Igor Natusch

O que sobra nas malas do Geddel falta em quase todo o resto

Igor Natusch
6 de setembro de 2017

Fato 1:

O Brasil tem apenas três universidades entre as 600 melhores instituições do mundo. Somente três. O país que tem a quinta maior população, a maior economia da América Latina e a nona maior do planeta, abriga em seu território apenas 0,5% dos centros de conhecimento mais significativos do planeta.

Fato 2:

O governo federal contingenciou, no orçamento deste ano, 15% dos gastos de funcionamento e 40% das despesas com obras nas instituições federais de ensino. Em agosto, diante do asfixiamento das universidades e das perspectivas catastróficas para ensino e pesquisa, o Ministério da Educação resolveu liberar mais uma graninha, um respiro de R$ 450 milhões. Ainda insuficiente para manter as atividades nos patamares anteriores, que dirá para ampliá-las, como seria necessário em um país que abriga só 0,5% das mais significativas universidades do mundo.

Fato 3:

A Polícia Federal encontra um monte de malas cheias de grana em um apartamento de Salvador, na Bahia, onde Geddel Vieira Lima (PMDB), ex-ministro de Michel Temer, armazenaria recursos ilícitos. Nove malas e sete caixas de papelão, lotadas de dinheiro em espécie. Contar todas as cédulas exigiu uma equipe inteira trabalhando, do fim da manhã até a madrugada. Total recolhido: R$ 51.030.866,40. Cinquenta e um milhões, trinta mil, oitocentos e sessenta e seis reais e quarenta centavos. Apenas para uma única base de comparação, é quase um terço de todo o orçamento da UFRGS para o ano de 2017, que era de R$ 178 milhões – e que foi contingenciado, vamos lembrar.

Fato 4:

O governo de Michel Temer liberou R$ 4,03 bilhões em emendas parlamentares nos dois meses anteriores à votação na Câmara, que desconsiderou as denúncias contra ele e impediu a abertura de processo no STF. Isso é mais de 65% do total previsto para 2017 (R$ 6,14 bilhões) e 96% de tudo que havia sido liberado até então (R$ 4,17 bilhões). Os dados são do começo de agosto.

De posse desses dados, caro leitor ou leitora, imagino que a cantilena muito repetida de que “não há dinheiro” para “gastar” em programas de incentivo ao ensino, cultura ou ciência ganha uma outra perspectiva.

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A falta de dinheiro não é uma força da natureza, algo que surge de forma incontrolável e que pouca opção deixa a nós, pobres cidadãos e cidadãs do Brasil, senão aceitar mais um corte de direitos, mais uma cota de sacrifício. Falta de recursos é fruto de desvio, de roubos e negociatas, de prioridades para lá de questionáveis – mas, acima de tudo, de opções

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Só faria sentido falar em insuficiência se houvesse pouca arrecadação, e convenhamos que essa insinuação provoca risos nervosos em qualquer um com um mínimo de conhecimento do que são os encargos e impostos no Brasil. Falta aqui porque em algum lugar, lícito ou ilícito, está sobrando. E sobrando muito.

Nem vou entrar em outros pontos passíveis de semelhante reflexão – como, por exemplo, o brutal atraso de salários que afeta funcionários públicos em diferentes pontos do país. Apenas reforço a necessidade de bater pé e impor alguma resistência sempre que vierem aos meios de comunicação dizer que não há dinheiro, que o Estado está falido, e usarem essa constatação como justificativa para as mais disparatadas propostas, as mais canalhas iniciativas. Entre outras coisas, essa docilidade constrói um país sem perspectivas, atrofiado na produção de tecnologia e conhecimento, que vê diante de si malas com quilos de dinheiro roubado e ainda assim aceita que funcionários passem meses a fio sem receber salário integral ou que seja preciso fazer vaquinha para colocar papel higiênico nos banheiros de escolas e faculdades.

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Ir a protestos com faixas genéricas pedindo melhoras na educação, além de fácil demais, é insuficiente. É nessa hora, quando o dinheiro sonegado ao ensino surge materializado da maneira mais escandalosa e caricata possível, quando a conexão entre a grana que falta e a grana que sobra surge de forma impossível de ignorar, que é preciso ligar o cérebro e ir além dos espantalhos e inimigos óbvios

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Aceitaremos que universidades federais sejam precarizadas ao ponto de demitir terceirizados, ou mesmo que fechem as portas, enquanto o dinheiro que falta está ali, fazendo volume debaixo do tapete? Mais do que um dilema ético, é uma questão de futuro.

Foto: Polícia Federal / Divulgação

Igor Natusch

Discordância de Janta era um recado – que Marchezan não entendeu

Igor Natusch
30 de agosto de 2017
Porto Alegre/RS 21/06/2017 Cerimônia de abertura do Encontro de Gestores de Segurança Pública, promovido pelo Ministério da Justiça e Segurança Foto: Ricardo Giusti/PMPA
Como a essa altura todo mundo já sabe, o prefeito Nelson Marchezan Júnior destituiu o vereador Cláudio Janta (Solidariedade) da liderança do governo na Câmara de Porto Alegre. A medida, ainda que drástica, não surge exatamente sem razão: Janta havia deixado muito clara sua discordância quanto a projetos encaminhados ao Legislativo municipal, em especial os que modificam ou extinguem benefícios no transporte coletivo da Capital, e chegou a ingressar na Justiça com uma ação para tentar impedir o fim da segunda passagem gratuita nos ônibus. Em uma posição de representar os projetos do Executivo em meio aos vereadores, Janta insistia em enfrentar o prefeito em alguns deles, e foi essa insistência que levou ao seu afastamento.
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O problema é que a mudança nos primeiros escalões do governo Marchezan está longe de ser uma novidade. Já são muitos os nomes fortes que pedem afastamento ou são afastados por Marchezan, incluindo o então braço-direito Kevin Krieger e o secretário Ricardo Gomes. No segundo escalão, as desistências contam-se às dezenas. Reforça-se, a partir dessas mudanças todas e de conversas dos bastidores da política, a imagem de um prefeito de trato difícil, intransigente em suas ideias, pouco ou nada disposto a ouvir outras opiniões – algo que, diga-se, é traído até em seus comentários sobre a imprensa gaúcha e sua “mania de ouvir todos os lados“, segundo ele.
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Nesse cenário, demitir Cláudio Janta da liderança do governo é um erro estratégico flagrante, quase infantil da parte de Marchezan.

