Voos Literários

Katia Suman . comunicação alternativa e maternidade real

Flávia Cunha
14 de maio de 2019

Trabalhar e ser mãe não é fácil em pleno século 21. Agora vocês imaginem ser mãe solo na década de 1980, tendo um trabalho “mutcho loco”: ser apresentadora de rádio de uma das emissoras mais transgressoras e criativas do Brasil, a Ipanema FM. Eu conheço a Katia Suman de vista do mundo da comunicação e não foi exatamente uma surpresa ela falar sobre maternidade em seu excelente livro Katia Suman e os diários secretos da rádio Ipanema FMA contundência do relato é que me impactou profundamente, mesmo eu não tendo vivenciado a maternidade.

O trecho abaixo é uma transcrição do livro e eu mantenho o estilo de escrita da radialista, que não usa letras maiúsculas:

em 1985 eu engravidei de um cara com quem eu tinha uma história. alguma coisa aconteceu dentro de mim, algo muito intenso e definitivo, e eu quis muito ter aquele filho. eu, que nunca tinha pensado em ser mãe, muito menos mãe solteira, naquele momento eu não tive nenhuma dúvida. eu tinha 28 anos.

meu filho nasceu em casa em fevereiro de 86, no ap pra onde eu tinha me mudado um mês antes. nesse momento a rádio engrenava um caminho que a levou a grandes índices de audiência e a uma inserção decisiva nos corações e mentes da galera jovem.

meu filho não teve pai e isso de alguma forma marca uma pessoa para sempre. as marcas do abandono e da rejeição são profundas e não há nada que eu possa fazer. eu poderia acrescentar que o pai do meu filho foi um grande idiota omisso, um grande e desprezível irresponsável sem noção, mas suponho que aqui não seja o local adequado. na verdade eu achei que daria conta do recado sozinha, mas, nao foi bem assim. ele até me apoiou na decisão de ter o filho mas na prática mandou um solene ‘te vira’, o que foi ainda pior, porque nem clareza da situação eu tinha. na linguagem de hoje das redes sociais é mais fácil de explicar: o cara mandou um #tamojunto sqn.

eu não tinha a menor noção da complexidade envolvida no ato de educar uma criança. eu trabalhava muito e num certo momento voltei a estudar. com a rádio crescendo e a demanda de trabalho e a responsabilidade também, resulta que o playground foi a rádio e antes mesmo dele completar 9 anos já sabia operar o equipamento todo, rodar as músicas, os comerciais, ligar o microfone. enquanto eu estava no ar, nos finais de semana, ele ficava no outro lado do aquário, na técnica com o operador.

essa é uma espécie de lenda doméstica: começo da década de 90, ainda não tínhamos computadores, os CDs novos adquiridos pela rádio eram catalogados pela ordem de chegada e não por ordem alfabética,e isso dificultava muito a busca. e quem era a pessoa que sabia a numeração praticamente de cor dos milhares de discos da discoteca da rádio? o bruno, no auge dos seus 6, 7 anos de idade. de vez em quando alguém ligava para a minha casa para perguntar para o bruno, que número era o disco tal e ele dizia o número na hora.

no brasil apesar de quase metade das famílias (40% segundo o ibge) serem comandadas e sustentadas por mulheres, ainda há preconceito contra mães solo. trabalhar, bancar a estrutura toda, organizar a casa, com tudo que envolve isso, providenciar babás, bons colégios, plano de saúde e estudar. essa sou eu desde 1986. aliás, em 2018 continuo fazendo as mesmas coisas, continuo sustentando a casa, trabalhando e estudando. só não preciso mais de babá, porque a minha filha menor, barbara, que já nasceu em outro momento da minha vida, está com 17 anos. quando falam em ‘empoderamento’ feminino acho que é disso que se trata.”

É bom deixar claro que o ponto central do livro não é a trajetória pessoal da radialista. O relato baseia-se na análise de cadernos que eram a forma do pessoal da Rádio Ipanema trocar informações internas, em uma era pré-Internet em que muitos nem telefone fixo em casa tinham, que dirá celular. A escritora consegue traçar um panorama rico e relevante do cenário cultural do Rio Grande do Sul (e do Brasil) da década de 80/90, a partir do ponto de vista de quem fazia parte de  uma emissora de rádio inovadora e transgressora por natureza, além de contar episódios divertidos sobre os bastidores da rádio. Um prato cheio para os saudosistas de plantão mas também para os mais jovens ficarem por dentro de como era complexo e “artesanal” fazer rádio até os anos 90 no Brasil.

Conhecida como uma das vozes mais marcantes da rádio Ipanema, Katia Suman segue firme e forte na luta pela cultura underground local. Entre outras iniciativas, mantém via web a Radioelétrica e capitaneia o  Sarau Elétrico, um dos eventos literários mais bem-sucedidos de Porto Alegre.

Voos Literários

A família Bolsonaro segue mesmo a Bíblia?

