah” do título).   Para a abordagem desse texto antirracista, separei um trecho do blog ficcional que Ifemelu mantém quando está em território norte-americano: Observações Diversas sobre Negros Americanos (Antigamente Conhecidos como Crioulos) Feitas por uma Negra Não Americana.

No trecho abaixo, a personagem faz uma postagem direcionada aos brancos, em que é bastante didática ao refletir sobre questões como racismo estrutural, escravidão e o absurdo do termo “racismo reverso”:

Querido Americano Não Negro, caso um Americano Negro estiver te falando sobre a experiência de ser negro, por favor, não se anime e dê exemplos de sua própria vida. Não diga: “É igualzinho a quando eu…”. Você já sofreu. Todos no mundo já sofreram. Mas você não sofreu especificamente por ser um Negro Americano. Não se apresse em encontrar explicações alternativas para o que aconteceu. Não diga: ‘Ah, na verdade não é uma questão de raça, mas de classe. Ah, não é uma questão de raça, mas de gênero. Ah, não é uma questão de raça, é o bicho-papão’. Entenda, os Negros Americanos na verdade não querem que seja uma questão de raça. Para eles, seria melhor se merdas racistas não acontecessem. Portanto, quando dizem que algo é uma questão de raça, talvez seja porque é mesmo, não? Não diga: ‘Eu não vejo cor’, porque, se você não vê cor, tem de ir ao médico, e isso significa que, quando um homem negro aparece na televisão e eles dizem que ele é suspeito de um crime, você só vê uma figura desfocada, meio roxa, meio cinza e meio cremosa. Não diga: ‘Estamos cansados de falar sobre raça’ ou ‘A única raça é a raça humana’. Os Negros Americanos também estão cansados de falar sobre raça. Eles prefeririam não ter de fazer isso. Mas merdas continuam acontecendo. Não inicie sua reação com a frase ‘Um dos meus melhores amigos é negro’, porque isso não faz diferença, ninguém liga para isso, e você pode ter um melhor amigo negro e ainda fazer merda racista. Além do mais provavelmente não é verdade, não a parte de você ter um amigo negro, mas a de ele ser um de seus “melhores” amigos. Não diga que seu avô era mexicano e que por isso você não pode ser racista (por favor, clique aqui para ler sobre o fato de que Não há uma Liga Unida dos Oprimidos). Não mencione o sofrimento de seus bisavós irlandeses. É claro que eles aturaram muita merda de quem já estava estabelecido nos Estados Unidos. Assim como os italianos. Assim como as pessoas do Leste Europeu. Mas havia uma hierarquia. Há cem anos, as etnias brancas odiavam ser odiadas, mas era meio que tolerável, porque pelo menos os negros estavam abaixo deles. […] Não diga: “Ah, o racismo acabou, a escravidão aconteceu há tanto tempo”. […] Finalmente, não use aquele tom de Vamos Ser Justos e diga: “Mas os negros são racistas também”. Porque é claro que todos nós temos preconceitos (não suporto nem alguns dos meus parentes de sangue, uma gente ávida e egoísta), mas o racismo tem a ver com o poder de um grupo de pessoas e, nos Estados Unidos, são os brancos que têm esse poder.  […] Então, depois dessa lista do que não fazer, o que se deve fazer? Não tenho certeza. Tente escutar, talvez. Ouça o que está sendo dito. E lembre-se de que não é uma acusação pessoal. Os Negros Americanos não estão dizendo que a culpa é sua. Só estão dizendo como é. Se você não entende, faça perguntas. Se tem vergonha de fazer perguntas, diga que tem vergonha de fazer perguntas e faça assim mesmo. É fácil perceber quando uma pergunta está sendo feita de coração. Depois, escute mais um pouco. Às vezes, as pessoas só querem ser ouvidas. Um brinde às possibilidades de amizade, de elos e de compreensão.”

Voos Literários

O príncipe e o plebeu

Flávia Cunha
15 de novembro de 2019

Nesta sexta-feira, chegamos a 130 anos do fim da monarquia no Brasil. E para o espanto republicano, cá estamos nós vendo um “príncipe” brasileiro em destaque nos noticiários.

A transição para a república, em 1889, ocorreu por meio de um golpe militar e temos um governo brasileiro no século 21 que dá poder e visibilidades aos militares. Conforme análise de historiadores, o Império só caiu no Brasil por problemas de Dom Pedro II com o próprio Exército e também por não ter se aliado à Igreja Católica. No Brasil de 2019, são os evangélicos que dão as cartas. Os conservadores da época do império temiam que uma mulher assumisse o poder depois da morte do imperador, já que ele não tinha herdeiros homens. No Brasil dos anos 2010, uma mulher presidente sofreu críticas misóginas à sua atuação na política, que passavam por ofender sua aparência, fato irrelevante para homens no governo. (Alguém acha o Bolsonaro bonito? Pois ele venceu do boa pinta Haddad, mostrando que beleza não é relevante para o sexo masculino na política brasileira. Já as mulheres, são consideradas “musas” ou “dragões” e esse fato é extremamente destacado pela mídia e redes sociais.)   