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Gostem ou não do vereador, o fato é que Janta é um político experiente e que entende como poucos o estado de coisas na Câmara de Porto Alegre. Sabe que as recentes posições de Marchezan, chegando ao ponto de dar um puxão de orelhas público em seus próprios apoiadores, geram uma fissura crescente em sua base. Foi firme na discordância, mas nunca partiu para o ataque direto e chegou a dizer que “implorava” ao prefeito que repensasse sua posição.
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Se enfrentou Marchezan (e sem dúvida o fez) não foi por capricho: foi para marcar posição e, acima de tudo, para dar um recado.

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“Debreia, prefeito. Isso não passa. Converse mais com a gente”. Eis o que se pode ler, sem muito esforço, nas entrelinhas do que Janta dizia. Um recado, transmitido do jeito que se dá recado na política: na tribuna, diante das câmeras e da opinião pública.
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Mas a leitura política de Marchezan não pega sutilezas. Recentemente, o ex-vereador João Antônio Dib, que passou quatro décadas na Câmara, criticou de forma razoavelmente polida a possível privatização do Dmae e os ataques ao funcionalismo municipal. Como Janta, dava um recado nas entrelinhas. “Debreia, prefeito. Isso não vai passar. Converse mais com a gente”. Marchezan não deu ouvidos. Para ele, a política parece ser não mais do que uma linha reta: um apoio é um apoio, uma afronta é uma afronta, e nada além. Incapaz de entender mensagens, queima os mensageiros, ou os desgasta ao ponto de simplesmente desistirem de seguir a seu lado.
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Sem Janta à frente, a base de Marchezan corre riscos cada vez maiores de esfarelar. Moisés Maluco do Bem pode ser leal, mas é um recém-chegado, eleito como suplente e sem o traquejo para a difícil costura necessária para que a situação não se desfaça em farrapos na primeira votação mais espinhosa. E, mesmo caindo em ouvidos moucos, o recado segue posto: há coisas que não passam. Não basta o prefeito querer.
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Marchezan vai inviabilizando a si mesmo, na medida em que todos a seu redor entendem que a aliança será sempre uma via de mão única, onde a prefeitura nunca vai ceder.

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Nenhum vereador vai comprometer uma base eleitoral de décadas em nome de uma aliança nesses termos, menos ainda por projetos impopulares e de alto custo político. Mais de uma pessoa já tentou dizer isso a Marchezan – alguém que, diga-se, vem de uma história parlamentar e deveria estar sensível a esse tipo de situação. A proximidade com o MBL e as movimentações populistas nas redes sociais podem manter o eleitorado cativo de Marchezan a seu lado, mas terão pouca valia quando o governo municipal travar na Câmara de vez. Uma tendência quase inevitável, a julgar pela postura que Marchezan tem adotado nessa relação.
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Foto: Ricardo Giusti / PMPA
Igor Natusch

Das memórias afetivas em uma eleição

Igor Natusch
23 de agosto de 2017
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Uma das coisas mais agradáveis em uma eleição, para mim, é a água do bebedouro do Colégio Santa Teresa de Jesus. Sou uma pessoa que se preocupa com essas coisas: gosto de saber onde estão as fontes de água gratuita, de preferência gelada, para momentos imprevisíveis de sede. E poucas vezes na vida encontrei um bebedouro com água tão imensamente, tão satisfatoriamente gelada quanto o do Colégio Santa Teresa de Jesus, na zona sul de Porto Alegre.

Verdade que só saboreio essa maravilha duas vezes a cada dois anos, no máximo: não estudo nem nunca estudei na citada escola, então inexistem compromissos que me levem até lá em outros momentos que não o período eleitoral. Tivesse filhos, talvez os matriculasse no Colégio Santa Teresa de Jesus apenas para poder sorver a água deliciosamente gelada do bebedouro todos os dias, ao deixá-los e buscá-los da escola; não os tenho, porém, de forma que ao menos no momento essa solução não me é possível. Contento-me em transformar esse prazer em uma espécie de segundo compromisso eleitoral: vou até minha seção, deposito o voto na urna e na volta dou uma passada pelo eficiente bebedouro do Colégio Santa Teresa de Jesus, que sempre me fornece água geladinha, com eficiência invejável.

Voto sempre bem cedo, tão cedo quanto consigo, na verdade. Sendo a votação num domingo, ela sempre submete-se a uma hierarquia do dia anterior. Não que eu seja exatamente um frequentador das noites de sábado, mas os finais de semana naturalmente convidam a madrugadas mais extensas. Da última vez, consegui estar na urna por volta das 9h30, o que considero um bom horário. Pude caminhar tranquilo pelas ruas de paralelepípedos, passar pela praça deserta, ouvindo os gritos das caturritas.

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Do outro lado da Cavalhada, surgem os panfletos. Já foram bem mais volumosos, é verdade: em tempos idos formavam um espesso tapete multicolorido, uma trilha inconfundível levando às zonas eleitorais da região

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Dava quase para adivinhar os locais onde se votava, observando apenas o trajeto desenho pelos papéis ao chão. Hoje há bem menos papel, de tal modo que é quase possível prestar atenção neles, ler os nomes impressos. É bom: menos trabalho aos garis no dia seguinte.