Flávia Cunha
7 de maio de 2019

Temos um religioso no poder. Ao menos esse é seu slogan, colocando Deus acima de tudo. Mas ao vermos as constantes críticas de Carlos, um dos filhos do presidente, ao vice Mourão, além do suposto bloqueio de acesso à conta do twitter de Bolsonaro pelo filho metido a social media, só me resta pensar: essa família segue mesmo a Bíblia?

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Selecionei alguns versículos dedicados à relação pais e filhos. A partir disso, vocês podem tirar suas conclusões se Carluxo e sua “metralhadora giratória” metafórica no Twitter e a falta de limites ao filho demonstrada por Bolso-pai respeitam os princípios bíblicos

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Vós, filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isto é agradável ao Senhor. Vós, pais, não irriteis a vossos filhos, para que não percam o ânimo.”  (Colossenses 3:20-21)

“Instrua a criança segundo os objetivos que você tem para ela, e mesmo com o passar dos anos não se desviará deles.” (Provérbios 22:6)

“A insensatez está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a livrará dela.” (Provérbios 22:15)

“Quem se nega a castigar seu filho não o ama; quem o ama não hesita em discipliná-lo.” (Provérbios 13:24)

“Ouçam, meus filhos, a instrução de um pai; estejam atentos e obterão discernimento.” (Provérbios 4:1)

Mas se vocês que estão lendo acham, como eu, que religião não deve interferir no Estado, vamos recorrer a um dos fundadores da ciência política moderna: Maquiavel. Em seu clássico O Príncipe, o pensador orienta os governantes a terem uma relação controlada com seus ministros, assessores e afins. No caso do atual governo, isso incluí sua família, que interfere diretamente com declarações polêmicas e também ao acompanhar o presidente em viagens oficiais, apesar de não ocuparem cargos no primeiro escalão.

Um príncipe […] deve aconselhar-se sempre, mas quando ele queira e não quando os outros desejem; antes, deve tolher a todos o desejo de aconselhar-lhe alguma coisa sem que ele venha a pedir. Mas deve ser grande perguntador e, depois, acerca das coisas perguntadas, paciente ouvinte da verdade; antes, notando que alguém por algum respeito não lhe diga a verdade, deve mostrar aborrecimento. Há muitos que entendem que o príncipe que dá de si opinião de prudente, seja assim considerado não pela sua natureza, mas pelos bons conselhos que o rodeiam, porém, sem dúvida alguma, estão enganados, eis que esta é uma regra geral que nunca falha: um príncipe que não seja sábio por si mesmo, não pode ser bem aconselhado, a menos que por acaso confiasse em um só que de todo o governasse e fosse homem de extrema prudência. Este caso poderia bem acontecer, mas duraria pouco, porque aquele que efetivamente governasse, em pouco tempo lhe tomaria o Estado; mas, aconselhando-se com mais de um, um príncipe que não seja sábio, não terá nunca os conselhos uniformes e não saberá por si mesmo harmonizá-los. Cada conselheiro pensará por si e ele não saberá corrigi-los nem inteirar-se do assunto.”

Até onde vai o poder da interferência filial no governo Bolsonaro? Mourão, magoado, já declarou que renunciará caso o presidente não o queira no governo. A quem interessa essa renúncia? Como um governo com tantos conflitos internos seguirá em frente até o fim do mandato? Aguardemos as cenas dos próximos capítulos dessa novela. Já que o nos resta mesmo é recorrer à ironia, à cultura e à filosofia para combater esse governo, que abriu guerra contra as ciências humanas.

Imagem: Reprodução/Instagram

Voos Literários

Um livro sobre um Jesus duplamente subversivo

Flávia Cunha
23 de abril de 2019

Na semana anterior à Páscoa, tive acesso por acaso ao clássico russo O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, escrito durante o regime comunista, entre 1928 e 1940. Apesar de a obra ser mais famosa por ter influenciado a banda Rolling Stones a criar o hit Sympathy for the devil, não é sobre o diabo ou ou sua recriação literária que vou abordar nessa coluna.

No livro O Metre e Margarida, a parte que mais me chamou a atenção foram as discussões teológicas, presentes no início do enredo, a respeito das diferenças entre o Jesus histórico e o Jesus mítico. A paixão de Cristo e suas consequências são o pano de fundo da história da visita a Moscou, na década de 1920, do Diabo e de uma comitiva esquisitíssima, que inclui um gato que caminha sobre duas patas, é bebedor de vodca e apreciador de outros prazeres mundanos.

Ao apresentar uma visão de Cristo diferente da exposta nos evangelhos, Bulgákov é duplamente subversivo.

Foi revolucionário ao ir contra o regime comunista, ao abordar um tema religioso em um Estado obrigatoriamente ateu. E também subverteu a ordem ao contrariar a versão oficial da Igreja,  criando uma versão de Jesus como um “filósofo vadio”, de origem síria, e não necessariamente um Messias.