Mas voltemos ao autoproclamado “príncipe” –  afinal, não vivemos mais na monarquia. O presidente Bolsonaro comentou que Luiz Philippe de Orleans e Bragança, deputado federal pelo PSL de São Paulo e descendente da família imperial, é quem deveria ter sido o vice dele na chapa para as eleições de 2018. 

O que explica o fascínio de Bolsonaro por figuras da realeza?

Recentemente, o presidente brasileiro também fez elogios ao príncipe da Arábia Saudita, dizendo que todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalmente as mulheres”. Qual seria o motivo desse deslumbramento com a realeza tantos anos depois da proclamação da República?

No livro As Barbas do Imperador, de Lilia Moritz Schwarcz, podemos ter uma ideia do que a realeza evoca no imaginário popular:

Transcendendo a figura humana do rei, as representações simbólicas do poder imperial evocavam elementos de ‘longa duração’ que associavam o soberano à ideia de justiça, ordem, paz e equilíbrio. […] Talvez seja essa a razão da pouca legitimidade inicial dos símbolos republicanos, em um país ainda atrelado à eficácia e à inserção alargada dos emblemas da realeza. O fato de os ícones da República mais bem-sucedidos — como o hino e a bandeira — estarem de alguma maneira ligados à simbologia monárquica evidencia não apenas o pequeno impacto da ‘invenção de tradições’ republicanas, como sobretudo a penetração de uma simbologia imperial, para além dos marcos políticos oficiais.”

Mesmo que Luiz Philippe de Orleans e Bragança não pertença ao ramo da família que assumiria o trono no remotíssimo caso do retorno da monarquia ao Brasil,  ele é um símbolo da família imperial e demonstra ter valores ultraconservadores e reacionários. Começou a se interessar por política ao se aliar ao movimento que atuou para tirar Dilma Rousseff da presidência da República. Trabalhou forte para a eleição de Bolsonaro e, pelo menos até agora, mantém-se leal ao presidente. 

Fica a pergunta: Dom Pedro II, que preferiu se manter afastado do Exército e dos religiosos durante seu reinado no Brasil, concordaria com as decisões políticas de seu descendente? 

 

 

Voos Literários

2020: A nova geração perdida?

Flávia Cunha
7 de novembro de 2019
Estudantes e professores de institutos federais e universidades fazem manifestação na Avenida Presidente Vargas em protesto contra o bloqueio de verbas da educação.

“Vocês todos são uma geração perdida.” — GERTRUDE STEIN

A citação é de uma das epígrafes do livro O Sol Também se Levanta, de Ernest Hemingway. A referência de Gertrude Stein, escritora e incentivadora de artistas em início de carreria, era à chamada lost generation. Jovens que lutaram na Primeira Guerra Mundial e voltaram para a casa sem emprego, em meio ao que depois depois se revelou uma imensa crise financeira – a chamada Grande Depressão. Essa geração perdida resolveu aproveitar a vida, bebendo, dançando e sendo inconsequentes, no que culminou nos loucos anos 20.

Quase 100 anos depois no Brasil, será que os jovens correm de alguma forma o risco de serem chamados de uma nova geração perdida? Também vivemos momentos de caos econômico e de poucas perspectivas, o que pode levar os jovens a tomar medidas nem sempre consideradas coerentes para outras faixas etárias. 

Mas o que adultos e idosos brasileiros do século 21 esperam dos mais jovens?

Um dos conflitos geracionais mais evidentes é a forma com que os jovens encaram o mercado de trabalho. “Não tem a mesma seriedade”, reclamam os acima de 60 anos que consideram o correto ficar no mesmo emprego a vida inteira. “Mas qual emprego?”, retrucarão os milhares de desempregados na faixa etária até 25 anos. “Então, vão estudar pra aumentar as chances de trabalhar”, responde a vovó que não entende que as universidades públicas estão sendo sucateadas e que as bolsas minguaram nos últimos anos nas instituições de ensino privadas.

Mas daí os jovens, ao perceberem tudo isso que está acontecendo, resolvem de vez em quando ir para as ruas e protestar por melhorias na educação, por exemplo. Para adultos e idosos de um país sem tradição de adesão da maioria da população à manifestações contra desigualdades sociais, os jovens querem é balbúrdia. “Tudo coisa de esquerdopata, não viram que tão falando de novo na tal Marielle?”, reclamam os cidadãos de bem acima dos 40, querendo mesmo que os jovens acomodem-se dentro do que lhes é oferecido (mesmo que seja pouco). 