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O dia de eleição sempre carregou um ar meio mágico para mim. Sou um filhote do processo de redemocratização, da eleição de 1989: acompanhei aquele período de forma febril, interessadíssimo, como se algo em mim despertasse a partir daqueles dias.

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Seja lá o que fosse, segue desperto, já que a política é assunto que sempre me cativa?—?e sigo enxergando essa coisa em todos os cantos, em todas as pessoas. Escutando seu eco em todas as vozes. Mesmo que algumas gritem muito alto, e gritem umas por cima das outras, tão alto e tanto que às vezes parece que nada existe para se ouvir.

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A tranquilidade do trajeto até a urna é um intervalo em meio ao ruído, talvez a calmaria antes de uma tempestade de ansiedade e incerteza. Hoje em dia, de raiva. Mas sempre de esperança, acima de tudo

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Esperança, como sabemos, está na caixa dos objetos valiosos que, quando quebram, dificilmente podem ser remendados com sucesso. Não tenho dúvida que foi isso que me atraiu para a política, lá na segunda metade dos anos 80. Que era a esperança que animava os brasileiros a assistir Marronzinho e Eldes Mattar nos horários eleitorais de 1989. Que conduziu Lula, metalúrgico e nordestino, à Presidência da República. E que hoje, ferida e deformada, junta a sua voz na gritaria dos que querem derrotar muito mais do que vencer, seja de que lado for.

Que a esperança seja ferida no processo político brasileiro não é algo inédito ou surpreendente. Lembro bem da minha mãe chorando na frente da TV durante o enterro de Tancredo Neves?—?e eu chorando junto, sem entender nada do que estava acontecendo, chorando apenas porque minha mãe chorava e a tristeza dela virava tristeza dentro de mim. Acho que foi ali que me nasceu o interesse político: na dor que eu não entendia e na decepção que, mesmo sem compartilhar, me levava a sofrer um pouco, junto com os decepcionados.

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Política é decepcionar-se. E tentar de novo. E ir achando o caminho, avançando um pouco a cada retomada, quase sem perceber. Chega-se a algum lugar? Não sei: anda-se, ao menos

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Estou voltando para casa quando vejo um homem que vai pelo caminho que retorno. Pele escura, bigode, cabelos brancos ameaçando conquistar o negro em sua cabeça. Roupas surradas, mas limpas. Olha para o chão; contempla os santinhos espalhados na calçada, no meio-fio, alguns já derramados para a área do asfalto. Detenho o passo, da forma mais discreta de que sou capaz, para observá-lo. Parece procurar algo. Hesita. Agacha-se e pega um dos papéis. Aproxima-o dos olhos como quem tem um defeito de visão, afasta de leve, traz o papel de novo para si. Pensa. E então faz uma careta quase imperceptível, deixa o santinho cair de seus dedos, rodopiando de volta ao monte de papel colorido no chão.

Retoma a caminhada. E eu também retomo meu caminho, pensando em como cada um faz suas escolhas, com seus critérios e dignidades. Às vezes fazemos política assim, pegando um papel no meio da rua sem levá-lo conosco, deixando a resposta fácil para trás. Terá votado em quem? Não importa: decidiu-se. E isso já é uma grande coisa.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Igor Natusch

Marchezan segue a trilha do conflito, e abre caminho para coisa pior

Igor Natusch
2 de agosto de 2017
Foto: Luciano Lanes / PMPA

Entrando em seu oitavo mês de mandato, Nelson Marchezan Jr. tem deixado bem clara a disposição de seguir uma trilha de conflito, com poucas margens para conciliação. E o faz de uma forma não necessariamente truculenta, jogando com o imaginário de seu eleitorado cativo e consolidando, ao invés de enfraquecer, a imagem de pessoa dinâmica e dedicada a soluções, sem concessões e sem desperdício de tempo. Não é o único a adotar tal fórmula, nem o mais destacado, muito menos um inovador – mas seu exemplo é útil para entender alguns aspectos (bastante preocupantes, creio eu) da política atual.

Na última semana, a prefeitura de Porto Alegre lançou uma série de projetos e ideias que mudam radicalmente aspectos importantes da relação da população com a cidade.

Eliminar a gratuidade da segunda passagem de ônibus, propor que idosos e estudantes paguem mais do que hoje pagam para se deslocar, legalizar a deplorável prática do parcelamento de salários, aumentar os valores do IPTU, entregar à iniciativa privada serviços de água e esgoto – tudo isso proposto com pouca ou nenhuma discussão prévia com a sociedade.

Algumas dessas mudanças contradizem declarações dos tempos de campanha, outras sequer haviam sido ventiladas antes de virarem projetos de lei. E tudo que as sustenta é um slogan simplificador, muito mais vago do que parece: a afirmação de que estamos em grave crise financeira e é preciso agir rápido para que as coisas não fiquem ainda piores. É uma agenda que nunca foi exposta às claras, nem mesmo aos vereadores da base aliada, que periga virar lei sem que se conheça suas implicações e sem que haja certeza que a cidade concorda com ela. Ilegal não é, por certo, mas não é nada transparente.

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Diante de críticas que, certas ou erradas, nada têm de desonestas ou ilegítimas, a resposta de Marchezan e de sua gestão tem sido fomentar um confronto permanente, ainda que edulcorado com toques de populismo de internet

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Ao fazer vídeos dançando e editar decretos fictícios que, em meio ao pretenso bom humor, trazem críticas pouco veladas aos oponentes políticos, o prefeito opta por angariar simpatia ao invés de convencer no embate de ideias. Não se dirige à população, mas sim ao grupo que o elegeu, reforçando os elementos de aproximação entre eles – em especial os que remetem à antipatia contra os inimigos de esquerda.

