Cléber Grabauska

Casagrande e o matambre recheado

Cléber Grabauska
17 de novembro de 2019

O Marco Aurélio Souza é um amigo que eu fiz na vida e no futebol. Nos dois nascemos em Canoas. Nós dois frequentamos o colégio La Salle. Nós dois tivemos aulas com o professor Norberto Neselo que, por sinal, foi também professor dos nossos pais. Nós dois nos formamos em jornalismo. Nós dois trabalhamos na RBS por muitos anos. Eu acabei sendo desligado. E ele foi para Santa Catarina e, de lá, para a São Paulo onde trabalha na Globo e na Sportv. E, depois de muito tempo, resolvemos montar um curso de jornalismo esportivo. Eu cuidando da parte de rádio e, ele, da de TV.

Foi num 20 de setembro, ou melhor, num 21 de setembro, em meio a um feriadão aqui em Porto Alegre, que ministramos o curso no Vós, mas devido a compromissos posteriores – ele tinha uma festa de aniversário e eu, uma transmissão – não conseguimos nos reunir para fazer aquela resenha de avaliação. Isso ficou para o final de semana seguinte, quando ele voltaria a Porto Alegre para o jogo entre Inter e Palmeiras. Dias antes, ele avisou. “Reserva um dia pra gente. Vou tentar levar o Casagrande e o Cléber (Machado) junto.”

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E avisou:

“O Casa é muito engraçado. Vale a noite.”

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E por falar em engraçado, a tal noite já começou errada. A reserva feita antecipadamente numa parrilla da rua São Manoel, que fica em um bairro nobre da capital gaúcha, não foi confirmada. Quando cheguei, o Marco Aurélio, acompanhado do Casagrande e da repórter Gabriela Ribeiro,  já estava buscando um Uber para ir para outro lugar. Ofereci meu modesto Kwid para o deslocamento. O problema é que o Casagrande, com aquele tamanhão todo, resolveu ir no banco de trás. Imagina o desconforto dele espremido e o meu com aqueles dois joelhos pressionando o banco do motorista.

Resolvemos ir ao Barranquinho, o irmão mais novo da churrascaria Barranco, uma das mais tradicionais de Porto Alegre. Lá não tem erro. E o Cléber Machado já conhecia a casa. Nos sentamos e o Marco fez o pedido. A Gabriela, que não come carne vermelha, preferiu um frango. Os demais escolheram as especialidades que a casa oferece. Entre elas,  o  matambre recheado. O matambre, geralmente, não é uma delícia. Mas o de lá é muito bem feito. É macio, bem temperado e um excelente aperitivo. O Casagrande ficou curioso com o prato. Perguntou o que era, como se faz,  mas não experimentou. Preferiu as polentinhas e o frango da colega.

O Casão não encarou o matambre, mas sempre foi um cara corajoso […] por ter posicionamento e atitude. Por fugir da marcação que a alienação exerce sobre quase a totalidade dos jogadores do futebol.

Casagrande e a democracia corinthiana. Foto: reprodução

O Casão não encarou o matambre, mas sempre foi um cara corajoso. Não só por escancarar a sua situação de dependente químico e por ter conseguido dar a volta por cima. Mas, para mim, principalmente por ter posicionamento e atitude. Por fugir da marcação que a alienação exerce sobre quase a totalidade dos jogadores do futebol. Por carregar uma bandeira política e aproveitar o enorme carisma e a liderança do Doutor Sócrates para consolidar, lá nos anos 1980, a Democracia Corinthiana.

Nos anos 80, eu ainda era um adolescente “tarado” por futebol e que começava a despertar para a vida política. Estava ainda no que se chamava “segundo grau” do colégio La Salle. Acompanhava o enfraquecimento do governo militar, os chiliques do General Newton Cruz batendo com um bastão nos capôs dos automóveis dos manifestantes em Brasília, as voltas de Brizola e Gabeira, o fim do exílio e a chamada abertura lenta e gradual. Após o golpe miliar, a  democracia começava a ser reestabelecida e a ideia de eleições diretas começava a crescer até tomar as ruas como o movimento das “Diretas Já”.

O futebol sempre foi um mundo à parte. Jogador de futebol tem comportamento de diva. Não se envolve em nada. Tudo fica para ser resolvido pelos dirigentes e assessores. Mas no Corinthians entre 1982 e 1984, a situação era diferente.

