Reporteando

As perguntas-padrão de uma eleição seriam mais reveladoras

Geórgia Santos
31 de julho de 2018

Na noite de ontem, o programa Roda Viva recebeu o deputado Jair Bolsonaro (PSL), candidato à presidência da República. Confesso, eu estava muito curiosa por esse momento. Especialmente porque o político é conhecido por evitar esse tipo de encontro com jornalistas, com os quais mantém uma relação de hostilidade. E no ensejo das confissões, admito que fiquei frustrada. Não com ele, sua ignorância sempre aparece, mas com a entrevista em si.

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Não foi propriamente uma entrevista ruim, mas foi mais do mesmo

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Já no início, quando o apresentador do programa, Ricardo Lessa, pergunta sobre a realização pela qual ele gostaria de ser lembrado, Bolsonaro despeja a ladainha que todos conhecemos. “Nós cansamos da esquerda”, “[queremos um Brasil] que respeite a família, bem como as crianças em sala de aula”; “que jogue pesado na questão da segurança pública”; “que jogue pesado contra o MST”. De novo, pra mim, apenas o “sonho” que o candidato tem de tornar a economia brasileira plenamente liberal, já que até pouco tempo era um estatista.

Mas a ladainha que conhecemos seguiu programa afora. O começo da entrevista foi marcado por perguntas sobre a Ditadura Militar, por exemplo. Acho que é um tema que deve ser abordado, afinal de contas faz parte do nosso passado recente e o candidato já exaltou e defendeu o período mais que algumas vezes. Mas insistir por quase meia hora nisso, é escada pra ele.

Ele relativizou a tortura com o discurso padrão de que eram terroristas, disse que a maioria inventou que foi torturada para receber indenização, votos e poder; disse que sem a “revolução teríamos virado Cuba”; questionou o assassinato de Vladimir Herzog; disse que não foi golpe; e ainda flertou com a ideia de reeditar o período quando perguntou se “o clima não está muito parecido com aquela época.”

Em outras frentes, o candidato do PSL disse que é contra políticas afirmativas. Segundo ele, entrar em uma universidade, por exemplo, é questão de mérito e competência. “Se eles podem ser tão bons no Ensino Superior, e acho que sejam (sic), por que não estudam no Ensino Básico aqui atrás, pra que tenham melhor base e sigam carreira numa situação de igualdade?” Ele afirma que não há dívida a ser quitada com a população negra porque ele nunca escravizou ninguém. Aliás, foi mais longe. “Se for ver a história realmente, os portugueses nem pisaram na África, os próprios negros que entregavam os escravos”, disse ele, em um momento de profunda infelicidade.

Ao ser confrontado com os rótulos de homofóbico, misógino e racista, negou todos. Obviamente.

“Se eu sou racista tinha que tá (sic) preso. São calúnias, nada mais.”

“Onde que que eu sou homofóbico? A minha briga é contra o material escolar. […] não pode o pai chegar em casa e encontrar o Joãozinho de seis anos de idade brincando de boneca por influencia da escola.”

Felizmente, o jornalista Bernardo Mello Franco, do jornal O Globo, corrigiu Bolsonaro ao lembrar que ele foi denunciado pelo crime de racismo. Ele relativizou (de novo), disse que apenas exagerou nas brincadeiras e que aquilo não é racismo. Quanto a não ser homofóbico, não foi corrigido, infelizmente, então nós fazemos isso aqui.

Bolsonaro tergiversou o tempo todo e reproduziu os discursos aos quais já estamos todos acostumados. Se defendeu sobre o receber auxílio-moradia dizendo que está na lei, ignorando a imoralidade de utilizar o benefício mesmo com imóvel próprio; disse que, no sétimo mandato, nunca integrou a Comissão de Orçamento, nem a de Saúde e que nunca integrou a maioria das comissões da Câmara dos Deputados porque “aquilo é um mundo”; disse que a última CPI que funcionou na Câmara foi há mais de 20 anos – aparentemente esqueceu de Eduardo Cunha; disse que evoluiu em suas contradições com relação à democracia; admitiu ter votado em Lula e elogiado Chávez, mas não admitiu ter mudado de opinião. Segundo ele, Chávez é que mudou e parou de elogiar os Estados Unidos (?). Em resumo, mais do mesmo.

