A coluna abordará os assuntos ligados ao universo da literatura de forma leve e descomplicada – com o ar contemplativo de um pássaro planando. Lançamentos, comentários sobre obras nacionais e estrangeiras e, principalmente, reminiscências. Vale tudo para enaltecer o livro como combustível para a vida.
Neste espaço também haverá referências à cultura pop, como a relação da Literatura com o Cinema, HQs, séries de televisão e moda. E, claro, não esquecerá da conexão entre os livros e a roda viva da sociedade e da política. Em um país onde o hábito da leitura ainda é privilégio de poucos, a intenção é popularizar o assunto, sem perder de vista a qualidade das obras literárias selecionadas para análise.
O narrador não-confiável na literatura e na vida real
Flávia Cunha
9 de outubro de 2018
Capitu traiu Bentinho, correto?
Até 1960, não havia qualquer dúvida sobre o enredo machadiano do livro Dom Casmurro, lançado no Brasil em 1899.Então, houve a ruptura dessa unanimidade quando a professora norte-americana Hellen Caldwell publicou o livro O Otelo Brasileiro de Machado de Assis.
Na obra, a escritora defende a personagem feminina da acusação de adultério, considerada inquestionável até então pela crítica literária nacional.
Atualmente, chega a ser banal dizer que Bentinho é um narrador não-confiável, termo criado pelo crítico literário Wayne Booth. De forma simplificada, podemos dizer que se trata de enredos contados por um personagem de quem nós, leitores, duvidamos da credibilidade ou da sanidade. Porém, quando Hellen Caldwell divulgou sua teoria, houve quem considerasse suas ideias um absurdo, um verdadeiro disparate e até um certo desrespeito com o legado de Machado de Assis.
Transferindo a análise para o segundo turno das eleições brasileiras em 2018, não apenas no que se refere à campanha oficial dos candidatos do PT e do PSL, mas também para publicações em redes sociais, considero que temos milhões de narradores não-confiáveis.
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Os eleitores, em especial os mais fervorosos, têm sua própria versão dos acontecimentos e não se importam em nada com os alertas da mídia tradicional ou com apartes por meio de comentários contrários a suas visões de mundo
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Resta saber como fazer para os próprios eleitores perceberem que estão sendo parciais em suas análises políticas. Ou, então, teremos que aprender a lidar com essas narrativas não-confiáveis da vida real sem nos deixarmos abater. Apesar de, nesse momento, eu mesma duvidar da minha capacidade de opinar sobre o momento político atual. Seremos todos narradores não-confiáveis de nossas próprias existências?
Imagem: Reprodução de fotografia da revista argentina Caras y Caretas, de 1908
Vocês já devem ter ouvido por aí a canção Strange Fruit, imortalizada na voz de Billie Holiday, mesmo que não sejam ouvintes habituais de jazz. Da minha parte, só fiquei sabendo recentemente do que se tratavam os “estranhos frutos” mencionados na música. A referência tem relação com a foto abaixo, que retrata os enforcamentos de negros nos Estados Unidos, principalmente nos estados sulistas, notoriamente racistas. Os linchamentos começaram no fim do século 19 e mantiveram-se (inacreditavelmente, eu diria) até a década de 1930.
Em 1939, Billie Holiday lançou a canção, que virou um símbolo contra a opressão aos negros norte-americanos mas enfrentou resistência de parte dos brancos, que não concordavam com o teor da música. Confira a letra completa da canção e a tradução aqui.
Aprendi isso (e muito mais) em um dos encontros da série de Audições Comentadas de Jazz, promovida pelo radialista e expert no assunto Paulo Moreira, realizada no dia 13 de setembro, no Instituto Ling. Durante o bate-papo entremeado por gravações de Billie Holiday, Moreira citou a história da canção Strange Fruit. Depois, a cantora Camila Toledo subiu ao palco e, antes de cantar essa música, leu o seguinte trecho do livro Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção:
Holiday cantou, sim, Strange Fruit para grandes plateias negras. […] Cantou a canção diversas vezes no famoso Apollo Theater, no Harlem. Jack Schiffmann, cuja família administrava o Apollo disse […] em suas memórias […] o que aconteceu quando ela finalmente se apresentou lá. ‘Se você a ouvisse em qualquer outro lugar, ficaria tocado e mais nada’, ele escreveu. ‘Mas no Apollo a canção assumia um profundo simbolismo. Não só você enxergava, em todo seu horror gráfico aquele “fruto” como via em Billie Holiday a esposa, a irmã ou a mãe da vítima, debaixo da árvore, quase prostrada de tristeza e fúria. Talvez se fosse essa sua índole – como era certamente a das platéias no Apollo – você visse e sentisse a agonia de outra vítima de linchamento. […] E quando ela arrancava as últimas palavras de sua boca, não havia uma única alma na platéia, negra ou branca, que não se sentisse meio estrangulada. Seguia-se um momento de silêncio pesado, opressivo, e então uma espécie de som sussurrante que eu nunca tinha ouvido antes. Era o som de quase 2 mil pessoas suspirando.”