No trecho abaixo, há o relato feito por Woland (ou o Demônio) sobre um suposto diálogo entre Pôncio Pilatos e Yeshua HaNotzri (ou Jesus Cristo). Pilatos pergunta sobre a relação de Ha-Notzri com Judas, que responde:

— Pediu-me que expressasse a minha opinião sobre o poder do Estado. Ele estava extremamente interessado por essa questão.

— E o que foi que você disse? — perguntou Pilatos. — Ou você vai responder que esqueceu o que disse? — Já havia desespero em seu tom.

— Entre outras coisas, eu disse — contava o prisioneiro — que qualquer poder é uma violência contra as pessoas e que chegará o tempo em que não haverá mais o poder nem dos Césares, nem qualquer outro poder. O homem passará para o reino da verdade e da justiça, onde não haverá necessidade de poder algum.

— Prossiga!

— Não houve mais nada — disse o prisioneiro. — Depois uns homens entraram correndo e começaram a me amarrar e me levaram para a prisão.”

O livro foi censurado durante o regime soviético e foi lançado na íntegra apenas em 1973.  Atualmente, em uma conjuntura em que as mensagens de Cristo são tão deturpadas por líderes religiosos cheio de ganância e por políticos defensores de armas e da pena de morte, há realmente dúvidas de que Jesus foi um preso político por se insurgir contra o sistema político de sua época?

Como pessoas a favor da violência institucional contra criminosos podem reverenciar a memória e a palavra de alguém que foi morto pelo Estado como bandido e submetido à tortura e condenado à morte?

Bulgákov, na década de 1920, já apontava a culpa de Pôncio Pilatos por sua covardia e omissão. Até quando seremos omissos em relação à Justiça seletiva e a punição efetiva apenas de condenados pobres e, em sua maioria, negros?

Imagem: Grafitti Friday/Reprodução

 

Voos Literários

“Bom mesmo era no meu tempo…”

Flávia Cunha
16 de abril de 2019

Mas é isso o que acontece. Uma vez encerrada a tragédia humana, cabe aos jornalistas banalizarem-na para convertê-la em entretenimento. Talvez porque todo aquele frenesi irracional tenha arrombado a porta da nossa casa e nenhum detalhe maledicente e distorcido dos jornais deixasse de chamar a minha atenção, acabei considerando a era McCarthy o início do triunfo da fofoca no pósguerra, a fofoca que se estabeleceu como o credo unificador da mais antiga república democrática do mundo. Na Fofoca Nós Acreditamos. Fofoca como o evangelho, a religião nacional. O macarthismo como o início da conversão não só da política séria mas de tudo o que é sério em entretenimento para distrair a massa. O macarthismo como a primeira florescência do vazio mental americano que agora está por toda parte.

O negócio de McCarthy, na verdade, nunca foi a perseguição de comunistas; se ninguém sabia, disse, ele sabia. A virtude dos julgamentos espetáculo da cruzada patriótica de McCarthy era simplesmente a sua forma teatralizada. Ter câmeras voltadas para aquilo apenas lhe conferia a falsa autenticidade da vida real. McCarthy compreendeu melhor do que qualquer político americano anterior a ele que as pessoas cujo trabalho era legislar podiam fazer muito mais em benefício de si mesmas se representassem um espetáculo; McCarthy compreendeu o valor de entretenimento da desgraça e aprendeu como alimentar as delícias da paranóia. Ele nos levou de volta a nossas origens, de volta ao século XVII e a nossos antepassados. Foi assim que o país começou: a desgraça moral como entretenimento público. McCarthy era um empresário dos espetáculos e, quanto mais desvairados os pontos de vista, tanto mais ofensivas as acusações, maior a desorientação e melhor a diversão para todo mundo. Os livres e corajosos de Joe McCarthy, este era o espetáculo em que meu irmão ia representar o papel mais importante da sua vida.”

Casei com um comunista – Phllip Roth

Vocês me desculpem a digressão pessoal que farei na coluna de hoje, mas é que o texto o de Philip Roth me inspirou um certo saudosismo, sabem?

Pra começar, posso dizer que bom mesmo era no meu tempo, em que o professor de história falava sobre Guerra Fria, socialismo e comunismo em sala de aula e ninguém acusava-o de ser doutrinador, estava só cumprindo o seu papel de ensinar o conteúdo aos alunos. Hoje em dia, esses moderninhos ficam querendo questionar o conhecimento e autoridade dos docentes, vocês acreditam nessa pouca vergonha?

São esses mesmos moderninhos, aliás, que resolveram que o correto é se atualizar pelo whatsapp em vez de ler um livro ou um jornal como o pessoal da velha guarda, como eu, ainda faz. Aonde esse mundo vai parar?

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No meu tempo, gente, militar ficava era na caserna, bem escondido depois da ditadura. Não tinha essas modernidades de se candidatar às eleições

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Aliás, lá na época da minha adolescência, no início da década de 90, não existia uma só pessoa que defendesse publicamente a volta do regime militar. Isso seria um vexame completo! As viúvas da ditadura eram enrustidas. Agora, tão aí, na maior pouca vergonha, relativizando tortura e dizendo que nem houve ditadura, o que só pode demonstrar que esse mundo tá perdido, mesmo.

