Igor Natusch

Sobre hackers, estado de exceção e macarronada

Igor Natusch
24 de julho de 2019
Spaghetti. Sause. Fork. Spaghetti. Stevejn Depolo-Flickr

Suponhamos que um estado de exceção seja como uma macarronada. Como sabemos, dá para usar muitas coisas diferentes na hora de fazer uma macarronada. Mas, no fim das contas, tudo se resume a dois ingredientes principais: macarrão e molho.

Macarrão é fácil de obter. Toda nação tem uma massa impressionável, exausta pelos abusos de todos os dias, que pouco entende das disputas políticas e que, por isso mesmo, mostra-se relativamente fácil de manipular.

Esqueça o macarrão, portanto. Esse ingrediente está sempre à disposição de quem deseja fazer uma macarronada. Não é sobre ele que vamos falar.

Essa é uma história sobre como se faz extrato de tomate.

Na última terça-feira, foi disparada pela Polícia Federal a Operação Spoofing, que cumpriu mandatos de prisão associados à suposta invasão do celular do ex-juiz federal e atual ministro da Justiça, Sergio Moro. Quatro pessoas foram presas no interior de São Paulo e levadas até Brasília. E isso é, quase literalmente, tudo que sabemos de oficial: mais detalhes, só no dia seguinte, quando será enfim levantado o sigilo sobre a investigação. Escrevo no final da noite de terça-feira; não sei, portanto, de nada que os leitores e leitoras do futuro já devem saber.

Longas horas de incerteza. Uma noite inteira, talvez uma manhã completa e uma boa parte da tarde para especulações, insinuações, palpites. Para disseminar, pelas redes sociais e aplicativos de mensagem, as mais delirantes leituras e as mais infames acusações.

Ninguém que esteja lendo esse texto esteve na nebulosa de Orion nas últimas semanas, então vocês provavelmente sabem que o ministro Sergio Moro e procuradores da Lava-Jato (entre eles, o amigão de Moro, Deltan Dallagnol) estão às voltas com uma série de matérias constrangedoras. Essas matérias estão sendo feitas a partir de material obtido pelo The Intercept Brasil: milhares de diálogos via celular, demonstrando uma série de desvios éticos (e algumas ilegalidades flagrantes) cometidas por Moro, Dallagnol e outros super-heróis da moralidade nacional.

Segundo Moro e a Lava-Jato, esse material foi obtido por um hacker. A única evidência disso, até agora, é a palavra dessas pessoas, e mais nada. Ao que se sabe no momento em que escrevo,   sequer uma perícia nos celulares foi realizada.

O mesmo Moro havia denunciado ter sido vítima de um hacker, pouco antes da revelação que o Intercept tinha obtido arquivos comprometedores. Invadiram meu celular, reclamou Moro. Sem demonstrar, mas reclamou.

É o mesmo hacker? Não sei. Ninguém sabe. E é assim que precisa ser, se queremos fazer um bom extrato de tomate. Ninguém pode saber com certeza de coisa alguma.

Enquanto a gente não sabe, a gente vai especulando.

Esse é um elemento que ajuda a dar o ponto para a receita, sabe. A gente fica vulnerável à especulação. Nervosos, inseguros. Impressionáveis. Fica com medo da denúncia do jornalista ser verdade, e também fica com medo que ela seja mentira.

Claro que essa panela de pressão não esquenta de uma hora para outra. Muita coisa foi insinuada e vociferada nos últimos dias. Pavões misteriosos falando de Bitcoins russos. Negociatas envolvendo suposta compra de mandato pelo marido do jornalista à frente das reportagens. Acusações de que fazer matéria jornalística com material vazado é crime, algo que poderia gerar até deportação. Pretensas adulterações de conteúdo das quais muito se fala, mas nada se evidencia. Muita coisa, enfim.

Mas o mais importante é insistir na narrativa. Ninguém viu provas do hacker, mas o ministro Moro diz que foi hacker, então ninguém pode duvidar. E se o informante for alguém do Ministério Público, talvez um membro da própria Lava-Jato? Pode até ser, mas não pode ser. Foi hacker, você não viu? Foi Sergio Moro quem disse – e agora a PF, mesmo sem ter dito, disse também. Foi hacker. Um perigoso e maligno hacker, usando tecnologia desconhecida para atacar um dos super-heróis da nação. Talvez vários hackers. Imagine: uma gangue de hackers. Contratados por alguém. Quem são os hackers? Quem contratou os hackers? O que eles vão dizer?

É mais ou menos nessa hora que as pessoas começam a perguntar: e aí, ninguém vai fazer nada?

O extrato de tomate está ficando no ponto.

É possível, dentro do cada vez menos relevante mundo real dos fatos e acontecimentos verificáveis, que os hackers não tenham nada a ver com a #VazaJato. Que sejam apenas uns golpistas meia-boca, que usaram um cavalo de troia para tentar roubar umas senhas bancárias de Moro ou algo assim. Talvez não sejam nem mesmo isso.

Mas, e aí está o segredo que dá o sabor especial à receita: você não sabe. Até quarta-feira à tarde, ou talvez ainda depois, ninguém vai saber. Mas todo mundo vai querer saber. Todo mundo vai pensar sobre qual é, no fim das contas, a verdade. E todo mundo vai estar querendo que alguém resolva logo essa situação.

Quando a gente quer que alguém resolva logo a situação, a gente fica mais tolerante com atalhos. A gente fica menos apegado ao modo certo de fazer as coisas.

O estado de exceção adora isso. Um líder autoritário gosta muito de tomar atalhos.

Do lado de cá de tudo que está rolando, noto que o pessoal ainda está muito preocupado com o macarrão. Talvez achem que o macarrão pode ser devolvido à prateleira. Talvez achem que, conversando com o macarrão, ele vá se recusar a ir para a panela cozinhar.

Bobagem, digo eu. O macarrão está sempre à disposição. É a parte mais fácil da receita.

O que interessa, agora mais do que nunca, é o extrato de tomate.

Talvez ainda esteja em tempo de estragar a macarronada de domingo. De repente a receita do extrato desande, ou um pontapé bem dado possa até derrubar a travessa no chão. De repente dá para esquentar a panela além da conta e fazer o prato inteiro queimar, ficar intragável e impossível de servir. Mas não é boa ideia perder tempo. Como a gente sabe, uma vez que se tenha o macarrão, fica faltando só o molho para servir uma tremenda macarronada.

E o molho está quase pronto.

Foto: Steven Depolo / Flickr

Igor Natusch

A defesa de Schrödinger de Moro e Dallagnol convence cada vez menos

Igor Natusch
18 de julho de 2019
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, durante audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados.