Ainda não entendeu o que o assunto tem a ver com o momento político atual brasileiro?
Pense em relativização do racismo. Reflita sobre o questionamento da necessidade de cotas raciais em um país com uma “Lei Áurea” que condenou os negros à pobreza imediata, ao conceder uma libertação sem nenhum tipo de indenização financeira e sem facilitar o acesso à educação, moradia ou a empregos. Para os racistas brasileiras, é mera coincidência (para não dizer coisa pior) que, de 1888 para cá, a maioria da população carcerária do Brasil seja composta por negros, conforme aponta levantamento divulgado em 2017 pelo governo federal.
E para ampliar os horizontes de quem precisa e apoiar aqueles que batalham pela Cultura em Porto Alegre (RS) que divulgo novas oportunidades de conferir a cantora (e ativista da causa negra) Camila Toledo, com o projeto Camila e a Ponte. No dia 21 de outubro, a apresentação será no London Pub e, no dia 25, no barco Cisne Branco.
Além de homenagear lindamente as canções dessa diva do jazz, Camila também faz a leitura de trechos de outros livros além do mencionado nesse texto. Vale a pena conferir!
Se o direito de falar, de ter credibilidade, de ser ouvido é uma espécie de riqueza, essa riqueza agora vem sendo redistribuída. Por muito tempo houve uma elite com audibilidade e credibilidade e uma subclasse de destituídos de voz. Com a redistribuição da riqueza, a perplexidade e a incompreensão afloram incessantemente. […] Essas vozes, ouvidas, subvertem as relações de poder.”
O trecho acima, do ensaio Uma Breve História do Silêncio, um dos capítulos do livro A Mãe de Todas as Perguntas, da autora feminista Rebecca Solnit, pode ser usado como uma analogia à tentativa de hackear o grupo do Facebook Mulheres Unidas Contra Bolsonaro (que conta hoje com cerca de 3 milhões de participantes). A iniciativa de cunho apartidário incomodou seguidores do candidato à presidência pelo PSL. Houve, então, a invasão hacker ao grupo, logo revertida pelas administradoras. Depois, tentou-se desqualificar a iniciativa, com afirmações inverídicas de que havia sido comprado um grupo já existente e simplesmente havia sido trocado seu nome.
A verdade é que a tentativa de silenciamento não deu certo e a campanha #elenao ganhou adesão de mulhereres famosas e começa a ter engajamento no Exterior, adaptada para #nothim. Mas o que significa mulheres de diferentes partidos e ideologias estarem unidas contra uma determinada candidatura? De acordo com os eleitores de Bolsonaro, essa seria uma reação de mulheres feias, peludas e mal-amadas. Tanto é que, às pressas, foram criados grupos femininos de apoio ao candidato, em que os atributos físicos das participantes são exaltados, como se isso tivesse alguma importância dentro de um debate complexo que envolve riscos à democracia.
O movimento #elenão sem dúvida é feito por feministas, mulheres a favor de direitos iguais entre homens e mulheres e é uma contraponto direto ao discurso misógino e propagador da violência feito por Bolsonaro e seu vice general Mourão. Mas, como bem lembra a autora Rebecca Solnit, os homens também são vítimas do machismo patriarcal, sendo silenciados no que diz respeito a poderem demonstrar fraquezas e expor sentimentos:
A masculinidade é uma grande renúncia. O cor-de-rosa é apenas uma miudeza, mas meninos e homens bem-sucedidos renunciam a emoções, à expansividade, à receptividade [….] e homens que ocupam áreas masculinizadas – esportes, Forças Armadas, trabalhos exclusivamente masculinos como construção ou extração de recursos minerais – muitas vezes precisam renunciar a outras coisas mais. […] No mainstream heterossexual, as mulheres ficam com a tarefa de portar e expressar emoções pelos outros.”
O discurso que flerta com o fascismo e o ódio a mulheres, gays, negros e indígenas não está sendo combatido apenas pelas feministas. Um manifesto assinado por empresários e artistas famosos como Caetano Veloso ganhou visibilidade nos últimos dias. Quem sabe com isso uma candidatura perigosa para os rumos da nossa frágil democracia possa ser esvaziada.
Entre meus motivos para dizer “Ele Não” estão relativizar a tortura e a perseguição política ocorridas durante o regime militar, propagar fake news e destilar aos quatro ventos falas repletas de misoginia, racismo e homofobia. Por isso, me juntarei a milhares de mulheres em um protesto marcado para esse sábado em diversas capitais brasileiras e também no Exterior. Não nos calarão!
Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido? Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça?”. Quem inventou essa violência desenfreada que tomou conta do País não foram os marginais – foram os poderosos”
O trecho da crônica Adeus, agosto. Alô, setembro! de Caio Fernando Abreu, de 1987, foi lido para um grande público no Sarau Voador dedicado ao escritor gaúcho, que completaria 70 anos no dia 12 de setembro. Morto precocemente após um diagnóstico de HIV positivo, em 1996, os textos de Caio F. sempre nos surpreendem pela atualidade. O trecho acima poderia ser uma bela resposta aos que falam, em pleno século 21, que bandido bom é bandido morto.
Na abertura do Sarau Voador dedicado a Caio, a atriz e amiga do escritor, Débora Finocchiaro, interpretou, com seu habitual talento, um trecho de Zero Grau de Libra, um texto muito conhecido do autor em que ele faz um série de pedidos a “isso que chamamos de Deus”. Pede um olho bom para o planeta, para a cidade de São Paulo e para quase todas as pessoas. Mas faz uma ressalva:
Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio. Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso, Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça.”
E finaliza:
Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse Zero Grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.”
O sarau em homenagem a Caio F. foi apenas uma das minhas atividades realizadas em diferentes cidades brasileiras relembrando a trajetória e a relevância do chamado escritor da paixão. Até o Doodle do Google lembrou a data do aniversário de Caio, como destaca essa matéria aqui.
Em Brasília, uma exposição foi montada no Museu Nacional da República, com visitação até o dia 27 de outubro. Para quem é do interior do Rio Grande do Sul, uma dica é conhecer a cidade natal de Caio Fernando Abreu. Em Santiago do Boqueirão, tem uma mostra em homenagem ao autor e até um restaurante onde seus escritos estão em destaque, como pode ser conferido nesse vídeo.
Por fim, é relevante destacar ser um ato de resistência à intolerância e à homofobia celebrar o trabalho de um autor como Caio Fernando Abreu. Por mais que segmentos conservadores brasileiros tentem impor de forma arbitrária seus conceitos obtusos, a literatura libertária de Caio permanece para a posteridade, em contos com enredo homoafetivo (como Aqueles Dois, do livro Morangos Mofados, publicado em 1982, e lido no Sarau Voador que tive o privilégio de assistir).
E o que diria Caio F. desse avanço do conservadorismo em 2018? Certamente estaria com uma postura “enfrentativa”, termo que ele gostava muito de usar. E poderia nos dizer, como consolo:
Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.”
Confira um trecho inédito da biografia de Júpiter Maçã
Flávia Cunha
11 de setembro de 2018
Não costumo falar de lançamentos literários nesse espaço, por julgar que outros canais já fazem esse trabalho. Porém, na caso da biografia Júpiter Maçã: A Efervescente Vida & Obra (Plus Editora), assinada pelos jornalistas Cristiano Bastos e Pedro Brandt, tive que abrir uma exceção.
Primeiro porque um dos autores, o Cristiano, foi meu colega de faculdade, lá na Famecos-PUCRS, onde tivemos aulas junto com figuras como o Carlinhos Carneiro (Bidê ou Balde e Império da Lã) e Chico Bretanha (Groove James e Império da Lã), antes mesmo dessa dupla dedicar-se à música. E os dois estavam entre os participantes de um baita show organizado no Bar Ocidente para um dos eventos de lançamento da biografia de Júpiter Maçã.
Também contribuiu o fato de que o Cristiano é um biógrafo muito competente, vide seu trabalho memorável em Gauleses Irredutíveis (em parceria com Alisson Avila e Eduardo Müller) e Julio Reny – Histórias de Amor e Morte(Prêmio Açorianos de Literatura, na categoria especial). Por fim, mas não menos importante, está o fato do livro sobre esse o multifacetado cantor, compositor e multi-instrumentista ser o primeiro lançamento da Plus Editora, uma iniciativa nova mas que tem entre seus sócios, pessoas com muita experiência na área cultural, como Roger Lerina e Roque Jacoby.
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Nas conversas que tive online com o Cristiano Bastos para concretizar esse post, fiquei sabendo em primeira mão, como se fala no jargão jornalístico, de uma nova biografia escrita por ele, a ser lançada pela Plus Editora no ano que vem
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O biografado será Nelson Gonçalves, gaúcho de Santana do Livramento, que completaria 100 anos em 2019 e o livro ainda não tem título definitivo mas pode chamar-se Metralha (com subtítulo ainda não definido) ou A Vida de Nelson Gonçalves – O Cantor do Brasil. As origens no Rio Grande do Sul de um dos maiores cantores e compositores brasileiros foi investigada pelo jornalista em matéria para a revista Aplauso, que pode ser lida aqui.
Voltando à biografia de Júpiter Maçã, o livro aborda a trajetória de Flávio Basso (1968-2015), músico gaúcho que integrou as bandas TNT e Cascavelletes e, em carreira solo, lançou discos com os pseudônimos Woody Apple, Júpiter Maçã e Jupiter Apple.