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A falta de preparo do candidato à presidência apareceu no que chamo de perguntas-padrão do período pré-eleição. Ou seja, ao responder questões sobre pontos críticos que um eventual governo deverá enfrentar

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Inovação

O diretor de Inovação e Articulação do Instituto Ayrton Senna, Mozart Neves Ramos, perguntou qual seria o papel que o Ministério da Educação deveria desempenhar e se a Educação Superior pública deveria estar vinculada ao Ministério da Educação ou ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A resposta foi um festival de desconhecimento. Uma confusão. Primeiro, disse que não há pesquisa no Brasil,  que é uma raridade; depois que é preciso “inverter a pirâmide” e investir em Educação Básica; em seguida, que a comunidade científica está em segundo plano no país; completou dizendo que “não interessa aonde vá ficar, tem que ser uma pessoa isenta e com conhecimento de causa”; terminou afirmando que “temos que investir e dar meios para que o pesquisador possa exercitar o trabalho. Se você quiser entrar na área da biodiversidade, você tem uma dificuldade enorme. Agora, tá cheio de gente tentando roubar a nossa biodiversidade.”

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Mortalidade infantil

Esse momento, na minha opinião, foi o mais revelador no que tange à falta de preparo – e noção. A jornalista Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico, questionou sobre as políticas que o candidato pretende propor para, entre outras coisas, a redução da mortalidade infantil, especialmente se houver redução de impostos.  Bolsonaro não apenas demonstrou pouca familiaridade com o assunto como foi leviano ao, basicamente, culpar as gestantes. Ignorando o fato de que altos índices de mortalidade infantil estão associados à falta de saneamento básico.

“Mortalidade infantil. Tem muito a ver com os prematuros. É muito mais fácil um prematuro morrer do que um que cumpriu a gestação normalmente. Medidas preventivas de Saúde.  [Jornalista: tem mais a ver com saneamento básico do que com prematuridade]. Não tem a ver. Olha só, tem um mar de problemas , tem que ver a questão, o passado daquela pessoa, signatário dela, alimentação da mãe, tem um montão de coisas, tô citando aqui um exemplo apenas. […] Muita gestante não dá bola pra saúde bucal, ou não faz exame de seu sistema unirnario com freqüência”, disse.

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Desemprego no campo

O candidato acredita que o desemprego no campo se dá em função da tecnologia e da fiscalização. Depois de dizer que “é difícil ser patrão no Brasil”, afirmou que o trabalhador deve ser treinado para fazer outra coisa, já que a mecanização deve substituir o trabalho braçal. Também defendeu que o governo não pode atrapalhar com legislação e fiscalização “absurdas”.

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Para mim, a candidatura de uma pessoa com um perfil tão belicoso é assustadora. Assusta que alguém se sinta tão à vontade para falar o que ele diz. Assusta que tantas pessoas apóiem alguém assim. Dito isso, acredito que esta seja uma campanha bastante emocional, o que explica parte desse apoio. Sua base é movida pelo “sentimento”, sentimento de medo, de cansaço, de necessidade de mudança – embora eu não entenda como alguém que é deputado há 27 anos possa ser mudança. Mas é justamente esse “sentimento” que torna inócua a insistência com alguns temas como o racismo, homofobia, misoginia, xenofobia e Ditadura Militar.

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O eleitor de Bolsonaro concorda com ele, não se importa com esses temas ou não acredita que ele seja assim – atribuindo tudo às Fake News

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Isso prova que, mais do que nunca, o jornalismo responsável precisa entrar em campo. O candidato do PSL precisa ser exposto como o candidato despreparado que é, não pela maneira como ele pensa ou em função do que defende. Até porque, ele tem todo o direito de defender o que bem entender – e o dever de arcar com as consequências disso também.

E é nesse ponto que o programa Roda Viva falhou. À parte esses três momento que destaquei, sobre inovação, mortalidade infantil e desemprego – e talvez algum outro que me tenha escapado, foi uma entrevista pouco reveladora.

Faltou perguntar sobre plano de governo, sobre projetos para educação e saúde. Não ouvi nada a respeito de cultura, não tenho a menor ideia do que ele pensa a respeito. De política internacional, só sei que quer fazer comércio com todos os países. E para a segurança? Além do óbvio e de armar o “cidadão de bem”, não ouvi nada que fosse produtivo.