A defesa por insinuação vem sendo, praticamente desde o início, a tática de Sérgio Moro e procuradores da Lava-Jato diante dos diálogos obtidos pelo The Intercept Brasil. Eles dizem que as mensagens não têm nada de mais, são absolutamente normais, mas ainda assim podem ter sido adulteradas e enfim, todo mundo já está por dentro da argumentação. O problema é que a conversa fica cada vez menos convincente, na medida em que as revelações se sucedem. E disfarça cada vez menos o que se esconde por trás da falta de ênfase: o desconforto em estar sempre na defensiva, e a incerteza sobre o tamanho do problema que está por vir.

Como exemplo ilustrativo, tomemos a declaração da conta oficial de Sergio Moro no Twitter, datada do último dia 16:

Trata-se de uma fala muito interessante, que traz várias revelações em suas entrelinhas. Para começo de conversa: se não há nada sério no material revelado, qual a necessidade de manifestar-se? Terá um ministro da Justiça, mesmo em licença (inesperada e um tanto estranha, diga-se), tempo para desperdiçar com frivolidades sem valor, para brincar de Schrödinger e defender-se do gato que, segundo ele, nem mesmo está na caixa?

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Ao contrário do que pretende o ministro, a própria manifestação atesta a seriedade do assunto e fornece indício a favor da autenticidade das informações
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Mais: se o que foi revelado não é autêntico, o que impede Sergio Moro de atestar a adulteração com seus próprios registros ou arquivos? Se o material divulgado por tantos veículos de mídia é editado de forma a falsear seu conteúdo, e levando em conta o desgaste evidente causado pelos diálogos, o que aguarda o ministro para ingressar com uma ação por calúnia, por exemplo? Se Glenn Greenwald e sua equipe estão mentindo sobre tudo, dando aparência de crime onde nada de ilícito ocorreu, basta a Moro apresentar as evidências e liquidar, de um só golpe, com a carreira do jornalista inglês.

Nada disso. Para contestar diálogos, Moro usa apenas o Twitter. Para provar que são falsos, parece esperar a intervenção da Polícia Federal – que, segundo boatos fortes dos últimos dias, estaria organizando operação para capturar o suposto hacker responsável pelos vazamentos. Sergio Moro insinua um crime grave contra sua imagem pública e sua honra, mas não move um dedo para desmascará-lo; parece, na verdade, aguardar que isso seja feito por alguma força externa. Por que?

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Parece válido imaginar que, se Moro não prova que é vítima de calúnia, é porque não pode
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Na verdade, são justamente as evasivas dos envolvidos na #VazaJato que nos oferecem a maior certeza de que há mais coisa pela frente, que a amizade entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol é ainda mais fraterna e não-republicana do que se revelou até aqui.

Para Dallagnol, em especial, a situação é grave. As negociações entre os dois para a realização de um vídeo promovendo as chamadas 10 medidas contra a corrupção, por exemplo, são infames e escandalosas, elas próprias indícios da mesma corrupção que os super-heróis da vez se propuseram tão tenazmente a combater. E as movimentações do procurador para lucrar com palestras, usando a esposa como sócia para fugir de críticas, são o descumprimento evidente de uma regra clara da magistratura.

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Se houver a necessidade de uma cabeça decapitada (e quem poderá dizer que não será necessário, quando a única certeza é a incerteza sobre o que virá?), é razoável supor que o pescoço de Dallagnol é um candidato nada desprezível.  Afinal, ninguém usou máscaras com seu rosto em protestos, ou criou acampamentos e vigílias em sua homenagem
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Os fatos se sucedem, de qualquer modo. Nas poucas horas que tirei para batucar esse texto, a Folha de São Paulo já trouxe outra grave denúncia: a de que Sergio Moro interferiu em acordos de delação durante as negociações dos mesmos – o que é absolutamente vedado ao juiz, tanto por procedimento quanto por simples lógica. A resposta do ministro, claro, veio pelo Twitter – dizendo uma verdade (que é dever legal do juiz exigir mudanças ou recusar a homologação) para desviar do ponto central (que isso se dá ao fim da negociação conduzida pelo Ministério Público, não durante o processo).

Ou seja, os acontecimentos em si são imprevisíveis, mas o padrão de reação que despertam é mais que claro: respostas nunca enfáticas, sempre oscilando entre desprezar o conteúdo e insinuá-lo fraudulento, com a sombra de um hacker nunca revelado insinuando crimes e conspirações. “Não há gato dentro da caixa, mas o gato não é meu!”

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É um esforço não de esclarecimento, mas de realce das sombras

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Não condiz com a postura de quem nada tem a temer. E apenas reforça a importância do trabalho da imprensa em pressionar os poderosos da vez, além de reiterar a necessidade de ir cada vez mais fundo no que esses arquivos têm a dizer. É nisso, no fim das contas, que a sociedade pode contar para não mergulhar de vez no nevoeiro.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil 

Igor Natusch

O governo Bolsonaro é revolucionário – e isso não é nada bom

Igor Natusch
3 de julho de 2019
Presidente da República Jair Bolsonaro chega ao Comando Militar do Sudeste.

Jair Messias Bolsonaro está sendo uma figura revolucionária na política brasileira. Gostando ou não das consequências disso, o fato é esse, e só se torna possível compreender minimamente os primeiros seis meses do governo Bolsonaro a partir dessa constatação.

Esse texto não vai ser uma viagem agradável, então peço que o leitor ou leitora tome fôlego antes de seguirmos em frente.

A partir do atual mandato, o presidencialismo de coalizão à brasileira está encerrado. Esqueça os tempos do passado, quando os grupos políticos construíam, por diálogo, compra ou cooptação, consensos que permitiam algum tipo de governabilidade: isso está no passado, e vai demorar para retornar plenamente, se é que vai voltar um dia.

O Brasil de Bolsonaro propõe uma nova política: impositiva, onde a divergência só se manifesta enquanto conflito, onde o objetivo nunca é convencer, mas sim coagir grupos divergentes a aderir a determinado pensamento. Ou, se isso for impossível, tentar fazer com que desapareçam.

O consenso nada significa para Bolsonaro. Sua trajetória política jamais teve qualquer interesse pela construção: típico deputado “do fundão”, ele nunca liderou uma comissão, jamais defendeu projetos de lei minimamente significativos, migrou entre partidos e vendeu sua própria candidatura sem nenhum constrangimento, dentro de suas próprias regras. A política, para Bolsonaro, sempre foi um projeto pessoal e familiar – e poderíamos acusá-lo de várias coisas nesses primeiros seis meses, mas jamais de estar agindo de forma incoerente. 

O conflito é mais que uma estratégia de governo: é uma manifestação espontânea e mais, o ethos e a alma desta administração. Talvez possamos falar em um presidencialismo de crise, em que a estabilidade e a resolução de conflitos não são apenas menosprezadas, mas até mesmo indesejáveis para que o sistema siga em funcionamento.