 

A Democracia Corinthiana

A inteligência de Sócrates, considerado pelo jornal inglês The Guardian um dos seis atletas mais inteligentes da história, a militância de Wladimir e a rebeldia do jovem Casagrande casaram perfeitamente e formaram o núcleo do movimento batizado pelo publicitátrio Washington Olivetto, vice-presidente de marketing do clube na época, como Democracia Corinthiana.

Com o aval e participação do jovem vice-presidente de futebol, o sociólogo Adílson Monteiro Alves, e com permissão do técnico Mário Travaglini, o movimento cresceu e tomou conta do clube. Envolveu outros nomes como Eduardo Amorim e o uruguaio Daniel González e mexeu com a estrutura do futebol brasileiro. Dirigentes, imprensa, jogadores dos outros clubes e boa parte do público não via aquilo com bons olhos. Para um país acostumado com a censura e a ditadura militar, era pura transgressão. Até poderia ser, mas era também um ensaio para o novo Brasil que muitos e muitos sonhavam.

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Era um exemplo de autogestão que propunha mais liberdade e maior participação nas decisões administrativas do clube
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A temporada de 1981 do Corinthians havia sido terrível. O time terminou em vigésimo-sexto no Brasileiro e em oitavo no Paulista. E como os estaduais serviam como ranking para as vagas do Brasileirão do ano seguinte, o time acabou tendo que disputar a Série B. Mas com a chegada de Casagrande e o fortalecimento da “Democracia Corinthiana”, o ano seguinte foi de muito sucesso. O time chegou às semifinais do Brasileiro e ao título do Paulistão. Sócrates e Casagrande tornaram-se uma dupla dentro e fora de campo.

Casagrande falou de toda sua admiração por Sócrates, que era um exemplo, um ídolo e um amigo. Essa harmonia só foi quebrada quando a direção do clube, em 1983, resolveu trazer o goleiro Emerson Leão. A contratação foi colocada em votação. Sócrates, ao lado da maioria, aprovou o reforço. Casagrande, que preferia apostar no até então titular Solito, disse não e acabou sendo voto vencido.

Entre uma polentinha e outra, Casão contou o episódio das chuteiras brancas. Uma moda que o jovem centroavante introduziu no futebol brasileiro habituado a ver somente chuteiras pretas. Aliás, não foi Casagrande quem descobriu aquele material. Na verdade, foi trazido por Daniel González, que ganhou de presente de um amigo durante as férias nos Estados Unidos. Era uma chuteria desenvolvida para gramados sintéticos. Tinha travas baixas, mas nada que atrapalhasse o rendimento do atacante corinthiano nos gramados naturais.

Logo na chegada, Leão e Casagrande se encontraram e o goleiro disse:

– Moleque, deixa eu ver essas chuteiras.

Leão com uma cara debochada analisoua novidade e concluiu:

– Bacana esse material. Quero ver se ela sabe fazer gol.

Casagrande recolheu as chuteiras e pediu para ver as luvas de Leão e deu o troco.

– Muito boas. Quero ver se elas sabem defender.

Com essas personalidades antagônicas, os dois conviveram apenas um temporada no clube. E apesar de discordar da maneira como as coisas eram decididas, Leão foi extremamente competente e decisivo na conquista do título estadual de 1983. Principalmente nas semifinais contra o Palmeiras, quando, por acaso, alguém do grupo descobriu que o goleiro já estava acertado para jogar no rival no ano seguinte. Casagrande, que fazia uma patrulha constante, chamou Sócrates e os outros líderes do grupo para colocar Leão contra a parede. Afinal, que história é essa?

Leão confirmou que estava acertado com o Palmeiras. Casão, não exatamente com essas palavras, fez uma cobrança dura: ou você defende tudo, ou a gente vai tirar o teu couro. Com duas grandes atuações do goleiro, o Corinthians empatou o primeiro jogo em 1 x 1 e venceu o segundo por 1x 0, passando para a final contra o São Paulo.