Não teve coordenador de campanha adversário como entrevistador, ele não foi interrompido constantemente, mas, de certa forma, o programa foi desenhado de maneira similar ao que recebeu Manuela Dávila. Por motivos diferentes, é claro. Afinal de contas, o candidato do PSL é cheio de contradições e precisa ser confrontado. De todo modo, ficou claro que o objetivo era constrangê-lo, pegá-lo no “contrapé”. Estratégia que, na minha opinião, só fortalece uma candidatura que atribuiu notícias ruins à manipulação da grande mídia.

Durante o programa, ele disse que “a imprensa quase toda é de esquerda no mundo, Trump sofreu com isso, são os Fake News.”

Ele deixou a cama pronta. Não podemos deixar o jornalismo deitar.

Geórgia Santos

Facebook entre censura e responsabilidade

Geórgia Santos
26 de julho de 2018

O Facebook removeu de sua plataforma 283 contas brasileiras que, segundo comunicado oficial, violaram as políticas da empresa. As 196 páginas e 87 perfis eram vinculados à direita e, na maioria dos casos, ao Movimento Brasil Livre (MBL). Não foi por esse motivo, no entanto, que foram desativadas. Em nota divulgada ontem, a rede social garante que, após rigorosa investigação, detectou o uso de contas falsas com o propósito de espalhar desinformação.

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Essas Páginas e Perfis faziam parte de uma rede coordenada que se ocultava com o uso de contas falsas no Facebook, e escondia das pessoas a natureza e a origem de seu conteúdo com o propósito de gerar divisão e espalhar desinformação.

(Garantindo um ambiente autêntico e seguro, por Nathaniel Gleicher, líder de Cibersegurança)

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No comunicado, o líder de Cibersergurança da empresa, Nathaniel Gleicher, afirma que o trabalho de retirar essas contas do ar faz parte de uma ação permanente de agir contra pessoas “mal intencionadas” que violam as Políticas de Autenticidade e Padrões da Comunidade do Facebook.

Algumas das páginas e perfis desativados são conhecidos do grande público pelo hábito de difundir informação falsa e/ou manipular essas informações. Em outras palavras, são contas conhecidas por divulgar fake news como Jornalivre, Diário Nacional e Movimento Brasil 200.

Não é segredo que há uma rede organizada com o propósito de difundir a desinformação, mas os números surpreenderam inclusive quem estuda o tema.  O Monitor do Debate Político no Meio Digital, criado por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), acompanha páginas de direita e esquerda desde 2016 com o objetivo de identificar a difusão de fake news. Nesses dois anos, o grupo mapeou 20 páginas que produziam, em média, 126 postagens por dia e somavam 150 milhões de interações somente no ano passado.

Em comunicado no Facebook, o grupo explica que essa desproporção sugere que o Facebook identificou a criação de uma rede de páginas que, provavelmente, seria usada durante a eleição. 

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Das que já estavam em atividade e eram relevantes, caíram a página do Jornalivre e do Diário Nacional. Como o Facebook não retira páginas que divulgam notícias falsas, mas apenas páginas administradas por perfis falsos, é provável que todas as páginas tinham sido criadas com contas falsas. Um dos perfis que supostamente administrava a página do Jornalivre também caiu, o que sugere que era falsa.

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Ficou bastante claro que o Facebook está “se vacinando” para evitar que aconteça no Brasil o que houve nos Estados Unidos. Afinal, a criação de uma rede virtual – mas bem real – para espalhar notícias falsas foi uma das estratégias utilizadas pela Alt-Right durante a campanha de Donald Trump. No Brasil, a rede de fake news já está bem articulada e financiada. E o Facebook já se prepara para combater isso. Nesta semana, no texto “Protegendo as Eleições no Brasil”, a empresa afirma  estar comprometida “em conter a disseminação de conteúdo de baixa qualidade e garantir que as pessoas saibam identificar fontes de notícias confiáveis.”

Uma pena que tenha demorado tanto a agir, já que há muito anos o Facebook se manteve omisso com relação a conteúdos falsos e, inclusive, ofensivos. Sempre  sob a justificativa de ser contrário à censura – o que é algo bastante diferente apesar do que o MBL diz.