São dois processos básicos, em permanente sucessão: deixar claro quem são os inimigos e manter os aliados sempre à distância, tratando-os como transitórios e descartáveis – livres, enfim, para serem arremessados para o lado adversário na primeira oportunidade.

Não é à toa que os mais recentes atos em favor do governo incluíram entre os inimigos do santo governo mesmo grupos como o MBL, que são tudo, menos esquerdistas. Não é à toa que aliados fundamentais, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, sejam tratados como obstáculos do Executivo, ou que o STF esteja permanentemente acuado a cumprir sua única função aceitável, que é manter o ex-presidente Lula na cadeia. Não é à toa que Bolsonaro estava “por aqui” com Joaquim Levy, que o general Santos Cruz foi ridicularizado publicamente antes de ser afastado do governo, que o general Juarez Cunha foi afastado dos Correios por agir “como um sindicalista”.

No presidencialismo de crise bolsonarista, o conflito é a assinatura, e nenhuma aliança tem qualquer tipo de solidez.

Além da estética do enfrentamento permanente entre os Poderes, que aproxima o momento brasileiro de uma interminável tentativa de sequestro, é escancarada a falta de solidariedade e lealdade dentro da própria gestão. Como já disse aqui várias vezes, Bolsonaro não é líder, mas sim o avatar que representa vários grupos heterodoxos. Entre eles, a única pauta comum é o patriotismo chão e tosco, profundo como uma poça d’água. Fora disso, não há interesse em construir nada, nenhum respeito a bandeiras alheias, sequer um gesto de consideração. Nem mesmo seus medos, ódios e preconceitos os aproximam, pois não são sempre os mesmos, e cada um reconhece o seu recalque como mais urgente que os demais. Nessa aliança entre figuras que se desprezam, todos querem ser protagonistas, brigam às cotoveladas para ver quem receberá primeiro os aplausos da torcida.

Diante de tão sufocantes exigências de fidelidade, e com quase nenhuma lealdade oferecida em retribuição, quem vai ser aliado de Bolsonaro?

A resposta é simples: ninguém.

A tendência será de pagar deslealdade com deslealdade, de tratar como descartável um governo incapaz de ser um aliado confiável.

E aí se impõe a questão que Bolsonaro e seus apoiadores próximos, sejam quais são, deveriam fazer: é possível atuar em tantos campos de batalha ao mesmo tempo?

Dizer que Bolsonaro não conta com apoio popular seria uma tolice. Verdade que seus índices de popularidade são os mais baixos de um presidente recém-eleito desde a redemocratização, mas ainda há muita gente ao seu lado: os que desejam andar armados nas ruas, os que sentem-se oprimidos pela comunidade LGBT, os que acreditam que seus filhos correm risco real de doutrinação esquerdista nas escolas e universidades do país. Os que se agarram no patriotismo sem reflexão e em gritos de guerra paupérrimos para terceirizar o próprio senso crítico estão com Bolsonaro, e ao lado dele estarão por bastante tempo ainda – afinal, ninguém projeta tanto em um pretenso herói para abandoná-lo no primeiro solavanco da viagem. Mas quem muito exclui pouco agrega, e os atos pró-governo do dia 30 de junho – menores de público, inchados de inimigos – mostraram isso com clareza. E as manifestações contra Bolsonaro, significativas e numerosas em todo o país, também entram nessa equação.

Não haverá paz. Jair Bolsonaro não é o gerador de crises: ele é a crise, ele a personifica e dela necessita para legitimar a própria existência.

E nisso reside também o caráter exaustivo de seu governo: sem a crise, ele é um conjunto vazio. Então, é preciso reproduzir o conflito o tempo todo, para que se discuta a tomada de três pinos ao invés de falar de um crescimento econômico ínfimo ou de mais de 13 milhões de desempregados no Brasil.  A revolução personificada em Bolsonaro é feita apenas de pressa e ímpeto, de tal forma que nem mesmo sua figura principal está no controle e até seu próprio líder é, em boa medida, dispensável. Se deixada livre, tende a deixar somente terra arrasada em seu lugar – e por isso mesmo precisa ser temida, exposta, questionada e combatida.

Foto: Marcos Corrêa/PR

Igor Natusch

Sergio Moro, a Lava-Jato e a Operação Mãos Sujas

Igor Natusch
10 de junho de 2019

Dizer que a Lava-Jato foi ferida de morte seria uma grande besteira, é claro. Mas não há exagero em apontar que a operação, personificada em suas figuras definidoras, está definitivamente desmoralizada a partir da série de reportagens divulgadas pelo The Intercept Brasil no último domingo. A broderagem explícita, escandalosa e ilegal entre Moro e a operação, em especial o procurador Deltan Dallagnol, estava há tempos visível, mas ainda existia em um terreno, digamos, não material. Agora, com a revelação de conversas indecentes e dos acordos absurdos que qualquer um pode ler, está escancarada de forma acachapante, impossível de ignorar.

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Os justiceiros estão nus, e sua nudez é tamanha que ignorá-la deixou de ser um acordo coletivo para virar profissão de fé. A Operação Mãos Limpas Made in Brasil revela suas mãos encardidas, imundas. A casa caiu, em suma

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Estivesse o Brasil em condições normais de temperatura e pressão, o ministro Sergio Moro renunciaria ao cargo ainda hoje

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Sabemos, no entanto, que o Brasil está muito longe das CNTP dos tempos de escola. As reações de Moro e Dallagnol até aqui, fazendo pouco ou nenhum caso das graves revelações, demonstram uma aposta na força do capital político e social adquirido: isso é algo menor, não nos tira do rumo, olhem tudo que já fizemos pela nação, seguiremos atuando de forma incansável para combater a chama corrupta que consome o país. Difícil imaginar que as multidões que organizaram “Acampamentos Sérgio Moro” e usaram camisetas com o rosto do ídolo vão simplesmente abandoná-lo a essa altura – afinal, como bem sabemos, a idolatria não deixa de ser uma forma de teimosia.

Apostar em uma rápida desidratação que forçasse Moro a juntar os cacos de dignidade e pedir a renúncia seria apostar em um Brasil onde a razão, o respeito às instituições e o bom senso fossem levados em conta. Talvez esse Brasil exista em algum best seller de livraria de aeroporto, porque no mundo real não há nem sinal dele.

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Ainda assim, o golpe é duríssimo. O capital moral de Moro e da Lava-Jato sangra em praça pública, com consequências imensas e potencialmente imprevisíveis

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O STF, apenas para citar o aspecto mais óbvio, tem em mãos material mais do que suficiente para botar abaixo boa parte da Lava-Jato – o que, por óbvio, implica sim em tornar nulos os casos contra Lula e soltá-lo o mais rapidamente possível. Se isso de fato ocorrerá, veremos nos próximos capítulos.