Vocês vão me desculpar o tom nostálgico, mas é que “o meu tempo” era da redemocratização e os candidatos iam aos debates, não tinha essa de dar desculpa e não aparecer. Os debates depois eram manipulados pela edição da Globo e a esquerda podia falar mal da mídia, como deve ser. Agora é uma loucura, ficam dizendo que a Globo é comunista e a gente nem sabe mais quem deve defender. Essas modernidades não são mesmo pra mim!

Por fim, já que a Educação desse país tá de mal a pior e o governo federal só sabe nomear louco para esse ministério, só tenho uma coisa a dizer. Bom mesmo era no meu tempo de adolescência, em que Paulo Freire era secretário de Educação em São Paulo e não execrado publicamente como nesse século 21.

(Esse texto contém ironia mas é baseado em fatos reais. Tenhamos forças para suportar a atualidade)

 

Voos Literários

Mia Couto: Somos Todos Moçambique

Flávia Cunha
9 de abril de 2019

– Essa doença misteriosa que se espalhou por aqui: o senhor já tomou as providências?

– Eu acho que se trata de meningite

– É uma doença, digamos, que encomendável?

– Não entendo.

– Pergunto se alguém…digamos,um inimigo político,poderia ter encomendado.

–  É uma doença que ocorre sobretudo nas pessoas que se concentram em recintos fechados. É por isso que os soldados são mais atingidos…

– As pessoas pensam que é um mau-olhado. “

Veneno de Deus, Remédios do Diabo

O diálogo do trecho acima é entre um administrador corrupto e um médico lisboeta contratado para combater uma doença misteriosa em uma vila moçambicana.  Quem dera que epidemias no país africano fossem apenas fruto da imaginação do escritor Mia Couto, um dos mais reconhecidos escritores em língua portuguesa do mundo.

Infelizmente, é a mais pura realidade

Um ciclone que atingiu Moçambique,  Zimbábue e Malaui trouxe como consequência, além de mortos e desabrigados, um grave surto de cólera.

“Estou quase tão destruído quanto a minha cidade”, declarou Mia Couto, referindo-se à Beira, sua cidade natal, para onde tinha planos de retornar para escrever um novo livro baseado em suas memórias afetivas.  

O escritor mantém uma fundação de incentivo à cultura em solo moçambicano, mas agora o país necessita de ajuda humanitária para se reerguer. Aqui no Brasil, a CNBB lançou uma campanha de auxílio à Moçambique, Zimbábue e Malauí. 

Imagem: Pixabay/Reprodução

Voos Literários

#ditaduranuncamais

Flávia Cunha
2 de abril de 2019

Há 55 anos, o Brasil ingressava em um período cruel de sua história, com os militares tomando o poder à força, com tanques nas ruas e apoio de parte da classe média e alta e da grande mídia. A partir de 1º de abril de 1964, iniciou-se um período de exceção no Brasil, com a cassação de direitos políticos de opositores; restrição de liberdades individuais; censura às artes e aos meios de comunicação; e uma série de outras medidas autoritárias, inclusive prisões extrajudiciais, o fim do habeas corpus, tortura, assassinatos e desaparecimentos . A tortura de militantes de esquerda durante a Ditadura é fato histórico. Afinal, os métodos utilizados pelos militares para silenciar quem se opusesse ao regime estão fartamente documentados e estudados pelo meio acadêmico.

Porém, nesses tempos de pós-verdade e fake news, temos parte da sociedade tentando encobrir e reinventar o passado

Querem até tornar o dia do golpe militar em uma data festiva, como se houvesse realmente algo a ser comemorado.  Nesse cenário, o Vós e a coluna Voos Literários aderem à campanha #ditaduranuncamais. Em momentos como esse, mais do que nunca, é preciso honrar a História e a memória para evitar que atrocidades como a Ditadura Militar voltem a acontecer. Por isso, além das manifestações nas ruas, foram compartilhadas nas redes sociais livros e filmes com relatos sobre os 21 anos sem civis no poder no país, entre 1964 e 1985. 

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Um homem torturado, um homem morto

Destaco aqui o livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar. A investigação feita por Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles conta a trajetória de Frei Tito, um religioso que preferiu combater a ditadura com a força das ideias e da justiça social. “Na Universidade de São Paulo, onde participava ativamente do movimento estudantil, Tito chegou a ter momentos de dúvida e de incerteza sobre a possibilidade de conciliar Marx e Cristo. Assim como Tito, outros frades foram encarcerados porque eram considerados  ‘terroristas’ por terem feito a ‘opção preferencial pelos pobres’ pregada pelo Concílio Vaticano II. Eram ‘subversivos’ por praticarem um Evangelho que tenta transformar o mundo. Eram ‘perigosos’ porque pregavam a liberdade e a igualdade. O ‘ópio do povo’ estava do outro lado, do lado da Igreja conservadora que não entendia aquele combate.”

Frei Tito foi preso, junto com outros religiosos, dentro do convento em que achava que sempre teria segurança. Os militares queriam Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), e usaram os frades para isso. Ele foi levado algemado para a prisão, na madrugada de 4 novembro de 1969:

Eram três horas da manhã. O provincial trocou de roupa diante de um policial armado, com a metralhadora apontada. Ao descer as escadas, viu frei Tito descendo já algemado, ao lado do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Este cercara o prédio de madrugada, dando início à “Operação Batina Branca”, que consistia na invasão do Convento das Perdizes e na prisão dos dominicanos. No claustro, o policial fez o provincial aguardar por alguns minutos, encostado na parede, de mãos para trás. Fleury deu ordem aos policiais para colocarem frei Tito no camburão dos presos. Frei Domingos foi no carro do delegado, juntamente com frei Edson. Receberam ordem de sentar-se no banco traseiro da viatura, entre dois policiais armados de metralhadoras. Fleury foi no banco da frente, ao lado do motorista. Além de Tito, foram levados o dominicano italiano Giorgio Callegari e frei Sérgio Lobo.

Ao prender Tito, Fleury lhe disse: — Com gente da tua estirpe não temos piedade nenhuma. Somos pagos para isso. Sabemos que você tem muito para contar. Se não quiser falar, será pior. Te torturaremos. No Deops, o delegado havia enfileirado todos os presos num corredor. Frei Domingos só reconheceu frei Ivo Lesbaupin pela camisa. O rosto estava totalmente deformado pela tortura. 

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Batismo de Sangue

A história também está contada no livro de memórias Frei Betto, um dos frades da Ordem dos Dominicanos presos na mesma operação. Batismo de Sangue – que também virou filme, dirigido por Helvécio Ratton (2006) – é um dos relatos mais importantes e tocantes sobre os horrores da ditadura e conta a história dos Freis Tito, Betto, Oswaldo, Fernando e Ivo. Todos foram terrivelmente torturados, mas o caso do Frei Tito é o mais emblemático e revoltante:

Pouco depois levaram-me para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. […] Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 mts, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia obre o cimento frio e sujo. […] Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria agüentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

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Frei Tito nunca se recuperou 

Frei Tito não morreu naquele momento, mas também não sobreviveu. Além das marcas deixadas pela tortura física, as feridas emocionais sofridas nunca foram curadas. Cinco anos depois, já exilado na França, ele foi encontrado morto. A causa apontada foi suicídio.  Sobre seu destino, escreveu o psquiatra Jean-Claude Rolland, em trecho do  livro Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar:

Tito de Alencar foi submetido a torturas de tal forma cruéis, não somente do ponto de vista físico, mas também no nível psíquico, foi tão humilhado, que algo nele estava efetivamente morto. Na aparência, ele estava vivo, mas de fato era apenas um sobrevivente. Não há dúvida de que Tito de Alencar morreu no decorrer de suas torturas”

Por esse e muitos outros motivos: Ditadura Nunca Mais! Tortura Nunca Mais!

Voos Literários

Confira trecho de livro inédito de Claudia Tajes

Flávia Cunha
26 de março de 2019

Participar de eventos com mulheres é uma constante na minha rotina. Procuro fazer isso para valorizar a presença feminina em espaços concedidos naturalmente aos homens, de forma tão automática que nem pensamos a respeito do protagonismo masculino em lugares de fala.

Por isso, fui prestigiar uma das atividades de É Coisa de Mulher, programação especial em homenagem ao Dia Internacional da Mulher promovida pelo Centro Histórico Cultural Santa Casa, em Porto Alegre. O bate-papo com a escritora Cláudia Tajes superou minhas expectativas. Primeiro por transpor as fronteiras da Literatura. Claudia é colunista de jornal, roteirista de televisão e com livros já adaptados para o teatro e o cinema.

O outro motivo da minha quebra (positiva) de expectativa foi a sinceridade e espontaneidade da escritora. Falar de perrengues financeiros, dar detalhes dos bastidores de seu trabalho na Rede Globo e ter a autocrítica de confessar não gostar de um de seus próprios livros: Dores, Amores e Assemelhados. “É um livro com enredo que hoje considero elitista e só me dei conta depois da crítica de pessoas que respeito a opinião. Ainda bem que está esgotado”, comenta, bem humorada.

A escritora lamenta enfrentar resistência entre leitores do sexo masculino, por ter protagonistas mulheres em suas obras.

“É só sair no jornal que um livro meu é ‘sob a ótica feminina’ que o tiozão do churrasco já não tem interesse em dar uma chance para a leitura”, avalia.

Após o evento, entrei em contato com a autora, que generosamente cedeu à coluna Voos Literários um trecho de um livro inédito, que deve ser lançado em maio. Claudia Tajes parece ter atingido o objetivo comentado durante o bate-papo no Centro Histórico Cultural da Santa Casa: manter sua escrita leve mas sem ser fútil.