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A resposta do MBL . mais informações falsas

O empresário Flávio Rocha, que financiava o Movimento Brasil 200 e, até poucos dias atrás era candidato à presidência da República pelo PRB, afirmou no Twitter que a ação do Facebook era “uma violência” e que  “nem no tempo da ditadura se verificava tamanho absurdo.” Já o MBL divulgou comunicado reconhecendo que várias das contas desativadas eram ligadas ao movimento e prometeu “tomar providências.” O texto diz ainda que o MBL e outras páginas vinculadas a direita estão sofrendo “censura” e “perseguição ideológica”.

O mais interessante da história é que o MBL reage com mais desinformação e distorção. Em um post no Facebook, por exemplo, o grupo diz o seguinte: “Facebook admite que exclusão de perfis não tem nada a ver com “fake news” E agora imprensa? Vão pedir desculpas pelo “erro”?” Isso é de uma desonestidade intelectual sem fim. O motivo de a rede social ter desativado as páginas diz respeito à violação das políticas da empresa, mas isso não exclui o fato de essas mesmas páginas divulgarem informações falsas. Tanto que a justificativa da empresa, por escrito, é o “propósito de espalhar desinformação.” Até porque, se o critério fosse a veracidade das informações, a página do MBL não resistiria à devassa.

A situação é tão absurda que, logo após o Facebook remover as páginas e perfis de sua plataforma, o MBL postou o seguinte:

O valor das ações da empresa realmente teve queda na Bolsa de Nova York, mas em função do balanço da empresa divulgado também na quarta-feira, que mostra que o Facebook não atingiu as projeções dos analistas e frustrou investidores. 

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Entre censura e responsabilidade

Após tantas reclamações de censura por parte do Facebook, recorri a um livro que considero fundamental no debate sobre liberdade de expressão: Free Speech – Ten Principles for a Connected World, de Timothy Garton Ash (Liberdade de Expressão – Dez princípios para um mundo conectado, em tradução livre). A obra de quase 400 páginas é um tratado sobre a liberdade de se expressar em um mundo conectado.

Primeiro, o que aconteceu com essas 283 páginas e perfis não é censura. Não que a censura seja exclusividade de governos, ela pode acontecer em instituições privadas. Mas neste caso, há um contrato em jogo. Quando se cria um conta no Facebook, “assinamos” um contrato em que concordamos com as políticas da empresa. Assinalar aquele quadradinho que quase sempre passa batido é dar poder a empresa para tomar esse tipo de decisão. Da mesma forma que não podemos publicar a gravura de uma mulher nua, ou fotos em que os mamilos apareçam.

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Ou seja, essas páginas violaram o contrato e, por isso, foram desativadas

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Mas não significa que o debate sobre censura e responsabilidade não seja importante. Eu, particularmente, acredito que as “grandes potências privadas”, como diz Garton Ash, devem, sim, assumir responsabilidades públicas e com o público. Não podem ser omissas diante da desinformação. E na lista incluo Google, Twitter, Amazon, Apple e, é claro, o Facebook. Essas empresas são, de certa forma, donas de espaços públicos. E fazem mais do que simplesmente oferecer a plataforma para debate. Elas determinam como se debate, com quem e sobre o que. 

Mas qual o limite entre a responsabilidade e a censura? Como se assume essa responsabilidade sem  impor, a exemplo de regimes totalitários, o que é ou não verdade? Como fazer isso? Se o Facebook desativar páginas com base no critério das fakes news, é uma boa notícia? Não sei. Não tenho respostas pra isso, apenas mais perguntas.

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“So the good sword of truth will only be kept sharp if it is constantly tried against the axes and bludgeons of falsehood.” 

“Assim a boa espada da verdade só será mantida afiada se for constantemente testada contra os machados e golpes da falsidade.”

(Garton Ash, 2016, p.75)

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Fiquei satisfeita com a retirada de páginas e perfis que tenham o propósito de desinformar. Espero que seja uma política perene, e não apenas preventiva, já que a eleição está virando a esquina. E também espero que renda um debate frutífero sobre como equilibrar liberdade e responsabilidade neste mundo conectado. Afinal, a liberdade de expressão é um teste constante sobre como viver em uma sociedade que é, por essência, diversa e conflituosa.