O material de divulgação destaca que a obra mostra “a vida dele do nascimento à morte, passando por suas vitórias (uma irregular, porém cultuada carreira de rockstar – quase incomparável no Brasil) e tragédias (alcoolismo, paranoia, a morte precoce de seu único filho) com riqueza de detalhes, revelações e informações inéditas, e ainda farto material fotográfico (são, ao todo, quase 70 registro fotográfico, a maior parte raro ou inédito).”
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Para ilustrar esse texto, segue um trecho inédito da biografia, selecionado pelo Cristiano Bastos e que apresenta a persona dylanesca chamada Woody Apple, adotada por Flavio Basso após o fim dos Cascavelletes e antes dele tornar-se Júpiter Maçã
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O biógrafo sugere que a leitura do texto seja feita ao som de Saudades do Brasil, canção que ilustra essa fase da carreira do músico e que tem um caráter político declarado.
Woody Apple
(…)
Com bastante tempo livre, Flávio Basso passou a compor um novo repertório, que vinha rascunhando desde sua última temporada no TNT. Pesquisador da carreira dos Beatles, ele sabia da influência que o cantor americano Bob Dylan tinha exercido em John Lennon, cujo primeiro e mais notório desdobramento é a canção “You’ve got to hide your love away”, do disco Help!, de 1965. Se Dylan ajudou os Beatles a expandirem sua poética, o quarteto de Liverpool foi uma inspiração importante para ele eletrificar sua sonoridade, um bate-bola musical no qual ambas as partes saíram vitoriosas – e, no caso do folk singer, uma mutação que parte de sua plateia assistiu atônita.
Ícone do revival da música folk dos Estados Unidos, considerado a voz de sua geração por conta de letras que refletiam tanto angústias existenciais quanto o estado das coisas em seu país em meados dos anos sessenta, Bob Dylan lançou, em março de 1965, um álbum divisor de águas em sua trajetória: Bring It All Back Home. Depois de quatro LPs essencialmente acústicos, o cantor produziu um disco no qual metade das músicas é apresentada ao violão e a outra metade com acompanhamento de banda elétrica. Bring It All Back Home causou a revolta dos puristas que viam nele um símbolo de rendição do cantor ao stablishment, uma traição imperdoável. Para pessoas ligadas à tradição folk, especialmente os mais velhos, as bandas de rock eram um produto alienante feito para o consumo das massas, de mérito artístico questionável, direcionado especialmente aos adolescentes. Mais do que o disco propriamente dito, a participação de Dylan no Newport Folk Festival, em 25 de julho de 1965, foi um episódio ainda mais emblemático para a polêmica gerada pela eletrificação de sua música.
O prestigioso evento dedicado à música folk, do qual Bob Dylan participara nos dois anos anteriores, testemunhou a estreia, em cima do palco, do singer-songwriter com banda elétrica – que contava, na ocasião, com dois parceiros importantes nessa nova fase, o organista Al Kooper e o guitarrista Mike Bloomfield. Cabelos desgrenhados, óculos escuros, guitarra em punho, Dylan escandalizou público e muitos de seus colegas músicos com seu set – parte dele, vale ressaltar, foi mostrado na primeira metade do show, em formato acústico, sem grandes estranhamentos. As letras das composições mais recentes, para desgosto de muitos de seus antigos fãs, traziam influência da literatura beat e do surrealismo, ao contrário do pragmatismo realista e crítico associado ao folk – uma música que, em suma, canta as agruras da vida do trabalhador simples, seja um camponês do interior ou um proletário na cidade grande. Para piorar, a nova persona artística de Robert Allen Zimmerman (nome de batismo do cantor-compositor) ostentava um ar de petulância, em contrapartida à imagem de jovem tímido e eloquente que o identificava até então. Mas, ao contrário do que seus detratores previam, essa transformação de folkie para rocker – “Judas”, Dylan foi xingado, logo depois, em apresentação na Inglaterra – alcançou um novo público, ainda maior, e mostrou-se tão inspirada e influente quanto a fase voz e violão do artista nascido em Duluth, Minnesota, em 1941.
E foi essa figura revolucionária que, naquele começo de anos noventa, tornou-se a principal referência musical de Flávio Basso. Desempregado, com o casamento em crise e pai de uma criança pequena, o cantor gaúcho sentia a necessidade de expurgar suas vivências de jovem adulto, tudo aquilo que lhe angustiava nos últimos anos. O fim dos Cascavelletes significou, simbolicamente, o fim de sua adolescência, a perda da inocência, o término de uma festa que, durante alguns anos, parecia não ter fim. Blusão de flanela, sapatos batidos, cabelos compridos, violão debaixo do braço e gaita de boca pendurada no pescoço: o Flávio daqueles dias levava uma existência um tanto quanto beatnik, com (pouco) dinheiro emprestado de familiares, vivendo um dia após o outro. O futuro era incerto, a insatisfação, uma constante, mas a inspiração, pelo menos, era garantida. Foi um período fértil, de muito aprendizado. “Eu ouvia o [álbum de Bob Dylan] Highway 61 Revisited e tentava entender as letras, jogar com aquilo tudo e também escrever junto. Eu pensei: poesia é isso”, Flávio refletiu em entrevista, 20 anos depois, para a revista digital Bastião.