Verdade que nada do que vem sendo exposto significa que não tivemos desvios criminosos na Petrobrás e que agentes públicos não tiveram envolvimento na bandalheira. Nada inocenta Lula ou qualquer outra pessoa das acusações imputadas. Mas não se pode, em um Estado que se pretende de Direito, manter alguém preso apenas porque se deseja que ele fique atrás das grades, muito menos tolerar que o julgador atue como acusador. Se o absurdo uso de escutas de advogados para montar o caso contra o ex-presidente já seria suficiente para abalar decisivamente a condenação (e é), os fatos agora revelados deixam tudo ainda mais inescapável.

Se houve tabelinha entre juiz e força-tarefa para prender Lula (e quem duvidará que houve, depois de tudo que se revelou desde ontem?), o caso revela-se nulo, sua condenação nada vale e ele é um homem livre. Agir de forma diferente é confirmar que a Constituição virou papel para acender lareira, que estamos no reino do arbítrio e nada vale senão a vontade de quem tem poder. Se o material publicado pelo The Intercept Brasil foi obtido pelo hacker de forma ilegal, ainda assim ele serve para declarar nulidade de processos – o que, aliás, diz o próprio ministro Alexandre de Moraes, em livro elogiado por sua doutrina.

É um jogo de muitos riscos – e soltar Lula, é claro, também envolve riscos tremendos para muitas pessoas. Mas a disputa de poder entre Lava-Jato e Supremo não é de agora, e fica difícil visualizar os ministros perdendo a chance de aplicar em seus inimigos um golpe potencialmente mortal. Isso para não falarmos no quanto o sonho de Moro em tornar-se ministro do STF fica distante depois do escândalo em torno de seus procedimentos.

Além disso, temos as ruas. A revelação das conversas nada institucionais de Moro surge dias antes de uma greve geral, convocada para o dia 14 – um ato que, desde o início, amplia a pauta dos cortes em universidades em um discurso potencialmente mais amplo, mais aberto ao combate à reforma da previdência, por exemplo. Não é nada difícil imaginar que os setores que pedem Lula Livre estão inflamados, e engrossarão ainda mais essas manifestações daqui para frente.

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Quem viveu 2013 sabe que os protestos se transformaram em fenômeno viral justamente quando se tornaram permeáveis a outros gritos, indo (de forma não raro histriônica e caótica) muito além da pauta original do transporte público. Em uma semana que se promete horrorosa para o governo, os movimentos de oposição ao governo Bolsonaro ganham uma boa chance de saírem das cordas de vez

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Não se trata, aqui, de tentar prever uma onda de arrependidos abandonando Moro e Bolsonaro rumo à oposição. É um cenário meio fantasioso, na verdade, e que no fundo pouco interessa. O que surge, a partir das conversinhas de Moro e da inserção delas em um cenário já incerto e conturbado, é a possibilidade de um movimento agregador de insatisfações, até aqui, pulverizadas. Impossível dizer se acontecerá, mas os fatores estão presentes. E, caso ocorra uma escalada da crise, somada a um fortalecimento de seus antagonistas, Lava-Jato e governo Bolsonaro estarão colocados, juntos, no olho do furacão. Tudo por força de Sergio Moro, o elo que liga essas duas pontas em risco.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Igor Natusch

Algo está acontecendo no Brasil. E isso é péssimo para Bolsonaro

Igor Natusch
16 de maio de 2019

Fiquei durante cerca de 20 minutos no topo do Viaduto Otávio Rocha, nesta quarta-feira, observando os manifestantes de Porto Alegre que passavam logo baixo, de um ponto a outro da avenida Borges de Medeiros. Em nenhum momento consegui enxergar o final da massa humana, seja de um lado, seja do outro. Não sou bom nesse tipo de conta e não vou me arriscar, mas era muita gente. Mesmo. Bem mais do que eu imaginava que seria. Muitos universitários, sim, e muita gente ainda mais jovem, que quer ter a chance de ser universitário ou universitária um dia.

Ouvi buzinas e vi pessoas aplaudindo das janelas. Ouvi o motorista do ônibus que me levou até o Centro de Porto Alegre comentando com passageiros sobre o protesto, demonstrando concordância, explicando os cortes na educação com bastante propriedade. Vi outro cobrador, no circular que me levou ao trabalho no começo da tarde, usando o celular para registrar, solidário e sorridente, professoras que se dirigiam ao abraço simbólico em um instituto federal. Não vi um xingamento sequer – seja contra vagabundos, contra petralhas ou qualquer outra coisa.

Segundo o Nexo, manifestações em defesa da educação aconteceram em cerca de 200 cidades brasileiras.

Os atos de 15 de maio foram um grande sucesso. São indicativo claro de que algo está acontecendo. E, seja lá o que for, não é nada bom para Jair Bolsonaro.

A tentativa de listar brevemente os problemas do governo é um esforço condenado ao fracasso, pois é impossível ser breve com tanta coisa a mencionar. No curto espaço da metade de uma semana, vimos a derrota brutal do governo na convocação do ministro Amadeu Weintraub ao Congresso, observamos líderes partidários outrora favoráveis fumegando de raiva após serem chamados publicamente de mentirosos, vimos o presidente da Câmara dar repetidos sinais de que está lavando as mãos. A reforma da previdência, praticamente um sine qua non para a viabilidade do governo, parece uma miragem inalcancável. Os investimentos fogem do país, o desemprego cresce, os índices sociais são cada vez piores. Até a visitinha improvisada ao Texas rende constrangimentos à entourage presidencial, com um ex-presidente norte-americano admitindo que recebeu Bolsonaro em sua casa no improviso, apenas para não cometer uma indelicadeza com um chefe de Estado.

Jair Bolsonaro está desnorteado, sem trunfos na mão, carente de amigos, ausente de aliados. E tudo isso sem citar a quebra de sigilo bancário de Flávio Bolsonaro, que coloca a família inteira diante de perspectivas funestas na esfera criminal.

A posse, vale lembrar, foi há menos de cinco meses.

Penso que não há sentido em procurar grandes estratégias onde nada indica que elas existam. O que estamos vivenciando, no Brasil, não é um esforço coordenado e metódico de construir um regime duradouro: o que se vê é um plano semi-articulado de autoritarismo de direita, à Viktor Orban / Recep Erdogan, incapaz de manter sua própria coesão interna e ruindo muito antes de conseguir consolidar seus alicerces. Aliás, se há algo que esses regimes nos ensinam, é que o autocrata moderno não se faz com explosões espalhafatosas, mas contaminando e sequestrando a legalidade. É trabalho para populistas, sim, mas não para tolos: requer método, paciência e manutenção do apoio popular.