Para Leão, a hierarquia no futebol tem o presidente, o técnico e a torcida como o mais importante. Desdenhando da maneira como as coisas eram decididas no Parque São Jorge, o goleiro dizia que a “Democracia Corinthiana” era uma “democracia de três”. Ou seja, tudo era decidido para que Sócrates, Casagrande e Waldimir se sentissem à vontade.

Essa postura convencional e personalista de Leão serviu de contra-ponto ao movimento e também para dar apoio  àqueles que não faziam muita questão de participar da “Democracia”. Zenon, outra estrela daquele time, foi um dos jogadores que tinha uma sintonia muito maior com a postura do goleiro. E durante a passagem de Emerson Leão, a “Democracia Corinthiana” teve uma certa oposição interna.

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Mas esse mesmo Leão, mostrou uma outra face que surpreendeu Casagrande. Em 2005, quando o atacante vivia uma crise gerada pela dependência quimica e precisou de internação, o ex-goleiro foi o único colega a visitá-lo.
– Ela ia ao hospital quase todos os dias. E quando não aparecia, mandava recado e perguntava como eu estava – recorda Casagrande
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Leão, nesse momento complicado, foi parceiro. Uma parceria que Casagrande viveu quase sempre com Sócrates. Com o Doutor, Casão engrossou o coro pelas “Diretas Já”, movimento que tomou conta das ruas e cidades do Brasil. Entre 1983 e 1984 foram 32 mega-comícios nas grandes cidades do país. Ao lado dos principais políticos da oposição, como Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Lula, Mário Covas e Leonel Brizola, a dupla corinthiana reforçava o palanque que tinha Osmar Santos como locutor oficial e a presença de um time de artistas de peso como Chico Buarque, Beth Carvalho, Martinho da Vila e Mário Lago.

A voz das ruas foi transformada numa emenda encaminhada pelo deputado federal mato-grossense Dante de Oliveira. O texto que decidiria a volta das eleições diretas para presidente de república foi para votação na Câmara no dia 25 de abril de 1984. Apesar de toda mobilização popular, não passou. E o governo fez de tudo para garantir que a Emenda Dante Oliveira não fosse aprovada. Alegando uma pane no sistema de abastecimento, a energia foi cortada, o Congresso foi cercado por tropas armadas e os deputados governistas esvaziaram a sessão.

Valorizadíssimo pela participação na Copa do Mundo de 1982 na Espanha, Sócrates estava de saída do Corinthians. Mas, ainda numa última tentativa de mobilizar a torcida e o público, ele condicionou a sua permanência à volta das eleições diretas. Como a emenda foi rejeitada, ele seguiu o seu destino e transferiu-se em 1984 para defender a Fiorentina, na Itália. Sem Sócrates, a “Democracia Corinthiana” deixou de existir. Ainda mais após a saída de Casagrande que, em 1986, também se transferiu para a Europa.

O Marco Aurélio tinha razão. A noite valeu a pena. Para ser completa, só faltou o Casagrande experimentar o matambre recheado.

 

Foto capa: José Pinto

Voos Literários

O melhor e o pior da Copa e suas inspirações literárias

Flávia Cunha
17 de julho de 2018

Canarinho Pistola – Virou meme, ganhou destaque nos noticiários e o resultado desastroso do Brasil em campo em nada abalou o amor dos internautas ao mascote do Brasil.

Livro pistola em homenagem ao CanarinhoA Raiva, de Blandina Franco e José Carlos Lollo. Obra, ganhadora do prêmio Jabuti de 2015, é originalmente destinada ao público infantojuvenil. Mas pessoas de todas as idades precisam saber como lidar com esse sentimento tão intenso. Pra completar, a obra aborda o assunto com humor (tudo a ver com o Canarinho) e ilustrações bem bonitas.

Mick Jagger e seu pé frio – A má fama como torcedor ronda o vocalista dos Rolling Stones desde a Copa de 2014. Mas depois da Inglaterra ser eliminada com a sua presença no estádio na Rússia, a Internet não perdoou. Seu filho brasileiro bem que tentou defendê-lo, mas se tem algo que não adianta é tentar lutar contra esse tipo de brincadeira virtual. E, vamos combinar que nesse caso, é algo que não parece maldoso.

Livro em homenagem a Mick Jagger – Um roqueiro com tanto tempo de atividade já ganhou várias biografias, assim como os Stones. Mick a vida louca e o gênio selvagem de Jagger, do jornalista norte-americano Christopher Andersen, é uma obra que agradará quem gosta de saber detalhes pessoais de seus ídolos.