Leo Felipe, fundador do bar Garagem Hermética, casa noturna que seria de extrema importância para Flávio Basso dali a algum tempo, relata em seu livro A Fantástica Fábrica uma cena ocorrida na loja Boca do Disco, de propriedade do folclórico e rabugento Getúlio Costa: “A tarde já caia e a loja era iluminada apenas por uma lampadinha fraca pendendo de um fio no forro. Não havia mais contraluz quando vi o planeta em transformação saindo com o [disco] Planet Waves embaixo do braço. Tive um impulso de sugerir pra trocar pelo Blood On The Tracks, mas fiquei frio. Inútil tentar interferir no curso dos astros”.
Partindo de audições de álbuns de Bob Dylan e de outros artistas associados ao folk, Flávio foi, gradualmente, moldando seu novo estilo. Fitas cassetes guardadas por Rachel revelam esse processo. Nelas estão rascunhos de músicas nas quais o músico ainda tateava este novo universo. Especialmente nas letras, ele soa um tanto perdido, cantando temáticas que têm mais a ver com quem o inspirava do que com suas próprias vivências. Nunca muito ligado em política, Flávio tentou abordar o assunto: “Eu digo não ao presidente / Eu voto não pra toda política / Eu voto não pra todas as religiões / Eu só voto sim para a humanidade no topo se autogovernando”, dizia uma das canções.
Em outra, ele colocava a natureza como uma força redentora: “Vem terremoto, vem tremer o chão onde piso, a terra vai me engolir / Venha maremoto, venha inundar meu paraíso, a água purifica / Venha mulher, vem me abraçar, rir e chorar, nossos corpos nus igual marionetes no meio da rua, o mundo vai acabar / Vem tempestade, venha molhar meus sentimentos, eu quero ser batizado”. A vida on the road também foi tema: “Enquanto espero o trem pra me mandar, que saudades, agora eu já estou longe / O jeito é esquecer você e a cidade, um pé no chão, violão nas costas, andando pelo campo, sem chorar e sem encher / Sem voltar e sem perder, vou andar por onde quero, mas voltar eu quero mais”.
Compositor prolífico, Flávio Basso logo amadureceu as novas ideias musicais e decidiu gravar um punhado de recentes canções. Financiado pelo pai, o músico reservou horários noturnos no estúdio da Isaec. Lá, com o auxílio do técnico de gravação Edu Coelho, ele deu início à aventura solo. Flávio construiu as músicas sozinho, cantando e tocando guitarra, violão, baixo, teclados, gaita de boca e bateria. A única contribuição externa foi a participação de músicos de um quarteto de cordas em uma das composições. “A capacidade de organização dele era incrível. O Flávio chegava no estúdio sabendo o que queria. Isso me chamou muito a atenção. As composições estavam prontas, bem arranjadas”, lembra Edu. Esse nível de organização permitiu que uma música fosse registrada a cada visita ao estúdio. “Gravamos tudo em uns 10 dias”, detalha o técnico.
O resultado dessas sessões pode ser considerado o primeiro – ainda que nunca lançado – álbum solo de Flávio Basso. A influência de Bob Dylan em algumas faixas é perceptível, assim como, novamente, a dos Beatles – especialmente da fase do começo do namoro da banda inglesa com o folk, ou seja, o disco Help!. E se o amor, em diferentes manifestações, foi tema cantado pelo músico gaúcho ao longo da carreira, ele nunca soou tão romântico quanto ali. Um romantismo, evidentemente, ao estilo do compositor, com certa dose de malícia.
A morte anunciada da Cultura e as cinzas do esquecimento
Flávia Cunha
4 de setembro de 2018
A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.” Milan Kundera
O incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro parece escancarar o que há de pior na atualidade do país.
A falta de investimento na área cultural, que foi sendo reduzida gradualmente mas que sofreu uma queda mais drástica nos últimos anos. Alguém lembra que uma das primeiras medidas do governo Temer pós-impeachment foi tentar acabar com o Ministério da Cultura?