 

Igor Natusch

Isso aqui não é notícia! – ou, protestos na Argentina e nosso amor por fake news

Igor Natusch
20 de dezembro de 2017

Já comentei por aqui em tempos idos como a produção e disseminação de fake news é uma indústria, que nos oferece argumentos convenientes em troca do nosso engajamento e, é claro, de dinheiro. É um círculo vicioso extremamente nocivo para a discussão política e para toda a sociedade – e tivemos mais uma prova nos últimos dias, quando muita gente jurou de pés juntos que argentinos estavam gritando “isso aqui não é o Brasil!” durante os protestos contra a reforma previdenciária em curso naquele país.

Multidões identificadas com o pensamento progressista e contrário às medidas que vêm sendo adotadas por Michel Temer no Brasil acabaram disseminando a suposta informação. Eu mesmo, confesso, recém chegado de viagem e um tanto desligado do noticiário, cheguei a acreditar, durante algum tempo, que pudesse ser algo verdadeiro. Uma notícia que, como denunciado por usuários do Twitter e depois demonstrado pelo site E-farsas, não tem qualquer base identificável na realidade.

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Não existem registros em vídeo, relatos nos jornais locais, menções ao grito entre usuários argentinos de redes sociais, nada. Absolutamente nada

 

Se gritaram, não foi possível, pelo menos por enquanto, provar – e se não é possível provar, noticiar para quê?

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O primeiro a noticiar a suposta bomba por aqui foi o site Brasil 247 – não vou dar link porque né, trata-se de uma não-notícia e não merece ser disseminada. Mesmo não sendo um espaço “clássico” de fake news, o portal está (com todo o respeito) notoriamente distante de ser um veículo comprometido com apuração exaustiva ou com a credibilidade das informações que divulga. De onde terá tirado dados que corroborem o que divulga? Não se sabe, e pelo jeito não se saberá em momento algum.

Mesmo sendo altamente enviesado em sua cobertura, e mesmo sem apresentar qualquer evidência daquilo que afirmava em sua matéria, o Brasil 247 conseguiu atingir o coração e a imaginação de milhares de pessoas. Jogando não apenas com a insatisfação diante de reformas sem debate com a sociedade e que mudam (ou mudarão) drasticamente a vida da maioria da população, mas também com o sentimento de desamparo causado pela ausência de protestos nas principais cidades brasileiras. E tendo a publicação compartilhada, obtendo acessos, conquistando espaços de debate. Com uma informação que, repetindo, de informação mesmo não tem quase coisa alguma. Com uma matéria que, no mínimo, foi publicada antes de assar adequadamente no forno – se é que não foi para a mesa do leitor completamente crua, mesmo.

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Isso funciona, é claro, porque ninguém – absolutamente ninguém – está imune à tentação do viés de confirmação

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O questionamento incansável às falsas notícias do lado de lá não é o mesmo quando a manchete encaixa com nossos discursos, quando diz algo que nos é interessante que seja realidade. Não estavam compartilhando por aí que Bono Vox, o vocalista do U2 engajado com causas sociais, viria ao Brasil participar da mobilização de apoio a Lula no julgamento no TRF-4 – algo que a própria “fonte”, senador Roberto Requião, já deixou claro que era uma afirmação hipotética e não um anúncio? Requião mencionou o nome do músico, e isso basta. Que venham as manchetes e os memes!

Muito difícil ver boas perspectivas em um cenário onde a não-notícia só precisa ser agradável para ser tratada como verdade – ainda mais em um lugar como o Brasil, onde a importância da imprensa como salvaguarda democrática nunca chegou a se consolidar de fato. Estamos reféns de nós mesmos, de nossa vontade de ter proeminência em um debate transformado em gritaria de malucos, onde o principal valor é apenas determinar quem grita mais alto. Se a ignorância nos serve, assinamos contrato na hora, sem ler as letrinhas miúdas – e esse é o cenário de sonhos para quem, sem nenhum fato a seu favor, seguirá inventando pseudo-fatos para virar o jogo político na direção desejada. Uma falta de escrúpulos que não tem restrições ideológicas, como se vê.

Prendam a respiração, que 2018 vai ser um negócio daqueles.

Foto: Câmara de Deputados da Nação Argentina

Igor Natusch

As fake news apenas dizem o que você quer ouvir – e lucram bastante com isso

Igor Natusch
11 de outubro de 2017

A completa degradação do debate político no Brasil tem muitas camadas, como uma cebola que apodrece de fora para dentro e não o contrário. Uma delas, com certeza, é o descrédito dos atuais veículos de imprensa.