Neymar, Cristiano Ronaldo e o limite da vaidade – Tem quem defenda o menino Neymar e sua preocupação excessiva com a autoimagem, usando como justificativa o fato de Cristiano Ronaldo ser igual (ou ainda mais narcisista). O problema em questão é que, mesmo com salário astronômico e dois cabeleireiros o acompanhando durante a Copa, Neymar não obteve o resultado esperado em campo.  

Sugestão de leitura sobre a vaidade – O clássico O Retrato de Dorian Grey, de Oscar Wilde. O enredo mostra o protagonista em situações que o levam a ser cada vez mais arrogante e egocêntrico. Mas não espere um livro moralista, porque, afinal, trata-se de Oscar Wilde, um gênio rebelde das Artes.

Protesto feminista em plena Copa – Em uma competição masculina, uma manifestação feita por mulheres chamou a atenção. O grupo Pussy Riot invadiu o campo na final da competição para protestar contra o governo russo e a falta de liberdade no país.

Manifestação tem a ver com literatura – O ato foi organizado em homenagem a Dmitri Prigov, poeta dissidente da União Soviética, que morreu há 11 anos justamente nessa data (15 de julho). O escritor retratava em seus textos o “Policial”, uma representação da ditadura do Estado soviético.

A França vencedora e a necessária reflexão sobre xenofobia e racismo – O bicampeonato da seleção francesa na Copa suscitou debates que vão muito além das análises desportivas. A vitória deveu-se à atuação de um time formado em grande parte por imigrantes ou descendentes de africanos. O que chama mais atenção é o fato de a maioria dos franceses ser abertamente contra à presença de pessoas de outras nacionalidades em seu país, seja em campo ou fora dele. O comportamento preconceituoso está infelizmente presente em diversos países europeus, nos Estados Unidos e também no Brasil.

Duas obras para saber mais sobre o assunto e poder debater em alto nível com preconceituosos  de plantão:

Direitos Humanos e Hospitalidade – A proteção internacional para apátridas e refugiados, de Gustavo Oliveira de Lima Pereira

A obra analisa, a partir do viés do Direito Internacional, a questão dos direitos humanos e discute, com profundidade, conceitos como cidadania, soberania, democracia e tolerância. Um assunto pertinente em um mundo com cerca de 47 milhões de refugiados e outros 12 milhões de pessoas sem cidadania.

Direitos Humanos e Xenofobia: Violência internacional no contexto dos imigrantes e refugiados, organização de Cristiane Feldmann Dutra e Gustavo de Lima Pereira

Uma coletânea de artigos para entender e poder questionar a inutilidade das atuais as políticas migratórias restritivas. Medidas que dificultam a permanência regular de imigrantes em um determinado país mas não restringem a entrada dessas pessoas, criando, assim, um negócio lucrativo e ilegal, para os coiotes e agentes corruptos dos governos. Uma obra de resistência feita por quem realmente entende do assunto.

Livros sobre xenofobia e direitos humanos sugeridos pela socióloga e doutoranda  em Sociologia Aline Passuelo de Oliveira, especialista em sociologia das migrações, deslocamentos populacionais forçados, refugiados, conflitos armados e os impactos nas populações locais.

Geórgia Santos

Vamos aproveitar a Copa com leveza

Geórgia Santos
2 de julho de 2018

Por que eu gosto tanto da Copa? A verdade é que eu não sei. Responder que eu gosto de futebol não é suficiente, porque eu não fico assistindo a Champions League, por exemplo, com exceção das finais e olhe lá. Aliás, não assisto muita coisa além dos jogos do Grêmio. Não sei porque gosto tanto da Copa. Mas gosto muito. E aproveito muito.

A primeira Copa de que tenho lembrança é a de 1994. Eu criança, lembro bem dos braços do Bebeto indo de um lado para outro a cada comemoração de gol, balançando aquele nenê invisível mas que todos víamos; está gravado na minha memória o rabinho estranho no cabelo  de Roberto Baggio; quem não recorda do “Vai que é sua, Taffarel!”, e daquela roupa escandalosa do goleiro? Também não preciso do Youtube para lembrar do Galvão pulando, com Pelé pendurado no pescoço, enquanto gritava “Cabô! Acabou! É Tetra! É Tetra!”. Lembro dos meus pais, geralmente discretos, pulando e celebrando e chorando. Não só eles, mas a família inteira. Os adultos pareciam entorpecidos – provavelmente estavam, eu é que não conhecia os efeitos do álcool. Mas não era só o álcool.