As redes sociais ensandecidas. Cheguei a ver pessoas defendendo, seriamente, que o fogo havia sido provocado pela esquerda, que quer acabar com a História do nosso Brasil varonil);
E o empurra-empurra das autoridades sobre quem tem responsabilidade sobre o fogo que atingiu um acervo irrecuperável, considerado o maior da área de história natural na América Latina. O Igor Natusch escreveu um texto contundente e necessário de análise do viés político do incêndio;
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Do ponto de vista cultural, não é de hoje todo o setor que sofre com o descaso das autoridades
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A Cultura e a Educação são vistos por grande parte dos políticos como um gasto, não um investimento. E são aplaudidos por uma parcela da população privilegiada economicamente, porém desprovida de visão a longo prazo de onde seremos levados por esses cortes nas duas áreas. Mas o que esperar de uma sociedade em que muitos “cidadãos de bem” acham que visita a museu só vale a pena quando estiverem na Europa? Que peça de teatro boa é apenas aquela com os atores da novela e não com os artistas de sua cidade? Que livros são itens muito caros no orçamento mensal, mas não dispensam trocar de Iphone a cada novo modelo que aparece? Prioridades, meus amigos. Prioridades.
A Cultura e a Educação são o Santiago Nasar, da Crônica de Uma Morte Anunciada, clássico do García Márquez. Todo mundo sabe que estão em risco, mas ninguém com poder se articula de verdade em prol de atitudes concretas pare reverter a situação. É bom lembrar que o incêndio do Museu Nacional não é um caso isolado. Nos últimos 10 anos, situações semelhantes ocorreram em 8 prédios do patrimônio histórico e cultural do país.
Voltando a Milan Kundera, que citei no início desse texto, encerro com mais uma frase que casa tristemente com esse episódio simbólico:
Para liquidar os povos, começa-se por lhes tirar a memória. Destroem-se seus livros, sua cultura, sua história. E uma outra pessoa lhes escreve outros livros, lhes dá outra cultura e lhes inventa uma outra História.”
Sete livros para compreender o anarquismo na História e na atualidade
Flávia Cunha
28 de agosto de 2018
Há 91 anos, em agosto de 1927, ocorria um dos julgamentos mais injustos da história da justiça norte-americana. Os anarquistas italianos Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram condenados à morte, acusados de dois homicídios. Cinquenta anos depois, foi comprovada a inocência dos dois, absolvidos oficialmente pelo governo de Massachusetts.
O processo Sacco & Vanzetti, como ficou mundialmente conhecido, levanta questionamentos que entrelaçam o passado e o presente.
A pena de morte, defendida por muitos no século 21, é mesmo a solução para os problemas de segurança pública no Brasil, com tantas falhas processuais que levam inocentes para a cadeia?
Será que se os réus do julgamento de 1927 não fossem imigrantes e líderes do movimento operário sindical, a opinião pública da época teria apoiado as execuções, mesmo com evidências de que os acusados eram inocentes?
Além disso, por que não se fala sobre o movimento anarquista na grande mídia brasileira, a não ser em operações policiais que tratam os ativistas como criminosos?
Pessoalmente, meu contato inicial com o anarquismo foi singelo. No primeiro livro de memórias de Zelia Gattai, ela lembra de seus descendentes italianos, católicos, por parte de mãe, e anarquistas, na ascedência paterna. No trecho abaixo de Anarquistas Graças a Deus, a escritora recorda uma história familiar, quando seu avô escolhe chamar de Hiena uma de suas tias:
Soubemos então que vovô, anarquista convicto, resolvera dar esse nome à filha visando mais uma afirmação de seus princípios anticlericais.
Fora ao cartório, lá em Florença, onde a menina havia nascido e onde a família vivia, para registrá-la:
– Que nome quer dar à sua filha? – perguntou o escrivão. – Hiena! – declarou o rebelde. O homem pensou não ter compreendido, perguntou novamente: – Qual é o nome? – Hiena! – repetiu o pai da criança, entusiasmado com a reação do tipo; a polêmica desejada estava garantida.
O escrivão ainda tentou dissuadi-lo, não se conformando com tão estapafúrdia decisão:
– Mas, meu senhor! Como pode dar a uma criança inocente o nome de um animal tão repugnante?
– Se o Papa pode ser Leão, por que minha filha não pode ser Hiena? – revidou o velho Gattai que, na época, pouco mais tinha que trinta anos de idade.
A menina foi registrada com o nome de Hiena e Hiena ficou sendo até morrer.”
Sobre o anarquismo na atualidade, vale ressaltar que a Federação Anarquista Gaúcha lançou há poucos dias uma campanha por democracia direta. Saiba detalhes a respeito da iniciativa aqui.
Para saber mais sobre o anarquismo através dos livros, pedimos ao jornalista e anarquista Rodrigo Jacobus indicar 6 obras fundamentais:
Os Grandes Escritos Anarquistas – organização George Woodcock: Esse é um clássico dos clássicos, bom para quem quer iniciar-se no vasto universo anarquista. Um apanhado histórico abrangente, apresentando as ideias mais essenciais das diferentes correntes.