Ou será que preferem a velha geração perdida de 1920, que tinha ojeriza à política e queria apenas se divertir? Não, também não serve, já que criticam parte dos jovens brasileiros que é alienada e canguru (mora com os pais depois dos 30 anos). Mas o que querem dos jovens brasileiros, afinal?  

Na falta de uma resposta e à espera de protestos consistentes contra o pacote de medidas econômicas proposto ao Congresso pelo ministro Paulo Guedes, encerro essa reflexão com a segunda epígrafe do livro O Sol Também se Levanta, de Hemingway, um dos expoentes da lost generation:

“Geração vai, e geração vem; mas a terra permanece para sempre… Levanta-se o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar onde nasce de novo… O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; volve-se e revolve-se na sua carreira e retorna aos seus circuitos… Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde correm os rios, para lá tornam eles a correr.” — ECLESIASTES

Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

Voos Literários

Vinicius, as feias (e as bonitas) não te perdoam

Flávia Cunha
30 de outubro de 2019

Recentemente, umas das páginas de humor e deboche que eu mais gosto, Ajudar o Povo de Humanas a Fazer Miçanga, postou esse meme sobre Vinicius de Moraes.    

A frase, infeliz, sobre a beleza ser fundamental é do poema Receita de Mulher, publicado pelo poetinha em 1957. Para minha surpresa, vi comentários, inclusive femininos, defendendo Vinicius, dizendo que a frase estava fora de contexto, uma das maiores desculpas para justificar erros do presente e do passado. Mas vamos lá, em que contexto Vinicius de Moraes falou esse verso pavoroso? Pois foi justamente na abertura do poema: 

“As muito feias que me perdoem //  Mas beleza é fundamental // É preciso //  Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso // Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture // Em tudo isso”.

Vamos pensar junto com o poeta lá no fim da década de 1950. Ele defende que a mulher precisa ser bela, ter qualquer coisa de flor e de dança. Então, além de bonita, a mulher ideal da poética de Vinicius precisa ser delicada e graciosa. Tudo bem, Vinicius, a liberação sexual feminina ainda não era uma realidade e o feminismo engatinhava no mundo. O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, tinha sido lançado em 1949. Porém, a obra no Brasil ainda tinha pouca repercussão na época em que Vinicius ficava tentando ensinar às mulheres como ser ou se comportar.

Na Internet do século 21, algumas pessoas afirmaram que o poema em questão falava em “beleza interior”. Pois sou obrigada a discordar, não por implicância, mas porque os versos em si são bastante claros ao apontar apenas aspectos físicos femininos, como no trecho a seguir:

“Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então  // Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca // Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. // É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos // Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas // No enlaçar de uma cintura semovente. // Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras // É como um rio sem pontes. Indispensável // Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida // A mulher se alteia em cálice, e que seus seios // Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca.”

Como um todo, o poema é mesmo uma receita, com instruções para as mulheres. Porém, é uma receita bastante cruel, já que as feias que perdoem o poeta, mas beleza seria fundamental. Mesmo com a ressalva de tantas décadas que nos separam da publicação desse texto, sabemos que a ditadura da beleza segue firme e forte. O Brasil continua campeão no ranking de cirurgias plásticas e a obsessão feminina pelo corpo perfeito ainda permanece bem maior do que a masculina. 

Claro que a discussão começa com uma brincadeira virtual. Porém, julgo necessário ressaltar. Mesmo que Vinicius de Moraes estivesse lindo em qualquer foto, ele não teria o direito de julgar a aparência alheia. Mas, na década de 1950, não havia essa visão. Tanto que um dos poetas mais consagrados do país escreveu, publicou e ficou famoso e respeitado mesmo com letras de música e poemas bastante questionáveis para a nossa visão contemporânea. Sigo admirando o poetinha, ele deixou um legado inegável para a poesia e a música brasileira. Mas não dá para passar pano para esse verso. 

“Vinicius que me perdoe,

Mas respeitar a aparência de todas as mulheres é que é fundamental.”

O poema completo está disponível no site oficial do escritor.

 

 

Voos Literários

Fábula Feminista: As Rainhas dos Animais

Flávia Cunha
22 de outubro de 2019

Vocês já repararam como as fábulas, em geral, exaltam os machos e esquecem de contar sobre o papel das fêmeas na Natureza? Foi pensando em contar histórias com um olhar diferente do tradicional para seu filho de 5 anos que a jornalista gaúcha Clarissa Barreto criou o livro infantil Fábula Feminista: As Rainhas dos Animais. A obra tem ilustrações de Amarilis Lage e projeto gráfico de Clarissa San Pedro e está com financiamento coletivo aberto até 12 de novembro. Para colaborar, clique aqui.