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Levei 20 anos para perceber aquela celebração de 94 não era como qualquer outra, mas era o desabafo de um jejum de mais de duas décadas

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Mas foi a Copa do Mundo de 1998 que me marcou. Até a final de 98, tudo o que eu conhecia em Copas era vitória. Brasil era tetra, como o Galvão não nos deixava esquecer. Nós éramos os últimos campeões do mundo, os únicos a vencer o torneio por quatro vezes. Nós éramos o Brasil. Eu não sabia o que era perder até 12 de julho de 1998.

Há 20 anos, eu pedi pra o meu pai o “V” da vitória, o xodó dos torcedores brasileiros. Era uma espécie de luva em látex para os dedos indicador e do meio, o famoso pai de todos. Era muito legal. Não ganhei, meu pai comprou um genérico, de pano, na loja de R$1.99, que era uma novidade. Ficava caindo da minha mão, porque era enorme, mas eu adorava. Pedi uma camisa da seleção, não levei. Minha mãe tinha ganho uma camiseta do Guga falsificada, igual a que ele usava em Roland-Garros, mas era horrível.  Nem aí, usei sempre. Pintei a cara com tinta guache, que secava e craquelava; enrolava o corpo em uma bandeira mal pintada; amarrava uma bandana, também no Guga, na cabeça e era só alegria. Tudo estava bem. Tinha até me conformado com a ausência do Romário.

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Aí apareceu o Zidane e eu descobri o que era perder na Copa

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Eu chorei, chorei muito. Meus pais me abraçavam, com dó. Tenho quase certeza que achavam quase divertido, embora minha cara fosse de cortar o coração. Havia uma obra nos fundos da casa e foi lá que me refugiei, aos prantos, sentada entre os tijolos. Era um pouco de drama, sim, muito antes de Neymar, mas eu estava profundamente triste. Eu não conseguia entender como o todo poderoso Brasil estava naquela situação. Como não ganhamos? Nós não ganhamos sempre? Aos dez anos, era complicado entender o tempo, não sabia o que eram 24 anos, não conseguia assimilar a dimensão daquele hiato.  

Desde aquela Copa da França, ganhamos o penta em 2002 e é isso. Em 2006, a seleção dos sonhos foi parada pela França (de novo) nas quartas de final. Em 2010 eu não sei o que aconteceu, é uma Copa que foi completamente apagada da minha memória. Já a de 2014 eu adoraria esquecer, apagar dos meus neurônios  a lembrança dolorosa do famigerado 7 a 1. E agora estamos aqui, em 2018. Estamos há 16 anos sem ganhar e eu, finalmente, compreendo a dormência do jejum de mais de uma década. 

Bah, mas como eu gosto da Copa do Mundo. Não sei porque gosto tanto da Copa. Mas gosto muito. E aproveito muito. É um momento para exorcizar demônios; para torcer;  se apaixonar;  gritar; abraçar; beijar; curtir; sorrir; cantar. É um momento para encarnar o espírito do canarinho pistola, o melhor mascote de todos os tempos; para esquecer do trabalho; esquecer dos problemas; esquecer da política; esquecer da dor.

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Vamos aproveitar a Copa com leveza. É uma válvula de escape com prazo de validade e ele já está chegando

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Não percam tempo reclamando do nosso melhor jogador, falando de alienação, xingando a geração belga, dizendo que os uruguaios são melhores que a gente, que o Messi não joga nada, que a posse de bola matou o futebol, que o Tite é chato. Aproveitem a Copa com leveza. Já nos tiraram tanto, não vamos deixar que nos tirem o prazer de torcer.

Foto de capa: Joosep Martinson – FIFA/FIFA via Getty Images

 

Geórgia Santos

A Copa do Mundo e a perspectiva das coisas

Geórgia Santos
27 de junho de 2018

Talvez a gente dê muita importância à Copa do Mundo. Não sei mensurar o valor adequado a se dispensar a esse tipo de evento.

