Samir Oliveira

Um campo de concentração para gays na Chechênia: onde fomos parar?

Samir Oliveira
13 de abril de 2017
Foto: Divulgação/Presidência da Rússia

O mundo foi assombrado esta semana por uma informação que nem os piores portais de fake news conseguiriam elaborar: a de que autoridades na Chechênia estariam levando homossexuais para um campo de concentração. Na era da pós-verdade e das notícias falsas, confesso que custei a acreditar. Até que garimpei em diversos sites confiáveis e verifiquei, para meu espanto, que a notícia era verdadeira.

Contudo, a dificuldade de acesso a informações no local, devido ao bloqueio proporcionado pelo poder público na Chechênia, borra ainda mais as fronteiras entre o que é real e o que são especulações.

Por exemplo: até o momento nenhum informe soube precisar onde ficaria este campo de concentração. Mas todos são unânimes em relatar que homossexuais estão sendo perseguidos e assassinados. A maior parte das informações vem de organizações em defesa dos direitos humanos. Tudo começou quando um movimento LGBT da Rússia passou a exigir das autoridades permissão para realização de paradas do orgulho LGBT em diversas cidades do país. A “ousadia” despertou a revolta de comunidades que já são extremamente preconceituosas, deslanchando uma caça às bruxas devastadora para a população LGBT na região – a imensa maioria, aliás, ainda dentro do armário, por motivos óbvios.

?Mas o que a Rússia tem a ver com isso?

Todas as notícias sobre o assunto falham em explicar exatamente o que é a Chechênia. É uma República, mas não é exatamente um país independente. Acontece que na Federação Russa existem vários níveis de autonomia concedidos a seus territórios. Existem 83 divisões territoriais na Rússia: 46 províncias, 21 repúblicas, 9 territórios, 4 regiões autônomas, 2 cidades federais e uma província autônoma.

As repúblicas gozam de uma ampla autonomia em relação ao Kremlin. Têm seus próprios presidentes e parlamentos. Mas isso não justifica a omissão de Vladmir Putin em relação ao que ocorre na República da Chechênia.

Os últimos anos já nos deram provas o suficiente de que a Rússia, como um todo, é uma sociedade bastante conservadora no que diz respeito à população LGBT. Não causa surpresa o fato de o governo central se omitir sobre a perseguição escrachada aos gays em seus territórios.

A República da Chechênia é governada por Ramzan Kadyrov, aliado de Putin e muçulmano sunita, assim como a maioria dos habitantes da região. Não que eu ache que a culpa pelo preconceito seja da religião, muitos países possuem maioria muçulmana, seja ela sunita ou xiita, e não constroem campos de concentração para LGBTs. O Brasil é um país de maioria católica e é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Ou seja, a questão é muito mais profunda e complexa. Infelizmente visões ocidentalistas e mal intencionadas acabam manipulando os fatos para construir um discurso islamofóbico que sirva aos interesses das grandes potências ocidentais.

A própria resposta do governo local da Chechênia às acusações de que estaria perseguindo homossexuais é uma prova cabal de que algo muito obscuro ocorre na região: “Não podemos perseguir quem não existe”.

O autoritarismo de Kadyrov é notório – e não é de hoje. Em 2006, a jornalista russa Anna Politkovskaya foi assassinada em frente ao seu prédio em Moscou semanas após dar uma entrevista a uma rádio qualificando o governante chechênio como “um covarde escondido atrás de um exército”.

Resposta internacional

A comunidade internacional precisa se insurgir contra este absurdo. A construção de campos de concentração para homossexuais nos leva aos períodos mais sombrios da história da humanidade. Há relatos de que as autoridades policiais da Chechênia estariam usando o Facebook para “descobrir” quem é homossexual na região, marcando encontros com homens gays para então prendê-los.

Seria ingenuidade minha pensar que a ONU ou qualquer potência internacional adotariam medidas drásticas contra a Rússia, ela própria uma potência com assento no Conselho de Segurança. Mas é preciso, no mínimo, dar acesso aos grupos em defesa dos direitos humanos para que possam ingressar na Chechênia com plena liberdade para salvar as vidas ameaçadas pela intolerância. Para que possam oferecer aos homossexuais da região uma porta de saída daquele horror.

Foto: Presidente russo, Vladimir Putin, reunido com o presidente da Chechênia, Ramzan Kadyrov.
Crédito da Foto: Presidência da Rússia/Divulgação.

Samir Oliveira

Precisamos repetir o óbvio: ser gay não te impede de ser machista

Samir Oliveira
9 de março de 2017
Foto: Adria Meira

Nesta semana marcada pelo Dia Internacional da Mulher, o assunto desta coluna não poderia ser outro que não o machismo perpetuado por homens gays. Trata-se de algo tão intrínseco em nossa própria sociabilidade que pode ser difícil para alguns identificar determinados comportamentos e discursos como integrantes de uma cultura machista. Façamos, então, um esforço radical de compreensão.

Eu aprendi muito com minhas amigas. Especialmente com minhas amigas lésbicas. À medida em que passei a conviver mais com as outras letras da população LGBT, fui percebendo o quanto o segmento “G”, ao qual pertenço, está na vanguarda do atraso quando olhamos para o conjunto de nossa comunidade. Não me refiro apenas ao movimento gay enquanto um corpo político – justamente apontado como centralizador de toda causa LGBT, valendo-se de privilégios que lésbicas, bissexuais e transexuais não possuem. Refiro-me aos indivíduos gays enquanto sujeitos, suas dinâmicas internas de convivência e linguagem.

Ao deixar de me relacionar apenas com amigos heterossexuais passei a me libertar de diversas formas ao estabelecer vínculos com outros sujeitos como eu. Outros homens gays. Mas hoje percebo que, no que diz respeito ao machismo, apenas transitei do convívio com comportamentos machistas heterossexuais para o convívio com comportamentos machistas vindos de homossexuais.

Ainda é muito comum, em círculos de amizade formados por homens gays, ouvir absurdos misóginos

Ouvir expressões que humilham mulheres, que expressam a ideia de que homens gays possuem nojo da genitália feminina. Também não são raras as vezes em que homens gays se apropriam de elementos socialmente tidos como “femininos” como forma de rebaixamento, ecoando a noção de que tudo que é associado a uma ideia de “feminino” é inferior. Esses comportamentos, muitas vezes, não são reproduzidos de maneira a constituir conscientemente uma ação machista. Mas oprimem da mesma forma. Não me custa nada entender por que minhas amigas lésbicas preferem sair com meninas lésbicas, interagir com outras mulheres. Elas se sentem mais seguras e acolhidas, a salvo de comentários de seus amigos gays que, mesmo de forma inconsciente, reproduzem machismo e até mesmo lesbofobia.

Isso para não falar das mulheres transexuais e travestis. Estas estão sujeitas a toda forma duvidosa e opressora de humor por parte de homens gays. O tempo inteiro.

Ainda hoje é preciso repetir o óbvio: que ser gay não significa portar um passe livre para a reprodução de outras opressões. Que ser gay não te impede de ser machista. A força da luta das mulheres despertou em mim um alerta permanente a este tipo de conduta. Eu preciso do feminismo para ser viado. Porque homofobia e machismo andam de mãos dadas, massacrando juntas tudo que é associado a conceitos socialmente construídos de “feminilidade”. Porque durante toda a minha infância eu fui ensinado a entender que ser “mulherzinha” era ser inferior. Que não havia “xingamento” pior para um menino do que ser chamado de menina. Que eu não podia usar canetas coloridas na escola, porque isso “era coisa de bichinha”. Que eu não podia lavar louça em casa, porque “isso é coisa de mulher”. Que se eu não “andasse como um homem” poderia ser insultado nas ruas. A maioria dos ataques e insultos homofóbicos tem suas raízes cravadas no ódio a qualquer ideia socialmente associada ao feminino. É inaceitável que homens gays, vítimas desses mecanismos perversos de opressão sistêmica, também reproduzam a lógica das engrenagens que os sufocam.

Foto: Adria Meira

Samir Oliveira

Especular sobre a sexualidade alheia é uma forma de violência

Samir Oliveira
2 de março de 2017
Foto: Ludovic Bertron/Flickr

No movimento LGBT muito se debate sobre a necessidade de termos orgulho de ser quem somos. De sairmos da vergonha, da reclusão, do espaço convencionalmente chamado de “armário” para o orgulho. É um processo difícil e extremamente subjetivo. Cada pessoa sabe a forma de conduzi-lo de acordo com sua realidade, com sua situação afetiva e familiar.

“A exposição de LGBTs ocorre diariamente em comunidades, bairros e círculos sociais, ampliada pela potência das redes sociais”

Mas muitas pessoas não têm essa escolha. Acabam sendo expostas. Acabam sendo alvo de especulações, até mesmo de acusações. A exposição de LGBTs ocorre diariamente em comunidades, bairros e círculos sociais, ampliada pela potência das redes sociais. Há um fenômeno igualmente perverso que atinge escalas ainda maiores: a exposição de LGBTs famosos. Personalidades que, por qualquer que seja o motivo, optaram por não fazer uma transição pública do armário para o orgulho. E tudo bem, ninguém é obrigado a isso, ainda mais quando se é uma pessoa pública. Sabemos que a atenção da mídia e a reação das pessoas nem sempre acontece da maneira mais agradável.

Muita gente pode argumentar que pessoas públicas têm poder de influência e, portanto, enquanto LGBTs, deveriam utilizá-lo para lutar contra o preconceito. É verdade, concordo com isso. Mas não podemos empurrar ninguém para essa situação. Precisamos respeitar o tempo e a disposição de cada um. Estrutura emocional e fortalecimento afetivo não brotam do dia para a noite.

Privacidade

Isso não quer dizer que estas pessoas sejam mal resolvidas, infelizes e vivam uma vida de mentira. O ator Leonardo Vieira, exposto em uma foto beijando outro homem, nunca escondeu sua homossexualidade de seus amigos, de sua família e das pessoas que compõem seu círculo social. Ainda assim, o preconceito caiu sobre suas costas de forma brutal quando sites de fofocas transformaram seu gesto de carinho em um escândalo.

No mundo da ficção, vimos na série Sense8 o personagem do ator Lito, um galã mexicano de filmes de ação, ser confrontado com este dilema, com a decisão de “sair do armário” publicamente – ainda que em sua vida pessoal nunca tenha se escondido para a família e os amigos. Esta trajetória não foi fácil para Lito, a própria indústria cinematográfica que o cerca foi contra a decisão. Mas após muita reflexão o personagem demonstrou que estava disposto a enfrentar o preconceito. Claro que o mundo da ficção por vezes mascara a crueza da realidade, mas Lito, assim como muita gente na mesma situação, só conseguiu transitar para o orgulho porque estava fortalecido em seu círculo afetivo e familiar.

A polêmica envolvendo Daniel

Recentemente uma nova falsa polêmica atingiu as redes sociais e revelou como a lógica da exposição forçada pode ser cruel e se retroalimenta inclusive dentro da própria população LGBT. Em pleno Carnaval, a foto de um homem jovem e bonito sem camisa no perfil do cantor Daniel no Twitter gerou as mais diversas especulações a respeito de sua sexualidade. Piadas e insinuações sobre o episódio pipocaram por todos os lados, quando na verdade tudo não passava de um equívoco cometido por quem gerencia as redes sociais de Daniel e do cantor Delluka Vieira, o homem que aparecia na foto do tuíte. O mesmo tuíte havia sido postado nas duas contas, em um evidente erro de social media.

Em 2014, Daniel lançou sua autobiografia em um livro chamado “Minha estrada”. Nele, o cantor comenta que no início de sua carreira eram fartos os boatos sobre sua sexualidade. “Quando comecei a ficar conhecido, a imprensa queria saber com quem eu estava namorando. Como sempre fui muito caseiro, se algum jornalista perguntava se eu estava solteiro, eu dizia que sim, mesmo se estivesse namorando. Por conta disso, começaram a espalhar por aí que eu era gay. Nunca tive nenhum tipo de preconceito contra os homossexuais, mas, em determinados momentos, essa história ganhou uma dimensão que começou a me incomodar. Inventaram um monte de histórias, algumas circulavam com força na internet”, disse.

As especulações ganharam força após Daniel aceitar fazer parte de uma campanha publicitária para uma marca de cuecas, com fotos suas em peças íntimas circulando por cartazes e outdoors. São exemplos de como a cultura da exposição forçada – seja ela sobre pessoas famosas ou não – é uma expressão da homofobia que precisamos combater. É também um ato de violência que atinge inclusive pessoas que não são LGBTs. Ninguém tem o direito de tirar uma pessoa à força do armário, sem que ela esteja fortalecida afetivamente para lidar com tudo que isso representa. Sair do armário é um ato de empoderamento, mas só se você quiser e estiver pronto ou pronta para isso.

Foto: Ludovic Bertron/Flickr

Samir Oliveira

Uma farsa criada para perseguir ativistas

Samir Oliveira
23 de fevereiro de 2017
Foto: Caroline Ferraz/Editorial J

Não é exagero afirmar que o ano de 2013 foi um ano decisivo na minha vida. Naquela época trabalhava como repórter e foi nesta condição que acompanhei todas as manifestações que tomaram conta de Porto Alegre, no lastro de uma revolta popular que revirou o Brasil e amedrontou a casta política.

As jornadas de junho fizeram parte do meu amadurecimento político. Foi com a juventude nas ruas em 2013 que fortaleci minha consciência de militante LGBT, percebendo que algo novo estava sendo gestado naquele momento. Conheci muita gente, me aproximei de coletivos e movimentos. Fui tomado por aquela atmosfera incontrolável e potente.

“Nem o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez conseguiria ser tão criativo na invenção de uma crônica fantástica como essa montada pela polícia gaúcha, com a cumplicidade do Ministério Público e a anuência do Judiciário”

Mas este texto é mais do que um exercício de nostalgia. É uma necessidade. No dia 21 de fevereiro iniciaram-se as audiências de um processo que se arrasta desde 2013 contra seis ativistas que participaram das jornadas de junho: Matheus Gomes, Rodrigo Brizolla, Lucas Maróstica, Gilian Cidade, Alfeu Neto e Vicente Mertz. Trata-se de uma farsa jurídica. Nem o realismo mágico de Gabriel Garcia Márquez conseguiria ser tão criativo na invenção de uma crônica fantástica como essa montada pela polícia gaúcha, com a cumplicidade do Ministério Público e a anuência do Judiciário.

Estes jovens não estão sendo acusados por acaso. Todos faziam parte da organização do Bloco de Lutas pelo Transporte Público, esforço de diversos coletivos e entidades que se unem em torno de uma pauta comum para mobilizar a sociedade porto-alegrense por um transporte 100% público e de qualidade. Foram selecionados pelo Estado para servir de exemplo a todos os manifestantes, numa tentativa de rebaixar os movimentos sociais a algo semelhante a uma quadrilha perante a opinião pública.

As acusações

Os seis militantes são acusados de liderar depredações e saques. A acusação é baseada no depoimento de uma pessoa desconhecida, que disse ter roubado dois secadores de cabelo a mando do Bloco de Lutas. Uma piada de mau gosto. Como se o levante juvenil e popular de 2013 tivesse ido às ruas do Brasil inteiro para roubar secadores. Mas a trama fica mais interessante quando verificamos as outras testemunhas que embasam a ação: um policial militar e o jornalista Voltaire Santos que, na época, trabalhava na Rádio Gaúcha.

O repórter em questão se infiltrou de forma clandestina em uma assembleia do movimento, afirmando à polícia ter presenciado a organização de ações violentas por parte dos manifestantes. É a expressão de um tipo de jornalismo que sempre atuou em uma relação umbilical com a polícia. O mesmo jornalista foi um dos responsáveis pelo fechamento de uma clínica de aborto em Porto Alegre, gerando constrangimento a mulheres que se veem obrigadas a recorrer a estes locais e ainda por cima acabam sendo expostas como criminosas em uma articulação perversa entre mídia e polícia.

A minha participação

Como repórter, acompanhei de perto todas as manifestações de 2013. Estive em assembleias do movimento durante a ocupação da Câmara Municipal e nunca presenciei qualquer organização de atividade violenta. Eu tinha contato direto com muitos dos ativistas acusados nesta ação. Nunca vi nenhum deles com uma pedra na mão ou incitando – muito menos coordenando – qualquer atitude violenta. As depredações que ocorreram foram um sintoma daquele momento político, um fenômeno espontâneo e incontrolável das ruas em ebulição, não uma atitude orientada por qualquer movimento. Dificilmente multidões se rebelam com um sorriso no rosto e flores nas mãos.

Sei que esta coluna é um espaço para falar de temas relacionados à população LGBT. Talvez pareça que este texto não tem relação nenhuma com isso, mas tem. Em 2013, centenas de milhares de jovens tomaram as ruas mandando um recado ao nosso sistema político apodrecido: “Não nos representam”. Essa foi a síntese de um acontecimento que, mesmo com imprecisões, representou uma fissura no regime. É por isso que a juventude que saiu às ruas está até hoje sendo perseguida. É por isso que o Estado quer transformar ativistas em réus.

A comunidade LGBT nunca foi representada por este sistema denunciado em 2013. A institucionalidade brasileira não dá a seus cidadãos LGBTs direitos básicos, como casamento – regulado pela esfera judicial, mas inexistente no âmbito legal -, direito à livre identidade de gênero e um conjunto de políticas públicas voltadas à educação para a diversidade e ao combate ao preconceito. A ausência destes direitos alimenta uma cultura do ódio e torna cada um de nós, LGBTs, alvos permanentes. Por isso optei por usar este espaço hoje para denunciar esta farsa, este processo kafkiano. Os LGBTs conhecem de perto o arbítrio e estão sujeitos a todo tipo de autoritarismo, portanto nenhum de nós deve compactuar com este tipo de situação.

Foto: Carolina Ferraz/Editorial J

Samir Oliveira

Apoie as drags locais, elas são fabulosas

Samir Oliveira
16 de fevereiro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo

O meu primeiro contato com a cultura drag foi uma decorrência de um dos meus primeiros contatos com o entretenimento LGBT em geral. Com a ideia – revolucionária para um guri de 18 anos recém-feitos – de que existiam espaços onde eu poderia ser mais livre, mais leve e mais feliz. Ser mais eu, afinal. Era o verão de 2006 e eu estava recém começando a frequentar as festas LGBTs em Porto Alegre. Aliás, naquela época ainda se usava o termo “GLS”.

Uma breve pausa: não posso deixar de solicitar um minuto de silêncio ao constatar que 2006 já é considerado “naquela época”.

Mas não foi na Capital que tive minha primeira experiência com a cultura drag. Foi no litoral. Em Tramandaí havia a única casa noturna LGBT de todo o Litoral Norte gaúcho. Era o saudoso Sunga’s Bar. Um cubículo que milagrosamente (certamente pelos poderes de Cher) abrigava uma pista de dança, um palco, um bar, um arremedo de pátio externo, uma sala com exibição de filmes pornográficos e, claro, um dark room.

Foi no Sunga’s Bar que vi a primeira apresentação artística de uma drag queen. Até hoje nunca vou esquecer a performance memorável da Castanha, que dublou “Vai Wilson, vai” com maestria. Castanha, para quem não sabe, é uma personagem histórica da cena transformista. Inclusive há um longa-metragem que leva seu nome e um pouco de sua arte, dirigido pelo gaúcho Davi Pretto.

“A gente costuma crescer achando que não existem outros LGBTs no mundo”

A performance de Castanha me marcou. Eu ainda estava desbravando um mundo novo para mim: o de festas e ambientes de sociabilidade onde eu podia sair livremente com meus amigos, flertar, beber, dançar e absorver todo tipo de referência cultural que a heteronormatividade sempre manteve bem distante. A gente costuma crescer achando que não existem outros LGBTs no mundo. Que somos os únicos e, portanto, que deve ter alguma coisa errada conosco. Até que um dia eu descobri que somos muitos. Que somos incrivelmente diversos e criativos. E isso me fortaleceu.

Ru Paul’s Drag Race

Recentemente, a cultura drag parece ter ganhado um novo impulso. Uma nova onda de visibilidade se espalhou a partir do surgimento do seriado RuPaul’s Drag Race, um reality show dirigido pela maior celebridade drag dos Estados Unidos, Ru Paul. Ou mama Ru, como costumam dizer suas filhas – e elas são muitas. De 2009 para cá, foram oito temporadas, além de duas séries especiais onde competiam apenas ex-participantes. A nona temporada já está saindo do forno, deve estrear em julho deste ano.

Ao todo, mais de 100 drags já passaram pela competição. Não é exagero dizer que muitas delas redefiniram ou consolidaram completamente suas carreiras a partir da exposição obtida no reality show. Com prêmios milionários e patrocinadores de peso (grandes marcas de cosméticos, de perucas, de vestidos, acessórios e joias), RuPaul’s Drag Race se converteu em uma verdadeira indústria de entretenimento drag, com projeção internacional.

Eu sou um fã da cultura drag e vi absolutamente todas as temporadas de RuPaul. Gritei diante das tretas. Vibrei quando minhas preferidas ganharam. Odiei a Phi-Phi O’Hara um milhão de vezes. E sei na ponta da língua muitos bordões. Mas nada disso me impede de refletir sobre os limites deste tipo de exposição, a utilidade de seus discursos e a necessidade de construirmos narrativas próprias e independentes.

Drags locais

No Brasil, a arte drag está sendo revigorada e reinventada por jovens talentos que deixam qualquer um de queixo caído. Em Porto Alegre, especificamente, me alegra muito ver uma cena drag criativa e rebelde. Ver que existem trocas e diálogos entre as referências e as que estão começando agora. Ver que já existem famílias se consolidando, como a maravilhosa Sarah Vika e sua filha Vitz Vika. Ver que as mais distintas inspirações e estéticas moldam a arte de nomes como Charlene VoluntaireCassandra Calabouço, Belle Z, Rebeca Rebu, Eva King, Sayuri, Ayo e tantas outras. É até uma injustiça eu me atrever a citar nomes aqui, pois certamente estou – por esquecimento ou por ainda não conhecer – deixando de mencionar muitos talentos. Temos, inclusive, um drag king: León Rojas, que questiona os padrões de masculinidade através de sua arte.

A rebeldia sempre fez parte da cultura drag. Não é à toa que a revolta de Stonewall foi protagonizada por drag queens e travestis. Em agosto de 2016, em uma apresentação no Vitraux – uma das casas noturnas LGBTs mais antigas de Porto Alegre – a Alma Negrot transformou sua performance em um grito de luta contra a violência policial. Outra drag ergueu um cartaz com os dizeres “Fora Temer” e incendiou o público.

Diversas festas têm surgido com a ideia de promover a cultura drag. Muitas delas trazem drags famosas, ex-participantes de RuPaul’s Drag Race, o que costuma atrair um público considerável. É uma estratégia inteligente, se aliada com o devido espaço para apresentações das drags locais – o que me parece estar ocorrendo na maioria dos casos. Nós precisamos apoiar cada vez mais as drags das nossas cidades. Elas são fabulosas. Inclusive se você é fã de alguma, aproveite este espaço para comentar e divulgar seu trabalho. A nossa diversidade é o que nos fortalece!

Crédito da foto: Fernanda Piccolo.

Samir Oliveira

O otimismo como um direito

Samir Oliveira
9 de fevereiro de 2017
Foto: Fernanda Piccolo

O ano de 2017 começou de forma tenebrosa para a população LGBT. Tivemos a morte a facadas do jovem Itaberli Lozano, da cidade de Cravinhos, no interior de São Paulo. Com apenas 17 anos e uma vida inteira pela frente, foi assassinado pela mãe e pelo padrasto por ser gay. O enfermeiro Marcelo Correia foi atingido na cabeça com uma barra de concreto na cidade de Prado, na Bahia. O vendedor Divino Aparecido foi espancado em Uberlândia. Está no hospital, em coma induzido. Um grupo de drag queens foi barrado na entrada de um shopping na Zona Leste de São Paulo. O casal Júnior Santos e Maycon Aguiar recebeu uma carta com insultos homofóbicos e racistas de vizinhos no condomínio onde moram, no Rio de Janeiro.

Esses são apenas alguns casos. São apenas os que saem no noticiário. Certamente existem muitos outros. Neste momento, uma menina lésbica está sendo expulsa de casa. Uma travesti está apanhando nas ruas. Um homem transexual está sendo desrespeitado no sistema de saúde. As estatísticas são muito generosas com a população LGBT porque a subnotificação das agressões que sofremos todos os dias é a regra geral. A realidade é muito pior.

Mas nós viemos de muito longe. Viemos da rebelião de Stonewall, onde enfrentamos o autoritarismo da polícia com nossos corpos. Ao longo de muitas décadas, conseguimos sair da marginalidade para o orgulho. Sem nunca perder a rebeldia necessária a todas e todos que estão acostumados a observar a vida pelas beiradas. Viemos de uma longa tradição de resistência individual e coletiva. E não vamos abaixar a cabeça, ainda que este ano comece com tantas notícias ruins. Com tantas vidas golpeadas pelo preconceito.

Maria Bethânia diz em uma canção: “Não mexe comigo, que eu não ando só”. Nós não andamos sós. As multidões que saem às ruas nas paradas LGBTs de todo o país e do mundo inteiro comprovam isso. A juventude e as novas gerações são a prova viva de que a discriminação está condenada ao ostracismo. Nossas vidas, linguagens e afetos constroem verdadeiras fissuras em um sistema marcado pela opressão. De fenda em fenda, abrimos um rombo. Quando aqueles que propagam o ódio menos perceberem, estarão em um abismo.

No tempo em que vivemos, qualquer manifestação de otimismo pode ser facilmente confundida como um ato de loucura. Como uma demonstração de ingenuidade. O poeta uruguaio Mario Benedetti certa vez escreveu que precisamos defender a alegria como um direito. Acredito que também devemos ter direito ao otimismo. Podem dizer que vivo fora da realidade. Esfreguem todas as piores notícias na minha cara. Falem-me de conjuntura, me xinguem de imaturo. Não importa. Eu ainda acordo todos os dias pensando na frase da escritora indiana Arundhati Roy: “Um outro mundo não apenas é possível, como ela [sim, é uma outra munda] está a caminho. Em um dia tranquilo, eu consigo ouvir sua respiração”.

Crédito da foto: Fernanda Piccolo.