Semana passada comentei sobre o editorial do Estadão defendendo Michel Temer como talvez uma mãe amorosa não defendesse um filho, e tivemos recentemente casos de crítica que beiram o absurdo, como um protesto chamando a Rede Globo de esquerdista – algo que, convenhamos, só alguém completamente desligado dos últimos 30 ou 40 anos de noticiário pode considerar minimamente crível. Por outro lado, sites de “notícias” que publicam qualquer besteira como se fosse um fato “ignorado” pela mídia hegemônica proliferam como mato, direcionados a leitores de todos os espectros políticos – que, é claro, vão até eles de forma ávida, em busca da “verdade” que o jornalão e a emissora de tevê estão escondendo da população.

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As duas situações se alimentam da mesma tendência (uma das tantas que já existiam meio que desde sempre, mas que as redes sociais aparentemente ajudaram a multiplicar): a de enxergar a notícia como confirmação de ideias já existentes, ao invés de el

emento para a formação de opinião

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O jornal de grande circulação mente e/ou é desprezível apenas quando noticia algo do meu desagrado – afinal, se a notícia é prejudicial ao “outro lado”, lá vou eu compartilhá-la sem nenhum constrangimento. E tanto faz a credibilidade do “veículo” que sigo e/ou reproduzo, desde que a manchete reflita a suposta convicção que já carrego dentro de mim. Ou será possível acreditar que ninguém jamais percebe que está difundindo informações falsas ou, pelo menos, pouquíssimo confiáveis? Percebem sim, e muitas vezes – mas seguem dando likes e RTs, seguem postando em seus perfis, seguem compartilhando com os contatos do Whatsapp. Não importa se é real: o importante é que diga a coisa que desejamos ler ou ouvir.

O que nos leva à curiosíssima notícia, produzida pela Vice, dando conta de que o site JornaLivre (que é, basicamente, um espaço pseudo-jornalístico onde o MBL vende suas ideias e ataca seus desafetos) usa um script que lucra criptomoedas às custas dos leitores, usando o processador de máquinas alheias para tal. Todos os que visitavam o domínio acabavam sendo vampirizados, seja pelo MBL ou por pessoas nas sombras que sequestraram o site para tal fim. É um caso ilustrativo, pois leva às raias da caricatura algo que, para quem parar um pouco para pensar, já seria bem claro: esses sites não mentem e distorcem por prazer ou idealismo, mas para obtenção de poder – político, sim, mas acima de tudo econômico.

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Permita-me repetir: esse pessoal está se lixando para o que você acredita ou não

Eles querem se aproveitar de você para se dar bem

E para ganhar grana. Muita grana

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Como todas as coisas, a ignorância também é um negócio. E alimentar essa ignorância com uma ração diária de pseudo-fatos tornou-se um nicho bastante lucrativo. Para quem usa Google Ads e lucra horrores com acessos, para quem usa acessos para acumular bitcoins – e para quem, desvinculado de escrúpulos, vai usar e muito esse recurso para tentar se dar bem em 2018. O MBL, por exemplo, faz altas articulações com olhos voltados à eleição presidencial do ano que vem – e o JornaLivre, umbilicalmente ligado ao MBL, tem uma função um tanto óbvia nesse panorama.

O mais curioso é que esse pessoal traz, no próprio caráter de seu conteúdo, o antídoto para a perda de leitores. Afinal, as mais de 12 milhões de pessoas difundindo notícias falsas estão bem satisfeitas com o conteúdo que repassam, e vai devolver o rótulo de “fake news” a qualquer veículo que fale outra coisa, seja ele sério ou não. Os que criticam o JornaLivre são desonestos, estão contaminados pelo esquerdismo, e são eles que produz material falso para atacar quem revela a verdade pelo outro lado – é isso que o JornaLivre possivelmente diria diante de uma acusação, e é o que a multidão de pessoas que compartilha seu conteúdo vai aceitar, em questão de segundos, como a explicação mais aceitável.

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Como todas as coisas, a ignorância também é um acordo. E só encontrando um mecanismo que encoraje as pessoas a romper esse acordo em nome de um conhecimento mais pleno será possível a nós – os que acreditam no jornalismo e os que acreditam na política – combater essa tendência cada vez mais assustadora

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Imagem: Reprodução da página inicial do JornaLivre, mostrando a presença do script mineirador de criptomoedas. Publicado originalmente pelo site da Vice.