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Para poucos, não significa absolutamente nada;

Para alguns, redenção;

Para tantos, é desafogo;

Para outros, paixão;

Para muitos, apenas entretenimento;

Para quem gosta muito de futebol, é tudo isso junto;

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Eu gosto muito de futebol. Eu adoro assistir à Copa do Mundo. Eu adoro ver o Brasil em campo. Eu adoro ver a seleção canarinho erguer a taça – estou com saudades, inclusive. Azar. Eu adoro assistir ao efeito que esse torneio causa nas pessoas.

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Especialmente porque tudo é uma questão de perspectiva

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Se, para um brasileiro pentacampeão, erguer a taça é um dever. Para um panamenho, a vitória é outra. É a primeira vez que o Panamá participa da Copa do Mundo e o seu torcedor soube aproveitar a honra como poucos. Tanto é assim que, no jogo contra a Inglaterra, o gol do zagueiro Baloy foi celebrado como se já não tivesse levado seis gols do adversário. O pé direito de Felipe Baloy foi a redenção do estreantes, que comemoraram o gol como se fosse um título.

Photo by Maja Hitij – FIFA/FIFA via Getty Images)

Baloy chorou, foi abraçado pelos companheiros, abraçado pela torcida, abraçado pela família e entrou para a história como o estreante mais velho a marcar em Copas – 37 anos e 120 dias.

Algo parecido aconteceu com o Peru, de volta à Copa depois de 36 anos. Já eliminado, venceu a Austrália por 2 a 0. O último gol dos peruanos em um Mundia foi marcado em 1982, na Espanha. A última vitória aconteceu quatro anos antes, na Argentina. Foi somente agora, em 2018, na Rússia, que o desafogo chegou nos pés de Carrillo e Guerrero.

E além da redenção e desafogo dos panamenhos e peruanos, temos a paixão dos argentinos, que comoveu até mesmo os maiores rivais; a alegria dos senegaleses; o contentamento dos islandeses; a esperança dos iranianos; o desolamento dos alemães; o conforto dos sul-coreanos; o temor dos mexicanos; o susto dos portugueses; a fé dos nigerianos; a tranquilidade dos belgas; a surpresa dos croatas; e a lista segue.

Mas daqui a pouco tem Brasil e, de minha parte, Brasil em campo é tudo isso junto. É uma questão de perspectiva.

(Photo by Jamie Squire – FIFA/FIFA via Getty Images)

Geórgia Santos

Grêmio x Lanus – NÓS jogamos hoje

Geórgia Santos
29 de novembro de 2017

Eduardo Galeano, em Futebol – Ao sol e à sombra, diz que é raro o torcedor que afirma “Meu time joga hoje”. Ele está certo. A um esporte coletivo, não cabe a possessão ou a singularidade. Incumbe, em vez, o pertencimento da primeira pessoa do plural. NÓS jogamos hoje.

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E NÓS, Grêmio, jogamos hoje

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Enquanto aguardo com certa ansiedade e estômago inquieto este 29 de novembro passar, refaço em minha memória a linha do tempo que me avaliza como jogadora número 12. O que vejo não é o primeiro jogo no Olímpico ou na Arena ou a primeira camisa que ganhei. Tampouco o momento em que me dei conta que era gremista, pois sempre fez parte da minha natureza. Não penso nos choros e soluços, nos gritos e desabafos. Nos desaforos e desafogos. Não lembro de quando ganhei autógrafo do time todo em 95; mesmo dia em que o Dinho me fez chorar com sua cara feia, para diversão do meu pai. Não repasso os adesivos enfeitando os cadernos na adolescência em que os títulos desapareceram.

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O que vejo é o banquinho da vó Julia quebrando

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Eu tinha sete anos em 1995 e vivia em Paraí, minha cidade natal. Entretanto, por algum motivo do qual não lembro, viajamos a Porto Alegre naquele 30 de agosto. Meus pais e eu estávamos hospedados na casa da vó Julia e da tia Marta, que tinha uma televisão grande na sala – sala que ficou pequena graças à nossa ocupação. Tralhas à parte, cada um acomodou-se como foi possível. Ao meu pai coube o banquinho branco, baixinho e de pernas frágeis.