Boa leitura!

Eu, o outro (título provisório)

1

Naquela manhã eu acordei de sonhos intranquilos como se tivesse um peso abaixo da minha barriga, não, abaixo do abaixo da minha barriga, uma sensação estranha, a pelve sendo puxada para baixo, e a primeira coisa que pensei foi em alguma doença, quem sabe cistite, moléstia venérea: impossível, há meses eu não saía com ninguém, e também parecia diferente da minha última infecção urinária, era quente e se mexia quando eu me mexia e agora estava coçando. Então eu coloquei a mão ali e encontrei um pênis.

Eu tinha virado homem.

2

O cabelo ainda era o meu, chanel precisando de um corte, mas agora com entradas que pareciam as do meu pai. Eu estaria ficando careca? Já as sobrancelhas que ainda ontem eu havia depilado – ao preço de trinta reais – engrossaram, dois ouriços em cima dos olhos. Trinta reais postos no lixo. Cabelos nasceram pelo corpo todo, até as costas ganharam pelos escuros e compridos. Mas o mais surpreendente era o pênis, grande e gordo para uma mulher tão pequena como eu. Batia na metade da minha coxa, e confesso que fiquei orgulhosa dele. Mas só por um momento.

Eu não queria aquele corpo.

 

3

Fazia tempo que eu não dava nenhuma importância para as lingeries. Os namorados dos últimos anos também não reparavam nelas, era tudo muito rápido, quase apressado, uma tarefa a ser cumprida antes de, enfim, dormir. Sorte. Se não fossem as minhas calcinhas sem elástico, esgaçadas pelo uso, seria impossível acomodar meu pênis. Como se esse fosse o maior dos meus problemas. O que eu vestiria para sair do quarto? Minhas saias, meus vestidos, minha leggings, nada me servia. Eu tinha perdido a cintura e a bunda. Se eu nunca quis ser homem, por que uma desgraça dessas havia acontecido logo comigo?

O jeito era procurar alguma roupa que me coubesse no quarto do meu filho.

4

Caco dormia o sono dos adolescentes vagabundos que passam a noite na internet e depois não acordam para ir à escola. Entrei pé ante pé em seu quarto e abri o armário com todo o cuidado. A dobradiça rangeu, Caco continuou imóvel. Comecei a procurar uma camiseta, todas tinham estampas de reggae, eu queria algo mais sóbrio, talvez a pólo que o vô Camilo deu a ele de aniversário e que continuava dentro da embalagem. Já estava escolhendo a bermuda quando senti algo me atingir na cabeça. Ainda ouvi a voz de Caco antes de apagar.

– Mãe, tem um ladrão no meu quarto!

5

Aos poucos fui recobrando a consciência. Acordei amarrada, ou amarrado, com a fita de prender prancha de surfe. Eu estava no chão. Sentado na cama, Caco me olhava com uma raquete de tênis na mão.

– O que tu fez com a minha mãe?

– Caco…

– Como tu sabe o meu nome? Cadê minha mãe?

Antes que eu pudesse responder, tomei uma raquetada no meio da barriga. Sorte que ele ainda não sabia que o porte de armas estava liberado.

– Eu posso explicar. É meio complicado, mas/

– Fala antes que eu te cague a pau. Onde tá a minha mãe?

– Na verdade, a tua mãe/

– Tu matou a minha mãe?

– Não, ela tá bem.

– Cadê minha mãe?

– Mais perto do que tu pensa.

Caco levantou e saiu pela casa à minha procura. Amarrada, ou amarrado, no chão, eu o ouvia chamar: mãe, mãe, mãe. Logo ele estava de volta, e mais nervoso.

– Ela não tá em lugar nenhum.

– Caco!

– Como tu entrou aqui?

– Eu dormi aqui.

– Dormiu? Tá querendo dizer que tu é crush da minha mãe?

Tomei mais uma raquetada, dessa vez nas coxas. Gritei alto.

– Mentiroso. Nunca que a minha mãe ia ficar com um velho gordo como tu.

– Eu não sou gordo. Nem velho.

– Cadê a minha mãe? Fala, senão eu te mato.

– Eu sou a tua mãe.

Imagem: Theo Tajes/Divulgação

Voos Literários

O terrível legado de Columbine

Flávia Cunha
19 de março de 2019

Dois tipos de crime nos afetam mais que qualquer outro: aqueles nos quais as vítimas são crianças e aqueles nos quais as crianças são os agressores. No primeiro caso, choramos os inocentes; no segundo, o equívoco de que crianças são inocentes. Tiroteios em escolas são os crimes mais chocantes de todos porque envolvem ambos os problemas, e, entre todos os tiroteios escolares, o de Columbine permanece como a principal referência, o modelo com o qual todos os outros estão em débito.”

Andrew Solomon, na introdução do livro O Acerto de Contas de Uma Mãe – A Vida após a Tragédia em Columbine, de Sue Klebold (mãe de um dos atiradores da escola norte-americana.)