Dos três itens, Bolsonaro só tem – ainda – o último.

E aí está a tragédia que 15 de maio simboliza para o presidente: é um sinal claro de que essa popularidade está se esvaindo.

Brigar com as universidades foi um desastre tático. Graças a esse confronto inútil, rancoroso e impulsivo, as ruas trocaram de sinal. Agora, o barulho que ecoa delas é contra Bolsonaro.

Será preciso muito mais que sinais de arminha com a mão e hashtags fajutas no Twitter para reverter esse quadro.

Foto: Carol Ferraz / Sul21

Igor Natusch

Um governo de tarados

Igor Natusch
27 de abril de 2019

É tentador tratar os diferentes núcleos de interesse que constituem o governo de Jair Bolsonaro como uma coisa só. Uma inclinação que surge não só como atalho, mas também como reação: afinal, não é o que essas mesmas pessoas fazem o tempo todo, rotulando toda divergência como comunismo, todo conhecimento como libertinagem universitária, toda pauta identitária como ameaça à sociedade e à família?

Tentador, sim, mas equivocado e até mesmo contraproducente. O governo Bolsonaro está muito, muito longe de ser todo uma coisa só. E me parece que só é possível compreendê-lo minimamente (e, a partir disso, agir contra seus aspectos mais nefastos) reconhecendo as muitas distinções entre seus grupos, admitindo que estamos diante de uma geleia de motivações primárias e muitas vezes incoerentes entre si – mas que encontraram, na figura caricata de Jair Bolsonaro, um eficiente avatar coletivo.

O que não quer dizer, é claro, que nada aproxime esses núcleos. Estão, sim, unidos em vários aspectos.

O principal deles, penso eu, é a pressa.

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Talvez se possa dizer, em um resumo grosseiro, que se trata de um bando de recalcados. Não deixa de ser verdade, mas acho que outro termo define ainda melhor: penso que são, na verdade, uma legião de tarados.

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Não quero dizer, é claro, que são todos pervertidos sexuais. Alguns possivelmente sejam, e é evidente que questões de origem sexual estão no coração de boa parte das maluquices que temos testemunhado nos últimos tempos. Mas não quero brincar de psicanalista amador aqui. Me refiro à fixação doentia, que distorce o objeto da obsessão ao ponto de transformá-lo em monstruosidade intolerável – e que motiva o impulso incontrolável de reação, de confronto e, se possível, de destruição.

Como descrever, por exemplo, os discípulos de Olavo de Carvalho que querem “limpar” a educação brasileira? Pessoas forjadas no pleno desprezo às universidades supostamente apinhadas de comunistas, que defendem a necessidade de buscar o conhecimento fora do ambiente ideologizado da academia – e que, ao mesmo tempo, inventam títulos acadêmicos em um esforço de legitimação? Pessoas obcecadas em gravar cada ato de professoras e professores, resumindo os incontáveis problemas e carências das escolas brasileiras à atuação de doutrinadores desonestos contra crianças indefesas? Pessoas que não recebem o reconhecimento que consideram justo para sua suposta erudição e, como retaliação, atacam as faculdades que os rejeitam, querem extinguir os filósofos e sociólogos que se mancomunam para negar-lhes a glória? Não estamos nós diante de gente obsessiva, com recalques não resolvidos e que, agora, se apressa em eliminar o alvo ao mesmo tempo desejado e temido?

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Não são, por acaso, um bando de tarados?

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Não existe algo de tara em um ministro que, incapaz de disfarçar sua absoluta inaptidão para as relações internacionais, chega a convocar coletivas para enumerar suas ideias supostamente revolucionárias, ao mesmo tempo em que corre para deitar-se aos pés dos Estados Unidos como um cãozinho fiel? Não são, a seu modo, tarados os que loteiam o Ministério do Meio Ambiente para liberar a exploração irrestrita de recursos naturais, que aniquilam a Funai para lançar sobre os povos originários brasileiros a perspectiva de um genocídio ainda mais acelerado e brutal?

Não serão movidos por uma espécie de tara os que inserem na incontornável discussão sobre a Previdência maldades contra idosos em situação de miséria e trabalhadores rurais, para citar apenas dois casos? E não são tarados, mesmo que não sejam todos membros formais do atual governo, os que transformam a lei em salvação da alma nacional, os que fazem acusações a aplicam penas como se em missão divina, os que esperam que a lei se dobre à punição, e não o contrário?

Evidente que há muitas nuances e interesses atuando nesse cenário, e dizer que o Brasil está na mão de gente que só pensa na satisfação imediata de impulsos depravados seria cair no erro que coloquei lá no começo, de pegar uma etiqueta só e colocar em todos os produtos do estoque. Não existe uma só extrema-direita, e não existe só uma onda no mar reacionário, ainda que os efeitos terríveis sejam basicamente os mesmos. Mas não estariam juntos se algo não os unisse, e não é exatamente a família Bolsonaro que promove essa coesão, embora ela funcione bem como imagem pública e discurso catalisador.

Trata-se de um governo de tarados: cada um com um impulso diferente, mas todos consumidos pela mesma urgência, transformados em pelotão pela ânsia e pelo frenesi.

Foto: Divulgação / Governo Federal

Igor Natusch

Bolsonaro é o avatar divertido de um governo que ameaça desandar

Igor Natusch
15 de fevereiro de 2019

Ridicularizada por seus opositores, a insólita escolha de roupas para o encontro de ministros deve ter sido um dos maiores acertos de Jair Bolsonaro desde que assumiu a presidência. De sandálias, calça de tactel e camiseta pirata de time de futebol, o presidente faz uma poderosa declaração de princípios, que talvez passe batida para quem o detesta: afirma-se como outsider em todas as situações, o líder que despreza liturgias vazias, o cara simples que não se esforça em agradar os engravatados.

Ele não está tentando ser um dos poderosos: o presidente está, na verdade, trollando todos eles. E dessacralizando a instituição Presidência da República no processo.

Convenhamos: é exatamente para isso que os fãs de Bolsonaro o elegeram, é exatamente isso que esperam que ele faça. Essa inadequação deixa o sistema mais fraco diante de Bolsonaro, e não o contrário. Populismo moderno, em sua essência. Um golaço simbólico, goste você disso ou não.

Jair Bolsonaro é, de fato, muito bom em ser o avatar do movimento que encabeça. Talvez seja a única coisa em que ele é, de fato, acima da média.

A questão que fica é: será suficiente?