Todo questionamento à atual gestão é imediatamente arremessado aos pecados de gestões anteriores e/ou de inimigos comuns, quando não atribuído diretamente a uma desonestidade, política ou intelectual, de quem traz as questões. Em certo sentido, a campanha eleitoral não acaba nunca – e se a necessidade de escolher um lado está sempre presente, anula-se a ideia de governar para todos, já que a oposição nunca abandona o cenário político.

Repito: Marchezan não é o criador dessas coisas, tampouco um inovador nesse sentido. É, para o bem e para o mal, só mais um. Ou é muito diferente o que João Dória tem feito sistematicamente em São Paulo, parecendo mais preocupado com Lula e o PT do que com a cidade que governa? É muito diferente do que José Ivo Sartori faz no Rio Grande do Sul, propondo extinção de fundações sem jamais explicar o benefício que tal medida traria e tentando arrancar da população o direito de decidir, em plebiscito, se topa ou não vender suas principais estatais? Diferencia-se tanto assim das medidas de Michel Temer na esfera federal, promovendo a toque de caixa e sem debate prévio drásticas mudanças na legislação sob a alegação de que é preciso “modernizar” para “retomar o desenvolvimento”?

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No coração da dita democracia brasileira crescem práticas que são pouquíssimo democráticas. E elas se multiplicam na medida em que há uma falência de princípios importantes para a democracia: a transparência, o debate, a coletividade

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Na medida em que o processo eleitoral deixa de ser uma escolha coletiva e passa a ser uma mera legitimação de grupo, andamos rumo à exceção. E dizer isso não é dizer que Marchezan, ou Dória, ou Temer (ou mesmo Lula, por exemplo, que andou por trilhas semelhantes em vários momentos e parece seduzido pela ideia de fazê-lo uma vez mais) são fascistas ou autocratas. Eles apenas estão, desejosos ou não, conscientemente ou não, pavimentando o terreno. Entenderam, de forma consciente ou instintiva, o caldo de cisões do nosso tempo, e o usam a favor de suas agendas. Se não temos certeza de como agir diante disso tudo, que ao menos não nos falte o alerta: isso pode nos criar problemas bem maiores do que um prefeito querendo governar sozinho.

Foto: Luciano Lanes / PMPA

Igor Natusch

Pela volta dos meio-campistas ao debate político

Igor Natusch
20 de julho de 2017

Como qualquer apreciador de futebol minimamente interessado sabe, o jogo acontece no meio de campo. É importante defender bem, marcar gols é obviamente fundamental, mas pouca coisa acontece sem uma boa transição, alguém que dê cadência às ações, que observe os extremos do gramado e busque agir de forma a conectá-los da melhor forma possível.

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Talvez até aconteça um gol que outro na ligação direta, mas é um bom trabalho dos meias que deixa o jogo mais eficiente, taticamente desafiador e agradável ao olhar

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Falta meio de campo na nossa atual discussão política. E não apenas no aspecto mais óbvio, na gritaria maluca e transbordante de rótulos pobres que domina as redes sociais e de lá transborda para as ruas do mundo real: está faltando meias de qualidade na nossa esfera pública, em nossos espaços de debate e opinião.

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Temos, de um lado e de outro, colunistas e comentaristas jogando demasiado para a torcida, afastando aos berros a investida adversária, gritando e dando socos no ar cada vez que chutam a bola para a linha de fundo. Uma comemoração espetacular e chamativa, mas que no fundo não indica vitória alguma

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Nenhuma jogada elaborada acontece nesse gramado. Os gritos de guerra são cada vez mais primários, e boa parte das atuais estrelas do debate político parecem ter encontrado na reprodução dessas torpezas uma tática de jogo simplória, mas eficaz. São favoritos de suas respectivas torcidas, mas pouco ou nada fazem para trazer qualquer equilíbrio ao jogo em que atuam. Ao contrário: vivem da oposição, tanto faz se primária ou francamente destrutiva, e incentivam o rompimento em uma gritaria cada vez menos serena, dois extremos onde a única ligação possível é o chutão.

Não que seja problema ter opiniões claras e sólidas, ao contrário. O topo do muro é um lugar abominável para qualquer um que valorize o pensamento. O que nos falta é pessoas que peguem a bola do lado de lá e a carreguem para o lado de cá?—?ou, dizendo de forma mais clara, gente que discorde do outro lado sem tratá-lo como um ajuntamento de desonestos ou imbecis.

O simples consumo de opiniões confirmatórias não nos levará a lugar algum. Não é possível afastar a jogada dos discordantes o tempo todo: às vezes é preciso ouvir o que dizem e pensar, sem ódio, sobre o que nos leva a discordar deles. Até para termos mais certeza de nós mesmos, do que é realmente importante em nosso pensar. Existem pontos de intersecção, sempre, em qualquer grupo humano que se possa imaginar?—?e enxergá-los não é fraquejar no debate, mas justamente buscar nele o que pode nos levar além da simples oposição, o que nos confronta com nós mesmos e vai nos deixando menos cheios de certezas (e, quase como consequência, um pouco mais ponderados e tolerantes) no processo.

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Rótulos são um lixo. Gostar ou não do Lula é pouco para detestar alguém. Ninguém é só “petralha” ou “coxinha”, ninguém está plenamente errado e ninguém se encontra em posição que permita a soberba, o deboche ou a condescendência

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Quem resume os outros busca atalhos para a própria incompreensão. Emburrecemos todos, sempre que escorregamos para esse estratagema. Se a tentação de transformar a política em futebol é tão irresistível, lembremos ao menos de onde a disputa no gramado é mais rica e cerebral: na faixa central do gramado, onde se pensa a partida e se busca as soluções que levem ao resultado desejado. Esse jogo dos últimos tempos, convenhamos, anda insuportável de assistir.

Originalmente publicado em dezembro de 2015
Foto: Márcio Cabral de Moura

Igor Natusch

Fala de Michel Temer não é sobre Deus, mas sobre quem pode mantê-lo vivo

Igor Natusch
28 de junho de 2017
Brasília - O presidente Michel Temer fez um pronunciamento no qual contestou a denúncia apresentada ontem (26) pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot (Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Hoje, a política brasileira é um atoleiro, onde cada passo nos deixa mais cobertos de constrangimento e, por mais que andemos, parece impossível avançar. A cada minuto extra sendo governados por Michel Temer, um presidente acusado pelo Procurador-Geral da República de crime comum, cometido no exercício do mandato, mais fundo pisamos no barro pútrido, mais desastrosa se torna nossa jornada pela infâmia política.

E essa inundação parece ter alcançado um nível especialmente alto com o surreal pronunciamento de Temer, concedido na tarde de terça-feira, 27 de junho de 2017. Uma fala assustadora em vários níveis, que vão muito além do insólito “não sei como Deus me colocou aqui” – uma frase tão cara de pau que já virou meme, com toda justiça.

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Antes de tudo, um desafio de compreensão se impõe. A quem, no fim das contas, Michel Temer desejava falar?

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Ao povo brasileiro, junto ao qual goza de uma impopularidade quase sem paralelos no Brasil democrático, certamente que não. Afinal, em nenhum momento dirigiu ao povo palavras de tranquilidade, esperança ou convicção – aliás, quase poderíamos dizer que não dirigiu ao povo palavra alguma. Ao alto empresariado, talvez? Mas de que jeito, se mencionou as tão trombeteadas reformas apenas de passagem, se não trouxe nenhum indicativo de melhora econômica, sequer um dividendo positivo de sua tragicômica viagem para Rússia e Noruega foi capaz de enumerar?

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Pretendendo vender a imagem de estadista ultrajado por acusações falsas, Temer só fez desnudar sua incapacidade de liderar um Estado. Ou existe qualquer coisa de líder em alguém que, diante da angústia de uma nação, dedica toda a sua fala a, mal e porcamente, defender a si mesmo?

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Nada disso: o discurso de Temer só faz sentido quando se olha para o Congresso Nacional. É a ele, ou ao que resta de apoio dentro dele, que Temer dirigiu suas palavras de frágil defesa, ao mesmo tempo que posicionou-se de forma clara em uma guerra contra o Ministério Público e a Polícia Federal. “Querem parar o país”, disse o presidente, e ao dizer tal coisa falava não ao detentores do poder econômico, mas aos deputados e senadores que podem salvá-lo da investigação no Supremo. Estou com vocês, é isso que Temer quis dizer, o tempo todo, com tal ânsia que a mal-disfarçada mensagem saltava o tempo todo para fora das entrelinhas. Estou com vocês, meu inimigo é o mesmo, estejam comigo e juntos lutemos até o fim. Querem parar o país, ora pois.

Só assim faz sentido a ausência de justificativas ou perspectivas, as ilações que comete enquanto diz que não as cometeria, os torpes comentários sobre Rodrigo Janot, o procurador Marcelo Miller e a JBS. Não explica o conteúdo de sua conversa com Joesley Batista, não justifica ter sido flagrado em mentira sobre a viagem de jatinho com um “bandido notório”, não faz mais que tergiversar sobre a gravação que, segundo perícia da PF, não foi adulterada como alega. Não entra nesses méritos simplesmente porque não é essa sua estratégia.

A luta é outra: parar de derreter no Congresso, onde até companheiros de sigla (e não estou falando de Renan Calheiros) não se constrangem mais em avacalhá-lo publicamente.

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Sem a maioria na Câmara e no Senado, Temer não tem nada – e fala grosso para tentar deter a debandada, demonstrar que está pronto para brigar por si e, por tabela, em nome deles

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Chama uma claque um tanto patética para aplaudi-lo (com direito a ridículos gritos de “bravo!” por parte de Darcísio Perondi) e elogia o “quórum suficiente para uma sessão na Câmara”, agradecendo pelo “apoio extremamente espontâneo”. É falso e patético, mas não é desprovido de função.

O cadáver político que é Michel Temer vem apodrecendo em público desde a revelação devastadora da gravação feita por Joesley. Já são 40 dias em que sua presença é um misto de infâmia, desaforo e constrangimento. A disposição, evidente quando diz que a denúncia é “uma ficção” calcada em “provas armadas”, é insistir em submeter o país a uma presença que quase ninguém tolera mais, sem brandir sequer as tais reformas estruturantes como desculpa. A briga é para salvar a pele, e a instituições que funcionem no raio que as parta. Curioso perceber que, em meio a tanta dissimulação e delírio, a fala de Michel Temer não deixa de ter uma distorcida forma de sinceridade.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Igor Natusch

As vaias contra Míriam Leitão e o fim do meio-campo político

Igor Natusch
14 de junho de 2017
Míriam Leitão. Crédito: Bruna Caroline/Comunique-se

Se alguém ainda precisava de elementos para constatar como nosso debate político está apodrecido e sem rumo, o recente incidente envolvendo a jornalista Míriam Leitão durante uma viagem de avião traz um monte de elementos úteis para deixar o problema desenhado ainda mais nitidamente. E o retrato que surge com essas novas pinceladas, infelizmente, não é nada positivo.

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Para começar, temos o fato evidente: hostilizar alguém apenas por não gostar do resultado da sua atividade profissional e/ou posição política é falta de civilidade e intolerância, no mínimo

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Vale tanto para Míriam Leitão quanto para, digamos, Chico Buarque – e também para tantos colegas jornalistas, hostilizados em diferentes situações como se eles e a empresa para a qual trabalham fossem uma coisa só. E abraçar os primeiros relatos dando conta de que Míriam “exagerou”, vindos de quem não parece ter exatamente isenção no acontecido, como modo de desmerecer as queixas dela em sua totalidade é, pura e simplesmente, ser ideologicamente seletivo. Lamento, mas é verdade.

Mas há mais. Embora não seja exatamente uma pessoa isenta, Míriam Leitão está longe de ser uma direitosa raivosa, uma criatura política movida pela intolerância a tudo que tenha o menor cheirinho que seja de esquerda. Não se trata de alguém que abomina Direitos Humanos, que se posiciona abertamente contra grupos socialmente prejudicados, que combate ações afirmativas ou defende o endurecimento irrestrito do ponto de vista penal. É uma figura que foi perseguida durante a Ditadura militar, ou seja, que se opôs claramente a um dos momentos mais terríveis da história de nosso país. Embora comprometida com reformas políticas para lá de questionáveis, ninguém dirá que é incoerente nisso, uma vez que o liberalismo econômico e o discurso pró-mercado são uma constante em seus posicionamentos há muito tempo.

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Míriam Leitão é alguém com quem uma pessoa que pensa à esquerda pode não concordar, mas de diálogo certamente muito menos difícil do que com um fake adorador de Bolsomitos ou um pseudo-pensador de direita devoto de Olavo de Carvalho

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Não estamos diante de uma rebeldia política pré-adolescente à MBL, nem de um fascismo que grita por intervenção militar e que, se pudesse, perseguiria opositores do mesmo modo que a própria Míriam e tantos outros foram perseguidos no passado. Estamos, isso sim, confrontados com um pensamento liberal mais ou menos legítimo, certamente questionável (e qual pensamento não é?), mas com todos os predicados necessários para um debate honesto. Que não acontecerá na Rede Globo, é certo, mas não está proibido de acontecer em qualquer outro lugar, em qualquer outro período no tempo.

A opção das pessoas que entoaram gritos de guerra naquele voo, e a opção dos que seguem atacando Míriam Leitão nas redes sociais, não foi essa. Percebe-se claramente como o meio-campo desapareceu: do lado de lá da linha limítrofe é tudo mais ou menos a mesma coisa, tudo merece basicamente a mesma reação hostil. Uma reação, a seu modo, tão chucra e ignorante quanto a dos fãs de Bolsomito que todos nos esforçamos (e com plena razão) para condenar.

Quem assim age transforma o suposto oponente em espantalho, e vê na imagem que acabou de criar a legitimidade para destruir qualquer espaço de ponderação.

“Mas ela não foi solidária a Dilma Rousseff quando a então presidenta foi ofendida na abertura da Copa”, dirão uns. “Ela está colhendo o que plantou”, acrescentarão outros. Embora não sejam exatamente equivocados, não consigo enxergar onde esses argumentos querem chegar. Se ela fracassou em condenar as agressões brutais e misóginas cometidas contra Dilma em diferentes situações, isso muda a situação exatamente em quê? Se ela eventualmente contribui para desinformar e confundir a opinião pública, de que forma isso legitima a NOSSA adesão, direta ou indireta, ao urro dos não-pensantes?

Pedir a carteirinha ideológica de quem vamos ou não vamos defender não vai nos levar a lugar algum. É o que foi feito por alguns que ousaram defender a hostilidade a Chico Buarque, só para rememorar o exemplo acima. Precisamos ter algo que esteja acima disso, ou então não teremos quase nada. E nem vou falar no cheiro de mofo argumentativo que emana de gritos como os que foram feitos contra a jornalista, porque aí precisaria me estender ainda mais do que já me estendi.

Eu não concordo com muita, mas muita coisa que Míriam Leitão escreve e diz. E fico constrangido de precisar dizer isso, porque a reação natural de muitos será dizer que só me alinho entre os que condenam a pataquada porque sou da mesma laia ou quero pagar de isentão. Um dos nós aparentemente mais difíceis de desatar nesses tempos de degradação política coletiva é justamente entender que essa degradação é algo coletivo, que atinge todos os ângulos, e que é preciso estar alerta para não ser reprodutor e incentivador dela. Mesmo que o discurso da “reação” seja atraente, ele definitivamente não serve para tudo.

Foto: Bruna Caroline/Comunique-se

Igor Natusch

O governo Michel Temer é um cadáver que não apodrece

Igor Natusch
31 de maio de 2017
er Campanato/Agência Brasil

O governo Michel Temer tenta brincar de Lázaro. Esteve imensamente morto, logo depois da devastadora gravação de sua conversa com Joesley Batista, e continua bastante morto desde então – afinal, não conseguiu sair da defensiva, passa os seus dias a rebater acusações e demonstra fragilidade absoluta no trato com o Congresso, sendo incapaz de evitar que os agregados discutam a partilha do espólio, mesmo antes do capitão dar o grito de abandonar o navio. O país está paralisado, a economia definha, as instituições funcionam com a harmonia e a fluidez de um moedor de carne enferrujado.

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Ainda assim, está se dando com o cadavérico governo Temer um estranho fenômeno: ao mesmo tempo que decompõe-se de forma visível, suas feições ganham uma cor mais viva, sua aparência dá ligeiros sinais de melhora, a carcaça esquenta ao invés de esfriar. Enquanto morre, dá sinais de que pode reviver. Como explicar tal coisa?

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Na verdade, quem enxerga esses tempos de incerteza em termos de Michel Temer está visualizando apenas uma parcela do todo. Ninguém quer realmente que Temer sobreviva politicamente, possivelmente nem ele próprio: a batalha é para manter vivo um grupo político, que se alastra por alguns partidos, e que chegou a poder menos por estratégia e muito mais por senso de oportunidade. Ter o poder é ter dívidas caras a pagar e pouca margem para perdões ou parcelamentos. Basta olhar para Lula e Dilma para entender o peso dessa afirmação.

Michel Temer e sua entourage chegaram ao Planalto assumindo uma tarefa clara: estabilizar a economia e entregar as reformas encomendadas não apenas pelo sistema financeiro, mas pelo alto empresariado e pelos barões do agronegócio, entre outros. Atingir essa meta é mais do que uma prerrogativa do atual governo: é um dever inalienável para qualquer um desse grupo que deseje ter futuro na política.

Como se vê, a dificuldade para cumprir a missão é cada vez maior. E os recentes acontecimentos não ajudaram muito um presidente que, antes dos áudios, já tinha uma popularidade ridícula e necessitava rastejar diante de deputados para aprovar, mesmo nas primeiras votações, suas polêmicas iniciativas.

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Em meio a essas duas urgências – a de salvar o projeto delineado e também o próprio pescoço – a conta que Michel Temer e seus aliados fiéis fazem é em termos de calendário. Cada dia que passa é um pequeno respiro, um passo de bebê para fora da área de tempestade.

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Por isso já é possível ver estratégias para arrastar o julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE por, pelo menos, 120 dias. Por isso o esforço de garantir que Osmar Serraglio não volte ao Congresso, mantendo o suplente (e potencial delator) Rocha Loures com mandato em vigor. Por isso é reforçada, em todas as oportunidades disponíveis e até mesmo em algumas criadas especialmente para esse fim, que a agenda de reformas continua, que o presidente está firme, que o país não pode parar. Por isso Rodrigo Maia, um dos integrantes dessa construção, já deu sinais claros de que arquivará ou sentará indefinidamente em todas as propostas de impeachment que chegarem em seu caminho.

Na panela de pressão que cozinha o ex-vice, a esperança de seus parceiros é que o gás do fogão acabe antes que a carne esteja no ponto para servir. É uma engenharia difícil, mas não inviável – ainda mais em um cenário onde vários setores tentam diminuir a intensidade do fogo, e os grupos capazes de colocar mais chamas em ação ainda buscam a melhor maneira de acender os fósforos. A briga mais importante está ali, no entorno do fogão. É para lá que me parece mais conveniente olhar.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Igor Natusch

NA GRAVAÇÃO DE TEMER, É PRECISO OUVIR TAMBÉM O QUE NÃO SE DIZ

Geórgia Santos
19 de maio de 2017
Foto: Beto Barata/PR (Brasília - DF, 18/05/2017) Pronunciamento do Presidente da República, Michel Temer, à imprensa. Foto: Beto Barata/PR

Não resta dúvida que, quando as manchetes dizem que o Presidente da República concordou com o pagamento de mesada a um político preso para que ele não faça delação, temos todos e todas que prestar muita atenção. A comoção em torno da afirmação foi tão grande que a revelação dos áudios da fatídica conversa de Michel Temer com Joesley Batista, presidente da JBS, acabou parecendo menos grave do que de fato é, já que o “tem que manter isso aí, hein” não é tão explícito e espetacular quanto as transcrições davam a entender.

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Verdade que, mesmo assim, Temer é um cadáver político e seu governo, seja lá a sobrevida que eventualmente tenha, está em processo visível de decomposição pública – e não vai ressuscitar, a não ser que apareça um Jesus Cristo do céu dizendo “levanta-te e anda” para esse Lázaro coberto de vermes.

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Mas eu queria destacar outro elemento nessa gravação – que, ao contrário da satisfação do não-vice-presidente com Joesley estar “de bem” com Cunha, não fica preso a uma frase pretensamente definitiva, dissolvido que está em quase todos os momentos do diálogo. Joesley fala que está “segurando” juízes, que conseguiu “um procurador dentro da força tarefa” que está passando informações – e a essas afirmações chocantes Michel Temer reage com naturalidade, sem nenhuma surpresa, sem manifestar nem digo indignação, mas um toque que fosse de incredulidade.
O que interessa aí é mais o não dito do que o efetivamente pronunciado: não apenas o chefe do Executivo federal não demonstra reação diante desses absurdos (ao contrário, parece no mínimo desinteressado a respeito) como também não se sabe de qualquer ação posterior, que tenha pedido esclarecimentos sobre a situação, que tenha orientado algum ministro ou secretário para tomar alguma providência ou, no mínimo, buscar informações.
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Recebe um investigado, conversa furtivamente com ele na garagem do Jaburu, ouve que ele faz esforços hercúleos para corromper a investigação que o ameaça, não solta um gemido sequer de desagrado e volta para seu palácio, sem tomar qualquer providência. E querem me convencer que está tudo bem

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Eles, os mesmos que hoje ocupam o Planalto após condenarem os crimes do governo anterior – eles agora querem me convencer que Joesley falava e Temer ouvia, que não era um diálogo entre cúmplices que dividiam interesses, que essa fumaça tomando conta da casa é oxigênio colorido e não sinal de incêndio.
Já é possível localizar, em certos veículos de imprensa, o esforço de apagar as chamas, adotando rótulos como “inconclusivo” e outras contemporizações. Um esforço condenado ao ridículo, com encher baldes no chuveiro do banheiro para combater o incêndio que devora a sala e a cozinha. Já temos mais: a afirmação de que Temer pediu dinheiro para influenciar na posição das redes antes do impeachment de Dilma Rousseff, para a campanha de Gabriel Chalita em São Paulo, em 2012 e até para “despesas de marketing” contra ataques na internet.
A delação já está homologada e, ao contrário de outras tantas, vem acompanhada de evidências obtidas de forma controlada pela Polícia Federal – ou seja, não estamos apenas no terreno do dito contra o não dito, não está apenas no peso das palavras a doença que devora a carcaça do governo Temer. E que já devorou politicamente Aécio Neves, e que tem fôlego para deixar o sistema de Justiça de orelhas em pé – já que, como sabemos, apenas um dos homens no bolso de Joesley Batista está atrás das grades no momento. A promessa é de muito, muito barulho nos próximos dias – e o estrondo não está apenas no que se ouve, mas talvez ainda mais no que não se diz ou se tenta não dizer.
Foto: Beto Barata/PR
Igor Natusch

O estranho caso do político que faz de conta que não é político

Igor Natusch
17 de maio de 2017
Brasília - O prefeito eleito de São Paulo, João Doria Junior, durante entrevista coletiva após encontro com o presidente Michel Temer (Valter Campanato/Agência Brasil)

O prefeito de São Paulo, João Dória, não é um político. E isso não é uma acusação feita a ele, ao contrário: é um mantra que o próprio chefe do Executivo paulistano repete sempre que possível, em um esforço incansável de convencimento coletivo. Mesmo estando eleito para fazer política pelo voto popular, mesmo precisando tomar decisões políticas, a partir de uma visão política das necessidades da maior cidade brasileira, em um ambiente cheio de disputas cuja natureza é incontornavelmente política: ainda assim, Dória usa a mais plácida das expressões faciais para dizer, e repetir, e frisar e acentuar que não, ele não é político. Não apenas isso: a coisa é dita com um ar de distanciamento muito claro, como se o prefeito não apenas nos informasse de que não vê a si mesmo como político, mas como quem faz questão de não ser político, como quem teme ser reconhecido como político pelo seu eleitorado.

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Não é uma admissão, um ‘ok, tens razão, não sou político’, mas bem mais um ‘não sou político coisa nenhuma, deus me livre’

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A despolitização da sociedade brasileira é o barro de onde surge esse tipo de coisa. Ser político, como sabemos, virou quase palavrão. O arquétipo do político, mais do que nunca em tempos de Lava-Jato e crise institucional generalizada, é de uma pessoa falsa e corrupta, que diz qualquer coisa para se eleger, que não dá a mínima para a população e na qual não se pode confiar. Não é uma missão para a qual se é eleito, mas sim uma espécie de profissão ou, melhor dizendo, de compromisso entre desonestos, quase uma parceria mafiosa. E aí convenhamos, quem quer falar sobre sua atividade do mesmo modo que um bandido confessa seu crime?

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Há tempos estamos elegendo governantes, na maioria das vezes, pelo que eles evocam de não-político na sua imagem ou discurso

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Vamos além de Dória, então: quem elegeu José Ivo Sartori governador do Rio Grande do Sul pensando em suas propostas? Todos sabemos que o que mais pesou foi sua imagem de ‘gringo’ gente boa, manso e bonachão, uma aparente chance de tranquilidade em um estado sempre incendiado pelo antagonismo político. Por outro lado, não se poderá dizer que Nelson Marchezan Júnior é alguém sem ideário ou trajetória política, mas até que ponto o dinamismo e juventude do atual prefeito de Porto Alegre (características marteladas durante toda a campanha do ano passado) são valores políticos?

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Nas redes sociais, nos bares e nas urnas, nossa discussão é pouquíssimo política: é uma briga de simpatias contra antipatias, onde o bem e o mal se confrontam, onde o potencial político de uma figura pública é medido a partir do seu não-envolvimento (prévio ou, em alguns casos, permanente) com a política institucional ou militante

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Não é à toa que muitos veem o manifestante como vagabundo, o fazer política como algo ineficiente, o debate político como besteira. Estamos enojados com o que virou nossa engrenagem política, de tal modo que tudo que esteja fora dela nos parece menos contaminado e, portanto, uma melhor opção. É nesse descrédito que figuras como João Dória, pela insistência em distanciar-se da política que ora exercem, acham várias ondas para surfar.

João Dória coloca a si mesmo como um empresário e, acima de tudo, um gestor. Embora a capacidade de gestão seja obviamente fundamental para manter um município – ou estado, ou país – nos eixos, não é minimamente possível gerir uma máquina política sem fazer política – e o que é fazer política senão assumir o papel de político? O prefeito de São Paulo, inclusive, continua fazendo política de forma incansável, com uma série de ações claramente midiáticas que causam a nítida impressão de que ele ainda não desceu do palanque, que continua em campanha para uma nova eleição que ainda não se definiu qual seja, mas aponta mais para Brasília do que para o Palácio dos Bandeirantes. Que não-político é esse que, mal eleito para a prefeitura, e mesmo tendo garantido que cumpriria esse mandato até o fim e não tentaria reeleição, admite com cada vez menos reservas que topa concorrer ao que quer que apareça como oportunidade em 2018? Que não-político é esse que se manifesta de forma dura, e claramente política, sobre uma greve geral que visa o governo federal, que não traz nenhuma oposição direta a sua própria administração – ou seja, que se posiciona de forma política sobre um relevante evento político?

Sugiro ao leitor e à leitora que desconfiem de quem, em meio aos políticos, insiste que não é político. Ou não é capaz de ver a si mesmo como político, mesmo sendo um deles, ou simplesmente tenta desviar os olhares para algum outro lugar. Ser ou não ser um político não é um predicado em si mesmo: é uma tarefa, que se assume ou não, de forma confessa ou dissimulada. E eu não sei vocês, mas eu quero meus eleitos bem políticos mesmo, porque ou a gente faz política de peito aberto ou ela simplesmente não serve, bem dizer, para nada.

Foto: Valter Campanato / Agência Brasil