O Grêmio entrou no Estádio Atanasio Girardot, em Medellín, com uma grande vantagem de 3 a 1 conquistada no primeiro jogo. Mas futebol é futebol. É aquele ritual imprevisível e estressante, em que as funções naturais do nosso corpo se descompensam tanto quanto as de quem está entre as quatro linhas. E o Atlético Nacional marcou aos 12 minutos de partida. Gol de Aristizábal. Nunca esqueci desse nome.

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Eu já estava fardada, como os outros jogadores, mas ali naquele momento, era como se Felipão tivesse escalado a mim para resolver o jogo, e não Alexandre

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Passei resto do jogo em pé, secando as mãozinhas suadas naquele uniforme com o patrocínio da Renner. Andando de um lado para o outro, como se o time dependesse da minha energia, da minha vitalidade. Eu fazia parte daquele time, eu era o Grêmio. “Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor que empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música.” Eu estava sendo abonada pelas palavras que Galeano nem sabia que escreveria.

Pouco antes do final, aquele Alexandre que era eu sofreu um pênalti. Dinho cobrou e marcou. A América era NOSSA. O árbitro apitou o final da partida e eu pulei no colo do meu pai, que permaneceu sentado no banquinho da vó Julia. Mas era Grêmio demais e o banquinho não aguentou. O pai e eu nos espatifamos no chão, em cima de uma mesinha de centro. A casa quase implodiu de alegria com as gargalhadas da mãe. NÓS tínhamos vencido.

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Futebol, meu povo, não é futilidade. É memória, é afeto, é parceria. É diversidade. É comunidade

E NÓS jogamos hoje

 

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Foto: Revista da CONMEBOL

Vós Ativa

Brasil x Paraguai: “Ô, bicha!”

Colaborador Vós
29 de março de 2017
Divulgação CBF

Por Jonatha Bittencourt, jornalista

Arena Corinthians, 28 de março de 2017. Pouco mais de 40 mil pessoas foram ao estádio para acompanhar mais um clássico do futebol sul-americano: Brasil e Paraguai, jogo válido pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2018, na Rússia.

Dentro de campo: três a zero para a seleção canarinho com direito a classificação para a Copa. Fora dele: mais uma derrota

Perdi as contas de quantas vezes o goleiro paraguaio foi alvo de xingamentos homofóbicos. Saí de lá com o estômago embrulhado. A cada tiro de meta, um “ôôôô…” surgia como se fosse um murmúrio em meio à multidão. O grito ganhava força e, assim que o jogador adversário tocava na bola, um estrondoso “bicha” ecoava pela Arena Corinthians.

Não estou acostumado a ir a jogos de futebol e como estava a passeio em São Paulo pensei que seria uma boa oportunidade para ver pela primeira vez a seleção do meu país entrar em campo. Mas saí com o coração ferido. O relativo bom futebol dentro das quatro linhas do gramado e a estrutura interessante da Arena não serviram para muita coisa, não.

O locutor do estádio usou duas vezes o microfone para recomendar à torcida que não dirigisse ofensas aos jogadores do Paraguai. Nas duas únicas ocasiões, a vaia surgiu como resposta ensurdecedora. Ousei aplaudir, o que deixou algumas pessoas constrangidas ao meu redor.

Na garganta, um grito entalado: “SOU BICHA, MAS NÃO TE DEI O DIREITO DE ME USAR COMO VAIA. VÊ SE ME RESPEITA!”

Afinal de contas, fui equiparado a uma vaia, a um xingamento. Na visão de considerável parte da torcida, classificar o goleiro como “bicha”, um gay, era depreciação.

Todos os dias, apesar das conquistas baseadas em muita luta, lágrimas e sangue, o Brasil perde ao discriminar LGBTs. Estádios de futebol, alguns com maior evidência nesse sentido, continuam sendo um recanto intocado de discriminação. Um lugar para extravasar o ódio com o aval de milhares ao redor.

A criança que assistia calada os coros de “bicha” porque seu pai não gritava junto passou a insultar o goleiro assim que ouviu, bem ao seu lado, alguém muito familiar vaiar o locutor que clamava por respeito. E assim caminha a humanidade. E assim funciona a máquina do preconceito, da dor, da exclusão.