Porque qualquer um que olhe para os primeiros 45 dias de governo Bolsonaro com o mínimo de espírito inquiridor vai poder constatar que, no que se refere ao governar propriamente dito, o atual mandatário está sendo um desastre. Não há, por assim dizer, um governo: há uma maçaroca de interesses distintos e divergentes, uma coleção de agendas em conflito, uma explosão de impulsos, vaidades e recalques exigindo imediata gratificação.

O governo Bolsonaro é, na verdade, a geleia formada pela união dessas coisas todas, incapaz de passar firmeza e que dá sinais evidentes de estar prestes a desandar. E o comando de Jair Bolsonaro sobre esse agrupamento tem se mostrado precário, para não dizer inexistente.

A forma amadora e inepta como o governo federal lidou com a situação em torno de Gustavo Bebianno é o mais recente desdobramento dessa incapacidade – e, possivelmente, um dos mais graves para a gestão como um todo. Diante das graves acusações de candidaturas laranjas nas eleições de 2018, Carlos Bolsonaro não hesitou em expor o desafeto, chamando-o publicamente de mentiroso – e logo viria a própria conta de Jair Bolsonaro no Twitter dar RT na acusação, em uma fritura pública das mais escancaradas que já se viu.

O problema é que Bebianno, embora novato na política, não é um qualquer. Trata-se de uma figura bem vista pela ala militar do governo e um dos raros interlocutores do governo Bolsonaro no Congresso – ao ponto do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deixar bem claro que a saída dele daria um recado tão ruim aos parlamentares que até a reforma da previdência poderia entrar em risco.

Diante da necessidade inarredável de decidir, Jair Bolsonaro ausentou-se. Recusou-se a receber seu suposto braço-direito em reunião, ficou esperando que ele se demitisse por vontade própria e, quando ficou claro que isso não aconteceria, foi preciso que Onyx Lorenzoni fosse até Bebianno assegurar-lhe que não haveria demissão. Se pensarmos que, há cerca de três anos, Bebbiano e Bolsonaro sequer se conheciam, o temor em desagradar o companheiro na berlinda sussurra coisas nada tranquilizadoras para o país.

Recém saído de uma longa internação hospitalar, tudo que Bolsonaro se dispôs a fazer diante da crise foi aparecer em uma reunião de governo de chinelos e calça de abrigo, usando a própria falta de jeito como ferramenta midiática.

Deu certo, até certo ponto: as redes sociais, pelo menos, estão discutindo mais o desalinho do presidente do que sua escancarada incapacidade de governar. Mas é pouco – e todos em Brasília e adjacências sabem disso, por mais que se esforcem para não admitir.

Preocupado com as manchetes, o governo precisa igualmente achar um jeito de, ao menos, tentar governar. Há uma reforma encomendada a aprovar, há investimentos internacionais para atrair, uma economia que ainda está longe de vender saúde, e nada disso irá embora com meia dúzia de aparições engraçadas e propostas (como a Lei Anti-Crime) que jogam para a torcida sem pensar no que virá depois. Isso pode funcionar para a fandom estabelecida, e tende a ter efeito transitório sobre os que depositaram um voto de angústia em Bolsonaro, mas nem todo mundo está disposto a apostar seu dinheiro e seu futuro em um avatar, como o Brasil fez. E logo grandes atores econômicos vão exigir algum tipo de certeza – de uma forma, ou de outra.

Mesmo porque, por mais divertidos que sejam, os avatares não são eternos. Quando a gente não se sente mais representado pela foto de perfil no Facebook, a gente troca por outra. Sabe como é.

Foto: Reprodução / @MajorVitorHugo / Twitter

Igor Natusch

Um dia com gosto de tragédia para Jair Bolsonaro

Igor Natusch
22 de janeiro de 2019
O Presidente da República, Jair Bolsonaro,durante reunião do Conselho Internacional de Negócios no Fórum Econômico Mundial em Davos

É bem possível que o dia 22 de janeiro de 2019 seja lembrado, futuramente, como uma das datas decisivas para o governo de Jair Bolsonaro. Seja pela capacidade de resistir a uma grave turbulência logo na largada do governo, seja pelos efeitos trágicos em um mandato que não chegou sequer ao primeiro mês.

Apostas são sempre muito difíceis de fazer na política, e se tornaram um exercício especialmente arriscado no volátil cenário brasileiro. Mas, se for inevitável fazer uma aposta, a minha seria na segunda opção. Foi uma série de más notícias em um período muito curto, e nenhuma delas parece dar o menor sinal de que possa se dissipar com o passar dos dias. Ao contrário: as nuvens parecem cada vez mais espessas, o horizonte profundamente inseguro e sombrio.

A participação de Bolsonaro no encontro de Davos pode não ter sido a tragédia cheia de gafes e frases escandalosas que muitos esperavam. Essa, considerando o histórico recente, é uma vitória em si mesma para o presidente. Mas essa pequena concessão não pode disfarçar de modo algum o visível fracasso de Bolsonaro em demonstrar uma visão segura ou, pelo menos, compreensível do próprio governo e do que ele tem a oferecer aos investidores internacionais.

Sim, o discurso foi curtíssimo – pouco mais de seis minutos, quando a janela para sua fala era de quarenta e cinco minutos, mais de sete vezes maior. Sim, o discurso foi uma maçaroca sem sentido, uma coleção de frases vazias e garantias sem consistência – sem contar o quase inexistente conteúdo econômico, o que nos faz pensar por onde andava o superministro Paulo Guedes durante a redação do fraquíssimo texto. Mas essas coisas, mesmo muito ruins, nem são o pior.

O que é realmente ruim – para o Brasil, acima de tudo – é a insistência em uma visão paupérrima de geopolítica, em que não avançamos um passo além da guerra fria e o Brasil escapou por um triz de virar uma Venezuela. Esse trololó pode colar (e cola, como bem vimos) no cenário local, mas toca todas as notas erradas quando repetido para investidores de alto calibre, que não têm absolutamente nenhuma preocupação com o fictício avanço do comunismo em escala global.

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Para quem está querendo investir no Brasil, essa papo só denota despreparo e desconexão da realidade, justamente o contrário da impressão que Bolsonaro pretendia causar. É o discurso errado, mas, acima de tudo, é o discurso no lugar errado.

Some-se isso à incapacidade de oferecer qualquer tipo de proposta concreta e a fala presidencial na abertura de Davos vira algo muito próximo do desastre.

Além de ignorante, Bolsonaro conseguiu convencer os líderes políticos e detentores do capital financeiro de que é um bicho do mato. Outro caso de incompreensão de cenário: bancar o humilde que almoça no bandejão pode ser interessante em uma visita à Catedral da Sé, mas passa uma péssima imagem em um encontro global, feito para as pessoas conversarem, estabelecerem relações, montarem estratégias conjuntas. Cada refeição, cada pausa para o café, cada troca de palavras no credenciamento ou dentro do elevador faz enorme diferença – não só para a imagem que se quer mostrar ao mundo, mas também no que o mundo espera do líder de uma das economias emergentes do planeta.

