Voos Literários

Um livro sobre um Jesus duplamente subversivo

Flávia Cunha
23 de abril de 2019

Na semana anterior à Páscoa, tive acesso por acaso ao clássico russo O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, escrito durante o regime comunista, entre 1928 e 1940. Apesar de a obra ser mais famosa por ter influenciado a banda Rolling Stones a criar o hit Sympathy for the devil, não é sobre o diabo ou ou sua recriação literária que vou abordar nessa coluna.

No livro O Metre e Margarida, a parte que mais me chamou a atenção foram as discussões teológicas, presentes no início do enredo, a respeito das diferenças entre o Jesus histórico e o Jesus mítico. A paixão de Cristo e suas consequências são o pano de fundo da história da visita a Moscou, na década de 1920, do Diabo e de uma comitiva esquisitíssima, que inclui um gato que caminha sobre duas patas, é bebedor de vodca e apreciador de outros prazeres mundanos.

Ao apresentar uma visão de Cristo diferente da exposta nos evangelhos, Bulgákov é duplamente subversivo.

Foi revolucionário ao ir contra o regime comunista, ao abordar um tema religioso em um Estado obrigatoriamente ateu. E também subverteu a ordem ao contrariar a versão oficial da Igreja,  criando uma versão de Jesus como um “filósofo vadio”, de origem síria, e não necessariamente um Messias.

No trecho abaixo, há o relato feito por Woland (ou o Demônio) sobre um suposto diálogo entre Pôncio Pilatos e Yeshua HaNotzri (ou Jesus Cristo). Pilatos pergunta sobre a relação de Ha-Notzri com Judas, que responde:

— Pediu-me que expressasse a minha opinião sobre o poder do Estado. Ele estava extremamente interessado por essa questão.

— E o que foi que você disse? — perguntou Pilatos. — Ou você vai responder que esqueceu o que disse? — Já havia desespero em seu tom.

— Entre outras coisas, eu disse — contava o prisioneiro — que qualquer poder é uma violência contra as pessoas e que chegará o tempo em que não haverá mais o poder nem dos Césares, nem qualquer outro poder. O homem passará para o reino da verdade e da justiça, onde não haverá necessidade de poder algum.

— Prossiga!

— Não houve mais nada — disse o prisioneiro. — Depois uns homens entraram correndo e começaram a me amarrar e me levaram para a prisão.”

O livro foi censurado durante o regime soviético e foi lançado na íntegra apenas em 1973.  Atualmente, em uma conjuntura em que as mensagens de Cristo são tão deturpadas por líderes religiosos cheio de ganância e por políticos defensores de armas e da pena de morte, há realmente dúvidas de que Jesus foi um preso político por se insurgir contra o sistema político de sua época?

Como pessoas a favor da violência institucional contra criminosos podem reverenciar a memória e a palavra de alguém que foi morto pelo Estado como bandido e submetido à tortura e condenado à morte?

Bulgákov, na década de 1920, já apontava a culpa de Pôncio Pilatos por sua covardia e omissão. Até quando seremos omissos em relação à Justiça seletiva e a punição efetiva apenas de condenados pobres e, em sua maioria, negros?

Imagem: Grafitti Friday/Reprodução

 

Geórgia Santos

Nem Jesus era feito de chocolate

Geórgia Santos
17 de abril de 2017

No espírito da Páscoa, flagrei a mim pensando em Jesus Cristo. Mentira, foi em chocolate. Mas não é o que parece. Pensei em como foi difícil descobrir que eu não era feita de chocolate. Ou seja, lembrei de quando percebi que nem todo mundo gostava de mim e que isso não ia mudar.

Nunca pensei que fosse tão atraente quanto cacau – e não falo do sentido físico, mas em termos de queridismo –, nem quando era criança. Mas por muito anos eu acreditei que se não fizesse mal a ninguém, as pessoas não teriam motivo pra não gostar de mim. Ledo engano.

Ainda na adolescência descobri que as pessoas podem não gostar umas das outras simplesmente porque sim

 

Fundamentalmente, não vejo problema nisso. Se eu vasculhar minha memória, vou encontrar pessoas de quem eu não gosto sem motivo pra não gostar. O lance é o impacto que isso causa nas nossas vidas. No meu caso, foram anos tentando desesperadamente agradar a todos.

Eu tentava ser a melhor aluna porque assim os professores gostariam de mim; falava bobagem com os meninos porque assim eu não seria uma menininha entediante; falava sobre meninices com as gurias porque assim eu seria uma amiga muito tri; me esforçava no vôlei pra ser escolhida na aula de educação física, e por aí vai. Eu sempre gostei do fato de as pessoas gostarem de mim. E nem sabia do que eu gostava mais.

 

O problema é que ao longo da vida isso foi ficando cada vez menos saudável – e mais submisso

Na faculdade era só uma versão crescida do colégio; na vida social, precisava emagrecer pra me acharem bonita; no trabalho, aceitava qualquer empreitada não pra “crescer na firma”, mas pra gostarem de mim. O resultado disso foi assédio moral e uma tremenda crise de identidade.

 

Eu não sabia mais quem eu queria ser

Talvez eu esteja exagerando um pouco afinal, carrego comigo essa tendência hiperbólica. Mas não é o que todos fazemos até certo ponto? A maioria de nós passa a vida tentando ser chocolate.

Me libertar disso foi muito interessante. Redescobri quem eu queria ser e virei esse sonho de cabeça pra baixo. Algumas pessoas me odeiam com razão e outras não tem motivo, e eu já não me importo com a segunda categoria. Dependendo da pessoa, acho até charmoso. É quase bom ser odiada por um mala.

Mas ei, nem Jesus era feito de chocolate, certo? Nem ele agradou a todos. E quanto aos pobres mortais, a gente vai conseguir ser, no máximo, uma barra de 70% cacau. Parece que é o melhor que há, charmosa, interessante, intensa e saborosa. Mas amarga pra alguns paladares.

Fotografia de Nate Phillips