Organismo Econômico da Revolução – A autogestão na Revolução Espanhola – Diego Abad de Santillán: Com enfoque mais econômico, apresenta práticas e reflexões a partir da experiência aplicada ao longo da Guerra Civil Espanhola. Não é muito conhecido, mas é um livro muito bom sobre o assunto, embora um pouco mais pontual.
Notas sobre o Anarquismo– Noam Chomsky: Mais contemporâneo, apresenta uma faceta que nem todos conhecem do respeitado acadêmico Noam Chomsky. Dá um respaldo mais formal ao assunto é um tanto quanto “fora da caixa”, já que, de um modo geral, o meio acadêmico é impregnado com o referencial marxista como modelo epistemológico de teoria crítica.
Lutando na Espanha – George Orwell: O original chama-se Homenagem à Catalunha. Situado na Guerra Civil Espanhola, é basicamente um relato da experiência de Orwell junto aos milicianos. Um tanto quanto jornalístico, com descrições que são simplesmente fantásticas. Na minha humilde opinião, é melhor que o relato de Hemingway em Por quem os sinos dobram. Tem um viés mais literário e por isso vale a leitura, apesar de a temática não ser especificamente relacionada ao anarquismo.
Poder e Domínio – Uma Visão Anarquista – Fábio López López – Livro mais próximo da nossa geração, calcado em reflexões a partir das experiências semelhantes às atuais. Uma baita reflexão com viés mais contemporâneo.
A Desobediência Civil – Henry David Thoreau – Com uma verve bem peculiar, é considerada uma importante referência dentro do ideário anarquista.
desculpe a ousadia em te escrever. Mas os tempos andam tão estranhos que tem gente por aí dizendo que não houve ditadura militar no Brasil. Foi então que lembrei da Velhinha de Taubaté. Esse personagem emblemático, criado em 1983, talvez seja uma forma de as pessoas recordarem que existia corrupção e roubalheira nos anos de chumbo. Que a vida não era essa maravilha idealizada por saudosistas [possivelmente] mal intencionados e jovens sem interesse por livros de História, essa com H maiúsculo que muita gente diz não servir pra nada.
Fui pesquisar a primeira crônica escrita por ti, Verissimo, lá na época do Figueiredo no poder e deu para ver que a desesperança já estava presente nos nossos corações, combalidos por tantos golpes de Estado ao longo dos tempos:
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A velhinha de Taubaté é o último bastião da credulidade nacional. Ninguém acredita mais em nada nem em ninguém no pais, mas a velhinha de Taubaté acredita. Se não fosse pela velhinha de Taubaté, o país já teria caído, não no abismo, mas na gandaia final, sem disfarce. Mantém-se uma fachada de respeitabilidade para beneficio da velhinha de Taubaté.”
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Eu sei que em um momento de total indignação com a política, Verissimo, tu resolveste matar esse símbolo da ingenuidade. Mas o que acontece é que em 2005, período das denúncias do Mensalão, a gente não podia imaginar que aqui em 2018 as coisas ficariam tão mais complicadas. Que as pessoas voltariam a falar em ameaça comunista e a gente tivesse uma disputa presidencial com candidatos tão nonsense quanto em 1989 – ou mais. O que mais me entristece é que lá naquela tua primeira crônica, já havia sinalização de que o Brasil seria bem pior sem essa personagem:
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Não dá para imaginar o que acontecerá no país depois que a velhinha de Taubaté se for. Tem-se a impressão de que o Brasil só espera o sinal da morte da velhinha de Taubaté para decretar que a bagunça está mesmo decretada, que não tem nada que ficar dando explicação pra otário.”
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No fundo, caro escritor, o que a gente precisa mesmo é da tua ironia para conseguir lidar com essas eleições. Nos ajuda, Verissimo!!
Vivemos em um estado laico, pelo menos isso é que consta na Constituição brasileira, em seu artigo 19, inciso I:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Na prática, sabemos que em um país de maioria católica, assuntos como a interrupção da gravidez saem da esfera de saúde pública e do direito individual para misturarem-se com fé e religião. Foi o que vimos no Supremo Tribunal Federal durante a debate sobre a descriminalização do aborto, ainda sem data para ir à votação. O julgamento e a falta de alteridade com quem faz abortos clandestinos no Brasil, em especial com as integrantes de classes sociais mais baixas, me lembra a época da Inquisição. Os condenados eram, na maioria, mulheres que rompiam com os padrões vigentes.
Arthur Miller, no clássico As Bruxas de Salém, questiona a perseguição contra determinadas personagens da peça teatral, em um enredo baseado em fatos reais:
O acusador agora é sempre sagrado? Eles nasceram hoje de manhã, limpos como as mãos de Deus? Eu digo ao senhor o que está a solta em Salém: vingança é o que está à solta em Salém.”
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As “bruxas modernas” não estão só no Brasil. Na Argentina, outro país em que a religião mistura-se com o Estado, as mulheres livres enfrentaram um revés, com o Senado rejeitando a legalização do aborto. Lembrando que os países latino-americanos são os que mais restringem essa prática no mundo.
E se você que está me lendo agora é contra o aborto, não o faça. Mas não tente exigir que uma mulher crie um filho sem condições financeiras ou amor ou qualquer que seja o motivo pelo qual ela sofre. Todas as partes envolvidas sofrerão a longo prazo, principalmente em um sociedade como a brasileira, em que o sistema de adoção é lento e complicado e o apoio a crianças em situação de rua é insuficiente. Sem contar as situações em que as mulheres são obrigadas a abortar e correm risco de vida por se tratar de um procedimento clandestino. Um procedimento que não trata da morte de um bebê, mas da interrupção da gravidez de um feto cujo sistema nervoso central sequer está formado.
O Admirador de Monet . uma homenagem aos pais que já partiram
Flávia Cunha
7 de agosto de 2018
O admirador de Monet
– Quem é o pintor daquele quadro?
A pergunta, feita de repente, me pegou desprevenida. Nem havia reparado que o quarto do hospital tinha alguma pintura em suas paredes, imersa que eu estava na preocupação de perder a presença física de quem me questionava agora com certa veemência.
Olhei para trás e observei a tela. Era uma gravura bonita, com barcos à vela. Cheguei mais perto, à procura da identificação do autor. Não havia. Dei essa resposta ao meu pai, que não conformou-se.
– Mas é só procurar na Internet que tu descobre. Usa o teu celular – exigiu, com sua autoridade natural e mansa.
Argumentei que não era fácil sem ter alguma informação a mais sobre ao quadro. Ele rebateu com calma, analisando que devia ser uma obra de um artista impressionista. Foi explicando o palpite de forma bem simples e direta, sem ser pedante, como costumava fazer em todas as exposições de arte que o acompanhei ao longo da minha vida.
Ele interrompeu minhas reminiscências, falando, meio exaltado:
– É Monet, pesquisa aí, só pode ser ele!!
O tom animado contrastava com o que ele usava nos últimos meses, após seu diagnóstico de câncer terminal. Além da fragilidade física, meu pai, normalmente alegre e despreocupado, havia assumido uma postura meio blasé, fingindo não estar ciente da proximidade da morte. Evitava o assunto e permanecia silencioso e um pouco rabugento, longe do seu comportamento habitual. Ao ser informado que teria que ir para um hospital, resmungou que não gostaria mas sabia que não tinha mais direito a tomar as próprias decisões.
Mas, então, surgiu Monet e ele pareceu iluminar-se como antigamente.
– O que tu tá esperando? Pesquisa qual é o quadro. Eu quero saber o nome e a cidade que aparece ali.
Obedeci, e após poucos minutos, descobri e mostrei para ele.
– Regatas em Argenteuil – respondi, aliviada por conseguir obter a resposta.
Ficamos um tempo nesse jogo, eu encostada na grade da cama hospitalar mostrando a ele informações, como o fato da tela ter sido pintada dentro do barco ateliê do artista, ancorado às margens do Sena.
Ele foi dormir radiante. Nos dias que se seguiram, a arte invadiu aquele quarto branco de uma forma constante. Filmes, música e, volta e meia, um bate-papo sobre Monet.
Passado algum tempo, fui surpreendida pelo anúncio de que faríamos um passeio pelo hospital. Eu estranhei e houve a confissão de ter pressionado um enfermeiro mais gentil com o argumento de que se podia ser deslocado para exames, também seria permitido para uma atividade de lazer.
Eu ainda não havia entendido qual a era a intenção dele, quando meu pai revelou, triunfante:
– Têm vários outros quadros espalhados por esse andar, vai ser como ir em uma exposição!
Sorri e entrei na brincadeira, demonstrando igual euforia pela oportunidade de ouvir suas observações pelo que provavelmente seria a última vez.
E assim fomos pelos corredores. Eu conduzindo a enorme cadeira de rodas com aquele paciente muito magro, com o corpo envolto em uma camisola branca que o deixava com a aparência ainda mais esquelética.
Quando eu parava para observar alguma pintura, conseguia ver seus olhos brilhando de admiração. Meu amor por ele transbordava naquele momento e eu segurava valentemente as lágrimas para não estragar aquele instante de felicidade.
Pouco tempo depois, ele se foi. Enquanto eu via a família chorando, fui arrumando roupas e juntando objetos de forma meio mecânica, evitando desabar antes de resolver todas as necessidades práticas e burocráticas que envolvem a morte.
Mas antes de sair do quarto para assinar documentos, eu olhei para aquele quadro especial pela última vez e pensei:
– Monet perdeu um admirador.
Uma singela homenagem escrita em memória ao meu pai, um engenheiro com alma que apreciava Arte, Literatura e Música. E soube enxergar a beleza da Vida como poucos…
Para quem quer conhecer mais sobre Claude Monet, sugiro esse livro aqui.