Tão grave foi a falta de diálogo de Bolsonaro e sua equipe que a União Europeia agendou uma reunião com a delegação brasileira, tentando esclarecer o que o Brasil tem em mente, já que simplesmente não houve a menor demonstração de interesse em manter o acordo entre Europa e Mercosul.

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Péssimo sinal para um país que, determinado a superar desconfianças, parece agir exclusivamente para ampliá-las.

E tudo isso é só o desastre internacional

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Ao desembarcar no Brasil, Bolsonaro terá um cenário explosivo pela frente, com seu filho Flávio enredado em denúncias que não consegue explicar – problemas aos quais, neste desastroso 22 de janeiro, somou-se a inexplicável proximidade com milícias que podem ter envolvimento até na morte da vereadora carioca Marielle Franco. A situação do senador eleito é tão grave que merece um texto à parte, mas aqui nos interessa o efeito sobre o governo – e quem comprar a narrativa pobre de “o filho é uma coisa, o pai outra” só poderá fazê-lo por ingenuidade ou interesse. Ou já esqueceu-se que a esposa de Bolsonaro recebeu, em sua conta, dinheiro de Fabrício Queiroz (alguém que pode, muito concretamente, receber dinheiro de milícias) destinado expressamente ao marido?

A realidade é uma só: trata-se de um tremendo escândalo, nitroglicerina pura, um enrosco que pode engolir a família inteira e jogar a governabilidade do patriarca no abismo. As revelações se atropelam, e é difícil até imaginar que estratégia Jair Bolsonaro poderá adotar para tentar escapar da lama que ameaça soterrá-lo.

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E aí surge a questão incontornável: será Bolsonaro capaz de avançar diante de sua primeira grande crise?

Eterno “outsider” junto ao parlamento, cercado de figuras caricatas e incompetentes, sem qualquer experiência de Executivo e visto na esfera internacional como um pateta, o presidente não encontra forças nem para conceder uma entrevista coletiva, que dirá para tomar as medidas enérgicas que possam dar rumo e autoridade a seu governo. Seus únicos amigos dignos de nota, no momento, parecem usar farda – e eles têm um general naquela que é, no momento, a posição mais estratégica da política brasileira: a vice-presidência da República. Quanto valerá a lealdade a Bolsonaro, caso a situação se torne insustentável?

Jair Bolsonaro sai desse 22 de janeiro de 2019 muito, muito pior do que entrou – e isso que ninguém poderá dizer que tudo estava bem antes do dia começar.

Claro que nada está gravado em pedra, ainda mais em um mandato que mal começou, e uma sequência de acontecimentos positivos pode ser suficiente para que o governo Bolsonaro consiga sair dessa encruzilhada. Mas será preciso uma tenacidade e uma habilidade política que nem Jair Bolsonaro, nem qualquer das pessoas decisivas em seu entorno parece ter. Mesmo Sergio Moro, principal fiador da credibilidade de Bolsonaro junto à opinião pública, mergulha em um silêncio que traz todas as notas de um mau presságio.

Renan Calheiros, a pessoa que melhor entende as intrincadas teias da política brasileira, teria dito que Bolsonaro começaria a fazer água com seis meses de governo. Parece incrível, mas, se ele falou mesmo tal coisa, enganou-se: a crise veio cinco meses e dez dias antes do imaginado.

Foto: Alan Santos/PR

Igor Natusch

A isenção de Sergio Moro: outro mito que vai para o espaço

Igor Natusch
1 de novembro de 2018

Há dois anos, o juiz Sergio Moro era enfático: jamais entraria para a vida política.

“Sou um homem de Justiça e, sem qualquer demérito, não sou um homem da política. É uma atividade importante, existe muito mérito em quem atua na política, mas eu sou um juiz, estou em outra realidade, outro perfil. Então, não existe jamais esse risco.” Sérgio Moro, em entrevista concedida ao Estado de São Paulo.

Muita coisa muda em dois anos. Nesta quinta-feira, Sergio Moro aceitou convite do presidente eleito Jair Bolsonaro para assumir uma espécie de super-ministério, reunindo as pastas de Justiça e Segurança Pública. Não só entrou na política, como aderiu imediatamente (e “muito honrado”, como ele mesmo coloca em nota oficial) ao primeiro governo federal que apresentou convite. Embora não seja, é claro, um governo qualquer – e essa simples constatação faz toda, absolutamente toda a diferença.

Para o governo Bolsonaro, escalar Sergio Moro traz benefícios claros. Menos de uma semana depois de ganhar a eleição, o recém-eleito já sofre abalos em apoio e popularidade, graças a decisões esdrúxulas como fundir Meio Ambiente e Agricultura, convidar pessoas enroladas com a Lei para ministérios e a possível criação de um insólito Ministério da Família, com ninguém menos que Magno Malta no timão. Contestado até por setores econômicos, dos quais depende decisivamente para evitar turbulências, Bolsonaro ganha uma injeção de popularidade muito bem-vinda ao colocar a boa aceitação da Lava-Jato no coração de seu ministério. A medida pode criar efeitos indesejados a médio prazo, mesmo porque demitir um ministro como Moro é quase impossível. Mas isso pouco importa no momento – em especial para o próprio núcleo do governo, que dá claros sinais de que não está preocupado em planejar muito adiante o que quer que seja.

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Nada disso, porém, pesa da mesma forma para o próprio Sergio Moro

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Acima de tudo, está definitivamente legitimado o discurso de atuação política na Lava-Jato. Ou alguém lembra de juízes da operação Mãos Limpas, na Itália, entrando no ministério de Silvio Berlusconi? Poderá alguém esquecer que os vários supostos erros de condução de Moro – a divulgação inacreditável de áudios de uma presidente em mandato, as articulações em plenas férias para evitar a soltura de Lula – foram sempre para um lado, sempre prejudiciais a uma esfera específica, e que (vejam só a surpresa) essa esfera calha de ser justamente a oposta ao presidente agora eleito?

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Será possível ignorar que, em plena campanha deste ano, Moro levantou sigilo sobre as delações de Antonio Palocci, que o próprio Ministério Público Federal declarou inúteis – e haverá quem, diante de indicações de que o convite de Bolsonaro ao juiz foi feito ainda antes das urnas, seja incapaz de unir os pontos e chegar a uma conclusão?

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Moro afirma que se afastará imediatamente das atividades da Lava-Jato, de forma a evitar “controvérsias desnecessárias”. Tarde demais: sua isenção já foi para o espaço, transformada em cargo político em um governo de inclinações ideológicas indisfarçáveis.  