Clarissa conta que o desejo de criar um livro para crianças surgiu quando estava escrevendo uma reportagem para a revista Superinteressante sobre golfinhos.  Ao pesquisar para uma matéria, descobri que as orcas são uma sociedade matriarcal e fiquei curiosa em conhecer outras.  Outro caso que encontrei são os bonobos, espécie de macaco  super ‘paz e amor’.  Ao contrários dos violentos chimpanzés, entre os bonobos são as fêmeas que mandam. “

Como produtora editorial, tive a oportunidade de conhecer o projeto da jornalista antes mesmo dele ir para a tela do computador. Em uma reunião, a Clarissa me pediu uma avaliação sobre a ideia.  Ao pensar em uma fábula feminista e no impacto positivo que isso geraria no público infantil, não tive dúvidas em apoiar a iniciativa. O enredo tem um enredo literário para chamar a atenção da criançada e suavizar todos os dados científicos coletados pela jornalista, acostumada a escrever para o público adulto. 

Depois desses ajustes iniciais, a agora escritora encontrou uma ilustradora e uma designer para tornar o livro uma realidade. Assim, temos uma equipe feminina para um projeto empoderador. Para quem for apoiar o projeto (apoiem!), não precisa nem questionar: o livro também é destinado para meninos. Até porque não conheço nenhuma mãe com dúvidas em levar sua filha ao cinema para assistir às aventuras de Simba e cia., do famoso Rei Leão.   

Voos Literários

Bacurau, Vidas Secas e Os Sertões

Flávia Cunha
8 de outubro de 2019

ATENÇÃO: ESSE TEXTO CONTÉM SPOILERS DO FILME BACURAU!

Bacurau tem dado o que falar. Premiado em festivais internacionais e com um público expressivo para uma produção brasileira, o longa-metragem distópico também virou sucesso na Internet, com muitos memes e menções ao filme nas redes sociais.

https://www.instagram.com/p/B2b24LAHzIu/?utm_source=ig_embed

Mesmo assim, enfrenta críticas de parte de seus espectadores, que não embarcaram no enredo que mistura gêneros, possibilita alegorias políticas e não tem um protagonista definido, apesar da atuação marcante de uma atriz do porte de Sônia Braga. Eu não sou crítica de cinema e nem pretendo me aventurar aqui nessa seara, mas farei algumas comparações da história com a literatura, defendendo a ideia de que o grande protagonista dessa história é o povo nordestino e, por isso, a falta de protagonismos se justifica. 

Acredito que existam na trama destaques para figurantes, como o menino que responde que quem nasce em Bacurau “é gente” ou à senhorinha que reage com um impagável “Que roupa é essa, menino?” ao deparar com o retorno à cidade do anti-herói queer Lunga e suas vestimentas chamativas. Os moradores de Bacurau são orgulhosos de sua origem, mas percebem o preconceito de forasteiros. Esses personagens inclusive tentam se mostrar superiores, em diálogos marcados por xenofobia com os atiradores norte-americanos. 

Dentro desse contexto de análise da figura dos residentes do sertão nordestino no universo ficcional literário, recorro primeiramente à Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Esse talvez seja o arquétipo que justificaria a escolha de Bacurau para o safári humano promovido pelos americanos. Imaginando que encontrariam homens fracos e conformados com seu destino, como o Fabiano do clássico de Graciliano:

Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas. as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e agüentavam cipó de boi oferecia consolações: — “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.” Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? – An! E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza.”

Mas acredito que os moradores de Bacurau estejam mais para os nordestinos descritos por Euclides da Cunha, em Os Sertões, na famosa citação: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”O autor não deixa, porém, de demonstrar seu preconceito, ao fazer comentários depreciativos: 

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente.”

Ao avançar na narrativa, Euclides da Cunha revela sua percepção de que, em situações de conflito como a que está narrando, a Guerra de Canudos, o nordestino demonstra uma força extraordinária:

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.”

É esse despertar de forças criado pela resistência e união dos habitantes da cidade diante dos inimigos estrangeiros que considero o grande mérito de Bacurau. E, apesar de um de seus diretores, Mendonça Filho, declarar que não existe uma mensagem por trás do filme, fica difícil não vibrar com a mobilização perante uma situação de crise. Os moradores da pequena cidade resistem bravamente, assim como os poucos sobreviventes da Guerra de Canudos  (uma criança, um velho e dois adultos). No filme, ainda sobra a catarse perante a classe política brasileira, na vingança contra o patético prefeito Tony Jr., desdenhado pelos moradores desde o começo do enredo. 

 

Definitivamente, o sertanejo é um forte em Bacurau.