O massacre promovido por um adolescente e um jovem adulto em uma escola estadual em Suzano (SP), com 10 mortos, trouxe à tona tristeza, perplexidade, piedade e opiniões controversas.

O crime foi inspirado no episódio da escola norte-americana Columbine, conforme investigações da polícia brasileira. Nos Estados Unidos esses ataques são mais comuns do que em nosso país, isso é fato. Ainda assim, não é a primeira vez que isso acontece por aqui. Houve casos semelhantes no Realengo, no Rio de Janeiro, e em Goiânia.

Após a comoção gerada pelo fato, repercutido a exaustão na Internet, na TV e nos jornais, começam a se buscar os motivos para tamanha violência. Bullying? Influência de games violentos? A cultura armamentista defendida pelo atual governo?

Mas foi um texto traduzido do inglês e divulgado sem autoria nas redes sociais que mais me chamou a atenção, por propor uma reflexão diferente.

Fosse o bullying o único motivo desse tipo de massacre, por que os crimes em sua imensa maioria são cometidos por integrantes do sexo masculino, heterossexuais e brancos?

Gays e travestis não sofrem bullying por acaso? E as adolescentes que têm fotos nuas vazadas na Internet porque não saem caçando armadas os responsáveis por esses crimes virtuais? E os jovens negros que passam por situações constrangedoras de racismo e opressão – episódios tão naturalizados a ponto de ter gente negando a existência de preconceito racial no Brasil – por que não viram atiradores seriais como os de Columbine?

Mas a opinião pública precisa apontar motivos aparentes. Por isso, em tragédias como a de Suzano culpar os pais dos responsáveis pelos assassinatos é a saída mais simplista. E essa é uma das motivações para Sue Klebold tenha resolvido escrever um livro sobre como foi lidar com a situação terrível de ser a mãe de Dylan, um dos assassinos de Columbine:

Nunca saberei se poderia ter evitado o papel terrível de meu filho na carnificina que aconteceu naquele dia, mas passei a ver de forma diferente as coisas que gostaria de ter feito. Pequenas coisas, fios na grande tapeçaria de uma vida familiar normal. Porque, se alguém tivesse espiado nossa vida antes de Columbine, creio que teria visto, mesmo com as lentes mais potentes, algo absolutamente comum, nada diferente das vidas que acontecem em inúmeras casas pelo país.

[…]

No que se refere a questões de saúde cerebral, muitas de nossas crianças são tão vulneráveis hoje quanto as crianças de cem anos atrás eram às doenças infecciosas. Não é raro, como aconteceu no nosso caso, a suscetibilidade delas passar despercebida. Quer uma criança entre em colapso em um cenário horrível, quer o potencial dessa criança para a felicidade e a produtividade não se cumpra, essa situação pode ser tão desconcertante quanto dolorosa. Se não acordarmos para essas vulnerabilidades, o terrível preço a pagar continuará aumentando. E o preço será pago não só em tragédias como a de Columbine, Virginia Tech, Sandy Hook ou ucsb, mas em inúmeras tragédias menores e em ebulição que se apresentam todos os dias na vida familiar de nossos colegas de trabalho, amigos e entes queridos.”

Acredito que Columbine sirva como uma inspiração macabra para quem se identifica com atiradores brancos e heterossexuais. Para quem enxerga como heroísmo o ato covarde de sair matando aleatoriamente quem cruzar seu caminho.  O que precisa ser analisado com afinco por especialistas e autoridades é a distorção que leva à busca por essa suposta fama póstuma em massacres como o de Suzano.

E pensar sobre o perigo potencial da equação masculinidade frágil. baixa tolerância à frustração e acesso a armas.

Imagem:  Stephen Agnew/Reprodução Internet

 

 

Voos Literários

Uma mulher contra Hitler

Flávia Cunha
12 de março de 2019

Virou lugar comum falar sobre o ódio disseminado nas redes sociais, principalmente entre pessoas com visões políticas (e de mundo) opostas. Como se a culpa fosse da tecnologia e não do momento tenso que vivemos no Brasil. Mas em meio a comentários intolerantes, trocas de ofensas e robôs com mensagens prontas, muitas vezes achamos conteúdo valioso e interessante para reflexão e aprendizado.

Se não fosse por uma postagem compartilhada por diversas pessoas na minha rede no facebook talvez eu não ficasse sabendo sobre a existência de Sophie Scholl, uma das poucas alemãs a combater ativamente o nazismo e a ser morta em função disso.

O episódio assusta pela singeleza dos atos praticados por um grupo de universitários: eles apenas distribuíram panfletos contra o governo de Hitler. A trajetória do movimento de resistência Rosa Branca é contada por Inge, irmã de Sophie e de Hans, irmão das duas que também foi executado pelo regime nazista, no livro A Rosa Branca, lançado apenas em 2014 no Brasil.

Na sexta edição dos manifestos, Sophie foi detida após atirar os panfletos de cima de um prédio da Universidade de Munique. Saiu do campus universitário presa pela Gestapo, em companhia de seu irmão. Em um julgamento-relâmpago, Sophie e os outros integrantes do Rosa Branca foram condenados à morte e guilhotinados.  

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A ousadia de Sophie custou-lhe a vida, assim como acontece com diversas mulheres ao redor do mundo ainda hoje

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E a verdade é que, em plena década de 1940, em uma sociedade entorpecida pelo totalitarismo, a maior parte dos alemães preferia mesmo não enxergar os horrores cometidos pelo nazismo. Um dos panfletos, reproduzido no livro escrito por Inge Scholl, publicado originalmente em 1952, parece-me bem atual:

“Não há nada mais indigno para um povo civilizado do que se deixar ‘governar’ sem resistência por uma corja de déspotas irresponsáveis, movida por instintos obscuros”.

Por isso, precisamos seguir na resistência. Se na época do nazismo eram necessários mimeógrafos e panfletos, hoje podemos usar a Internet com esse objetivo. Não precisamos de ódio. Precisamos ter paciência para abrir os olhos de quem prefere ver pureza e boas intenções no bolsonarismo.

Foto: Reprodução do filme Uma Mulher contra o Nazismo (de 2005)

Voos Literários

Carnaval, nudez e feminismo

Flávia Cunha
5 de março de 2019

Pensem comigo: qual a principal diferença da nudez das musas do Carnaval carioca e de feministas peladonas nas manifestações do Dia Internacional da Mulher?

A mais gritante é o padrão de beleza apresentado por quase a totalidade das mulheres que são destaques nas grandes escolas de samba do Rio de Janeiro. Já as manifestantes que decidem ficar nuas em protestos em geral têm corpos comuns, com seios que podem ser caídos pela ação do tempo, com barrigas que podem não ser chapadas por exercícios físicos e procedimentos estéticos e com axilas que podem, para o horror dos conservadores, não serem depiladas. Digo podem porque esse estereótipo da feminista peluda, mal amada e que não se importa com a estética corporal também é excludente.

O que me indigna não é a beleza das divas do Carnaval  – cada um cuida do seu corpo do jeito que achar melhor. O que enraivece é a normalização da nudez nos desfiles transmitidos pela televisão e repercutidos nos portais da Internet em notícias sobre a boa forma feminina.

A nudez feminina é permitida, desde que siliconada.

A nudez feminina é concedida, desde que nos padrões.

Também não quero dizer com isso que o Carnaval é uma festa do patriarcado.  Cada vez mais surgem blocos femininos e feministas, com mulheres não somente adornando com sua beleza a folia, mas também sendo protagonistas da batucada. Também se consolidam alas com integrantes plus size, o que tenho minhas dúvidas se é algo bom, por deixar as “gordinhas” e “barrigudinhas” separadas das mulheres com “beleza padrão”.

Nessa busca por uma referência literária para esse desabafo carnavalesco e feminista achei dois livros interessantes.

O primeiro é um clássico da terceira onda feminista: O Mito da Beleza, de Naomi Wolf.  No trecho selecionado, há uma ponderação sobre essa falácia de que as mulheres não podem ser bonitas E inteligentes:

A cultura estereotipa as mulheres para que se adequem ao mito nivelando o que é feminino em beleza-sem-inteligência ou inteligência-sem-beleza. É permitido às mulheres uma mente ou um corpo, mas não os dois ao mesmo tempo. Uma alegoria comum que ensina esse fato às mulheres é a ligação entre uma feia e uma bonita: Lia e Raquel no Antigo Testamento, Maria e Marta no Novo; Helena e Hermia em Sonho de uma noite de verão; Anya e Dunyasha em O jardim das cerejeiras de Tchecov; Violeta e Dulçurosa Suíno em Ferdinando; Glinda e a Bruxa Má do Oeste em O Mágico de Oz; Mary e Rhoda em The Mary Tyler Moore Show; e assim por diante. A cultura machista parece se sentir melhor ao imaginar duas mulheres juntas se elas puderem ser definidas como um fracasso e um sucesso de acordo com o mito da beleza.

O outro livro é Ao Acaso – Mulheres Livres, Mamilos Polêmicos, da ilustradora brasileira Manuela Cunha Soares. A obra é constituída por desenhos, como a imagem de capa desse texto. O livro é uma ode à diversidade e à beleza que rompe padrões e estereótipos e está disponível para download gratuito no formato e-book.  Confiram mais alguns belos desenhos de Manuela.

Acredito que a nudez como libertação ainda é uma utopia em um país com tantos feminicídios como o Brasil. Mas também já houve um tempo em que as mulheres votarem era uma utopia e foi preciso a luta das sufragistas para que o voto feminino fosse uma realidade.

Por isso, o  dia 8 de Março deve ser um dia de luta por um mundo com menos desigualdade e opressão.  Vamos às ruas?

 

Imagem: Reprodução/ Ilustração Manuela Cunha Soares