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Ao aceitar o convite do futuro presidente, Sergio Moro não apenas lançou sombras sobre seu presente, mas cristalizou um discurso que há muito paira sobre sua atuação na Lava-Jato: a de que foi perseguidor e não juiz, atuando como braço de uma guerra política e não como guardião das leis.

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Mesmo os que defendiam a isenção do super-herói de Curitiba ficam sem argumentos diante da quase confissão simbólica que ele acaba de cometer. O conflito de interesse é cristalino, tão óbvio que colocá-lo em dúvida é pedir para passar vergonha.

Graças à obsessão pessoal de Sergio Moro contra Lula, o ex-presidente foi alijado da disputa eleitoral – e, como recompensa, o justiceiro foi convidado (mesmo antes do pleito acontecer) para ocupar um cargo ministerial na chapa mais obviamente beneficiada pela ausência do barbudo. Valendo dizer que a própria esposa de Moro comemorou abertamente a vitória de Bolsonaro, pouco antes do marido ganhar uma privilegiada oportunidade de emprego junto ao novo chefão do Brasil. Questionem o quanto desejarem essa leitura, mas ela é óbvia demais para ser ignorada – e certamente será majoritária em vários lugares, em especial fora do Brasil. Afinal, a Lava-Jato não é exatamente uma campeã de popularidade na mídia internacional, e Lula construiu muito bem a imagem de injustiçado e vítima de lawfare.

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Só um alienado age e pensa política ignorando a esfera internacional. E só um aloprado – ou alguém movido pela vaidade – poderá achar que ninguém vai estranhar que o juiz que prendeu Lula ganhe um super-ministério no governo do rival.

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O guerreiro contra a corrupção e que enfrentava de forma destemida o sistema ficou, definitivamente, nas séries do Netflix: na vida real, alinhou-se na primeira chance que teve com a ala política que favoreceu, dando fortes elementos para argumentar que sua atuação sempre foi movida por simpatias.

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E quem poderá dizer que, daqui para frente, deixará de tê-las?

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Diz-se que, envaidecido pelos aplausos das massas, Moro já cogita inclusive a Presidência da República. Mas as urnas ainda nem esfriaram do pleito deste ano, e 2022 ainda é uma ponte muito distante. Pisando nas nuvens, Sergio Moro talvez não perceba que é como a mulher de César: mais até do que ser honesto, precisa parecer sê-lo. E é precisamente isso que foi comprometido hoje, de forma que pode ser decisiva mais adiante.

Foto original: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil. Montagem: Vós

Igor Natusch

Jair Bolsonaro nos ameaça. Quem ele pensa que é?

Igor Natusch
30 de setembro de 2018
Mulheres protestam contra o presidenciável Jair Bolsonaro no centro do Rio

Jair Bolsonaro é um golpista e uma figura nefasta para o Brasil. Suas últimas falas (em especial esse absurdo inominável de só aceitar o resultado das urnas se ele for eleito) deixam claro que ele não deseja servir à democracia, mas sim sequestrá-la. Bolsonaro é a pura vulgaridade política, no sentido mais grotesco de preconceito, ódio e despreparo, mas nem é disso que estamos falando: o que pega, aqui, é a declaração clara de que deseja usar o processo democrático apenas como ponte – e se a ponte não servir, a democracia que se lasque.

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Seu desprezo pelas regras do jogo é um insulto a quem tenta construir uma democracia, ou ao menos algo perto disso, no Brasil. Nenhuma condenação é pouca para seus disparates. É dever de quem preza nossa ainda frágil tentativa de democracia enfrentar essa figura funesta e sua candidatura, deixando claro o engodo e o suicídio político que ela representa.

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Antes dessas falas, repudiar Bolsonaro ainda poderia, para alguns, parecer uma questão de preferência política. A partir delas, em especial, essa posição torna-se impossível sem uma dose considerável de desapego à realidade. Nada – muito mesmo o antipetismo, essa versão caricatural e fascista que o ódio aos pobres e/ou diferentes toma em nosso país – justifica jogar ao fogo o pouco de representatividade que temos, o muito de liberdade e coesão social que ainda precisamos construir. Há outros candidatos, há outras formas de combater o petismo, se isso é mesmo tão importante. Votar Bolsonaro, em termos de solução, equivale a incendiar o prédio porque não se consegue consertar um vazamento no terceiro andar.

Mas é ainda mais que isso.

Bolsonaro não é apenas uma ameaça conceitual: é concreta. Ele ameaça a nós todos. Sem disfarces. De modo arrogante – pois o que é dizer que “não pode falar pelos comandantes militares” caso Fernando Haddad vença, senão arrogância e disposição golpista? Ele diz que devemos nos ajoelhar não ao resultado das urnas, mas à vontade dele, Bolsonaro, e de mais ninguém. Isso é um insulto a todos nós – inclusive a seus eleitores, mesmo que esses não percebam. Me elejam, ou vou tocar o terror.

Quem Bolsonaro pensa que é, para falar com o Brasil inteiro desse jeito?

O fascismo é um ideário de morte. Celebrar a vida, e a liberdade de existir que é inerente ao viver, é um poderoso ato de resistência. E o Brasil, liderado pelas mulheres (nossa grande força transformadora, desde sempre e mais do que nunca), disse no último sábado que a morte se enfrenta vivendo, e que não vamos – nós, o que recusamos a ameaça personificada em Jair Bolsonaro – nos encolher em um canto, com medo da morte.

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O resultado das urnas ninguém sabe qual será. Pode ser inclusive a eleição de Jair Bolsonaro, por que não? Se a nação brasileira optar por jogar-se no abismo, assim será. Mas a liberdade não é algo que se entregue de mão beijada ao valentão que grita mais alto. Cabe enfrentar a ameaça,  lutar até o fim para vencê-la e tentar sair mais fortes disso tudo.

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Derrotar Bolsonaro nas urnas, é claro, não resolve problema algum. O Brasil seguirá cindido, talvez mais do que nunca, e as inúmeras angústias que alimentam esse flerte coletivo com a autodestruição seguirão existindo e exigindo respostas. Reconstruir as pontes incendiadas nos últimos anos será uma tarefa imensa, talvez até irrealizável. Mas nenhuma solução, por mais difícil e dolorosa que seja, poderá nascer do que esse cidadão diz, pensa e faz. Bolsonaro não é um candidato comum: é um opressor e oportunista que deseja, de forma tosca e às nossas custas, transformar-se em tirano.

Não existe neutralidade possível diante da infâmia. Que todas as vozes e bandeiras alinhadas com a busca da democracia sigam se erguendo e, juntas, derrotem essa figura vulgar de volta à irrelevância da qual jamais deveria ter saído.

Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil